A violência no Islã: A luta entre os direitos humanos e o Islã

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A violência no Islã: a luta entre os direitos humanos e o Islã VIOLENCE IN ISLAM: THE STRUGGLE BETWEEN HUMAN RIGHTS AND ISLAM

André Felipe de Albuquerque Espínola Graduando em História pela Universidade Estadual da Paraíba ± UEPB Bananeiras, PB E-mail: [email protected] ESPÍNOLA, A. F. de A. A violência no Islã: a luta entre os direitos humanos e o Islã. Revista Espaço Científico Livre, Duque de Caxias, n. 21, p. 24-31, ago.-set., 2014. RESUMO normas e regras da Charia e do Alcorão, à luz dos valores e princípios ocidentais básicos garantidos pelos Direitos Humanos, em cuja essência está o seu caráter universal. O presente artigo tem por objetivo a visualização e a compreensão, portanto, do constante embate entre essas duas civilizações conflitantes, frutos de processos históricos e antagônicos, no que concerne ao trato com os Direitos Humanos.

Historicamente, o mundo ocidental olha com bastante desconfiança para religião islâmica, baseada nas suas diferenças políticas, trajetórias históricas frequentemente conflitantes e religiões que, embora possuam origens em comum, estão separadas por um abismo quase instransponível. Este artigo é um estudo sobre como a violência é tratada na tradição da religião islâmica, como resultado de um processo de unificação tribal, na Península Arábica, a partir do século VII, que deu origem ao conjunto

Palavras-chave: Oriente. Ocidente. Violência. Direitos Humanos. Religião Islâmica. ABSTRACT Historically, the western world looks quite suspicious to Islamic religion, based on their political differences, often conflicting historical trajectories and religions which, despite having origins in common, are separated by an almost impassable gulf. This article is a study of how violence is treated in the tradition of Islam, as a result of a process of tribal unification, in the VHYHQWKFHQWXU\¶V$UDELDQ3HQLQVXODZKLFK gave rise to the set standards and rules of

sharia law and the Koran, by the light of the basic values and principles guaranteed by the Western Human rights, whose essence is its universal character. This article has the goal of the visualization and understanding of the constant clash between those two conflicting civilizations, born by antagonistic historical processes, when it comes to dealing with Human Rights .

Keywords: East. West. Violence. Human Rights. Islamic religion.

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1. INTRODUÇÃO

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s costumes dos povos do Oriente, sobretudo dos povos árabes, são frequentemente vistos com muito receio e, por vezes, com horror pelos olhos ocidentais. Esse fato fica cada vez mais evidente quando vira notícia algum caso em que extremistas islâmicos interpretam as palavras sagradas do Alcorão de forma literal e a aplicam na sua maior rigidez. O último desses casos que tomou proporção mundial foi o de uma mulher do Sudão, que, grávida, foi condenada à morte pela própria justiça sudanesa, por enforcamento, além de sofrer cem chibatadas por ter se casado com um cristão e, por conseguinte, renegado à fé muçulmana. Esse é um caso que comoveu a comunidade internacional, pois fere formalmente os Direitos Humanos da forma que são aceitos, aplicados e fiscalizados, em caráter universal. Este artigo visa, portanto, investigar mais a fundo a religião islâmica e seu trato com os Direitos Humanos, através de práticas de violência e repressão contra valores e costumes específicos que costumam ser combatidos pelos dogmas religiosos do Islã. Será realmente que a religião islâmica é esse invólucro de terrorismo e violência como os meios de comunicação ocidentais costumam representar? Qual seria a origem de certas práticas culturais dos povos árabes? Viriam todas elas da religião islâmica ou seriam práticas e costumes bem anteriores ao surgimento do Islã como religião na Península Arábica a partir do século VII? Para responder a essas perguntas, primeiro devemos brevemente compreender a trajetória histórica da violência e seu uso por alguns povos como uma ferramenta legítima e natural e percebendo também como foi o processo de surgimento do que veio a ser chamado de Direitos Humanos, que foi aceito como os direitos básicos inerentes a todos os seres humanos. A partir daí, entrarmos na religião islâmica e analisarmos como essas relações de violência estão e estiveram presentes na mesma. Para isso, a metodologia utilizada foi uma pesquisa bibliográfica partindo dos Direitos Humanos, sua formação e consolidação no mundo e colocando-os à luz da civilização muçulmana, compreendendo sua formação histórica. 2. DIREITOS HUMANOS

