AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA: A RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO COMO DIREITO COLETIVO

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA: A RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO COMO DIREITO COLETIVO Denis Ortiz Jordani

RESUMO Trata o presente artigo em delimitar um dos grandes, senão o maior problema do direito penal. Este não reside em sua dogmática, mas sim no cumprimento de pena pelo réu e as conseqüências que isso traz para a sociedade. Observa-se, hodiernamente, que o problema da reincidência na aplicação da pena é um tanto complexo, dado as suas altas taxas em diversas regiões do País. Ou seja, o Estado brasileiro não cumpre seu papel ressocializador previsto na Lei de Execução Penal. É evidente à falência do atual sistema penitenciário. Nesse sentido, a Ação Civil Pública mostra-se como verdadeiro instrumento de controle de políticas públicas voltadas à segurança e ressocialização do preso, dando cumprimento aos ditames constitucionais da individualização da pena e tutela da integridade física e moral do encarcerado. Palavras-Chave: Política Pública; Ressocialização; Direitos Coletivos; Segurança Pública ABSTRACT This present article focuses on a major, if not the biggest problem of criminal law. This lies not in its dogma, but in the sentence being served by the defendant and the consequences it brings to society. It is noted, today's, that the problem of recidivism in the implementation of the sentence is somewhat complex, given their high rates in several regions of the country that is, the Brazilian government does not fulfill its role resocializing provided in the Criminal Execution Law. Clearly the failure of the current prison system. Accordingly, the Public Civil Action shows itself as a true instrument of control of public policies related to security and social rehabilitation of the prisoner, giving effect to the constitutional principles of individualization of punishment and protection of physical and moral integrity of the imprisoned. Keywords: Public Policy; Resocialization; Collective Rights; Public Safety 1

1. INTRODUÇÃO O estudo dos direitos coletivos é objeto de profundas reflexões cotidianas frente as mais variadas manifestações da sociedade. Tem-se observado de forma veemente que diversas correntes doutrinárias discorrem sobre todos os aspectos que permeiam esses direitos, desde a sua concepção genérica de direito que diz respeito à sociedade, até as suas espécies hoje definidas como direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos. No que se refere à segurança pública, pode-se notar que rol expressivo desses direitos se encontra, no ordenamento pátrio, estipulados na Lei de Execução Penal, com o intuito de proporcionar aos seus destinatários instrumentos de ressocialização, e à sociedade, segurança. Resta derrubada perante a doutrina pátria e também na estrangeira a natureza jurídica puramente administrativa da execução penal.1 Fala-se hoje em predominância, senão absolutismo do direito penal e processo penal no curso da execução, ainda que certas atividades requeiram providências administrativas. O que pouco se comenta e já é hora de levantar essa questão, ao menos diretamente quando se fala em execução penal, é a influência da Constituição Federal, estipulando o que pode ou não fazer com o preso, portanto, no curso da execução da pena. Nos termos do art. 5º caput, da Constituição, a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País é garantida a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos dos incisos I a LXXVIII desse artigo. O mínimo que se pode exigir do Estado é a garantia desses direitos, já que se encontram escoltados pelo diploma constitucional. Diversos documentos internacionais2 passaram, ao longo do tempo, a se referir expressamente à segurança. A Constituição Federal de 1988, depois de dar à segurança o status de valor supremo, em seu preâmbulo a incluiu entre os direitos fundamentais arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. Em seu artigo 6º, por conseguinte, o texto constitucional voltou a incluir a segurança entre os direitos sociais. Mas, no art. 144, atribui ao Estado o dever, e a todos, o direito e 1

Cf. Decreto-Lei 783/76 (Portugal); CPP italiano de 1988; Lei Penitenciária Nacional Argentina. Resolução 34/46 ONU (Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes e convenção interamericana para prevenir a tortura); Resolução 2858/71, reiterada pela Resolução 3218/74 ambas da ONU (Instituíram as regras mínimas de tratamento dos reclusos. A importância da implementação em todos os países, de um corpo de princípios destinado a orientar os limites do poder-dever de punir, no relacionamento do Estado com os reclusos e detentos, em decorrência de exigências constitucionais e legais, surgiu no IV Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, realizada em Kioto em 1970, que repercutiu em nosso ordenamento na edição da Lei de Execução Penal, lei n.º 7210/84). 2 2

responsabilidade da segurança pública exercida “para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, através de diversos órgãos, como a polícia federal, civil, militar e corpo de bombeiros. Sob esse prisma, relevante a investigação desse direito da coletividade e, portanto, dever do Estado em proporcioná-lo de forma efetiva, especialmente quanto aos seus órgãos repressores da violência e da desordem. “A falta da segurança no Estado de direito afeta não apenas os direitos fundamentais da pessoa humana, mas, principalmente, as instituições públicas, porque também os agentes do Poder Público se sentem acuados na prática de atos próprios do seu ofício, como sucede com as forças policiais que, criadas para dar segurança à sociedade, não cumprem esse objetivo”3. Diante essa preocupação, parte-se, por necessário, analisar os instrumentos processuais judiciais de intervenção, como as ações civis públicas, para impor ao Estado a adoção de ações negativas e positivas específicas para concretizar o direito fundamental à segurança pública e por via conexa a ressocialização como pressuposto de paz coletiva. 2. SEGURANÇA PÚBLICA E SUA EVOLUÇÃO. SEGURANÇA COMO DIREITO COLETIVO Para conhecer esse poder estatal e suas dificuldades de efetivar direitos fundamentais como a segurança pública, na preservação da ordem e integridade física e do patrimônio das pessoas, imprescindível a análise do desenvolvimento histórico do Estado. Para tratar do processo histórico-evolutivo do conceito de Estado Absoluto para o Estado Democrático de Direito, as considerações de Bobbio e Canotilho possuem absoluta pertinência: O problema fundamental do Estado constitucional moderno, que se desenvolve como antítese do Estado absoluto, é o problema dos limites do poder estatal. Grande parte das teorias elaboradas no curso dos séculos e que levaram à formação do Estado Liberal e democrático estão inspiradas em uma idéia fundamental: a de estabelecer limites ao poder do Estado. O Estado, entendido como a forma suprema de organização de uma comunidade humana, traz consigo, já a partir das suas próprias origens, a tendência para colocarse como poder absoluto, isto é, como poder que não reconhece limites, uma vez que

