A violência familiar contra as crianças

July 5, 2017 | Autor: M. Oliveira | Categoria: Law
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A violência familiar contra as crianças “No person is your friend who demands your silence”. Alice Walker “Freedom is what you do with what’s been done to you”. Jean-Paul Sartre A violência e o abuso dentro da esfera familiar sempre foram considerados ‘incidentes’ pertencentes à esfera privada e, portanto, a natureza ou a extensão deles eram freqüentemente minimizados ou mesmo negados. No entanto, não se pode negar que a violência sempre afetou a família - e afeta - de muitas maneiras e, uma delas, é o profundo impacto que provoca nas crianças, sendo elas as vítimas ou as testemunhas do abuso. As conseqüências físicas - ossos quebrados, marcas pelo corpo, desfiguramento e até mesmo a morte -, não são tão mais horríveis do que as dolorosas marcas psicológicas e emocionais depressão, a perda da auto-estima, a vergonha, o isolamento, a ansiedade, a desesperança, a ansiedade e o sentimento de terror -, que as acompanharão, provavelmente para sempre. Os debates contemporâneos sobre a violência - e as suas mais variadas formas -, reconheceram que a violência doméstica é, antes de tudo, uma violação aos direitos humanos individuais mais básicos e, portanto, uma matéria de natureza pública e não privada. O Brasil é guiado em suas relações internacionais pelo princípio de respeito aos direitos humanos, conforme nos diz artigo 4º, inciso II da Constituição e, como conseqüência do texto legal, a partir da década de 1990, o estado brasileiro aderiu a esse novo paradigma cultural liberal, ou seja, aos vários tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Inúmeros estudos, realizados em países centrais, demonstram que a violência doméstica é uma questão que ultrapassa classe social, nível de escolaridade, raça ou gênero sexual. E que ela pode ser bem pior do que se imagina. Estudos canadenses, por exemplo, mostram que a agressão física e a agressão sexual, aparecem como duas das principais causas de lesões e de morte de crianças e de adolescentes. No entanto, elas não são facilmente documentadas uma vez que tais ‘incidentes’ nem sempre são levados ao conhecimento das autoridades posto que, geralmente, ocorrem dentro da privacidade doméstica.

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De acordo com a estatística sobre violência familiar, do departamento de estatística canadense – StatsCan - 1 não se conhece, de fato, o problema: as informações disponíveis sobre o mal trato das crianças se limitam aos boletins de ocorrência policiais, aos registros de hospitalizações por lesões causadas por algum tipo de agressão e aos dados das agências relacionadas ao bem estar das crianças. Porém, esses dados não são suficientes, uma vez que se estima que 90% dos casos de violência contra as crianças e os adolescentes não são relatados, mesmo com todas as duras leis canadenses (provinciais e territoriais) de proteção a eles. Alguns dados da polícia canadense são interessantes: •

Pessoas com menos de 18 anos perfaziam 24% da população canadense em 1997 e foram as vítimas em 23% nos casos de agressão reportados;



Elas representaram 60%, ou seja, a maioria das vítimas nos crimes de violência sexual e,



19% das vítimas de agressão física. 2

As meninas e os meninos sofreram agressões sexuais por parte de membros familiares, em números proporcionais similares, isto é, 32% para as crianças do sexo masculino, comparados com os 29% das do sexo feminino. Porém, foram as meninas as que mais sofreram agressões físicas perpetradas por membros familiares: 28% contra 14% dos meninos. Ainda de acordo com esse estudo, em 1997, os pais foram os principais responsáveis pela violência contra as crianças e os adolescentes nas famílias; eles representaram 65% dos familiares acusados de agressão física contra as suas crianças e 44% daqueles acusados de agressão sexual. Coube ao pai praticar um número maior de 1

Family Violence in Canada: a Statistical Profile, catalogue nº 85-224-XIE, 1999, Statistics Canada. Em números reais, a agressão física contra as crianças e os jovens ultrapassou o número das agressões físicas na proporção aproximada de 3 para 1.