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trajetória humana até a invenção dos Direitos Humanos foi uma trajetória tortuosa e cheia de dor e sangue. A violência, às vezes em forma de torturas, é algo que, para o bem ou para o mal, está presente na história da humanidade desde seu engatinhar. É uma prática utilizada em geral pelos povos para evitar certos tipos de conduta, seja no âmbito privado ou público, social ou político. Na História da humanidade podemos elencar tempos de extrema violência, quando ela e a tortura eram utilizadas de forma natural. Segundo registros históricos, a primeira civilização que fez da tortura e da violência práticas legítimas e cotidianas, para impor ordem e temor, foi na Mesopotâmia, com os Assírios, que as utilizavam de forma corrente contra os povos conquistados. Outro exemplo clássico institucionalização da violência na História Antiga foi também na Mesopotâmia, dessa vez na Babilônia, através do Código de Hamurabi, baseado em penas severas e degradantes, ou seja, o famoso ³ROKRSRUROKRGHQWHSRUGHQWH´ Exemplos continuam também através da Idade Média e, curiosamente, foi através de sua ligação com as religiões que a prática da violência atingiu outro patamar. A Igreja Católica e Apostólica Romana foi uma das pioneiras e das grandes especialistas

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nesse assunto, criando maneiras inusitadas, cruéis e apavorantes de tortura, combatendo dessa forma todas as práticas vistas como pecaminosas pela Igreja. Foram criados órgãos oficiais para institucionalizar a prática de tortura, sendo o mais conhecido deles o Santo Ofício, ou a Santa Inquisição, que, através do Tribunal Inquisitório, perseguia, julgava, condenava a suplícios terríveis quaisquer pessoas que IRVVHP GH HQFRQWUR DR VHX FRQMXQWR GH GRJPDV 2X VHMD XPD ³PHWRGRORJLD GH intimidação e controle dHLPSUHVVLRQDQWHHILFLrQFLD´ %$,*(17/(,*+S $ religião, em nome do bem da comunidade, exercia assim um controle completo, para isso utilizando-se de quaisquer meios que lhe coubesse com o objetivo de extirpar dissensões e heresias que ameaçassem quebrar a unidade pretendida da cristandade. O mais extremo desses meios era, sem dúvida, a tortura, utilizada não com a finalidade de matar o acuso, mas sim de obter dele a confissão do pecado pelo qual estava sendo processado pelo Tribunal. Logo, ninguém estava imune e com a vida FRPSOHWDPHQWH VXEMXJDGD j YLJLOkQFLD GD SUySULD FRPXQLGDGH ³D ,QTXLVLomR GHFLGLX democratizar a dor e pô-la facilmente à disposição de todos, independente de idade, VH[RHSRVLomRVRFLDO´ %$,*(17/(,*+  Na Idade Moderna, a prática naturalizada da tortura e violência passou do sagrado para o secular, com o surgimento do imperialismo das potências europeias contra os países americanos e africanos, fez recair a tortura e o desmando total pelo ser humano contra povos inteiros, principalmente os africanos, que eram escravizados e mandados para as colônias e os indígenas, que ou encaravam o extermínio ou se subjugavam aos invasores. Além disso, correntes ideológicas que pregavam uma superioridade da civilização europeia e branca contra a bárbara e negra mostrou ser a grande erva daninha da modernidade, sendo diretamente a causadora das grandes calamidades ocorridas no decorrer do século XX, como o eugenismo e o holocausto da Segunda Guerra Mundial. No entanto, a transição da Idade Moderna para a Contemporânea, com o advento das revoluções burguesas e a sobreposição do individual sobre o coletivo, também nos legou algo para segurar a avidez do ser humano por sangue. Esse foi um processo lento, como nos aponta Hunt ( ³'XUDQWH R ORQJR SHUtRGR GH YiULRV VpFXORV RV indivíduos tinham começado a se afastar das teias da comunidade, tornando-se DJHQWHV FDGD YH] PDLV LQGHSHQGHQWHV WDQWR OHJDO FRPR SVLFRORJLFDPHQWH´ +817 2009, p. 24). Isso fez com que os homens não mais se submetessem socialmente, psicologicamente, nem fisicamente aos interesses da comunidade, controlada por uma Instituição, seja ela o Estado ou a Igreja. Esse processo começou a tomar formas materiais a partir da Declaração da Independência americana, assinada por Thomas Jefferson em 1776, que, embora de caráter apenas intencional, e não constitucional, consta verdades e direitos inerentes a todo ser humano, como direito à vida, liberdade e felicidade. Somando-se a isso vieram os ideários da Revolução Francesa, que culminaram na criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em 27 de agosto de 1789, sobre a qual Hunt (2009) afirma: O documento tão freneticamente ajambrado era espantoso na sua impetuosidade e simplicidade. Sem mencionar nem uma única vez rei, nobreza ou igreja, declarava que "os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem" são a fundação de todo e qualquer governo. Atribuía a soberania à nação, e não ao rei, e declarava que todos são iguais perante a lei, abrindo posições para o talento e o mérito e eliminando implicitamente todo o privilégio baseado no nascimento. Mais extraordinária que qualquer garantia particular, entretanto, era a universalidade das afirmações feitas (HUNT, 2009, p. 14).

