A voz ativa e a voz passiva - Imagem e agência em \"A invenção de Morel\" e \"Escritos com o corpo\"

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A voz ativa e a voz passiva – imagem & agência












Vinícius Portella / UERJ /






"A "canção", segundo seu significado autêntico, nada mais é que a ação do
cantar em sentido ativo ou passivo, assim como a "leitura" é a ação do ler
em sentido ativo ou passivo."

Dante, De Vulgari Eloquentia, cap.8, parágrafo 3


Passivité et activité ne sont plus que les deux aspects symétriques des
échanges d'énergie; la passivité, potentielle ou actuelle, de la substance,
est aussi essentielle que son activité, potentielle ou actuelle (Gilbert
Simondon, 2013, p.127)[1]




1.

Este trabalho tem como premissa uma ideia que parece , a princípio,
tirada de ficção científica: a de que imagens podem possuir agência e,
portanto, podem ter algo próximo de uma vida animada.

Por estranha que possa parecer a ideia, ela não é exatamente
original. O teórico de mídia W.J. Mitchell recentemente propôs algo
parecido no seu livro "What do pictures want?", que chamou muita atenção
nos estudos de imagem e mídia.

Mitchell admite o absurdo da ideia, mas ao mesmo tempo parece
entender que a relação da nossa cultura com a produção de imagens de desejo
(na publicidade e na indústria de entretenimento, mas não apenas) já parece
subentender um regime onde as imagens constituem uma força política
considerável. Apesar de nosso zelo moderno antifetichista, as formas mais
diversas de poder simbólico e imagético continuam nascendo e se
transformando com o surgimento de novas tecnologias e cadeias de
reverberação. Mitchell também reconhece que pode parecer até ofensivo
querer reclamar agência para objetos inanimados quando existem lutas
políticas tão prementes que procuram há décadas fazê-lo para populações
periféricas de seres viventes (MITCHELL, p.29)

Mitchell acha que num sentido mais prático nós já reconhecemos o
poder que as imagens tem, mas propõe também que há situações em que elas
podem não ter poder nenhum, e que tentemos pensar no que as imagens desejam
para poder compreender melhor os termos com os quais nos relacionamos com
elas (mais como um subalterno convidado a falar do que como um mestre de
cujo jugo tentamos nos livrar; MITCHELL, p.33[2])

O filósofo da técnica Gilbert Simondon oferece uma visão semelhante
em momentos de seu curso sobre imaginação e invenção de 1965 e 1966. Para
ele, "o mundo dos símbolos é uma espécie de pandemônio flutuando entre a
situação de objeto e a de sujeito, interpondo-se entre o vivente e o meio".
Esse pandemônio (palavra inventada por Milton no seu Paradise Lost) de
figuras poderia agir como quasi-organismos relativamente independentes
dentro dos indivíduos:

Contenant em quelque mesure volonté, appétit et mouvement, elles
apparaissent presque comme des organismes secondaires au sein de l'être
pensant: parasites ou adjuvantes, elles sont comme des monades secondaires
habitants à certian moments le sujet et le quittant à certains autres.
(SIMONDON, p.9)[3]

O clichê mais imediato a respeito da agência na arte é que apenas o
artista, no ato de produzir uma obra, seria plenamente ativo. A repetição
(ou recriação) de alguém que é paciente de uma obra de arte seria um ato de
criatividade secundária, na melhor das hipóteses, com o próprio objeto de
arte e sua cadeia técnica sendo meros veículos, meras coisas inertes.

Parte do nosso objetivo é argumentar no sentido oposto. Tanto a
atividade do artista pode ser muito mais passiva do que quer admitir a
nossa mitologia em torno da arte (ainda largamente romântica e burguesa,
apesar de todo o imaginário dito pós-moderno) quanto o ato passivo de
repetir objetos artísticos pode ser muito mais ativo do que se imagina no
senso comum. Há um sentido no qual os materiais expressivos de toda arte
usam os artistas como meio, ou veículo, para sua auto-expressão. Toda arte
é um processo de agência compósita entre seres e seus meios.
Por mais que a premissa possa parecer pueril, portanto, a tentativa
aqui é de levar ficções e figuras a sério.
Apesar de ainda sobreviver, disfarçada, a imagem do grande artista
como um gênio isolado, retirando tudo de si mesmo como um bicho-de-seda (na
imagem de Murilo Mendes) o fato é que toda arte é contextual, toda obra é
uma sinédoque de um ambiente expressivo, culminância de uma inteligência
sempre coletiva. Que indivíduos podem construir mundos expressivos bastante
pessoais, com alguma autonomia expressiva (e reconhecíveis como tal) é um
fato. Mas em momento algum um espécime individualizado de uma tradição
artística qualquer deixa de ser, em sua mera viabilidade expressiva, um
fenômeno coletivo, construído pela emergência de uma vasta rede de
comunicações e contribuições. A começar pelo fato de que a própria
linguagem já é um cemitério de metáforas e motivos endurecidos em
articulações, invenção de gerações de homens e mulheres mortos[4].
Lévi-Strauss diz no início do Cru e o Cozido, influenciado pelo
surrealismo de Max Ernst, que os mitos se pensam na gente (às vezes, ou
quase sempre, à nossa revelia). Críticos como Burke e Frye parecem sugerir
em momentos que figuras falam consigo mesmas (ou viram por si próprias, na
gente, ou por meio da gente).
Um poema inteiramente idiolético jamais seria possível, porque a mera
noção de uma língua individual é uma impossibilidade concreta, como parece
demonstrar o Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Mesmo um gesto
artificioso nesse sentido poderia ser inteligível em dentro dos termos de
alguma tradição de performance ou arte conceitual, e, assim, fracassando.
Toda poesia é sempre coletiva, e toda leitura, assim como toda escritura,
ativa e passiva ao mesmo tempo. Como no amor (em que se é agente e
paciente).


O que estou falando quando falo de agência
"já que o ser é o haver, segue-se que toda coisa deve ser ávida" Gabriel
Tarde, MS, p.123