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ALVIM, J. E. Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2010 3

não reconhece acima de si mesmo nenhum outro poder superior. Este poder do Estado foi chamado de soberania, e a definição tradicional de soberania, que se adequa perfeitamente à supremacia do Estado sobre todos os outros ordenamentos da vida social, é a seguinte: potestas superiorem non recognoscens. Portanto, o estado absoluto coloca-se como a encarnação mais perfeita da soberania entendida como poder que não reconhece ninguém superior.4 O Estado constitucional responde ainda a outras exigências não integralmente satisfeitas na concepção liberal-formal de Estado de direito. Tem de estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do «direito» e do «poder» no Estado constitucional9 significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. Há quem não veja com bons olhos a associação de Estado de direito e democracia e não falta mesmo quem considere antinómicos os valores e princípios transportados pelo Estado de direito e os valores e princípios conformadores da democracia. Vale a pena reconstruir esta discussão. O Estado de direito cumpria e cumpre bem as exigências que o constitucionalismo salientou relativamente à limitação do poder político. O Estado constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma constituição lirnitadora do poder através do império do direito. As idéias do «governo de leis e não de homens», de «Estado submetido ao direito», de «constituição como vinculação jurídica do poder», foram, como vimos, tendencialmente realizadas por instituições como as de rule of law, due process of law, Rechtsstaat, principe de Ia légalité. No entanto, alguma coisa faltava ao Estado de direito constitucional ─ a legitimação democrática do poder. Nos quadrantes culturais norte-americanos é conhecido o «cisma» entre os «constitucionalistas» (constitutionalists ) e os «democratas» (democrats) para significar a opção preferencial ou a favor do Estado juridicamente limitado e regido por leis («constitucionalistas») ou do Estado constitucional dinamizado pela maioria democrática («democratas»).5

Dessa premissa, têm-se como pressuposto de sobrevivência das instituições e alguns valores conquistados ao longo do tempo os preceitos da ordem social. A dignidade humana, por conseguinte, tem relação intrínseca com a segurança, em suas diversas dimensões, em especial, a de ordem pública. Na evolução por qual passaram os direitos fundamentais, os primeiros universalmente consagrados foram os direitos civis e políticos, denominados direitos de 4

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait, 4 ed. Brasília: Universidade de Brasília,1997. p.11. 5 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p.10. 4

liberdade ou de primeira geração. Depois, vieram os direitos sociais, econômicos e culturais, denominados direitos de igualdade, ou de segunda geração. Por fim, eclodiram os direitos à autodeterminação, ao desenvolvimento e ao meio ambiente saudável, denominados direitos de solidariedade ou direitos de terceira geração.6 No atual estágio dessa evolução, ganham foro de universalidade os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, chamados direitos humanos fundamentais ou direitos de quarta geração, ou seja, voltados à coletividade. É nesse contexto que adquirem especial relevância os direitos sociais das minorias, os direitos econômicos, os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, convivendo com outros "de notória importância e envergadura", como o direitos à vida, à liberdade e à segurança, aos quais se aplicam, em face do Estado de direito, os mesmos instrumentos de garantia constitucionalmente previstos para assegurar a sua eficácia7.

De forma ampla, direitos coletivos não são propriamente interesse público nem tampouco interesse privado. Encontram-se nesse limiar, em posição intermediária entre essas duas categorias. Assim, pode-se dizer que os direitos coletivos ou interesses coletivos lato sensu são aqueles “compartilhados por grupos, classes ou categorias de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados de um mesmo patrão. São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam a constituir interesse público”8. Pelo fato de grupos de pessoas compartilharem os mesmos interesses, o que caracteriza sua transindividualidade, já que supera a esfera do privado e pessoal, o ordenamento jurídico fornece a possibilidade de substituição processual do indivíduo ao coletivo ensejando a resolução da lide, priorizando a economia processual e evitando decisões conflitantes. Dessa forma, o legislador diferenciou as várias categorias de interesses, e o fez no Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei 8.078/90, quando do Título III, Capítulo I, art. 81.

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Cabe ressaltar que essa denominação “gerações”, pela doutrina constitucional moderna, não se mostra mais adequada, pois manifesta a impressão de que os direitos humanos vão se tornando obsoletos ao passar do tempo, com o surgimento de novas gerações. Portanto, mais adequada a utilização de “dimensões de direitos humanos”, não obstante adotarmos a classificação tradicional de Norberto Bobbio. Na realidade, são direitos que transpassam o tempo e permanecem inseridos no patrimônio de cada pessoa, razão pela qual devem ser observados e protegidos. Por outro lado, importante ainda revelar que, frente às novas relações sociais e evolução tecnológica, em especial da engenharia genética, hodiernamente, fala-se em uma quarta geração ou dimensão de direitos humanos, qual seja, a relativa à integridade do patrimônio genético. 7 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit. 8 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 50. 5