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Por fim, passados quase dois séculos da efervescência da Revolução Francesa, com a luta pela ampliação de direitos políticos a todos os homens e mulheres, dentre outros alcances significativos, como luta pela abolição da escravatura, ou seja, componentes que ainda não faziDPSDUWHGR³WRGR´GDV'HFODUDo}HVDQWHULRUHVHORJR após o terror da Segunda Guerra Mundial, com o assassinato sistemático e em massa baseados em critérios como religião e raça, a fim de garantir e universalizar as conquistas alcançadas até então, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), resumiu todas as promessas na sua Declaração Universal dos Direitos Humanos. 6REUHDUHODomRHQWUHHVVHVGRLVGRFXPHQWRV³HPERUDDVPRGLILFDo}HVQDOLQJXDJHP fossem significativas, o eco entre os dois documentos é LQHTXtYRFR´ +817S 15). Ainda assim, infelizmente é bastante comum vermos atos que atentam contra os Direitos Humanos, principalmente relacionados a formas de torturas, seja de forma escondida, ilegal, de caráter privado e doméstico, como a violência contra a mulher, por exemplo, seja de forma institucionalizada, como no caso da sudanesa condenada à morte ou em outros países nos quais certos costumes são considerados ilegais e com penas de morte. Apesar da tortura religiosa da Igreja Católica tenha diminuído no decorrer dos séculos, o fundamento religioso ainda é o guia para a continuidade de muitas dessas práticas de tortura, como veremos em alguns casos na religião islâmica. (VVHIDWRDGYpPGRTXH+XQW  FKDPRXGH³SDUDGR[RGDDXWRHYLGrQFLD´ S  pois se essas verdades defendidas pelos Direitos Humanos fossem tão autoevidentes como Thomas Jefferson defendeu desde o início, não haveria tantas discordâncias nem inobservância nos seus artigos, já que elas seriam reconhecidamente verdadeiras e universais, mas que se tornam muito mais dinâmica e complexa em razão de serem relações do ser humano consigo mesmo, entre ele e o outro, envolvido em um ambiente específico e político que, muitas vezes, é completamente diferente um do outro. 3. A RELIGIÃO ISLÂMICA

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Islamismo é a religião que foi revelada diretamente por Deus ao Profeta Maomé no século VII, que condensou todas as revelações no livro sagrado do Alcorão, tido como a verdade absoluta pelos muçulmanos. Islã, etimologicamente, significa ³VXEPLVVmR´HQTXDQWRTXHPXoXOPDQRVVHUHIHUH³jTXHOH TXH VH VXEPHWH´ 2X VHMD DWp PHVPR SHODV FRQFHSo}HV GRV WHUPRV FHQWUDLV GD religião, pode-se perceber claramente a sujeição completa do fiel às mensagens reveladas no Livro Sagrado. Deus é o ser único, o que há de mais sagrado, a quem todos devem obedecer e seguir restritamente suas orientações. São direitos e responsabilidades que Deus concebeu à humanidade, indissolúveis, e, ao contrário de fronteiras, governos e desejos de homens e mulheres, são também imutáveis no decorrer do tempo. O Islã surgiu como religião apenas no século VII e protagonizou a maior expansão religiosa conhecida até hoje na história da humanidade. Traduzido em forma política, Maomé recebeu as revelações divinas na Península Arábica e, em vida, tratou de juntar as tribos rivais da região numa comunidade religiosa forte e militarmente constituída. Foi o pontapé inicial para que, após a morte do Profeta, em 632, seus seguidores dessem sequência à expansão, a qual em poucas décadas ultrapassou os limites do Oriente Médio, alcançando da Península Ibérica, no ocidente, passando pelo

