A Visibilidade do Panóptico na Campanha Manda Nude

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A Visibilidade do Panóptico na Campanha Manda Nude
Gabriella D'Andréa Rodrigues
Universidade de São Paulo

Resumo: O artigo tem a finalidade de analisar a Campanha Manda Nude, na qual a Revista TPM pede aos seus leitores, por meio do Facebook, que enviem fotos de seus corpos nus para aparecerem na edição de outubro, e a resposta da publicação após a rápida repercussão negativa. Para tal, é utilizado o modelo panóptico, contemplando a visibilidade e o poder gerados pelo modo constante de vigilância, somado das mudanças trazidas pelas plataformas digitais, que alteraram a relação tempo-espaço do modelo prisional de Jeremy Bentham.

Palavras-chave: Panóptico. Visibilidade. Poder. Digital.

A campanha Manda Nude e a repercussão negativa

No dia 21 de setembro de 2015, a Revista TPM lançou em sua página no Facebook a campanha Manda Nude. O objetivo era solicitar que os seguidores da publicação enviassem fotos de seus corpos nus. Posteriormente, as imagens recebidas seriam divulgadas na edição de outubro de 2015, para ilustrar o tema sexo e tecnologia.
Na divulgação, a publicação ressaltava que só seriam aceitas fotos de leitoras e leitores com idade acima de 18 anos e pediu que as fotos fossem autorretratos. Em tom de descontração, a mensagem divulgada pela Revista TPM logo começou a receber críticas de pessoas que se sentiram ofendidas pela imagem veiculada, que remetia às partes íntimas de homens e mulheres, e questionaram a validade da iniciativa de debater e expor um tema tão em voga na sociedade – o envio de fotos contendo corpos nus.
Dentre as principais críticas feitas à campanha, muitas usuárias da rede alegaram que a publicação, que atende à finalidade capitalista de maximização do lucro, foi irresponsável frente às diversas mulheres que já enfrentaram casos de fotos íntimas vazadas na internet por seus parceiros, ou homens com os quais já tiveram algum contato passageiro, como forma de vingança, tendência popularmente conhecida como revenge porn (em tradução livre para o português, pornografia de vingança). Segundo comentários feitos na publicação, ao levantar a bandeira "Meu corpo, minhas regras", conforme consta no texto da campanha, a revista estaria incitando o empoderamento feminino.
Visto que a existência e a saúde financeira da publicação dependem da fidelização e aumento do número de leitores, a Revista TPM foi acusada de tomar frente em uma discussão polêmica e sensível quando, na realidade, visa atrair a atenção de potenciais consumidores com imagens de pessoas nuas. Portanto, em uma suposta ação de fomento ao debate sobre os direitos das pessoas sobre seus corpos, a publicação foi acusada de agir de forma antiética, ao solicitar imagens de corpos nus que seriam posteriormente comercializados.
O debate acerca de fotos contendo nus permeia a esfera pública há tempos, e com o advento da internet o número de imagens femininas vazadas cresceu exponencialmente. Inclusive, nos últimos anos, a mesma conexão que é utilizada como meio para divulgação dessas fotos foi responsável por noticiar casos de mulheres que cometeram suicídio, por não suportarem a pressão da exposição de sua intimidade, como os casos das jovens de 16 anos, uma do Rio Grande do Sul e outra do Piauí, em novembro de 2013.
Outro ponto crucial levantado por usuários da rede social foi a garantia oferecida pela revista de que as imagens veiculadas seriam autorretratos e de maiores de 18 anos, dado que pessoas de má-fé poderiam enviar imagens aleatórias, como, inclusive, ocorreu nos casos supracitados, em que ambas as jovens eram menores de idade.
Condensando algumas das críticas feitas pelos usuários da rede social, a jornalista Maria Carolina Lopes publicou em seu blog, hospedado no website do Brasil Post, que a libertação sexual disseminada pela revista não passa de uma ilusão, pois não problematiza o sistema vigente na sociedade contemporânea, o patriarcado, e a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes, discussão trazida à tona pelo fato de a revista não falar, em um primeiro momento, sobre como se certificaria de que as fotos pertenceriam a maiores de 18 anos. A jornalista ainda frisa que a publicação se apropriou da liberdade sexual apenas para vender sua revista.
Após diversas críticas, no dia seguinte, a Revista TPM publicou em seu site e em sua página no Facebook um pedido de desculpa, afirmando que ocorreu um mal-entendido sobre a finalidade da campanha e que sua intenção era unicamente promover um debate sobre o fenômeno do envio de nudes em redes sociais e aplicativos. Também ressaltou que as origens das imagens enviadas seriam checadas e haveria um termo de responsabilidade, a fim de garantir "que quem aparece é maior de idade e está realmente disponibilizando um autorretrato". Ou seja, o convite para o envio de fotos permaneceu.
Mesmo com a retratação, muitos usuários continuaram insatisfeitos com o posicionamento da publicação, que optou por manter a campanha. Segundo os leitores, a Revista TPM foi irresponsável ao optar por não encerra-la, depois de inúmeros comentários reprovando a iniciativa.

