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May 22, 2017 | Autor: Bruno Schiappa | Categoria: Theatre Studies, Theatre and Performance Studies, Voice Studies
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A VOZ NO PALCO POLÍTICO, NO CIDADÃO E NO TEATRO DURANTE UMA DITADURA

PhD BRUNO SCHIAPPA
Investigador Integrado do Centro de Estudos de Teatro - Faculdade de Letras
/ Universidade de Lisboa; Ator/Encenador/ Dramaturgo; Especializado nas
técnicas de O Método de Lee Strasberg.


Introdução

A voz é o principal veículo de comunicação entre os seres humanos?
Em caso afirmativo, será um veículo isoladamente de outro meio de
expressão? E o discurso será uma expressão de ideias que resulta apenas da
verbalização ou haverá toda uma uma relação entre voz e corpo que não
resulta apenas de uma construção consciente?
A minha comunicação não pretende apresentar uma tese concluída mas, antes,
lançar desafios aos investigadores que, como eu, se interessam pelo papel
da sociedade nas alterações à performance e vice versa.
Devido ao tempo e espaço disponibilizados, também não haverá lugar a
dissertações longas sobre cada um dos campos que de seguida apresento e que
se revelarão sinápticos.
Contudo, procurarei tornar o mais claros possíveis os dados que
articularei para que no final possa haver uma inferição a título de
conlusão.

1 – Voz e Sedentarização

Creio que podemos assumir como evidente o papel da voz na origem ou,
pelo menos, na evolução do processo de sedentarização do Homem.
O cineasta e cinetista Jean-Jacques Annaud, no filme de 1982 La
Guerre du Feu, – o único filme, até à data, rigoroso o suficente para poder
ser considerado como fonte de estudo – apresenta a tríade barthiana
residual/emergente/transitivo, no que diz respeito ao phenomenon do fogo:
um dos clãs apenas consegue obtê-lo através do furto; outro consegue
conservá-lo e um terceiro consegue "produzi-lo".
Mas a mesma tríade surge também na questão vocal. Enquanto o 1º clã
apenas emite grunhidos, o segundo já articula algo próximo dos fonemas e o
terceiro comunica literalmente com palavras.
Através do movimento migratório, promovido pela fuga, observamos
ainda que, consoante a cintura geográfica da qual cada clã provém, as
diferenças entre o tipo de corpo e dos sons emitidos são assinaláveis:
enquanto o primeiro clã é mais tosco e robusto, o segundo, que já articula
fonemas, tem um físico mais fino e o terceiro apresenta linhas elegantes
além de se enfeitar com argila e ossos de animais.
Estas diferenças entre cinturas geográficas, podemos inferir, têm um
papel interventivo na sonoridade de cada povo e aqui surge a primeira
sinapse: para além das já conhecidas diferenças entre a língua grega e a
latina, bem como da forma em que derivaram na língua de cada nação, existe
uma palavra que é diferente em todas as línguas do ocidente: a palavra
"copo".

Português – copo
Inglês – glass
Alemão – tasse
Francês – verre
Italiano – bicchiere
Castelhano – vaso

Se abordo este caso isolado não é por mero exercício filológico mas,
antes, para ilustrar com um exemplo claro que os fonemas são afetados não
apenas pela constituição física mas, também, por influência do próprio meio
bio-político-sócio-psicológico.