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Norte da África e chegando, no extremo oriente, até a Indonésia e Indochina, sendo influência determinante na constituição social, cultural e religiosa dessas regiões. Todos os ensinamentos e exemplos normativos do Islã são condensados no Alcorão e também no Hadith, que é o corpo de leis, lendas e histórias sobre a vida de Maomé. (VVH FRQMXQWR JHUD SDUD RV PXoXOPDQRV D &KDULD RX ³FRQMXQWR GH LGpLDV GH TXe dependiam os cádis nomeados pelo soberano ao fazer julgamentos ou conciliar GLVSXWDV´ +285$1,S TXHSRGHVHUYLVWDFRPRXPDOHL± até mesmo no sentido jurídico da palavra como conhecida no ocidente ± na qual o fiel deve seguir e respeitar, pelo bem de Deus, da religião e do seu povo. (...) a charia era geralmente aceita pelos citadinos muçulmanos, e mantida por governantes muçulmanos, como orientação para os modos de os muçulmanos lidarem uns com os outros. Regulamentava as formas de contrato social, os limites em que se podiam obter lucros legítimos, as relações de marido e esposa, e a divisão da propriedade (HOURANI, 1991, p. 128).

No mundo muçulmano, a jurisprudência, ou fiqh, é constituída pelo conjunto de decisões de especialistas, cujas escolas de interpretação legal (as madhhabs) variam entre o entre se o juiz (cádi) deve seguir estritamente a Charia e o Hadith ou se deve, junto a isso, buscar na sociedade, nas interpretações dos Companheiros do Profeta (ijma), ou nos consensos de sábios posteriores (ijtihad) a resposta para os desafios que enfrenta, a fim de tomar uma decisão mais acertada. Nessa variação também é incluído o grau de laicidade de cada Estado, entre o sistema legal secular e o religioso, como o tentado pelo Império Otomano, Esses princípios não foram desenvolvidos e discutidos apenas por si mesmos, mas porque formavam a base do fiqh, a tentativa por esforço humano responsável de prescrever em detalhes o estilo de vida (charia) que os muçulmanos deviam seguir para obedecer à Vontade de Deus. Todas as ações humanas, na relação direta com Deus ou com outros seres humanos, podiam ser examinadas à luz do Corão e dos suna, como interpretadas pelas pessoas qualificadas para exercer ijtihad, e classificadas em termos de cinco normas: podiam ser encaradas como obrigatórias (ou para a comunidade como um todo, ou para cada membro individual dela), recomendadas, moralmente neutras, repreensíveis ou proibidas (HOURANI, 1991, p.169).

Era através da Charia, como todo o seu aparato legal e apelo divino, que o mundo muçulmano foi se distanciando do mundo cristão ocidental, que, embora houvesse também muito forte o papel do sagrado, sobretudo no período medieval, foi enfraquecendo a partir do momento em que a burguesia passou a se tornar uma configuração importante na sociedade, culminando nas revoluções burguesas do século XVIII, que minou o poder religioso, através da valorização da vida privada ± e todas suas relações - em detrimento da comunidade. A separação do Estado e da Igreja. Esse talvez seja o grande ponto de ruptura, pois esse processo ainda não foi visto em relação à religião islâmica, muito pelo contrário, com movimentos fundamentalistas reagindo a uma tentativa de dominação político e ideológica vinda do ocidente, o que faz aumentar a violência e o modo como nós, ocidentais, vemos o Islã.