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agressões, se comparados com as agressões praticadas pela mãe: 97% das agressões sexuais e 71% das agressões físicas foram praticadas pelo pai. As meninas foram vitimizadas mais freqüentemente por membros familiares do que os meninos. Elas representaram 79% das vítimas nos casos de violência sexual na família e mais de 55% das vítimas de violência física. Os membros familiares foram os responsáveis por 76% de todos os homicídios cometidos contra vítimas com menos de 18 anos de idade. Esse dado representou um aumento de 17% sobre os dez anos anteriores. A pesquisa também mostrou que o número de acusações por homicídios praticados pelo pai ou pela mãe contra seus filhos, aumentou; de 15 homicídios cometidos pela mãe em 1988, o número aumentou para 25 em 1997 e, de 19 homicídios cometidos pelo pai no mesmo ano, em 1997 eles foram responsáveis pelas 37 mortes de seus filhos. Na década de 1990, o maior índice de homicídios cometidos contra as pessoas com menos de 18 anos se referiu às crianças com menos de um ano de idade; 45 em um milhão de crianças foram mortas sendo que 93% desses homicídios foram cometidos por familiares: 45% pela mãe e 40% pelo pai. Os dados demonstram que houve um crescimento da violência contra as crianças nos últimos anos e que os familiares (de acordo com a definição canadense, são considerados “família” 3 os membros que têm relação consangüínea, de casamento ou de relação estável hetero ou homossexual, de adoção ou de guarda legal). Se o acusado for o namorado ou a namorada, por exemplo, provavelmente ele ou ela não será considerado como ‘família’) são os maiores responsáveis pela violência contra as crianças. Dos 1.990 casos de homicídios contra jovens de até 17 anos, resolvidos no período compreendido entre 1974 e 1999, os familiares foram os responsáveis em 63% das mortes. Como se comportarão futuramente essas vítimas daqueles que, supostamente, teriam que protegê-los e amá-los? De acordo com a feminista Gloria Steinem 4, as crianças não têm escolha: elas estão em uma posição de vulnerabilidade em relação aos pais; assim, sofrer a violência por parte daqueles a quem somos vulneráveis relaciona-se com a pior

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Definição fornecida pelo estudo Family Violence in Canada: a Statistical Profile, catalogue nº 85-224-XIE, 1999, Statistics Canada.

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forma de destruição do “eu”, do self. Parafraseando a autora, mais sério é o abuso, mais difícil será para a vítima confrontar e/ou encarar a realidade. “O meu pai e a minha mãe jamais poderiam ter feito isto comigo – eu devo estar imaginando coisas”. Isso é o que pensam as crianças vítimas de abuso, em última instância. Ainda de acordo com Steinem, é durante a infância - principalmente nos primeiros anos dela -, que sentimos o amor incondicional, aprendemos e ampliamos as nossas habilidades, mais do que em qualquer outro estágio da vida. Nos Estados Unidos, uma entre três mulheres e um entre sete homens, sofreram agressão física, sexual ou psicológica antes dos dezoito anos de idade. Esses dados independem dos níveis econômicos, educacionais, religiosos ou étnicos dos agressores. A violência encontra-se presente em qualquer classe social; o predador(a) pode ser uma pessoa muito bem educada, pode ter fé religiosa e pode ser branco, negro etc. Então, o que explica a violência? Quais os fatores que levam a um ambiente familiar violento? Uma das conclusões que podemos extrair dos vários trabalhos e estudos divulgados sobre a matéria, é que a violência gera violência. O abuso emocional, o uso abusivo de álcool, a própria imaturidade e/ou pouca idade dos parceiros podem ser considerados como alguns dos fatores de risco para a criação de um meio ambiente familiar violento. No entanto, vários estudos apontam para o fato inegável de que aquelas crianças que estão expostas à violência familiar, escutando ou presenciando agressões físicas entre os adultos em suas casas, têm mais do dobro de chances de se tornarem elas próprias as agressoras ou as vítimas -, quando comparadas com aquelas que nunca ouviram ou nunca presenciaram agressões. No Canadá, acredita-se que um milhão de crianças foram testemunhas da violência dos pais contra as mães que, em 61% dos casos, sofreram lesões físicas. Em 1990, nos Estados Unidos, a violência entre os casais foi presenciada por 3.3 milhões de crianças entre 3 e 17 anos. Estudos também mostram que as crianças expostas à violência física dentro dos seus lares, tendem a ser mais deprimidas, preocupadas e

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Steinem, Gloria (1992). Revolution from Within: a Book of Self Esteem. Boston/Toronto/London: Little, Brown and Company.