2 – Ethos, pathos, logos

O papel da evolução da prática política na modulação da voz, devido
às alterações de comportamento que daí advêm, afigura-se-me como
inquestionável.
A evolução da comunicação oral evoluíu de modo adequado e adequante a
cada momento da História. Quando o Homem começou a construir e defender
ideologemas, surgiu o discurso. O discurso pode ser inclusivo ou
excludente, consoante sustente ou se oponha a determinado sistema ou
ideologema.
Na sua obra sobre retórica, Aristóteles distinguiu três formas de
argumentação:
- argumentação baseada no caráter do orador (ethos);
- argumentação baseada no estado emocional do auditório (pathos);
- argumentação baseada nos argumentos propriamente ditos (logos).
Estas três formas de argumentação permitem inferir que, são
contemplados o caráter, o estado emocional e a argumentação lógica
propriamente dita, então estes três âmbitos são também afetados na receção
o que implica que haja uma alteração comportamental e, por consequência, na
performance vocal/oral.
Dito de outra forma, a "instrumentação" discursiva tem repercussões no
sujeito recetor do discurso.
E aqui começa a ficar, creio, mais clara a condução do meu raciocínio.
Se há um discurso excludente mas há uma massa aderente, essa massa
aderente irá funcionar como "vigilante", i.e., como vigilância panóptica
conduzindo à repressão comportamental da massa não aderente, conforme
podemos verificar no estudo de Michel Foucault, Vigiar e Punir.
Terá essa vigilância, a longo prazo, consequências na articulação
fonética ou na extensão vocal dos cidadãos e, por consequência, dos
performers artísticos?

3 – A voz e o corpo

Observemos por momentos as diferenças da relação com o corpo, do
ocidente católico, e dos povos africanos, árabes e indianos.
É recorrente ouvirmos a ideia de que os povos africanos, chamados "de
cor", árabes e indianos têm "uma voz mais potente", uma "voz melhor", têm
"mais ritmo" ou "dançam melhor", comparativamente aos povos da Europa
Ocidental.
Chamo a atenção para o facto de, se nas culturas africanas e
orientais, a cultura e relação com o corpo, bem como o "paganismo" dos
cânticos religiosos, sempre – ou quase sempre – foi pacificamente integrada
na sociedade e nos atos culturais, permitindo que se mantivesse uma ligação
direta entre o corpo e a voz, na Europa Ocidental o mesmo não se verificou.
Desde a ditadura da moda que impunha o uso de espartilhos e rigidez
do tronco no comportamento social, até aos próprios rituais de cerimónia,
tudo conduzia a uma dissociação entre corpo e voz, i.e., quer se tratasse
de um código imposto pela moda, pela religião ou pelos bons costumes, a
cultura do corpo era baseada na camuflagem do mesmo e na pouca ou quase
nenhuma manifestação do mesmo.
A opressão do difragma e a rigidez imposta à zona ilíaca, e.g.,
atrofiavam a sonoridade vocal conduzindo a uma busca de outras fórmulas e
resultados, elitistas, é certo, como o bel canto ou o canto gregoriano.
Procurava-se assim um encontrar um modo em que a voz se pudesse manifestar
afastando-se da ideia de "natural" por este modo ser associado a povos
"não civilizados".
No entanto, o aquecimento vocal sistematizado pela Professora Doutora
Maria João Serrão, em 1986, para a turma que integrei do Curso de
Teatro/Ramo Actores e Encenadores, veio provar que, não só a libertação e
utilização do diafragma, da zona pélvica e da lombar resultava numa
amplitude maior da chamada "voz natural" com, inclusive, potenciava a
amplitude do chamado "canto lírico".
Por aqui podemos verificar como a relação corpo/voz configura
equações com resultados diferentes conforme os códigos de conduta. Creio
que é nessa liberdade do corpo que reside o "maior alcance" vocal dos ditos
africanos, árabes e indianos.