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4. O ISLAMISMO E OS DIREITOS HUMANOS

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oltando aos Direitos Humanos, apesar serem um conceito universal, ele pode ser interpretado de diversas maneiras, variáveis de acordo com as regiões, culturas e, naturalmente, religiões. Como já nos disse Hunt (2009), a autoevidência deles é relativa, pois o ser humano é demasiado complexo nas suas respectivas construções históricas para que um conceito universal chegue e tome o sentido de verdade absoluta.

Segundo os muçulmanos, a revelação de Deus a Maomé foi para iniciar uma nova era na humanidade, uma nova era de tolerância, respeito e justiça. Aos olhos ocidentais, muito dificilmente o Islã estaria relacionada a qualquer uma delas. Mas há algumas considerações que devemos fazer. Muçulmano, cristão ou judeu, trata-se ainda de um ser humano. Portanto, a história mostra que a religião ± e o nome de Deus ± é normalmente usada como justificativa para a prática de atos pérfidos, totalmente contraditório com as doutrinas religiosas. No Islã o mesmo acontece, sendo frequente muçulmanos que não entendem e não seguem sua religião, porém utilizando-a para manter uma certa ordem na esfera social e política. A outra consideração a se fazer se refere à própria noção de Direitos Humanos, que, para o ocidente, é relacionada aos direitos e liberdades individuais, enquanto que no Islã nunca o âmbito individual irá sobrepor-se à comunidade muçulmana, destinada a viver de acordo com as revelações do Deus supremo. Portanto, o respeito, a tolerância e a igualdade, a paz e a segurança só são alcançadas obedecendo aos mandamentos do Deus Único, revelado para Maomé pelo anjo Gabriel. Essa equação fica clara: se os Direitos Humanos não colocam o indivíduo como o ente a ser protegido e assegurado, mas sim Deus e seus mandamentos, então a execução desses direitos humanos seguirá os interesses religiosos dominantes, já que é ele que diz o que é justo, concedendo direitos, garantias e responsabilidades. Então considerando que Deus é justo e trata os seres humanos em igualdade, essas condições apenas serão alcançadas mediante a obediência irresoluta a Ele. Caso contrário, está se comprometendo a segurança e a paz da comunidade em geral. Dessa forma, um dissidente religioso é um criminoso, que traz o mal não somente para si, mas também para todos que comungam de sua fé. Infelizmente, embora com toda a bela retórica de um discurso religioso, isso abre precedentes para que sejam imputados graves crimes contra a vida humana e, por conseguinte, contra os Direitos Humanos, na forma das mais variadas violências e torturas. Assim, mesmo pregando uma mensagem de paz e justiça, o Islã é interpretado por alguns de uma forma na qual se possa valer de métodos sistemáticos e violentos para prevenir e punir atitudes consideradas ultrajantes para a religião e para a comunidade. No entanto, podemos também pontuar que a Charia foi uma junção de várias práticas e costumes dos povos tribais da Península Arábica, o que fez com que perdurasse nas palavras do Alcorão, sobretudo nas questões de crimes de honra e papel das mulheres. De acordo com Hourani (2009), as sociedades tribais do século VII eram comunidades pastoris nas quais a unidade básica era a família e onde os papéis sociais entre homens e mulheres eram bem separados; os homens eram os protagonistas, já que ficavam com o cuidado da terra e do gado; já as mulheres ficavam responsáveis pela casa, cozinha e criação das crianças, apesar de também ajudar nas tarefas econômicas. Fazia parte da honra do homem defender o que era seu e responder às exigências que lhe faziam os membros da família, ou de uma tribo ou grupo maior do qual fizesse parte; a honra pertencia ao indivíduo por sua participação num todo maior. As mulheres da família ² mãe

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e irmãs, esposas e filhas ² ficavam sob sua proteção, mas o que elas faziam podia afetar a honra dele: falta de pudor ou conduta provocadora, em homens que não tinham direitos sobre elas, produziam fortes sentimentos que ameaçavam a ordem social (HOURANI, 1991, p. 120-121).