Precisamos explicitar uma compreensão de agência e de vida para levar
a ideia adiante. Se o mundo moderno tende a isolar a agência num único ente
racional: o indivíduo humano (adulto, homem e branco, de preferência),
existem tradições diversas dentro do próprio pensamento ocidental que
tendem a distribuir a agência de maneira menos egoísta. [5]
Nos últimos anos uma série de pesquisas vem sendo feitas no sentido
de redistribuir a agência nas nossas hierarquias conceituais e práticas
políticas. Bruno Latour, Steven Shaviro, Donna Haraway e Jane Bennet todos
oferecem um materialismo dinâmico e plural que tenta dar conta dos outros
agentes entremetidos nas nossas ecologias e cadeias técnicas.
Para Gabriel Tarde, que nesse sentido e em tantos outros foi um
pioneiro, a pulverização dos processos físicos e químicos em partes cada
vez menores no século dezenove apontava para uma multiplicação sem fim da
possibilidade de agência. Se os átomos se revelavam sociedades de cargas
com ritmos interpostos e as células também revelavam uma rica ecologia
interna, cabia pensar que não só os organismos complexos eram como
sociedades formadas de diversos indivíduos (com relativa autonomia,
portanto), mas que isso poderia ser dito também das unidades básicas dos
tecidos e da própria matéria. A ciência, para ele, "após ter pulverizado o
universo, acaba necessariamente por espiritualizar a poeira" (Tarde, MS,
p.78). Inspirado na mônada Leibniziana, que contém um reflexo do mundo todo
na particularidade do seu ponto de vista, Tarde vem a entender que toda
coisa pode ser considerada uma rede social (uma célula ou mesmo um átomo
são espécies de sociedades). E a agência, como força e como desejo,
encontra-se por toda parte (como nas máquinas desejantes do Anti-Édipo de
Deleuze & Guattari).
Latour, mais recentemente, dentro da teoria de Ator-Rede, pede que
consideremos como actantes os vários dispositivos híbridos metidos nas
nossas complexas e interligadas malhas técnicas (conceito que ele toma da
semiótica de Greimas)
Jane Bennet aponta não só para o lixo que produzimos e que se mistura
ao nosso meio de maneira que não imaginamos, mas também para os complexos
múltiplos de bactérias que vivem no nosso corpo (chegando a superar nossas
células em números). Influenciada tanto pelas misturas e contágios afetivos
dos corpos em Spinoza quanto pelos agenciamentos maquínicos de Deleuze &
Guattari, Bennet oferece um materialismo vital e dinâmico para dar conta
das tramas de agência em que estamos todos metidos.
Como ela diz: One can invoke bacteria colonies in human elbows to
show how human subjects are themselves nonhuman, alien, outside, vital
materiality. One can note that the human immune system depends on parasitic
helminth worms for its proper functioning or cite other in· stances of our
cyborgization to show how human agency is always an as semblage of
microbes, animals, plants, metals, chemicals, word-sounds, and the like
[6](BENNET, p.121)

Todos esses esforços teóricos notáveis são de reconhecer efetivamente
o papel dos componentes não-humanos das nossas sociedades. Não é só
questão, aqui, de reconhecer a agência de outros viventes orgânicos e nem a
porosidade das nossas membranas, mas sim de reconhecer as forças que agem
nas nossas cadeias técnicas, o que deveria valer tanto para os nossos
instrumentos quanto para as figuras que produzimos.
Uma análise rigorosa e poderosa de agência e arte foi feita pelo
antropólogo britânico Alfred Gell. Consciente das muitas dificuldades da
estética moderna de abarcar os diversos contextos nos quais objetos
artísticos são produzidos, Gell propõe que pensemos em artefatos artísticos
como nexos de agência social ativa e passiva. Seus diagramas oferecem as
possibilidades mais diversas para a seta do desejo se alinhar (e se
aninhar, como funções). A antropologia da arte, então, seria os estudos das
relações sociais na vizinhança dos objetos mediadores de agência social.
Nesse sentido, objetos de arte seriam o equivalente de pessoas, ou, mais
precisamente, agentes sociais. Eles teriam uma personalidade distribuída
(GELL, p.7)

Nesse sentido, todo objeto de arte teria uma dramatização corporal (ou
performance) implícita. Como Gell explica:

"(...) there is a seamless continuity between modes of artistic action
which involve "performance" and those which are mediated via artefacts. The
distinction has no theoretical significance. Every artefact is a
'performance' in that it motivates the abduction of its coming-into-being
in the world. Any object that one enconunters in the world invites the
question 'how did this thing get to be here?'.

A esse "como que essa coisa chegou aqui?" nós respondemos, ao que
parece, com estilizações e projeções feitas a partir do repertório afetivo
do nosso próprio esquema corporal (o objeto ontológico por excelência e a
base de toda nossa percepção, como demonstra Merleau-Ponty)[7].
O dispositivo conceitual e diagramático de Gell é maleável o bastante
para dar conta de contextos tradicionais da estética ocidental (como
patronagem religiosa, burguesa e estatal, vanguardismos do século passado)
e da produção artística misturada à vida espiritual e prática em diversas
culturas diferentes. E embora a função estética se preste em cada caso aos
usos mais diversos, aqui todos os usos possíveis da arte tem em comum a
mediação de forças diversas entre seres. Desde os deuses que são
representados em algum objeto (e que lhe serviriam de causa como protótipos
figurativos) aos alvos de bonecos de volt sorcery, do rico que paga para
ter seu retrato pintado aos materiais usados para produzir um objeto em
particular, pontos diversos da cadeia de produção podem causar seus
próprios tipos de efeito. Não é tão trivial assim decidir quem é que faz o
quê, na arte, Gell parece dizer.
Qualquer poema é também uma ação empacotada, um dispositivo
relacional que funciona como um programa para o corpo. Um dinamograma,
diria o historiador da arte Aby Warburg, ou uma série de procedimentos
para o nosso esquema corporal incorporar (instruções para performance, como
diz Kenneth Burke, 2003, p.242).
A produção de um objeto de arte é a transdução de valores afetivos
num gesto material iterável ou reverberável em alguma ecologia imagética.
Na repetição diferida – ou atualização expressiva – de toda imagem temos a
força passiva de um dinamograma que vira figura ativa a partir de sua
atualização. Ao mesmo tempo, temos a expressividade ativa do corpo que vira
passiva (a aura do objeto para o qual olhamos e que passa a nos olhar de
volta, como em G.M. Hopkins e em Benjamin)[8].
Toda coisa feita com intenção estética tem essa presença distribuída
que permanece virtual na sua configuração material. Ainda que o seu
tensionamento possa atualizar forças diversas, todas suas transformações
energéticas compossíveis decorrerão necessariamente dos termos materiais
configurados.



3. O meme e o mímema

Já faz parte da linguagem corrente o termo "viral" para denominar
algum evento que se dissemina rapidamente pela internet. O interessante da
imagem do vírus para descrever a disseminação imagética é sua
indecibilidade entre o morto e o vivo. Um vírus pode ser descrito como um
agente infeccioso que se reproduz nos tecidos de organismos vivos. O refrão
pegajoso de uma canção, por exemplo, aloja-se num hospedeiro e pode se
repetir durante décadas, causando em alguns casos mais irritação do que
propriamente alegria. Configurações imagéticas podem apresentar uma
expressividade tão imediata para uma comunidade que as suas variações e
extrapolações se reproduzem de maneira desenfreada em questão de horas,
quase como se por conta própria.
O empréstimo de termos da biologia para explicar a disseminação de
artefatos culturais tem uma de suas culminações com o termo "Meme", usado
famosamente por Richard Dawkins para descrever uma unidade básica de
cultura no seu influente livro "The Selfish Gene"[9]. Derivado
etimologicamente de mímema (coisa imitada), um meme seria uma unidade de
transmissão ou replicação de cultura. O processo de variação e seleção de
memes seria análogo ao processo de variação e seleção natural de material
genético (ainda que com critérios distintos de sobrevivência).
Existem pelo menos dois antecedentes notáveis à formulação de
Dawkins, mas que não parecem tê-lo influenciado diretamente. O primeiro é
"Die Mneme", de Richard Semon, que propunha a ideia de engramas, inscrições
físicas que explicariam a capacidade retentora da nossa memória, e que foi
influente para o historiador da arte Aby Warburg desenvolver seu conceito
arredio e pregnante de fórmulas patéticas (dinamogramas que Warburg parece
figurar como sulcos afetivos coletivos, na maior parte do tempo).
O segundo seria "As Leis da Imitação" de Gabriel Tarde, onde se
divide o que ele chama de repetição universal em três fases: ondulação (a
irradiação vibratória), geração (a expansão geradora) e imitação (o
contágio do exemplo; Tarde, 1890, p.21).
Tarde nos dá para pensar tanto a expansão cultural quanto a expansão
de formas orgânicas em termos análogos de disseminação e competição de
colônias ou coletivos de correntes imitativas que se entredevoram.
A invenção seria, então, a interferência fecunda de repetições, para
Tarde:

N'oublions pas, cependant, que toute invention, toute découverte,
consiste en une rencontre mentale de connaissances déjà anciennes et le
plus souvent transmises par autrui. En quoi a consisté la thèse de Darwin
sur la sélection naturelle ? À avoir proclamé la concurrence vitale ? Non,
mais (Voir Rev. scientif., 1er déc. 1888, article de Giard) à avoir, pour
la première fois, combiné cette idée avec celles de variabilité et
d'hérédité. La première, proclamée déjà par Aristote, était demeurée
stérile tant qu'elle ne s'était pas associée avec les deux autres. -
Partant de là, on peut dire que le terme générique, dont l'invention n'est
qu'une espèce, c'est l'interférence féconde des répétitions (Tarde, 1890,
p.121)

O mesmo poderia ser dito do Meme de Dawkins (que foi, como todo
conceito, também a combinação variada de ideias pré-existentes). Além do
poder descritivo efetivo do conceito, para explicar o sucesso de sua
reverberação podemos também reconhecer a economia expressiva do termo meme,
fácil de decorar e rico em associações (algumas delas antecipadas pelo
próprio Dawkins), além de sugerir uma cosmopolítica de competição
individualista bastante coerente com os valores da ecologia midiática anglo-
saxã.
Como descreve Sampson:
The much-imitated social inventions that Tarde conjures up are forces
(flows, vibrations, or radiations) of imitation–suggestibility that seem to
take on a life of their own as they spread through a network (Sampson,
2012, p.14)
Ou, ainda, como diz Bernardo Freire, também explicando os fluxos de
Tarde:
Isso faz com que, por conseguinte, a sociedade seja compreendida como
uma caixa de ressonância que atinge escalas infinitesimalmente pequenos e
infinitesimalmente grandes, a depender da configuração oscilatória (Freire,
2015, p.261).

Não só a sociedade (um corpo coletivo) é uma caixa de ressonância,
mas também o nosso corpo funciona como meio, ou ambiente, para a competição
de mímemas.
O mímema teria um vetor de verossimilhança e outro de diferença, ou
seria a combinação de verossimilhança e diferença (na paráfrase de Luiz
Costa Lima da mímesis aristotélica). Pode-se dizer: uma força que puxa para
dentro do corpo social tensionada com uma força que empurra para fora, como
na tensão que mantém corpo individuado nas suas bordas na física estóica.
Em todo mímema - enquanto dispositivo relacional - há um mínimo de
redundância necessário para configurar um fundo para a produção de
diferença da figura, mas este mínimo varia agressivamente com os termos
materiais de toda produção cultural.
Pode-se chamar de ecologia imagética tanto o espaço compartilhado de
complexos figurais funcionando como nexos de agência coletiva quanto o
espaço interno de um indivíduo onde complexos imagéticos disputam-se nas
psicomaquias que compõem uma personalidade. A deixa que se toma é a de
Gregory Bateson (no seu Steps to an Ecology of Mind), assim como a das Três
Ecologias de Guattari, inspiradas no primeiro.



4.
"Yo y mis compañeros somos aparencias, somos una nueva clase de fotografia"
Bioy Casares, La Invencion de Morel. p.87


Em "A Invenção de Morel", romance de ficção científica de Adolfo Bioy
Casares, vê-se uma expressão muito potente desse caráter indeciso das
imagens entre o objetivo e o subjetivo.

A máquina de Morel é explicada como uma radicalização do princípio
em que seriam fundados o fonógrafo, a câmera, a televisão e o projetor –
isto é, a supressão de ausências para o olho e o ouvido. O seu inventor foi
atrás de "Ondas y vibraciones incalzadas" e dos instrumentos que pudessem
"captarlas y transmitirlas" (p.84). A ideia é capturar uma imagem extensa
em quatro dimensões, um lugar gravado em todos os sentidos e podendo ser
reproduzido em todos seus efeitos sensíveis.

A narrativa é escrita por um fugitivo que chega sozinho à ilha e não
entente a princípio o que são os espectros com os quais se depara. Por
muito tempo ele fica evitando ser visto pelas pessoas, com medo de ser mal
recebido. Embora a ilha seja povoada de aparições repetindo uma mesma
sequência semanal de ações, quase todo o drama do narrador (dado a arroubos
líricos) é engendrado em torno de uma das aparições, Faustine. Nas
primeiras vezes que a encontra, o protagonista acha que ela não consegue vê-
lo, depois que deve ignorá-lo por sua má condição de náufrago malamanhado.
Ele prontamente se apaixona pela imagem de Faustine e se enciúma de seus
encontros com outras imagens. Tenta diversas maneiras de chamar sua atenção
até descobrir finalmente o que está se passando na ilha quando acontece de
presenciar um encontro didático de Morel com seus convidados onde ele
apresenta a sua máquina e o motivo oficial daquela viagem. Morel pretendia
gravar durante uma semana a viagem com seus amigos sem que eles soubessem.
Há a sugestão de que o processo de gravação já matou pessoas antes, na fase
de testes, e é possível que isso tenha acontecido com todos aqueles
hóspedes, e mesmo com o próprio Morel.
A cena do narrador passivo e resignado diante de uma presença que
jamais poderá reconhecer a sua própria (e nem mesmo o estrago emocional do
qual ela é causa) tem momentos desesperadores. Na adaptação cinematográfica
do livro, de resto não muito bem-sucedida, é muito expressiva a cena em que
ele primeiro se depara com a figura de Faustine. A impressão que temos é de
que o personagem entrou sem querer num comercial ou num filme para o qual
não foi convidado. O desejo diagramado na figura gravada de Faustine
continua a rebentar adiante tanto tempo depois dela partir da ilha,
reverberando como filmes ou canções velhas continuam a ressoar por um tempo
indefinido no nosso mundo cheio de ecos de fantasmagorias imperiais
empacotadas nas cadeias extensas para suas reverberações.
A máquina que gravou, armazenou e agora projeta aquela semana tem sua
energia alimentada pelas marés. Ondas mecânicas de água alimentando a
reprodução das ondas eletromagnéticas (numa recursão que aponta, como em
tantos outros momentos do livro, para a imaginação mágico-material de
Borges). A própria máquina gravou também a si mesma e ao prédio onde está
guardada, de modo que na tentativa de chegar ao seu centro para destruí-la
o narrador se vê continuamente impedido pela presença renovada de paredes
que acabou de derrubar. Essa máquina, a princípio de uma perfeição
tautológica, produz uma eternidade fantasmagórica para aqueles que são
capturados por seus instrumentos. Um eterno retorno artificioso e
aparentemente vazio, garantido pela técnica.
Morel é quase cínico na sua maneira defender de que as suas criações
espectrais seriam como pessoas:

Si acordamos la consciência, y todo lo que nos distingue de los objetos, a
las personas que nos rodean, no podremos negárselos a las creadas por mis
aparatos, com ningún argumento válido y exclusivo. (BIOY CASARES, p. 85)
Morel sugere que nós também somos pouco mais que apanhados de
aparências, congregações de sentidos, aquela recuperação técnica seria fiel
o bastante ao que nos é essencial. E ainda leva a ideia mais adiante (ou a
recua ainda mais?)

No debe llamarse vida lo que puede estar latente em un disco, lo que se
revela si funciona la máquina del fonógrafo, si yo muevo una llave?
Insistiré em que todas las vidas, como los mandarines chinos, dependen de
botones que seres desconocidos pueden apretar? Y ustedes mismos, cuántas
veces habrán interrogado el destino de los hombres, habrán movido las
viejas perguntas: A donde vamos? En dónde yacemos, como em un disco músicas
inauditas, hasta que Dios nos manda nacer? No perciben un paralelismo entre
los destinos de los hombres y de las imágenes? (p.85)

Não percebe um paralelismo entre o destino dos homens e das imagens? Aqui,
no momento mais fundo de suas elucubrações, Morel equivale a virtualidade
das nossas vidas antes do nascimento a de músicas nunca ouvidas num disco
gravado. Nós mesmos existimos comos diagramas de intensidade, complexos
figurais individuais e coletivos movendo-se em sulcos afetivos que parecem
às vezes cavados há muito tempo (como na contrição discreta e contínua das
fórmulas patéticas - Pathosformeln - de Aby Warbug, até onde as entendo).

5. A troca de agência entre uma imagem e um corpo

"Each thing has its own vortex"
William Blake, Milton

Imagens e complexos figurais podem não ser exatamente formas de vida
biológica, mas tampouco são só uns troços inertes. Se é verdade que as
inflexões afetivas (ou feixes de tendências motoras) de cada corpo se
imprimem na maneira com que uma imagem é recebida, ou repetida, também é
verdade que essa resposta se dará de acordo com os limites e os intervalos
possibilitados pela constituição material efetiva da imagem.
Simondon é enfático quanto ao fato de imagens modularem energia real
na sua intermediação. Não só a fotografia pode efetivamente capturar pontos
de luz de um evento mas a carga simbólica configurada na expressividade
material de um símbolo num escudo pode motivar uma multidão numa batalha.
Imagens estão metidas entre as outras coisas do mundo, roçando suas
superfícies nas bordas alheias como todos nós.

Há uma troca, um verdadeiro vai e vem de agência, entre o corpo e a
imagem aparentemente estática que ele transforma em figura dinâmica. Entre
o vórtice vertiginoso daquela perspectiva e a voragem que a incorpora, no
campo que emerge dessa interação, há pelo menos duas giras que se
interpenetram (two interpenetrating gyres, como viu Yeats em sua visão, ou,
arrisco, como no candomblé).
Da atividade do corpo ao reproduzir os nexos de relação que
constituem a figura (e passividade da imagem ao se oferecer como objeto) à
passividade do corpo em ceder à tessitura e a consistência interna da
imagem na plasticidade ativa de sua configuração.

De fato, muito do apelo de todas as artes, não só as propriamente
figurativas, está nessa possibilidade de ceder parte do controle da nossa
própria duração para outra força constitutiva que não a da nossa volição.
Apreender os limites de um estilo figurativo é tanto se apoderar de um
mundo quanto tomar emprestada uma voz alheia à sua. Ter controle e deixar
de ter controle ao mesmo tempo. A plateia de uma performance musical ou de
um filme estão igualmente submetendo seus corpos para terem aqueles ritmos
impressos. Mesmo a recusa de participar daquela duração (na distração do
tédio e sono, por exemplo) parece derivar, em parte, dos termos daquela
duração.

Um sinal de que algo da nossa agência pode se perder (ou, no mínimo,
se reconfigurar) na experiência artística está na tristeza e pavor
profundos que obras ficcionais podem provocar. Em tese, está sempre
disponível para nós a possibilidade de desativar ou desmontar a urgência de
uma ficção (ao contrário da tristeza ou pavor provocado por um fato
concreto), mas essa possibilidade nem sempre se apresenta como imediata.
Desprazer para um sistema, prazer para outro, diz Freud em Além do
Princípio do Prazer.

Depois que aceitamos os termos dramáticos de Como-se onde algo
terrível se configura, pode parecer inteiramente fora do nosso alcance
desconstituir a expressividade daqueles termos. Quando repetimos uma trama
estamos contritos pelos seus termos, ao mesmo tempo que, de certa forma,
aparentemente libertados dos nossos termos usais de individuação corpórea
(por meio de aparente suspensão deles e adoção recíproca de outros). Nos
apoderamos de um mundo e deixamos de ter controle do nosso corpo, ao mesmo
tempo. 

Somos nós quem fazemos as figuras em que acreditamos, donde o Verum
Factum de Giambattista Vico (que inclui as matemáticas e científicas; onde
mais vale falar de construir). Mas depois de feitas e reverberadas, depois
de suas transformações entranhadas em redes comunicativas, depois de
endurecerem as figuras em gestos fixos (tecnologias figurativas
formalizadas) elas podem passar a nos produzir de volta de uma maneira
bastante literal. Outra maneira de dizê-lo é que montagens cinéticas de
sentido existem, desativadas, como programas, mas quando intencionadas (ou
tensionadas, como quem tensiona um arco) por um agente tendem a começar a
se movimentar por conta própria. Somos nós que ditamos o tempo da leitura,
mas o movimento que damos a uma narrativa pode fazer com que suas figuras e
o nexo de sua interrelação ganhem alguma medida de autonomia expressiva em
sua constituição. Podemos fechar o livro e continuar com uma determinada
voz correndo solta na nossa cabeça, manter em suspenso a presença
intermitente de um único refrão fantasmático durante décadas.
O agente de sua criação (assim como de sua re-criação) em algum
momento de sua constituição expressiva se torna paciente, o que tende a
acontecer quando os termos de inteligibilidade expressiva daquela
performance passam por testes de consistência e são aceitos como imediatos
pelo corpo. Quando começamos a nos mover do jeito que a obra se move, tanto
progressivamente encaixados (ou afinados) nas frequências de onda do seu
meio material quanto continuamente quebrados na sua modulação de ruído.