Assim, para o referido diploma legal, há três categorias de interesses transindividuais ou coletivos lato sensu9: a) interesses ou direitos difusos, assim entendidos, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. A diferença dos demais reside na indeterminabilidade de seus titulares, portanto, na indivisibilidade de seu objeto e que estes titulares estão ligados por uma relação de fato e não jurídica, exemplificado no caso da segurança pública pensada como um todo. b) interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. O que os diferencia dos últimos é a vinculação de seus titulares e a divisibilidade de seu objeto. Nos interesses coletivos, os titulares são determinados, por um vínculo jurídico definido e não por situação de fato comum, bem como há a indivisibilidade de seu objeto, não havendo a possibilidade de mensuração entre os titulares. c) interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. Estes são ligados pela origem comum, mas permanecem essencialmente individuais. O que os diferencia é que podem ter tutela coletiva. Por isso, são determinados ou determináveis os seus titulares e o objeto da pretensão é divisível, podendo ser mensurada entre os integrantes do grupo, retirando-se como exemplo os presos dentro de uma penitenciária. Carreira Alvim, sob o tema, demonstra essa vinculação indissociável entre o Estado democrático e a segurança pública como um direito coletivo latu sensu: [...]fica evidente que, ao direito dos indivíduos à segurança, corresponde o dever do Estado de prestar-lhes essa segurança. Assim, se o Estado (Poder Público) não tem o dever de garantir a segurança pessoal aos brasileiros, considerados uti singuli --, pois seria impossível destinar um guarda para proteger cada brasileiro, têm-no, considerados uti universi, tratando-se de um direito difuso à segurança, mas, nem por isso, menos concreto do que o direito subjetivo individualizado. Como os direitos difusos gozam de proteção legal (arts. 129, III, CF e 81, I, CDC), fica evidente que essa garantia se estende ao próprio direito à segurança --, gerando o dever do Estado de prestá-la --, e que, uma vez violado pela omissão do Poder Público, faz incidir o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição, garantidor do acesso à Justiça e instrumento de cidadania. Seria um absurdo, por exemplo, que a

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Cf. art. 81, Parágrafo Único, da Lei n. 8.078/90. 6

poluição atmosférica numa favela autorizasse o ajuizamento de uma ação civil pública para fazer cessar os danos à saúde dos favelistas, e a atividade marginal do tráfico de drogas, que põe em risco permanente o seu direito à vida, não o autorizasse. Fosse assim, o direito à saúde que, apesar de ser direito de todos e dever do Estado (art. 196 da Constituição) estar-se-ia sobrepondo ao direito à vida, ou à preservação da vida, que é o mais importante direito fundamental do ser humano, cuja garantia se assenta na segurança.10

A partir, também, do artigo 144, caput, da Constituição Federal, que consagra a segurança pública como dever estatal e direito e responsabilidade da sociedade, é possível que se identifique nas normas constitucionais que configuram o direito à segurança pública, condicionantes e legitimadores da atuação do Estado, como também que este se abstenha de intervenções indevidas na esfera desse direito. De fato, no entanto, não se vislumbra a efetivação desse direito encartado na Constituição Federal. Por isso propõe-se avaliar a presteza do sistema carcerário e a adequação da Lei de Execuções Penais – Lei n. 7.210/184, no que tange aos direitos e deveres do preso, criticando sua concepção e aplicação quanto ao tratamento jurídico-penal atribuído ao encarcerado, na busca de sua ressocialização e, por derradeiro, da garantia da ordem e paz social. 3. PENA E SUA FUNÇÃO O nosso Código Penal, por intermédio de seu art. 59, prevê que as penas devem ser necessárias e suficientes à reprovação e prevenção do crime. Assim, entende-se que a pena deve reprovar o mal produzido pela conduta praticada pelo agente, bem como futuras infrações penais. Ante a tal comando normativo, a doutrina é uníssona em dizer que se adotou no país a teoria mista ou unificadora da pena. Mista porque engloba preceitos da teoria absoluta e preceitos da teoria relativa. Aquelas advogam a tese da retribuição, estas apregoam a prevenção. Para a teoria absoluta, o caráter retributivo da pena reside na reprovação. Roxin assevera, [...] a teoria da retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente

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ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit. 7

se retribui, equilibra e expia a culpabilidade do autor do fato cometido. Se fala aqui de uma teoria “absoluta” porque para ela o fim da pena é independente, “desvinculado” de seu efeito social [...]11

Já a teoria relativa se fundamenta em critério da prevenção e se divide em prevenção geral (negativa e positiva) e prevenção especial (negativa e positiva). Pela prevenção geral negativa, a pena aplicada ao autor da infração penal tende a refletir junto à sociedade, evitando-se, assim, que as demais pessoas, que se visam à prática de crimes, reflitam sobre tal possibilidade ante as conseqüências de sua prática. Para Hassemer, sobre o tema: existe a esperança de que os concidadãos com inclinações para a prática de crimes possam ser persuadidos, através da resposta sancionatória à violação do Direito alheio, previamente anunciada, a comportarem-se em conformidade com o Direito; esperança, enfim, de que o Direito Penal ofereça a sua contribuição para o aprimoramento da sociedade12.