Esses crimes de honra estão espalhados de forma muito intensa ± e para ser justo, não apenas no mundo muçulmano, mas sim de forma geral nas sociedades de caráter patriarcal ± e muitas vezes difíceis de serem rastreados ou até mesmo identificados, acontecendo normalmente no caráter privado. No que se refere à mulher como propriedade dos homens, além do que apontou Hourani (1991) que as suas condutas influenciam a imagem da família do homem, essa passagem acaba legitimando a violência por crimes de honra nos quais a mulher é a vítima mais comum. Apesar de prática comum em diversas culturas, o Islã dá um caráter perpétuo a esses tipos de violência. Outro crime bastante comum e um dos mais terríveis para o muçulmano, sendo, naturalmente, passível de morte é o que é cometido contra a religião. A apostasia, que é a renúncia, o afastamento da fé muçulmana pode ter a morte como punição. É inconcebível possuir a faculdade ou até mesmo o direito de mudar de religião, ou renunciar a qualquer uma delas, como o ateísmo. É uma das ofensas mais graves, sem dúvida, que comprometeria a unidade e a força do Islã como religião. Foi por esse crime que a sudanesa, Meriam Yehya, foi condenada à morte; as chibatadas foram pelo adultério com o cristão. É um dos cinco alicerces das injunções islâmicas, no que diz a necessidade da preservação da religião, através da punição para a apostasia. 5. CONCLUSÃO

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odemos perceber que as práticas violentas na religião islâmica tem suas origens em alguns fundamentos bastante enraizados nas suas leis (Charia), bem como alguns costumes pré-islâmicos vindos das sociedades tribais dos beduínos organizadas antes do advento do Islã como religião no século VII. Identificamos que a noção de individualidade do muçulmano é bastante diferente do ocidental, pela qual a noção de Direitos Humanos ficou bastante relacionada aos direitos e liberdades individuais, enquanto que o Islã considera ser uma religião justa e que defende os direitos e liberdades, mas condicionadas à obediência a Deus, para o bem da comunidade muçulmana (Umma), que vai muito além dos territórios de um país, mas sim em relação a uma comunidade congregada na fé única, aquela revelada por Deus ao Profeta Maomé. Dessa forma, eles acreditam que asseguram o bem-estar da humanidade, vivendo em clima de paz, justiça e segurança em harmonia com Deus. Num sistema rígido de normas jurídicas, sempre sujeitas à religião, baseado em punições prescritas, aquelas que são fixas, imutáveis por ter vindo de uma ordem direta de Deus, como o roubo, assalto em estradas, fornicação e adultério, acusação falsa, bebedeira e apostasia, e as punições arbitrárias, um tipo mais flexível e que acompanha o desenvolvimento material, social e histórico da sociedade, aqui está incluída a punição por chibatadas, multas, prisões. Então, o Islã está engessado por dentro em relação às suas práticas de violência contra os direitos humanos individuais em detrimento dos direitos humanos da comunidade de acordo com os preceitos de Deus. Devido ao caráter imutável das palavras divinas, é bastante difícil conjecturar alguma mudança significa no seu interior. E mais complicado ainda: cada vez que aumenta a pressão ocidental contra a violação dos direitos humanos nos países islâmicos aumenta esse abismo gigante entre uma cultura e outra.

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REFERÊNCIAS HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

AL-MUALA, Dr. Abdurrahman. Crime e Punição no Islã. [S.l.], 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2014.

MORINI, Cristiano. Direitos Humanos e Tortura. [S.l.], [20-?]. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2014.

BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição. Rio de Janeiro: Imago, 2001. BBC Brasil. Sudanesa é condenada à morte por abandonar Islã por marido cristão. [S.l.], 2014. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2014.

PARINGAUX, Roland-Pierre. Em nome da honra... São Paulo, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. STACEY, Aisha. Direitos Humanos no Islã. [S.l.], 2012. Disponível em: . Acesso em: 09 jun. 2014.

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Schwarcz Ltda, 1991.

A violência no Islã: a luta entre os direitos humanos e o Islã André Felipe de Albuquerque Espínola Graduando em História pela Universidade Estadual da Paraíba ± UEPB Bananeiras, PB E-mail: [email protected] ESPÍNOLA, A. F. de A. A violência no Islã: a luta entre os direitos humanos e o Islã. Revista Espaço Científico Livre, Duque de Caxias, n. 21, p. 24-31, ago.-set., 2014.

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