4 – Ditadura e voz

Partindo da relação anterior e das suas consequências, que papel terá
então, na voz falada, uma ditadura exercida durante, e.g., 47 anos?
A voz do palco político é, conforme já foi referido em vários
estudos, construída e projetada para tornar eficaz um discurso que veicula
ideologemas mas também que veicula o medo.
No caso concreto de Portugal, durante o Estado Novo, podemos
encontrar os discursos de Salazar, –
https://www.youtube.com/watch?v=wllgcVwtKxo – uma construção tímbrica e de
volume que, a par da já referida tríade ethos/pathos/logos, funcionava de
modo manipulador para os cidadãos. Estes últimos dividiam-se entre os que,
numa liberdade ilusória, exaltavam o Chefe de Estado, enquanto que outros,
por serem da oposição e viverem não só com os fantasmas dos concidadões
delatores mas com a própria PIDE, se pronunciavam às escondidas e "entre
dentes". Paralelamente havia a "liberdade" em palco ou na tela da voz
cantada de Amália Rodrigues – https://www.youtube.com/watch?v=W9scTJdZI20 –
ou da voz falada, a plenos pulmões, desde que não interviesse em temas
políticos e económicos – https://www.youtube.com/watch?v=21NGcr9N0Ts –.
Nesse sentido podemos dizer que, uma ditadura encerra sempre dos
períodos de maior contrate entre a voz no palco político, a voz do cidadão
e a voz na performance artística.
Quer pela via do medo ou da censura, há alterações "físicas" numa
língua que são mais ou menos profundas e/ou evidentes conforme a duração de
cada ditadura em determinado espaço geográfico.
Podemos notar diferenças fonéticas profundas entre o português
ibérico e o português do Brasil ou de Angola, por exemplo, que se devem,
não só mas também, ao facto de, a ditadura do Estado Novo ter durado 47
anos durante os quais a comunicação entre os opositores (uma massa maior do
que se julga) ter sido mais "átona", ou seja, "entre dentes", enquanto que
a voz politíca e a artística se mantinham tronantes ou, pelo menos, fortes.
Curiosamente também as línguas dos países de leste – Rússia, Ucrânia,
Moldávia, por ex. – têm uma sonoridade mais "átona". Curiosamente porque se
trata de países que também viveram sob ditadura durante várias décadas.

Concluindo

Mais do que uma conclusão, gostava que este epílogo fosse tomado, tal
como referi na introdução, como um desafio para investigações futuras sobre
a relação entre Teatro e Sociedade ou, neste caso, Voz e Sociedade.
Apenas termino inferindo que, tal como a sedentarização, a cintura
geográfica e necessidades ou métodos para sobreviver, também a voz tem um
relação direta com a forma como se vive em determinado período sócio-
político. Relação essa que, de modo empírico da minha parte mas passível de
ser estudado mais a fundo, resulta na menor ou maior amplitude, menor ou
maior alcance, menor ou maior extensão, conforme o corpo tem que obecer às
condutas impostas pela mente do próprio ou pelo medo.







Referências:

Bibilografia:
CARLSON, Marvin, Performance a critical introduction, London & New York:
Routledge, taylor & Francis group, 1996
CARREIRA, Laureano, O Teatro e a Censura em Portugal na segunda metade do
século XVIII, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988
CARTLEDGE, Paul, "Deep Plays: theatre as process in Greek civic life" in
Easterling, P. E.: The Cambridge Companion to Greek Tragedy,pp. 3 – 35,
Cambridge: Cambridge University Press, 1997
CASE, Sue-Ellen & REINELT, Janelle G, The Performance of Power: Theatrical
Discourse and Politics (Studies in Theatre History and Culture), Iowa:
University of Iowa press, 1994
DEBORD, Guy, A Sociedade do Espectáculo, Lisboa: Mobilis in Mobile, 1991
FISCHER-LICHTE, Erika, Theatre, Sacrifice, Ritual – Exploring Forms of
Political Theatre, London & New York: Routledge –Taylor & Francis Group,
2005
FOUCAULT, Michel, The Spectacle of the Scaffold, London: Penguin Books,
1977;
Vigiar e Punir, 37ª edição, Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2009
GOFFMAN, Erving, The Presentation of Self in Everyday Life, New York:
Anchor Book/Doubleday, 1959

Filmes:
ANNAUD, Jean-Jacques, La Guerre du Feu, França e Canadá, 1982
ZAMBRANO, Benito, La voz dormida: Espanha, 2016
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