Ação humanitária: direito ou dever de ingerência?

July 25, 2017 | Autor: M. Silveira | Categoria: Humanitarian Intervention
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Ação humanitária: direito ou dever de ingerência?


RESUMO: Para este artigo, utilizou-se a metodologia de breve revisão e uma
reflexão de bibliografia concernente a Relações Internacionais no tocante a
soberania dos Estados e direito humanitário. Concluiu-se que no mundo
globalizado e fragmentado em que vivemos, cada vez mais o paradigma de
Estado soberano é colocado em questão no sentido de que, quando há vítimas
de conflitos internos, calamidades ou misérias, há a necessidade de
ingerência, o que é feito por outros Estados, mas, também, por atores civis
não governamentais, objeto de estudo deste artigo.

Palavras-chave: soberania, ação humanitária, intervenção humanitária,
direito de ingerência.

ABSTRACT: In this article, the methodology was a brief literature review
and a reflexion about International Relations, especially sovereignty of
the States and human rights. As a result, we believe that in the globalized
and fragmented world where we live, the paradigm of the sovereign State is
put into question, in the sense of when there are victims of internal
conflicts, calamities or miseries, there must be interference, which is
done by other States but also by civilian non-governmental actors, which
are the aims in this article.

Keywords: sovereignty, humanitarian action, humanitarian intervention,
interference right.
Introdução


Critical social movements 'are particularly suspicious of the way in which
unity claimed in the name of Reason, History, God, the State, or Human
Nature has been used to humiliate or exterminate the different, the
marginal, the other'.
(Walker, 1988)



Há mais de 30 anos foi criado pelos esforços do Dr. Bernard Kouchner e de
Mario Bettati o conceito de direito de ingerência, ou droit d´ingérence.
Bettati é um jurista italiano e Kouchner um médico francês que se colocou
em 1971 à frente de uma Organização Não-Governamental (ONG) chamada
Médecins sans frontières e, mais tarde, em 1981, da ONG Médecins du Monde,
cujo objetivo foi sempre o de levar ajuda humanitária a países em estado de
calamidade causada especialmente pela pobreza ou conflitos armados, guerras
civis etc. O grupo dos Médecins sans frontières realiza seu trabalho em
nome do direito de ingerência, ou seja, proteção internacional das minorias
a título preventivo, antes de massacres e/ou ataques. Além disso, atua como
observador junto a órgãos internacionais e como defensor dos direitos
humanos, com o intuito de fomentar a paz. Os esforços do dr. Kouchner
levaram à admissão por parte do Conselho de Segurança da ONU de um direito-
dever de ingerência nos Estados, por razões humanitárias (Resolução
688/1991).[1]
Os direitos do homem passariam, deste modo, a integrar o direito
internacional, pelo menos em teoria. A intervenção se dá no plano
humanitário, em nome dos direitos humanos. O direito de ingerência busca
também justiça e moral em questões extremas, para que não se repita
Auschwitz, Camboja ou Ruanda. É preciso, porém, que haja um apelo das
vítimas, afirma Kouchner, ou a ação seria considerada imperialista.[2] Qual
o princípio da ajuda humanitária? Para os Médicos sem fronteiras, a ação
humanitária significa ajuda aos indivíduos a atravessarem um período de
ruptura de um equilíbrio anterior, de restaurar sua capacidade de escolha
sem, entretanto, a ambição de transformar a sociedade e seus hábitos.
Teoricamente, não se pode transpor ou invadir uma fronteira para cuidar de
doentes que pertencem a um determinado país, ou para o que quer que for,
sem a autorização do governo daquele país. Esse é o princípio da soberania
dos Estados, que vem regendo as relações internacionais há mais de três
séculos. A questão, no entanto, pode ser mais complexa do que se imagina.
Uma intervenção conduz a análises sobre, por exemplo, a origem e o conceito
de soberania dos Estados; os atores das relações internacionais; a entrada
em cena de novos atores – a sociedade civil global, as ONGs -; os direitos
humanos num contexto de miséria e sofrimento; as questões morais e os
interesses econômicos do mundo globalizado e fragmentado no qual vivemos.
Para este artigo, fez-se necessário que o objeto de estudo fosse
especificado e delimitado. Contemporaneamente, já se entende que não é mais
possível apenas observar massacres e misérias, e mesmo Estados já
interferem em conflitos internos de outros Estados, sobretudo sob a égide
das Organizações das Nações Unidas, e, desta forma, o objetivo deste artigo
é compreender o direito de ingerência num contexto de conflitos armados e
de calamidades para povos e nações, com uma abordagem sobre a fragilidade
da soberania dos Estados com a especificidade do surgimento de atores
diferentes de Estados. Objetiva-se, também, avaliar a possibilidade de uma
governança paralela num mundo state-centered[3] e o que isso possa
significar ideológica e mesmo filosoficamente para a sociedade
contemporânea cada vez mais globalizada, onde muitas vezes falta dignidade
na vida dos cidadãos, muitas vezes causada pela imposição de força de seus
próprios governantes.
Segundo o Relatório mundial sobre governança global da Comissão de
Governança Global da ONU[4], importa hoje considerar que o mundo a ser
redefinido daqui para a frente necessita do esforço e da cooperação
coletiva dos povos, não apenas dos governantes. Uma análise como esta
compreende como parte dos efeitos da globalização a necessidade de uma
governança global para o futuro da humanidade.