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frustradas. Além disso, elas são aquelas que, provavelmente, cometerão atos desviantes contra a propriedade, mostrarão desordem emocional e hiperatividade. Se quisermos diminuir a violência e não somente puni-la, temos que considerar a terrível evidência de que, aqueles que têm (ou tiveram) a mente e as ações controladas e os seus corpos invadidos e tratados com violência na infância, serão os que muito provavelmente continuarão agredindo e ferindo, física ou psicologicamente, os outros e a si mesmos. De acordo com a pesquisa Women and the Criminal Justice System,

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as mulheres

com idade entre os 15 e 18 anos têm maiores níveis de atividades criminais do que as mulheres adultas. No ano de 2004, houve 2.898 crimes cometidos para cada 100.000 mulheres entre 15 e 18 anos, comparados com os 631 cometidos por mulheres com 19 anos ou mais. Apesar das mulheres terem cometido 22% de todos os crimes contra a propriedade e 19% dos crimes relacionados com a violência, elas representaram somente 5% do total da população. A taxa de criminalidade das mulheres continua baixa, se comparada com as dos homens; em um universo de 100.000 pessoas em 2004, foram registradas 2.147 acusações contra as mulheres com idade entre 15 e 18 anos e 10.084 para os rapazes dentro do mesmo limite de idade. As jovens se envolvem em algum tipo de crime violento com mais freqüência se comparado com as mulheres mais velhas. As mulheres com idade entre 12 e 17 anos, alcançaram a marca de 26% entre todos os jovens acusados de alguma ofensa criminal violenta, enquanto que as mulheres adultas -18 anos ou mais -, ficaram com a porcentagem de somente 16% das acusações criminais. 6

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Catalogue n.º 89.503 – XIE - Statistics Canada Aqui seria interessante ressaltar que, um das críticas à Criminologia na atualidade é justamente o fato dela estar limitada em sua pesquisa, por considerar de baixa prioridade o papel do gênero sexual nas causas do crime. O ‘main stream’ criminológico teima em ignorar a importância dos gêneros sexuais e, que, fatores de criminalidade como a pobreza e a violência familiar, por exemplo, estão ligados à questão dos gêneros (Cf. BELKNAP, Joanne & HOLSINGER, Kristi in The Gendered Nature of Risk Factors for Delinquency Vol. I, N.º 1, January 2006 48-71 http://fex.sagepub.com) 6

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“A violência pode ser extrema e óbvia, ou pode ser bem mais sutil e até mesmo estar implícita nas maneiras tradicionais de se educar uma criança”, diz Steinem.

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“pedagogia venenosa”, isto é, “o processo de quebra do espírito da criança a fim de que os adultos possam ter mais facilmente o controle - tudo feito em nome do amor”, é claro, para salvá-los de problemas futuros relacionados à falta de disciplina. Por isso, os pais costumam dizer: “é para o seu próprio bem”. Steinem (1992 : 75), afirma que: ...Hitler was not an inexplicable monster, but a product of an extreme version of “poisonous pedagogy.” He had a sadistic father who himself had been regularly beaten with a whip until unconscious by his step father, and who in turn beat young Adolf so viciously that his sisters later remembered trying to restrain their father by holding on to his coat. A neighbor also remembered this father whistling for Adolf, as if he were a dog. And in Mein Kampf, Hitler presented a picture of himself as a six-year-old growing up with his parents and four siblings in two basement rooms, watching his father beat his mother and seeing “things which can fill even an adult with nothing but horror.” By eleven, he had been beaten almost to death for trying to run away. Later, the only thing he could remember with pride from that childhood was being able to deaden himself so thoroughly that he could take thirty-two whip-lashes from his father without making a sound.8

Talvez isso não queira dizer que a ‘disciplina’ não seja necessária.. Mas, os leitores terão que concordar que “disciplina” é matéria diferente e bem distante de “violência”. As duras lições aprendidas na infância não são tão facilmente esquecidas ou resolvidas. Uma visão de mundo e dos papéis destinados a homens e mulheres na cena social estará firmemente enraizada na psique da criança que algum dia, caso o maltrato não a faça sucumbir antes, se tornará adulta. Na vida adulta, aquela criança já (provavelmente), livre das garras dos seus intimidadores, usará do único recurso aprendido para a solução de conflitos: a violência. Uma ameaça de violência, ou uma agressão física, deveria ser vista como um sinal de alerta porque indica, para se dizer o mínimo, um desequilíbrio de poder na relação 7