Um corpo e seus intrumentos (o dentro e o fora)

"sentido é questão de pele,
amor é tudo que move" Gilberto Gil


Machado de Assis fala no seu muito estudado conto "O espelho" de como
podemos ter diversas almas exteriores:
A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de
camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o
voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor,
etc.

Machado parece sugerir aqui que possamos nos depositar inteiramente
em instrumentos expressivos de todo tipo. A neurociência nos diz que de
fato a nossa propriocepção se estende literalmente até as ferramentas que
usamos, de forma a incorporá-las. O que quer dizer que alguém que toca um
violino se estende até o violino. Pode-se até dizer que ele se torna o
violino (ou, até, se quiserem, sem nem forçar assim tanto a barra, a
própria peça de música)
Como diz Merleau-Ponty, acostumar-se a um chapéu, um automóvel ou um
bastão (no caso de um cego) significa se instalar neles, ou, inversamente,
fazê-los participar da voluminosidade do próprio corpo (ou ainda Gregory
Bateson, usando o mesmo exemplo do cego que se orienta com um bastão,
curiosamente, e perguntando onde ele começa, se aquele sistema mental tem
seu limite na ponta do bastão, na sua metade, na pele do homem, etc)
De todos os vários estudiosos da tecnicidade da segunda metade do
século passado, Gilbert Simondon é dos mais originais, assim como dos mais
negligenciados (apesar do seu conceito de transdução ser utilizado por
Deleuze & Guattari)
O principal trabalho filosófico de Simondon é "L'individuation à la
lumiére des notions de forme et d'information" (2005). O ser, em Simondon,
é, antes de tudo, relação, e a individuação é um processo que jamais
termina. Nós nunca estamos prontos e terminados, nunca atinge-se um
equilíbrio no sentido de esgotamento das possibilidades de transformação
energética. O ser vivo, agente e teatro de individuação (SIMONDON, p.27),
está em constante troca energética com seu meio, pulando de um equilíbrio
metaestável para outro, ativando sua carga de energia pré-individual e
sempre renegociando a sua barreira entre o dentro e o fora em sua relação
com o meio.
Não temos como uma introdução adequada ao pensamento de Simondon
aqui, mas para explicar como Simondon compreende a individuação dos
viventes a partir do domínio transindividual é preciso ao menos entender a
sua crítica ao modelo hilemórfico aristotélico. A dupla forma-matéria e seu
dualismo subjacente não dá conta, segundo ele, do verdadeiro dinamismo de
qualquer operação técnica. A argila não é uma matéria desorganizada,
caótica e passiva que vem a ser ordenada plenamente pela forma, como pode
sugerir a figura prototípica de alguém que impõe a forma abstrata do vaso a
um monte de argila. Esse seria essencialmente o modelo de operação técnica
comandado pelo homem livro e executado pelo escravo. (SIMONDON, p.51)
Não só um molde precisa ser feito com seus próprios materiais, mas a
argila também precisa ser antes preparada, e mesmo depois de preparada ela
oferece uma plasticidade ativa na sua capacidade de se configurar aos
termos de um molde. (SIMONDON, p.41). O Deleuziano Manuel Delanda (outro
expoente notável do novo materialismo dinâmico) diria que a matéria é
morfogeneticamente carregada.
Invoco os conceitos de Simondon para pensar que na estética moderna a
forma costuma ser invocada em privilégio da matéria, o que repete o
movimento que privilegia o artista romântico como agente absoluto diante de
uma passividade absoluta tantos dos materiais artísticos quanto dos seus
pacientes.
Simondon também nos presta em sua análise da topologia dos viventes,
que pode jogar uma luz surpreendente no que já chamei de vai-e-vem de
agência entre um objeto de arte e o corpo que o ativa como dispositivo
relacional.
Tentando generalizar ao máximo a topologia dos viventes (ou a
constituição espacial de seres vivos), Simondon conclui que é necessaria a
relação entre um meio de interioridade e um meio de exterioridade para se
dizer que se aproxima da vida. E concentra-se na imagem da membrana:

La membrane vivante, anatomiquement différencié ou seulement fonctionelle
lorsque aucune formation particulière ne matérialise la limite, se
caractérise comme ce qui sépare une région d'interiorité d'une région
d'extériorité: la membrane est polarisée, laissant passer tel corps dans le
sens centripète ou centrifugue, s'opossant au passage de tel autre.[10]

Isso não quer dizer achar que o ser vivo se confunde com sua
interioridade (p.127) O ser vivo vive no limite de si mesmo, sobre este
limite (SIMONDON, 2013, p.224)[11]. A membrana se polariza tanto na direção
centrípeta quanto na centrífuga.
Como explica Anne Sauvagnargues:

A polaridade da membrana distingue o favorável (que integra e retém) do
desfavorável (que evita e rejeita) de uma maneira Spinozista
(SAUVAGNARGUES, 2013, p.67).
Não é possível explorar aqui as conexões possíveis com Spinoza, mas
tanto na nossa respiração, alimentação e excreção quanto em outros regimes
de assimilação energética, muito da nossa atividade vital consiste em
regular o que entra e o que sai do corpo[12].
Tampouco somos apenas uma grande membrana regulando um fluxo de
dentro e fora. Simondo deixa claro que em organismos complexos
pluricelulares existem vários estágios intermediários entre o dentro e o
fora.

As cavidades digestivas são externas em relação ao sangue, que por sua vez
é um meio de exterioridade em relação às glândulas de secreção interna
(SIMONDON, 2013, p.225).

Whitehead insiste que o corpo é contínuo com o mundo externo, e que
se tentarmos ser exatos ao ponto do preciosismo, não conseguimos definir de
fato onde o corpo começa e a natureza externa termina[13].
Nós não só podemos literalmente estender os limites da nossa
propriocepção até os instrumentos com os quais nos relacionamos como
precisamos viver em contínua troca energética dos limites do corpo com o
seu meio para sobreviver. Além de pensar nos instrumentos e objetos de arte
como extensões de órgãos e partes do corpo (como em Tarde ou Mcluhan)
podemos pensá-los como intermediadores entre domínios de interioridade e
exterioridade. Não só do nosso corpo com o meio, mas também de corpos
coletivos com elementos afetivos que considera estranhos ou nocivos e
procura rejeitar. A mediação entre o dentro e o fora não cabe apenas ao
corpo que atualiza a virtualidade de um dispositivo relacional, mas também
à própria configuração material do dispositivo.
Na física estoica, todo corpo (não só de organismos vivos) teria um
movimento tônico ou de tensão (tonike kinesis) resultante de uma ação
simultânea para fora e para dentro. Como explica Sandursky:

This rapid succession of outward and inward motions, which follow on
steadily as long as the body lives, can be seen as one single motion
resulting from the superposition and merging of both movements into one. We
find indeed the tonike kinesis sometimes defined as "simultaneous motion in
opposite directions", 34 or "simultaneously moving inwards and
outwards".(SAMBURSKY, p.22 )
O universo todo, aqui, é visto como um organismo vivo. O tono de
cada coisa seria resultado do pneuma que a percorre, diferentes graus de
tensão do sopro de fogo técnico (pyr tekhnikon) que percorre todas as
coisas (SIMONDON, 2013, p.394) Para os estoicos, faz mais sentido falar de
estados do que de corpos. Como explica Deleuze, porque :

le présent vivant est l'étendue temporelle qui accompagne l'acte, qui
exprime et mesure l'action de l'agent, la passion du patient[14]. Mais, à
la mesure de l'unité des corps entre eux, à la mesure de l'unité du
principe actif et du principe passif, un présent cosmique embrasse
l'univers entier: seuls les corps existent dans l'espace, et seul le
présent dans le temps. (DELEUZE, p.13)

Sambursky chega a entender que eles prefiguram a noção de campo de
força, além de terem sido os primeiros a usar analogia de ondas de água
para descrever a propagação de energia em outros meios.
Influenciados pelas descobertas de Pitágoras e de seus seguidores,
assim como por Heráclito (que via na harmonia uma tensão entre contrários),
segundo Simondon, os estoicos pensavam ainda nos graus de tensão como "une
fréquence de résonance qui est aussi une fréquence d'oscillation propre
lorsqu'il est soumis à un ébranlement[15]"(SIMONDON, 2013, p.394)

Além da atenção às frequências de oscilação do seu corpo e do seu
meio ser essencial para a regulação e modulação de uma harmonia entre
microcosmo e macrocosmo, o próprio pensamento é tonos, atenção ao objeto
que quer apanhar; a atenção é uma tensão da mente lhe que permite se tornar
sintônica ao que ela quer pensar (SIMONDON, 2013, p.395)
A mente aqui tem que ser compreendida por todo o nosso conjunto
sensorial, todo o esquema corporal (como na fenomenologia da percepção de
Merleau-Ponty). A atenção aqui de corpo inteiro é de encontrar a coisa na
sua própria frequência, pensar a coisa com a sua própria densidade rítmica,
na consistência espaço-temporal do seu tecido (o sinal e o meio), assim
como reconhecer a resistência que ela oferece ao toque. Deixar que a
configuração material faça o que ela tenha de fazer em todo o dinamismo de
sua concreção situada, engajando todo o seu repertório rítmico na repetição
diferida dos seus termos.
Em poucos poemas esse engajamento corporal na mediação entre o dentro
e o fora se vê expresso de forma mais intensa quanto em "Escritos com o
corpo", de João Cabral (de Serial, 1959-1961). Por diversos motivos, faz
muito sentido reproduzi-lo inteiro:

Ela tem tal composição
e bem entramada sintaxe
que só se pode apreendê-la
em conjunto: nunca em detalhe.

Não se vê nenhum termo, nela,
em que a atenção mais se retarde,
e que, por mais significante,
possua, exclusivo, sua chave.

Nem é possível dividi-la,
como a uma sentença, em partes;
menos do que nela é sentido,
se conseguir uma paráfrase.

E assim como, apenas completa,
ela é capaz de revelar-se,
apenas um corpo completo
tem, de apreendê-la, faculdade.

Apenas um corpo completo
e sem dividir-se em análise
será capaz do corpo a corpo
necessário a quem, sem desfalque,

queira prender todos os temas
que pode haver no corpo frase:
que ela, ainda sem se decompor,
revela então, em intensidade.

§

De longe como Mondrians
em reproduções de revista,
ela só mostra a indiferente
perfeição da geometria.

Porém de perto, o original
do que era antes correção fria,
sem que a câmara da distância
e suas lentes interfiram,

porém de perto, ao olho perto,
sem intermediárias retinas,
de perto, quando o olho é tato,
ao olho imediato em cima,

se descobre que existe nela
certa insuspeitada energia
que aparece nos Mondrians
e vistos na pintura viva.

E que porém de um Mondrian
num ponto se diferencia:
em que nela essa vibração,
que era de longe impercebida,

pode abrir mão da cor acesa
sem que um Mondrian não vibra,
e vibrar com a textura em branco
da pele, ou da tela, sadia.

§

Quando vestido unicamente
com a macieza nua dela,
não apenas sente despido:
sim, de uma forma mais completa.

Então, de fato, está despido,
senão dessa roupa que é ela. 
mas essa roupa nunca veste:
despe de uma outra mais interna.

é que o corpo quando se veste
de ela roupa, da seda ela,
nunca se sente mais definido
como com as roupas de regra.

Sente ainda mais que despido:
pois a pele dele, secreta,
logo se esgarça, e eis que ele assume
a pele dela, que ela empresta.

Mas também a pele emprestada
dura bem pouco enquanto véstia:
com pouco, ela toda também,
já se esgarça, se desespessa,

Até acabar por nada ter 
nem de epiderme nem de seda:
e tudo acabe confundido,
nudez comum sem mais fronteira.

§

Está, hoje que não está,
numa memória mais de fora.
De fora: como se estivesse
num tipo externo de memória.

Numa memória para o corpo,
externa ao corpo, como bolsa:
que, como bolsa, a certos gestos
o corpo que a leva abalroa.

Memória exterior ao corpo
e não da que de dentro aflora;
e que, feita que é para o corpo,
carrega presenças corpóreas.

Pois nessa memória é que ela,
inesperada, se incorpora:
na presença, coisa, volume,
imediata ao corpo, sólida,

e que ora é volume maciço,
entre os braços, neles envolta,
e que ora é volume vazio,
que envolve o corpo, ou o açoita:

como o de uma coisa maciça
que ao mesmo tempo fosse oca,
que o corpo teve, onde já esteve,
e onde o ter e o estar igual fora.


Para melhor potencializar o poema como documento crítico que fala a
respeito de toda transdução artística, podemos pensar na troca sexual entre
dois corpos sugerida no poema como a troca entre um corpo e um dispositivo
relacional. Cabral começa dizendo que para entender todas as articulações
do corpo-frase é preciso lê-lo de corpo inteiro. Isso significa que o
corpus precisa ser apreendido por inteiro (como-uma-sucessão-rítmica-
situada mais do que como-um-todo-fechado) mas também que o corpo precisa se
engajar inteiramente na tarefa para dar conta de sua articulação
expressiva.
Todo o esquema corporal pode se ver envolvido em qualquer concreção
rítmica e deve ser ativado em toda atividade crítica (ativa ou passiva)
para entender todos os temas que compõe o corpo-frase. Note que é o corpo-
frase, não o corpo-palavra. Ainda que se fale no todo, a ênfase é na
intensidade da articulação e da apresentação, no evento enquanto
singularidade. Se a concreção corporal para a qual a linguagem aponta
repete a própria linguagem, aqui, é antes pela sintaxe do que pela
semântica.