O panóptico, a visibilidade e o poder


O modelo panóptico arquitetado por Jeremy Bentham, no final do século XVIII, se refere ao modelo adotado para as prisões inglesas, em que a torre de vigilância se encontra no centro de uma construção circular, sendo que essa estrutura contém celas com janelas vazadas para o interior e o exterior. Dessa forma, a luz solar consegue penetrar em todas, permitindo que o inspetor observe os prisioneiros e todos os movimentos feitos no recinto. "Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia" (FOUCAULT, 2015, p.319).
Mais do que projetar um modelo de prisão, o filósofo e jurista inglês concebeu uma relação que ainda hoje permeia a sociedade, a ligação entre visibilidade e poder. Segundo Foucault (2015, p. 325), eventos marcantes na história da humanidade, como a Revolução Industrial e o crescente movimento de urbanização, demandaram que o poder fosse exercido de modo a acompanhar cada gesto dos milhares de indivíduos que dominaram os centros urbanos, garantindo a disciplina da multidão de homens.
O filósofo ainda destaca que as técnicas utilizadas para exercer o poder no modelo panóptico consistem, basicamente, no olhar e na palavra – a comunicação com os presos era feita por meio de um tubo de aço ligado ao inspetor principal. Por fim, também é ressaltada a importância da dissuasão no processo de vigilância e poder, pois ao estar constantemente sob o olhar de um vigilante o indivíduo perderia a capacidade e a vontade de tomar qualquer atitude vista como má (FOUCAULT, 2015, p.329).
Sobre a relevância e aplicabilidade do panóptico na sociedade, Foucault argumenta que
Se o projeto de Bentham despertou interesse, foi porque ele fornecia a fórmula, aplicável a muitos diferentes domínios diferentes, de um ´poder exercendo-se por transparências´, de uma dominação por ´iluminação´. O panopticon é mais ou menos a forma do ´castelo´ (torre cercada de muralhas) utilizada paradoxalmente para criar um espaço de legibilidade detalhada. (FOUCAULT, 2015, p.329)

Ao refletir sobre por que a construção prisional de Bentham é eficiente naquilo que se propõe, Foucault explica que há uma vigilância constante e recíproca entre todos que compõem o sistema, tratando-se, portanto, de "um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto" (FOUCAULT, 2015, p. 334). Nesse sentido, o medo gerado pelos olhares contínuos entre os pares e os superiores, ou seja, de todos os lados, faz com que os indivíduos entrem em uma espiral de tensão e cautela, inibindo comportamentos que extrapolem as normas sociais.

A visibilidade no ambiente digital e o posicionamento da Revista TPM

Utilizada como uma ferramenta para exercer o poder, a visibilidade, antes exercida de forma unilateral e vertical, sofre mudanças com a propagação da internet e das mídias digitais. No cenário contemporâneo, além do controle exercido por governos, corporações e outras instituições, cada indivíduo torna-se agente ativo no processo de vigilância, tanto em relação a seus iguais quanto à movimentação daqueles antes tidos como seus inspetores, ou seja, "cada camarada torna-se um vigia" (FOUCAULT, 2015, p.327), horizontalizando a relação de vigias e vigiados.
Soma-se ao panóptico, desenhado por Bentham e analisado por Foucault, o sinóptico, cunhado por Mathiesen e comentado por Bauman (1999, p.60). Ao contrário do modelo arquitetônico das prisões inglesas, o termo carrega a ideia de muitos vigiados por poucos, mostrando que, atualmente, os indivíduos lançam seus olhares sobre líderes, muitas vezes representados por empresas.
No novo modelo de vigilância, a estrutura física, representada pela prisão no modelo panóptico, cede lugar ao controle virtual, representado pelas tecnologias que viabilizam a interação digital. Outra mudança importante é que a visibilidade se torna global, em detrimento da ação local do panóptico, já que ocorre em rede, ou seja, é possível faze-lo de qualquer lugar (SANTOS, 2011).
Conforme colocado por Cardoso e Ramos (2010, p.155),

Nas comunidades virtuais, os indivíduos se utilizam cada vez mais das possibilidades de vigilância para exercerem controle sobre os outros, e sobre a coletividade, implicando reciprocamente em controle dos outros sobre si. Certamente, a visibilidade instaurada e as possibilidades de vigilância dela decorrente, influenciam a subjetividade dos indivíduos que 'transitam' nesses espaços.