Para a prevenção geral positiva a pena vai além da prevenção negativa de delitos, serve para incutir na consciência geral da sociedade o respeito a determinados valores. Nesse ponto, é de muito relevo o papel da sociedade frente aos problemas enfrentados pelo egresso do sistema penitenciário, que por si só estigmatiza. Cabe à sociedade e isso refletirá na questão da segurança pública, deixar de ser omissa, encarando o “problema” e criando mecanismos que resultem em menor grau de rejeição àquele que deixa o cárcere. A sociedade deve oferecer os meios necessários, mas não impô-los. A prevenção especial também pode ser concebida nesses dois sentidos. Pela prevenção especial negativa há uma neutralização daquele que praticou a infração penal ocorrendo com sua colocação no cárcere, impedindo que o agente pratique novos delitos junto à sociedade enquanto estiver segregado. Pela prevenção especial positiva tem-se que o ideal da pena é que esta sirva para fazer com que o autor desista de praticar novos crimes. Rogério Greco finaliza de forma lúcida: Denota-se, aqui, o caráter ressocializador da pena, fazendo com que o agente medite sobre o crime, sopesando suas conseqüências, inibindo-o ao cometimento de outros. 11

ROXIN Apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte geral. Niterói: Impetus, 2010, v.1, p. 465. HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993. p. 34 8 12

No escólio de Cezar Roberto Bitencourt, “a prevenção especial não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele indivíduo que já delinqüiu para fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais”13.

A finalidade, segundo essa concepção, é a de recuperar o condenado, fazendo a sua reinserção na sociedade. Nessa esteira, a doutrina coloca em dúvida se tal mister é possível face ao atual panorama carcerário, Em um sistema penitenciário falido, como faremos para reinserir o condenado na sociedade da qual ele fora retirado pelo Estado? Será que a pena cumpre, efetivamente, esse efeito ressocializador ou, ao contrário, acaba de corromper a personalidade do agente? Busca-se produzir que tipo de ressocialização? Quer-se impedir que o condenado volte a praticar novas infrações penais, ou quer-se fazer dele uma pessoa útil a sociedade?14 Desde o início da vigência da lei, havia uma convicção quase unânime entre os que militam no exercício do direito de que a Lei de Execução Penal era quase inexeqüível em muitos de seus dispositivos e que, por falta de estrutura adequada, pouca coisa seria alterada na prática quanto ao cumprimento das penas privativas de liberdade e na aplicação da lei com relação às medidas alternativas previstas na nova legislação. Embora se reconheça que os mandamentos da Lei de Execução Penal sejam louváveis e acompanhem o desenvolvimento dos estudos a respeito da matéria, estão eles distanciados e separados por um grande abismo da realidade nacional, o que tem transformado, em muitos aspectos, em letra morta pelo descumprimento e total desconsideração dos governantes quando não pela ausência dos recursos materiais e humanos necessários a sua efetiva implantação. [...] Entre as dificuldades que são encontradas para a implantação efetiva da Lei de Execução Penal, podem ser citadas: a instalação em todos os presídios da Comissão Técnica de classificação dos condenados (arts. 5º a 8º); a instalação de órgãos destinados à assistência material, de saúde, jurídica, educacional e social aos presos e egressos (arts. 10 a 27); possibilidade de trabalho externo e o cumprimento das obrigações de remuneração e previdência social aos condenados que trabalham (arts. 28 a 37); a instalação e o funcionamento dos patronatos e conselhos da comunidade (arts. 78 a 81); a fiel observância dos ditames referentes às condições dos estabelecimentos penais, em especial a de casas do albergado e de Centros de Observação (arts. 82 a 104); a fiscalização e mesmo a execução das penas restritivas de direitos de

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GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte geral. Niterói: Impetus, 2010, v.1, p. 466. GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte geral. Op. cit. p. 468. 9

prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana e interdição temporária de direitos, etc.15

Em verdade, os critérios preventivos ainda poderão ser úteis à sociedade, bem como ao agente que cometeu a infração, principalmente no que diz respeito à prevenção especial ou à ressocialização do condenado. Devemos entender que, mais que um problema de Direito Penal, a ressocialização, antes de tudo, é um problema coletivo, é um problema que ataca o direito à segurança pública, aos interesses públicos, é um problema político-social do Estado. A ressocialização é verdadeiro serviço público que deve ser prestado pelo Estado, e responsabilidade também da sociedade em oferecer ao egresso do sistema penitenciário oportunidades de inserção social. Mirabete, em importante trabalho sobre o tema, assim discorre: Embora o pensamento dominante se funde sobre a ressocialização, é preciso nunca esquecer que o direito, o processo e a execução penal constituem apenas um meio para a reintegração social, indispensável, mas nem por isso o de maior alcance, porque a melhor defesa da sociedade se obtém pela política social do Estado e pela ajuda pessoal. A afirmação de é possível, mediante cárcere, castigar o delinqüente, neutralizando-o por meio de um sistema de segurança e, ao mesmo tempo, ressocializá-lo com tratamento já não se sustenta, exigindo-se a escolha de novos caminhos para a execução das penas, principalmente no que tange às privativas de liberdade. Assim, tem-se entendido que à idéia central da ressocialização há de unirse, necessariamente, o postulado da progressiva humanização e liberação da execução penitenciária, de tal maneira que, asseguradas medidas como as permissões de saída, o trabalho externo e os regimes abertos, tenha ela maior eficácia. 16

A doutrina já se manifesta no sentido da inutilidade da pena privativa de liberdade, em especial das penas de curta duração, pois ao invés de ressocializar acaba esta por profissionalizar, normalmente, o pequeno criminoso, aquele que não cometeu crimes de grande reprovação social. Quando se inclui um sujeito, primário, que tenha praticado, por exemplo, um furto, de pequeno valor, inobstante a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, derivativo da fragmentariedade e intervenção mínima do direito penal, juntamente com criminosos habituais, ou seja, que já sofreram a mácula do cárcere e mesmo 15