In STEINEM, Gloria (op. cit., p. 73) “...Hitler não era um monstro inexplicável, mas um produto de uma versão extrema da “pedagogia venenosa”. Ele teve um pai sádico, que fora regularmente chicoteado pelo padrasto ao nível de perda de consciência e que, por sua vez, começou a bater no jovem Adolf, de maneira tão cruel, que as suas irmãs se lembravam de que uma vez, tentaram conter o pai agarrando-se ao seu casaco. Um vizinho também se lembrou que esse pai assobiava para Adolf como se ele fosse um cachorro. E, em Mein Kampf, Hitler se apresentou como um menino de seis anos de idade, que cresceu com os pais e quatro irmãs em dois cômodos de porão, assistindo ao pai espancar a mãe e vendo “coisas que fariam um adulto se horrorizar”. Aos onze anos de idade, ele fora espancado quase até à morte por uma tentativa de fuga. Anos depois, a única coisa que podia se lembrar com orgulho daquela infância era o fato de poder se conter tão completamente que podia levar trinta e duas chicotadas de seu pai sem emitir um único som”.

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familiar. Também se esquece facilmente de um dado já comprovado por vários estudos realizados sobre a violência familiar: a agressão física (por parte do agressor) tende a se repetir e a tornar-se mais violenta. Ainda assim, eles também mostram que, no caso das mulheres que foram as vítimas das agressões físicas, elas foram espancadas uma média de 35 vezes antes de chamarem a polícia. Leis mais duras, uma justiça criminal mais agressiva e eficiente, programas efetivos de prevenção e abrigos suficientes para as vítimas da violência familiar, além da conscientização de que a violência doméstica não é uma questão individual, um problema da esfera privada, mas sim um problema da esfera pública que afeta a todos, são as propostas que fazem parte da proposta internacional para o combate à violência. No Brasil, a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como a Lei Maria da Penha, sem dúvida alguma, representa um importante passo dado sobre a questão. Ela nos lembra que a violência pode ser moral e psicológica, e não somente física, além de alterar o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. A Lei Maria da Penha representa a defesa dos direitos humanos da mulher, o que, sem dúvida alguma, deve contribuir para a redução da violência doméstica. Ainda que pesem as críticas por parte daqueles que ainda não sabem lidar com as mudanças sociais hodiernas e se escondem num “juridicismo” incompatível com a sociedade ‘informacional’, tal lei contribui para a conscientização dos cidadãos sobre os direitos a uma convivência familiar livre da violência física, moral ou psicológica. Assim, o caminho a ser seguido para minimizar a violência familiar está relacionado com o esclarecimento, a educação e o respeito às normas e leis estipuladas na sociedade. Enfim, ao debate interno, local. A nossa sociedade tem que entender e estar consciente de que a violência contra as pessoas de modo geral, é crime contra os direitos humanos individuais e, portanto, totalmente inaceitável. Tem que estar claro para o agressor(a) que o crime leva ao processo criminal, consequentemente, à perda família e que, perder uma família, pode não ser uma boa idéia, afinal. Um elemento importante de combate à violência, talvez esteja justamente na conscientização da possibilidade de reaprender comportamentos, isto é, ‘desaprender’ a violência e reaprender um comportamento não violento para a resolução de conflitos. A

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participação da comunidade seria fundamental. Teríamos que agir, ser treinados. Levaria tempo, mas pode valer a pena. Afinal, as conseqüências da violência têm um peso enorme para a nação, não só sob o aspecto moral, pessoal e ético da formação dos cidadãos, mas também sob o ponto de vista econômico: gastam-se milhões do orçamento público com problemas gerados ou relacionados à violência, como saúde, a criminalidade etc. Por ora, já seria suficiente não testemunhar a agressão de uma pessoa, seja ela criança, jovem ou idoso, mulher ou homem, homossexual ou heterossexual, “família” ou “estranho” sem nos “envolvermos” em coisa “doméstica”, numa “briga de família” porque “não tenho nada a ver com isto”. A criança espancada e destituída dos seus direitos básicos, sobrevivendo, irá crescer e tornar-se o homem, ou a mulher, que viverá e contribuirá de algum modo para a sua comunidade. Esse adulto terá que conviver para sempre com aquela criança e, se ele irá abraçá-la e chorar com ela, entendendo, resgatando e salvando-a, ou se passará a vida toda lamentando o que poderia ter sido e não foi, justificando os seus comportamentos - mesmo sem perceber - ainda “infantis”, por achar que a vida muito lhe deve pelas agruras sofridas, é uma questão que terá que ser resolvida individualmente, é verdade. Mas, a comunidade também terá que, necessariamente, cumprir o seu papel; ela não pode se eximir dessa responsabilidade.

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