Da visão para o tato temos a primeira transdução (transformação de um
tipo de energia em outra que se estabelece com consistência recursiva). O
olho que vendo de perto a pele sadia do quadro do Mondrian em pintura viva
sente que a toca, e daí apresenta a possibilidade de tudo ser pensado como
pele. A pele não é só uma camada de superfície, é um limite expressivo
poroso, estado de tensão entre corpos[16][17]. E depois de se despir de
tudo, exceto da roupa que é ela, roupa que nunca veste (e sim o despe de
outra mais interna), ele assume a pele dela, que toma emprestado (ação que
se prova, na verdade, uma espécie de troca de pele) Mas essa nova pele dura
pouco enquanto véstia, logo se desespessa, esgarça seus ainda novos
limites, e a nudez comum que resulta dessas dissoluções sucessivas é
efetivamente, de uma mistura (Nudez comum, sem mais fronteira; ou seja, sem
mais limite efetivo entre a porosidade das membranas).
O que nos leva ao comentário de Simondon sobre a mistura dos corpos
na Ēsica estoica.


L'agent s'étend ainsi à travers le patient, l'âme à travers le corps, le
logos à travers la matière (SIMONDON, p.397).[18]

Os indivíduos, ele continua, aqui, definem-se pelo drama conjunto de
suas paixões sucessivas, a mistura própria de influências que a sua
história caracterizou. A arte pode muito bem ser uma valise de truques e
ilusões, mas as trocas de energia e as mudanças crono-topológicas que elas
podem efetivar com suas próteses imaginativas são reais: La relation est
dans cette vision du monde une échange d'être, un apport d'être, un mélange
total. (p.SIMONDON, 397)[19]
Como na mistura dos semio-traços afetivos de Spinoza, até onde os
entendo.
O corpo, aqui no poema de Cabral, aparece como uma coisa maciça e
oca ao mesmo tempo, ora vazia e envolta, ora cheia e envolvida, cheia de
repetições e fantasmagorias, e misturado aos outros corpos tanto atualmente
quanto virtualmente. Aquilo que não está hoje ainda assim está, em nós,
ainda que numa bolsa, tipo externo de memória (que, ainda assim, carrega
presenças efetivamente corpóreas).

O que nos conduz a esse trecho de Stengers explicando a dinâmica da
infecção em Whitehead:

Pour Whitehead, les parties ne composent pas le tout sans que le tout
n'infecte les parties. En d'autres termes, l'identité, ou le mode endurant
de structuration, du tout et des parties sont strictement contemporains.
C'est pourquoi on peut utiliser le même terme, « infection », tant pour
désigner les rapports entre tout et parties que pour décrire les relations
de l'organisme vivant avec son environne ment. Si le corps existe pour ses
parties, c'est parce ses parties sont infectées par tel ou tel aspect
obstiné de ce que nous appelons le corps, mais qui, pour elles, est une
portion de leur environnement, et si les parties existent les unes pour les
autres et pour le corps, c'est parce que les modes de structuration
respectifs de chacun sont d'une très grande sensibilité à toute
modification de l'environnement qu'ils constituent les uns pour les autres.
(Stengers, p.200).[20]


Stengers está falando aqui do vínculo que mantém o conjunto corporal
individuado e da dinâmica de troca contínua entre um corpo e seu meio. As
partes de um todo são meios recíprocos umas paras as outras, o que descreve
a infecção recíproca entre as partes de um corpo assim como de um corpo com
seu meio.
Temos diante de nós um poema (uma coisa feita). Aquela coisa está
disponível para nós como objeto, meio material expressivo, mas nosso corpo
existe para aquele objeto como meio.
Quando um evento acontece em nós - por meio de nós – a concreção
situada não está nem no evento nem dentro de nós, mas, por se assim dizer,
no arco, ou na trajetória, entre uma coisa e a outra[21].
Stengers, via Whitehead, mostra que o meio infecta o corpo e o corpo
infecta o meio de volta. Por isso quando dois corpos interpenetram suas
potências expressivas, não são nunca apenas dois corpos envolvidos, mas
vários meios expressivos descontínuos sobrepostos em intensidade contínua.
Ritmo. Não é apenas a extensão estratégica da superfície da trama que cobre-
e-revela nexos de eventos, mas a sobreposição em intensidade do seu tecido
(que permite tanto a resistência flexível da sua forma quanto o vazamento
seletivo de luz). Se o engajamento expressivo é efetivo, o corpo pode
passar a se ver implicado nos termos daquela concreção que o envolve como
trama, de forma momentânea ou duradoura.
Também aqui na nossa repetição crítica do poema de Cabral tenta-se
apreender o que o poema faz enquanto sucessão é a concreção da configuração
virtual de seu dispositivo num corpo. É sempre o complexo de fantasmagorias
afetivas do nosso corpo que é posto para jogo no engajamento imaginativo
com algum índice de agência artística.
O pandemônio das imagens e dos objetos que intermediam a nossa
relação com as forças inumanas do nosso meio são nós afetivos
constitutivos, complexos figurais que funcionam como elementos de tramas
espaço-temporais que nos envolvem como indivíduos e como membros de
coletividades. Não estamos mais falando nem exatamente de corpos nem
exatamente de imagens, mais, nota-se. No último verso, o fora lê-se mais
imediatamente como pretério mais-que-perfeito do verbo ser, mas também
ressoa aqui o fantasma fônico da palavra fora, lembrete de que o mundo
exterior, assim como o mundo interior, pode se nos apresentar como essa
mistura de ausência e presença dos lugares e corpos em que já estivemos e
que já estiveram em nós.

e que ora é volume maciço,
entre os braços, neles envolta,
e que ora é volume vazio,
que envolve o corpo, ou o açoita:

como o de uma coisa maciça
que ao mesmo tempo fosse oca,
que o corpo teve, onde já esteve,
e onde o ter e o estar igual fora


Referências Bibliográficas:

Bateson, Gregory. Steps to an Ecology of Mind, Ballantine Books, 1973


Bennet, Jane. Vibrant Matter. Duke University Press, 2010.

Bioy Casares, Adolfo. La invencion de Morel.

Burke, Kenneth. On Human Nature: A gathering while everything flows.
University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 2003.
___________ Permanence & Change. An Anatomy of purpose. University of
California Press, 1987.
Deleuze, Gilles. Logique du Sens. Les éditions de minuit. Paris,
2012.

Freire, Bernardo. A conciliação interrompida : modos de mediação na
França e espiritismo
francês no século XIX / Campinas, SP : [s.n.], 2015.


Gell, Alfred. Art and Agency. Oxford University Press, Oxford, 1998.

MITCHELL, W. J. What do Pictures Want? The University of Chicago
Press, Chicago,
2004.

Merleau-Ponty, Maurice. La Phénoménologie de la Perception.
Gallimard, Paris, 2003.

Simondon, Gilbert. Imagination et Invention. 1965-1966. PUF, Paris,
2014.

___________ L'Individuation à la lumière des notions de forme et de
information.
MILLON, Paris, 2013.

Sambursky, Physics of the Stoics. Routledge, London, 1959

Sampson, Tony. Virality: contagion theory in the age of networks.
Minneapolis, University of Minnesota Press, 2012.

Sauvagnargues, Anne. Crystals and Membranes, in: Gilbert Simondon,
Being and Technology, Edinburgh University Press, 2013

Stengers, Isabelle. Penser Avec Whitehead. Éditions du Seuil, Paris,
2002.

Tarde, Gabriel, Monadologia e Sociologia. Cosac Naify, São Paulo.