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei nº 7210, de 11-7-1984. 11 ed. rev. atual. 7. reimpr. São Paulo: Atlas, 2007. p. 29. 16 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei nº 7210, de 11-7-1984. Op. cit. p. 25. 10

assim, por insuficiência do sistema ou por requisitos biopsicológicos não foram ressocializados, voltando a delinqüir e demonstrando os altos índices de reincidência, é o mesmo que possibilitar a criação de uma “escola” criminal. Se a Lei de Execução Penal fosse cumprida plenamente, certamente os índices de reincidência seriam menores. E falando de índices de reincidência altos, está-se falando em falência do sentido preventivo especial positivo, ou seja, perecimento da ressocialização e neste ponto a responsabilidade do detento é muito pequena. A ele não foi fornecido às oportunidades de aprendizado necessárias estampados sob a égide de uma lei de excelente lavra, mas que não é plenamente aplicada por ausência ou quando muito de insuficiência de recursos materiais e humanos, derivados da falta de políticas públicas de segurança pública. Prova da desídia dos responsáveis ou da impossibilidade material da execução dessas tarefas é que, decorridos muitos anos do início da vigência das Leis 7.209 e 7.210 de 11-7-1984, excepcionais foram as providências da União, Estados, Distrito Federal e Territórios para a efetiva execução das penas restritivas de direitos (como determina o art. 3º da primeira), não tendo sido editadas as normas complementares ou regulamentares necessárias à eficácia dos dispositivos não auto-aplicáveis nem havendo notícias de que se tenha providenciado a aquisição ou desapropriação de prédios para a instalação de albergados (como obrigam, sob pena de suspensão de ajuda financeira aos Estados, o art. 203 e parágrafos da Lei de Execução Penal).17

4. RESSOCIALIZAÇÃO O conceito de ressocialização não é pacífico na doutrina, sendo objeto de variadas críticas. Deve-se partir, afim de que se chegue a um conceito aceitável, do pressuposto de socialização. Deste é imanente que as instâncias de controle social informal, v.g. igreja, escola, família, trabalho, exercem papel preponderante na formação social do indivíduo. Quando a socialização é falha ou apresenta déficit, o infrator conflita com as exigências sociais. Assim, no instante em que ele viola bens protegidos pelo Direito, dado a carência de resultados de instâncias de controle social informal, cabe ao sistema penal, através de suas normas de controle social formal, impor – partindo-se dos ditames da teoria preventiva geral – ao transgressor uma sanção, no intuito dele se adaptar funcionalmente à coletividade. Processo de ressocialização, qual seja, de torná-lo sociável novamente,

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MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal: comentários à Lei nº 7210, de 11-7-1984. Op. cit. p. 29. 11

possibilitando-o a integração coletiva, com respeito às regras de convivo social estabelecidas18. Quando do cumprimento da sentença penal condenatória, a Lei de Execução Penal, quando trata das penas privativas de liberdade, assegura um rol de direitos que visam assegurar ao réu aprendizagem de novas aptidões que possibilitarão uma reinserção social mais factível, bem como prevê que o cumprimento da sentença deve proporcionar ao réu, condições harmônicas de integração social19. O efeito ressocializador eficaz e duradouro, muitos afirmam, não pode residir no medo à pena nem na conformidade formal do comportamento externo com a lei. Sem a interiorização moral da norma, que pressupõe uma determinada atitude axiológica, referente a valores, falta um fundamento estável à sua força determinadora. Não cabe ressocialização alguma se detrás da conduta respeitosa da lei existe um clamoroso vazio moral ou contradições sensíveis entre as pautas legais e as convicções pessoais íntimas do infrator.20

Porém, o processo de reinserção não termina com a saída do indivíduo do cárcere, ele vai além21, “transcende os muros do presídio e deve continuar muito além destes, reunindo os esforços dos órgãos estatais da execução das penas e da sociedade, sendo objetivo último que o condenado ‘comece nova vida sobre solo firme’”22. 5. AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA Num dito Estado democrático, está-se sob o regime direto da força normativa da Constituição, tanto para o processo legislativo infraconstitucional, como para a administração dos interesses estatais. Se a Constituição determina que se faça, ou melhor, que se efetive

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Cf. Lei nº 7.210/84, art. 10, o qual dispõe que a “assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. 19 Cf. Lei nº 7.210/84, art. 1º, in verbis: “Art. 1°. A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. 20 MOLINA, Antonio García-Pablos de, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais.6ª ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. p. 425. 21 “Art. 4º O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. (Lei nº 7.210/84). 22 MOLINA, Antonio García-Pablos de, GOMES, Luiz Flávio. Op. cit. p. 427. 12

direitos nela previstos como fundamentais, o legislador, bem como o administrador público devem ser compelidos a fazê-lo. José Carlos Vasconcellos trata o tema de forma interessante, afirmando que o advento do constitucionalismo social, derivado da tensão entre burguesia e proletariado, o avanço das idéias socialistas implementou uma nova ordem de entendimento sobre o papel das normas constitucionais. Positivou-se dentro do corpo normativo constitucional, um rol de direitos sociais e normas programáticas, visando tornar o político e o social também jurídico. Assim, o individualismo operante deu lugar à solidariedade social, indicando não apenas o que o Estado não poderia fazer, mas indicando o que ele deve fazer, compreendendo obrigações positivas impostas especialmente pelas normas constitucionais.23 Esse fato de incluir direitos sociais, por vezes abstratos, criou um novo drama. Sua efetivação tornou-se difícil e longínquo de realização pelo Estado, o qual se utiliza do princípio da reserva do possível como justificador pela sua “não-atuação”, em decorrências dos recursos à disposição. As normas constitucionais programáticas padecem de problema parecido devido ao seu alto grau de abstração. Um dos problemas levantados pela doutrina é a falta de imperatividade de tais normas, ensejando a ausência de significado jurídico, apenas possuindo significado moral e político. Esse novo paradigma estabelece que as normas constitucionais não refletem apenas os ‘fatores reais de poder’ nos dizeres de Lassalle, mas expressam os fins a serem alcançados através de normas programáticas. A partir dessa nova forma de observação, o direito constitucional é passível de ser utilizado como instrumento de transformação da realidade social. A força normativa da Constituição expõe o papel da constituição não sendo este, apenas, a mera expressão da realidade de seu tempo, mas, graças ao seu caráter normativo, ordena e conforma a realidade social e política. “A constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”.24 A problematização dos efeitos das normas constitucionais, em especial das normas programáticas reside no grau de efetividade que será dado ao preceito estabelecido. É mister que haja a implementação desses direitos assegurados no texto constitucional, possuindo papel preponderante por vezes o Legislativo, quando se faz ausente na regulamentação de mandamentos constitucionais e também o Executivo, quando do planejamento e execução de 23