Além de alterar as relações de poder estabelecidas por meio do olhar, as plataformas digitais eliminaram a necessidade da interação presencial no exercício da vigília, visto que há um leque de possibilidades no que se refere aos "recursos oferecidos pelas novas tecnologias de informação e pelo avanço do poder midiático" (POZOBON, 2007, p.39). Diante da multiplicidade de meios para exercer o controle e da possibilidade de registro permanente dos dados disponibilizados, muitos usuários da internet e de redes sociais se tornaram mais cautelosos na hora de publicar informações na esfera pública digital.
Retomando o efeito de dissuasão, colocado por Foucault como resultado da vigilância constante (2015, p.239), muitas atitudes acabam sendo dissipadas antes de se concretizarem, ou há, pelo menos, uma tentativa de rápido reparo do comportamento que foi julgado inapropriado, como foi o caso da Revista TPM. Com o acesso instantâneo propiciado pela alta velocidade da internet, segundos após a divulgação da campanha no Facebook, usuários da rede social se posicionaram, criticando a iniciativa. Nesse caso, a visibilidade, instrumento central do modelo panóptico, balizou uma resposta quase que instantânea da revista, que no dia seguinte publicou um pedido de desculpa em seu website.
Preocupada com a repercussão negativa e as possíveis consequências, até mesmo em suas vendas, o que consequentemente afetaria sua receita, a revista cedeu parcialmente ao assumir o erro e enviar o link com o pedido de desculpa a todos que reclamaram no Facebook, resultado que só foi possível graças à vigilância eletrônica feita pelos usuários. No entanto, ao continuar com a campanha, gerou uma nova onda de comentários reprovando a continuidade da iniciativa.
Após os diversos comentários reprobatórios, pela segunda vez, a revista optou por não publicar fotos dos leitores nus na edição de outubro, mas se manteve em silêncio sobre a discussão gerada em torno do assunto. Com essa atitude, a Revista TPM mostrou que sua preocupação não está centrada no indivíduo, ou seja, nos leitores, principalmente do sexo feminino, que expuseram sua insatisfação com o pedido de imagens de corpos nus para ilustrar a matéria da revista. Pelo contrário, por acreditar que o assunto tem potencial para gerar um bom retorno financeiro, visto que a venda é uma de suas principais fontes de renda, optou por seguir com o pedido.
Ao agir dessa forma, a publicação levantou uma bandeira que ainda gera diversas polêmicas, ao defender que cada um deve agir da maneira que desejar, sem se importar com o julgamento alheio, sendo que muitas mulheres ainda sofrem com o vazamento de fotos íntimas na internet, conforme citado na primeira parte do artigo. Também correu o risco de divulgar imagens de menores idade e de pessoas que não optaram por enviar as fotos, visto que é difícil ter total controle sobre a veracidade das informações disponibilizadas.
No papel de formadora de opinião, por ter a possibilidade de ser palco de variadas discussões e circular em todo o Brasil, a revista poderia ter mantido o pedido de desculpas, direcionando-o a todos que se sentiram ofendidos e àqueles que já vivenciaram casos de fotos íntimas vazadas na rede, e sugerido um debate em torno dos perigos do envio de imagens contendo corpos nus. Dessa forma poderia conscientizar diversos leitores sobre a necessidade de pensar em políticas que combatam o envio de fotos sem o consentimento daqueles que são retratados nelas e mostrar os desdobramentos negativos na vida dessas pessoas.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
CARDOSO, Monise Fonseca e RAMOS, Anatália Saraiva Martins. Vigilância eletrônica e Cibercultura: reflexões sobre a visibilidade na Era da Informação. Disponível em: . Acesso em: 15 de outubro de 2015.
POZOBON, Rejane. O panóptico na era da mídia: reconfigurações do modelo de vigilância e controle. Visualidades. V.7, n.2, 2009. Disponível em: < http://eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewArticle/11079>. Acesso em: 15 de outubro de 2015.
SANTOS, Claudinei Caetanos. A ação do controle velado: do panóptico ao sinóptico. Revista Science Institute. V.3, n.3, 2011. Disponível em: < http://www.institutodefilosofia.com.br/pdf/SCIENCE%20INSTITUTE/ARTIGOS-IF-2011-III/artigo_claudinei.pdf>. Acesso em: 19 de outubro de 2015.













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