____________ Les lois de l'imitation. Première édition : 1890. Texte
de la deuxième édition, 1895. Réimpression. Paris : Éditions Kimé, 1993,
428 pp.
















-----------------------
[1] Passividade e atividade não são mais do que os dois aspectos
simétricos das trocas de energia; a passividade, potencial ou atual, é tão
essencial quanto a atividade, potencial ou atual.
[2] Se nesse gesto de convidar um subalterno a falar ainda espreita uma
baita condescendência epistemológica eu deixo para o juízo crítico do
leitor.
[3] Contendo em alguma medida vontade, apetite e movimento, elas aparecem
quase como organismos secundários no seio do ser pensante: parasitas ou
adjuvantes, elas são como mônadas secundárias habitando o sujeito em
determinados momentos e saindo em outros.
[4] Se, por um lado, a doxa crítica das últimas décadas já digeriu muitas
vezes a morte do autor, e ideias semelhantes, é mais ou menos seguro dizer
que nas tecnologias burguesas de arte (desde as artes plásticas até o
romance, passando pela música popular) o Autor continua vivo e muito bem.
Pode-se até arriscar que a mediação de um autor enquanto marca
comercializável é a última convenção que ainda orienta e organiza boa parte
da arte produzida hoje e recebida dentro dos meios tradicionais de
canonização, como o jornalismo cultural e a academia, morredouras que sejam
suas relevâncias.
[5] Não parece exagero dizer que tanto o marxismo quanto a psicanálise -
as duas tradições mais influentes de pensamento crítico durante a maior
parte do século XX – trataram de redistribuir a agência do homem livre e
racional sobre o mundo nas suas respectivas economias conceituais.
[6] Pode-se invocar as colônias de bactérias nos cotovelos humanos para
mostrar como sujeitos humanos são, eles mesmos, não-humanos, alienígenas,
externos, materialidade vital. Pode-se notar que o sistema imunológico
humano depende de minhocas parasitárias para o seu funcionamento devido ou
citar instâncias de nossa ciborguização para mostrar como a agência humana
é sempre um agenciamento de micróbios, animais, plantas, metais,
componentes químicos, soms-de-palavra, e que tais.
[7] Merleau-Ponty, Maurice. Phenomenologie de la Perception.
[8] Para uma análise interessante dessa ambiguidade ativa/passiva da aura
em Benjamin ver o livro de Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha.
Editora 34, São Paulo, 1998.
[9] Embora muito influente desde a sua escrita, a visão de Dawkins de um
gene que busca apenas garantir a sua auto-reprodução hoje parece perder
força entre alguns biólogos que tendem a valorizar compreensões mais
relacionais e sistêmicas da seleção natural (com mais ênfase na cooperação
e na interdependência), assim como uma noção de material genético que é
menos inteiriça e fechada e mais aberta à mutações e influências do meio.
Bateson em 1974 dizia que a unidade de sobrevivência não é o organismo, mas
sim o organismo mais o meio (Bateson, 1972, p.483). Para os fins de uma
estética relacional materialista, diríamos que a unidade não é o mímema,
mas o mímema mais seu meio de reverberação (sua cadeia técnica e afetiva).
[10] A membrana viva, anatomicamente diferenciada ou somente funcional sem
que uma formação particular materialize o seu limite, caracteriza-se como o
que separa uma região de interioridade de uma região de exterioridade: a
membrana é polarizada, deixando passar tal corpo no sentido centrífugo ou
centrípeto, opondo-se à passagem de tal outro.
[11] Ou ainda: La limite, et par conséquent la relation de l'individu
n'est jamais une borne, elle fait partie de l'être même (p.128)
[12] Nesse sentido, interessa também para nós a estética da força, ou da
energia, de Fernando Pessoa, formulada na pessoa de Álvaro de Campos.
[13] "We think of ourselves as so intimately en twined in bodily life that
a man is a complex unity-body and mind. But the body is part ofthe external
world, continuous with it. In fact, it is just as much part of nature as
anything else there-a river, or a mountain, or a cloud. Also, if we are
fussily exact, we cannot define where a body be gins and where external
nature ends" (Modes of Thought, p.21, citado por Stengers, p.202)
[14] O presente vivo é a extensão temporal que acompanha o ato, que
exprime e mede a ação do agente, a paixão do paciente. Mais, na medida da
unidade do corpo entre eles, na medida da unidade do princípio ativo e do
princípio passivo, um presente cósmico abraça o universo inteiro: só o
corpo existe no espaço e só o presente no tempo.
[15] uma frequência de ressonância que é também uma frequência de
oscilação própria assim que é submetida a um abalo
[16] E podemos ainda lembrar do Peer Gynt de Ibsen que, ao tentar desvelar
as mais profundas camadas do ser, encontra apenas uma sucessão de camadas
superficiais até lá embaixo, como em uma cebola.
[17] Mesmo uma simples membrana circular pode oferecer todas as variações
dinâmicas de um tambor.
[18] O agente se estende através do paciente, a alma através do corpo, o
logos através da matéria.
[19] A relação é dentro dessa visão de mundo uma troca de ser, uma
contribuição do ser, uma mistura total.
[20] Para Whitehead, as partes não constituem o todo sem que o todo
infecte as partes. Em outras palavras, a identidade, ou o padrão duradouro,
do todo e das partes são estritamente contemporâneos. Isso é porque o mesmo
termo, "infecção", pode ser usado tanto para designar a relação entre o
todo e as partes, e para descrever as relações de um organismo vivo com seu
meio. Se o corpo existe para as partes, é porque as partes são infectadas
por tal e tal obstinado aspecto do que chamamos do corpo, mas que, para
elas, é uma porção de seu meio, e se as partes existem umas para as outras
e para o corpo, é porque os modos de estruturação respectivos de cada um
são de uma grande sensibilidade para toda modificação de meio que eles
constitutem uns para os outros.

[21] Seguimos aqui a orientação de Kenneth Burke no seu Permanence &
Change, de 1935, livro influenciado por Whitehead. A citação vale sua
extensão: Quem, afinal de contas, decreta o que se chama de um evento
separado? Porque devo chamar colheitas de uma coisa e luz do sol de outra
essencialmente diferente, particularmente quando eu tenho tanta evidência
para indicar que uma coisa pode se tornar a outra? Porque eu não poderia
também considerar como um evento a irradiação de certos raios, sua jornada
desde o sol, sua inclusão na vida da planta por meio do funcionamento da
clorofila, e sua diminuição final no outono? O novo realista considera a
experiência precisamente por essa maneira alterada de dividir todos quando
se diz que não devemos falar do verde como uma "ilusão", um mero fenômeno
repetido de certas vibrações afetando tecidos nervosos. No lugar, ele diz,
devemos considerar o "arco" inteiro como a "experiência real", aceitando
como um evento as vibrações externas, as respostas nervosas e o sentido
resultante de verde. Por este método, a qualidade verde torna-se tão "real"
nas nossas especulações como é na nossa experiência cotidiana. Não é uma
"ilusão", mas uma parte atual do universo. (Burke, 1987, p.260)
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