DOS REIS, José Carlos Vasconcellos. As normas constitucionais programáticas e o controle do Estado. Renovar: Rio de Janeiro, 2003. p. 17-21. 24 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Die normative kraft der verfassung. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 16. 13

políticas públicas deixa de aplicar ou tornar efetivo o que a Constituição manda tornar. “A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas”25. Ocorre que, os direitos assegurados ao preso, ainda que observados pela Lei de Execução Penal, tem sede constitucional26, dentro do capítulo de direitos e garantias fundamentais possuindo auto-aplicação, não ensejando a edição de normas que tornem esses direitos exercitáveis27. Além disso, descumprimento de direitos e garantias fundamentais enseja a punição pelos responsáveis, nos termos do art. 5º, XLI, da Constituição Federal de 1988. Ou seja, há completa inversão de valores e total desrespeito aos preceitos constitucionais. Invocando novamente a posição de Lassalle28, a Constituição, se aceita essa posição e eterno costume, deixou de ser a soma dos fatores reais de poder para se apenas uma “folha de papel (ein Stück Papier)” ante ao seu descumprimento rotineiro, sem que haja qualquer manifestação do Judiciário e, pior, do povo, como titular do poder e que cada vez mais tem se escondido exercendo o fatídico papel que Dahrendorf chama de cidadão-total29, ou seja, o cidadão permanece inerte esperando que o seu representante faça tudo o que necessário para sua “felicidade”, depositando todas suas pretensões e aspirações num “totem” estigmatizado no papel do político. O orçamento deve ser entendido como um instrumento de implementação das imposições constitucionais e expressão do planejamento das políticas públicas a serem realizadas pelo Estado. A noção de escassez é uma noção artificial que não pode ser tida como irrefutável, muitas vezes não passando de uma opção política de não se gastar dinheiro com um determinado direito. A reserva do possível não é um óbice absoluto à realização de políticas públicas voltadas para a concretização do direito fundamental à segurança pública, impondo apenas que essa concretização seja feita à luz do contexto fático e normativo e mediante um juízo de ponderação,

25

Op. cit.. 15. “Art. 5º. [...] XLVII - não haverá penas: [...] e) cruéis; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Constituição Federal”. 27 “Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Constituição Federal”. 28 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. [S. l.]: Global Editora: 1987. p. 35. 29 DAHRENDORF apud BOBBIO. Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 26. 14 26

fazendo prevalecer, na medida do necessário, as imposições constitucionalmente mais relevantes.30

A escusa do dever de efetivação através do princípio da reserva do possível não pode ser mais aceito. Nesse ínterim já tem se manifestado o Judiciário quando, normalmente por ações civis públicas, tem procedido alterações e determinações para que os outros “Poderes” se manifestem e cumpram o que foi constitucionalmente determinado, realizando assim, um verdadeiro ativismo Judicial, pois não seria esse seu papel maior. Hesse expõe o conflito entre a força normativa emanada da Constituição e a dissociação de seu cumprimento, O significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada à questão. Para aquele que contempla apenas a ordenação jurídica, a norma ‘está em vigor’ ou ‘está derrogada’; Não há outra possibilidade. Por outro lado, quem considera, exclusivamente, a realidade política e social ou não consegue perceber o problema na sua totalidade, ou será levado a ignorar, simplesmente, o significado da ordenação jurídica. [...] Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. 31

O objeto da ação civil pública pode ser então, o controle de políticas públicas. Não cabe mais se falar que por ser atividade discricionária da Administração estaria o Judiciário vedado na sua apreciação. “De modo geral, o entendimento contemporâneo é que apenas ficam poupados do contraste judicial os atos puramente discricionários ou exclusivamente políticos (que, a rigor, são raros)”.32 Assim, os atos políticos ou políticas públicas não estão livres de manifestação e avaliação judicial, pois cabe ao Judiciário averiguar se este ato respeitou a finalidade à qual foi proposto e se respeitou a competência constitucionalmente enumerada. 30

AVELINE. Paulo Vieira. Segurança pública como direito fundamental. Dissertação de Mestrado. Rio Grande do Sul: PUC, 2009. p.16. 31 HESSE, Konrad. Op. cit. p. 13-14. 32 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: (Lei 7.347/85 e legislação complementar). 9ª ed. ver. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.51. 15

Portanto, o exame do controle jurisdicional das políticas de segurança pública, através da ação civil pública, para que se possibilite a efetivação dos direitos previstos na Lei de Execução Penal, é de extrema valia, garantindo de forma imediata a dignidade da pessoa humana do preso, visando principalmente a ressocialização e, de forma mediata alcançar a segurança pública entendida como um direito coletivo. De fato, um dos principais meios de proteção estatal dos direitos fundamentais reside no sistema de segurança pública, que, para além da abstenção dos poderes públicos e dos demais indivíduos de ingerências indevidas, identificada com os direitos de defesa, demanda prestações estatais normativas, organizacionais e materiais que são concretizadas por meio de políticas públicas. Assim, também no que se refere às políticas públicas, e em particular às de segurança pública, como mecanismo de ação do Estado nesse campo, a discricionariedade dos Poderes públicos está igualmente reduzida e submetida aos parâmetros constitucionais, possibilitando o controle de juridicidade das suas ações e omissões em contraste com tais parâmetros. A ação civil pública, nesse sentido, toma à frente com grande desenvoltura no sistema processual coletivo, objetivando a efetivação de direitos constitucionais assegurados. Tendo o Ministério Público, por função institucional, promovê-la, nos termos do art. 129, III, da Constituição Federal de 1988, tornou-se o principal órgão na sua propositura, em especial diante às deficiências da estrutura estatal de repressão ao crime e de ressocialização dos condenados pela Justiça que se encontram encarcerados nas penitenciárias espalhadas pelo país. O direito à segurança tem as características de um direito difuso, como traçadas pelo art. 81, Parágrafo Único, I, do Código de Defesa do Consumidor. Assim, pode o direito à segurança ser objeto de ação civil pública, nos termos do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, segundo o qual se regem pelas disposições desta lei as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados "a qualquer outro interesse difuso ou coletivo". A atuação do MP ‘não é somente de atuar para corrigir os atos comissivos da administração que porventura desrespeitem os direitos constitucionais do cidadão, mas também deve atuar na correção dos atos omissivos, ou seja, para a implantação efetiva de políticas públicas visando a efetividade da ordem social prevista na Constituição Federal de 1988’.33

33

FRISCHEISEN apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit. p. 52. 16

Se o Estado, como tal considerado o representativo das esferas federal e estadual de poder, não adota medidas concretas para assegurar a inviolabilidade do direito à segurança, no cumprimento do seu dever de (prestar) segurança, pode ser demandado para esse fim, sendo "admissíveis todas as espécies de ações capazes de proporcionar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 CDC). “O Ministério Público pode participar ampla e irrestritivamente da política de segurança pública, desde sua fixação e alterações até a fiscalização, acompanhamento da execução e exigência de sua aplicação pelos organismos estatais”.34 A ação civil pública, no particular, poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer35, constituindo autêntica obrigação de fazer a prestação de segurança à população, que pode e deve ser prestada jurisdicionalmente, no caso de omissão do Poder Público36. Os Tribunais já possuem decisões proferidas em sede de ação civil pública aclarando os problemas pelos quais o sistema penitenciário vem passando refletindo como conseqüência nos direitos de ressocialização do preso e por último na segurança pública, AGRAVO

DE

INSTRUMENTO.

DECISÃO

MONOCRÁTICA.

DIREITO

PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE LISTA DE MEDICAMENTOS, OU O EQUIVALENTE EM DINHEIRO, PARA ATENDIMENTO DOS DETENTOS DA PENITENCIÁRIA MODULADA ESTADUAL

DE

OSÓRIO.

ANTECIPAÇÃO

DE

TUTELA

DEFERIDA.

MANUTENÇÃO DA DECISÃO HOSTILIZADA QUE NÃO IMPLICA À PARTE LESÃO GRAVE E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 527, II, DO CPC, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 11.187, DE 19 DE OUTUBRO DE 2005. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONVERTIDO EM AGRAVO RETIDO37.

Em sentença verdadeiramente esclarecedora, o Juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre-RS, no julgamento da ação civil pública38 que pleiteava a criação de 505 vagas para recolhimento de presos no sistema semi-aberto e aberto, resolvendo problema atual e constante de todos os Estados da Federação, quando o preso que cumpre os requisitos para a progressão do regime de cumprimento da pena, mas não pode ser beneficiado pela ausência 34

SANTIN apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit. p. 53. “Art. 3º. A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Lei n. 7347/1985”. 36 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit. 37 TJ – RS, Agravo de Instrumento nº 70026947598, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Arno Werlang, j. 20 out. 2008. 38 Processo nº 001/1.07.0283822-9. 17 35

de vagas nos estabelecimentos penais intermediários (semi-aberto e aberto) assim se manifestou: 1) Tendo em vista o tempo transcorrido do ajuizamento da ação, e a indicação de que já se possui três projetos para a construção de albergues pertencentes à jurisdição de Porto Alegre (com previsão de 78 vagas cada – o que equivale a percentual até mesmo superior ao que ora refiro – conforme consta da ata de audiência datada de 21.07.08 – fl. 182/3) fixo o prazo de 180 dias, a contar da intimação da presente decisão, para a implementação de 40% das vagas requeridas para o regime aberto e semi-aberto (202 vagas) com possibilidade de ocupação. Findo o prazo sem cumprimento, passa a incidir multa diária de R$ 3.000,00 (três mil reais); 2) Para completar 75% das vagas requeridas para o regime semi-aberto e aberto (mais 177 vagas), com possibilidade de ocupação, fixo o prazo de 270 dias a contar da intimação da presente decisão. Findo o prazo sem cumprimento, passa a incidir multa diária de R$ 3.000,00 (três mil reais); 3) Para completar os 100% das vagas requeridas para o regime aberto e semi-aberto (mais 126 vagas), fixo o prazo de 360 dias, a contar da intimação da presente decisão, data a partir da qual passa a incidir multa diária de R$ 3.000,00 (três mil reais), em caso de não cumprimento. Por fim, de ofício, determino em antecipação da tutela que seja incluída, na previsão orçamentária para o ano de 2009, verba específica para construção das vagas do regime semi-aberto e aberto que deverão ocorrer no próximo ano, e de logo, inclusão no orçamento de previsão orçamentária para geração de 25% das vagas indicadas como necessárias na presente ação para o regime fechado. Fixo multa de R$ 3.000,00 para o caso de não inclusão no plano orçamentário, a contar da data de sua apresentação à Assembléia Legislativa, nomeando os autores da presente ação como fiscais quando da apresentação da proposta orçamentária.

Dentre os deveres impostos ao Estado em cumprimento a disposição da Lei de Execução Penal verifica-se no art. 1139 que um deles é a assistência à saúde, como precursor de uma futura ressocialização. Em notícia do Jornal de Santa Catarina, a vigilância sanitária requereu ao Ministério Público a interdição da carceragem da delegacia de Palhoça-SC, ante a precariedade e

39

“Art. 11. A assistência será: I - material; II - à saúde; III – jurídica; IV - educacional; V - social; VI – religiosa”. 18

Insalubridade do local, o que certamente é mais um agravante para a frustração do mandamento à segurança pública como corolário da ressocialização40. Para isso, o Ministério Público como o principal, mas não único legitimado, utilizase do instrumento processual da ação civil pública, visando compelir os órgãos responsáveis pela implementação e efetivação dos direitos positivados da ressocialização eficaz. Assim, v.g. seguindo o prescrito no art. 68, II, a da Lei n. 7210/8441 pode este órgão, através dessa espécie de ação coletiva compelir o Estado a construir ou providenciar condições necessárias para que o detento possa trabalhar, seguindo o que determina o art. 31 da LEP42. Respeitadas as aptidões, a idade, a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras, todo condenado definitivo está obrigado ao trabalho, o que não se confunde com pena de trabalho forçado. Veja que o trabalho do sentenciado tem dupla finalidade – a educativa e produtiva, sendo que “o trabalho penitenciário, consagrado em todas as legislações hodiernas, constitui uma das pedras fundamentais dos sistemas penitenciários vigentes e um dos elementos básicos da política criminal”43. Nesse sentido, é extremamente relevante analisar o atual cenário do sistema penitenciário brasileiro e sua obsolescência na ressocialização do preso, na busca de um novo modelo. Para tanto, concebe-se que há necessidade de se valer de um controle judicial real, através de instrumentos processuais coletivos, como a ação civil pública. Evidentemente não se faz política pública de segurança sem o devido diagnóstico da realidade fática, como a falta de profissionalização, saúde, educação dos presos em uma estrutura governamental de descaso à dignidade como princípio orientador dos direitos humanos dessas pessoas que se encontram encarceradas. Levando-se em consideração que a ação civil pública é um dos instrumentos de tutela jurisdicional coletiva mais utilizados pelos agentes estatais e pelas instituições comprometidas com o interesse público, torna-se mister aplicar seus elementos, aptos a potencializar a sua função como instrumento efetivador de políticas públicas, notadamente os relacionados à segurança dos cidadãos que sofrem com a violência e as mazelas sociais, bem como dos indivíduos que apesar de segregados do convívio social, por terem violado normas penais que 40

JORNAL DE SANTA CATARINA. Vigilância pede interdição da carcegarem. n. 11858 de 10.02.2010. Disponível em: . Acesso em 18 fev. 2010. 41 “Art. 68. Incumbe, ainda, ao Ministério Público: II - requerer: a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo”. 42 “Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade”. 43 ÁSSALY, Alfredo Issa. O trabalho penitenciário. São Paulo: Martins, 1944, p.15. 19

tutelam os bens jurídicos mais caros, também são credores de políticas públicas em seus benefícios, especialmente na faceta da ressocialização, exigência irrenunciável de manutenção da paz social. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que a ressocialização seja entendida como resultado utópico talvez, e a definição de qual seria o objetivo da Lei de Execução Penal – se retribucionista ou preventivo – demandem ainda discussões acaloradas, o certo é que o Estado não pode abrir mão da pena, bem como da sua execução sob pena de retornar ao período de vingança privada. Nessa esteira, porém, deve o Estado, através de seus órgãos especialmente destinados a esse fim, tornar aplicável na totalidade a Lei de Execução Penal e dessa forma proporcionar condições favoráveis ao réu para a sua ressocialização e retorno ao convívio social. Ocorre que, passados vinte e um anos da elaboração da referida lei, seus preceitos básicos ainda não foram totalmente observados e efetivados. Políticas públicas visando esse fim não são estudadas e quando são, limita-se o seu alcance ao princípio da reserva do possível, escusando-se a Administração de seu dever legal e constitucional de implementação de condições que proporcionem a efetividade que visa a lei. Como resultado direto, tem-se que os egressos do sistema prisional saem “piores” do que quando entraram, refletindo diretamente na reincidência criminal e, por conseguinte, na segurança pública. A população acaba sendo a principal vítima da ausência de políticas de segurança pública adequadas, pois é nela que resulta a ineficácia do sistema, quando da saída de pessoas que deveriam ser preparadas para esse retorno à vida coletiva e simplesmente foram lançadas, muitas vezes à própria sorte, dentro de estabelecimentos sem o mínimo exigível para uma vida aceitável, quanto mais digna. Tendo por base essas premissas, toma força o instituto processual da Ação Civil Pública, instrumento capaz, através de seus co-legitimados, de compelir a Administração a destinar recursos suficientes e implementar políticas públicas necessárias visando a correta aplicação da execução penal, que inevitavelmente refletirá na reinserção social do indivíduo egresso do sistema carcerário. Não é admissível que o Estado continue se apoiando na desculpa orçamentária para não tornar aplicáveis os dispositivos previstos em sede constitucional e da própria Lei de Execução Penal.

20

7. BIBLIOGRAFIA ALVIM, J. E. Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública. Jus Navigandi,

Teresina,

ano

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