1. Pressupostos Teóricos

O estudo da intervenção humanitária e, mais especificamente, do direito de
ingerência de Organizações não-governamentais em partes do mundo cujo
estado de calamidade muitas vezes é criado por seus próprios governantes,
induz a algumas reflexões que inicialmente não se pode perceber de maneira
muito nítida. À medida que se começa a leitura da bibliografia disponível –
ou parte dela –, pode-se observar a quantidade de justificativas de
aspectos a serem abordados, subjacentes ao nosso tema.
Diversos artigos (O'BRIAN, 1998; MONTBRIAL, 1998; LYONS, 1995; KRATOCHWIL,
1995) apontam para a necessidade de que se reconsidere o conceito de
soberania do Estado no mundo atual, observando-se que hoje é preciso
redimensionar a rigidez desse conceito. Além disso, a entrada em cena de
atores diferentes de Estados nacionais (TURNER, 1998; RODMAN, 1998)
introduz uma análise objetiva do mundo selfcentered, onde o Estado é o
centro e poder absoluto, gerenciando o bem como a violência, que se
conheceu a partir dos tratados da Paz de Westphalia (MAIRET, 1997). A
relação entre Estados é regida pelo poder, e a moralidade não toma parte
nisso. Portanto, de acordo com essa ideia, os Estados não podem jamais ser
criticados ou condenados na base da imoralidade de suas ações, não precisam
de justificativa moral para seu comportamento (TURNER, op. cit.). Isso
gerou a monopolização da violência pelo Estado, algo que, por sua vez,
trouxe misérias, calamidades, perseguições, guerras etc., fatos que
caberiam apenas a cada Estado, internamente, resolver, quaisquer outros
atores impedidos de interferir. Organizações não-governamentais, assim como
órgãos multinacionais, como grandes bancos, começam a agir usando-se do
mercado como esfera de interação social (RODMAN, op. cit.).
Entretanto, segundo Turner (idem), há relativamente poucas análises sobre a
sociedade civil global como um paradigma do realismo centrado no Estado,
análise importante e urgente, se observarmos o número crescente de
intervenções em várias partes do mundo.
Faz-se também necessário correlacionar casos extremos de violação dos
direitos humanos, o direito de ingerência e o direito de intervenção
humanitária, que contrariam todo o princípio de soberania dos Estados.
Consequentemente, urge que se observe a importância, bem como as possíveis
contradições dos novos atores das Relações Internacionais em se tratando de
questões de intervenção. Até que ponto haveria imparcialidade em uma
intervenção parece difícil de julgar, bem como parece difícil traçar com
exatidão a linha que separa o político do não-político (CAMPBELL, 1998).
Não se pode deixar de observar o contexto do mundo globalizado-fragmentado
e a relação de dominação-dominador na qual vive a maioria dos Estados.
Há uma diferença que não se pode deixar de lado, ou seja, entre intervenção
quando feita por Estados e intervenção por ONGs, cujos objetivos
subjacentes e métodos são diversos. O Estado, sozinho, não parece mais
capaz de apresentar soluções eficazes às crises contemporâneas, logo a
mobilização da sociedade civil nacional e internacional é fundamental para
resolver ou amenizar o sofrimento de grande parte da população do globo.
Uma das prioridades das Organizações das Nações Unidas (ONU) é aumentar a
capacidade e a efetividade da ajuda humanitária internacional, buscando,
para isso, maior equilíbrio com as ONGs. Entretanto, as contingências do
sistema mundial são enormes, e há ainda desprezo das partes dos combatentes
pelos princípios de direito humanitário mais básicos (RODRIGUES, 1999). Nas
palavras de Kofi Annan, as Nações Unidas devem, portanto, estabelecer um
equilíbrio de relações com as ONGs, no sentido de preencher essas inúmeras
lacunas existentes na aplicação dos direitos humanos.[5]


2. O Estado


O poder sem legitimidade provoca provas de força; a legitimidade sem
poder provoca uma atitude vazia. Henry Kissinger (1996)


Há mais de 300 anos firmou-se, entre os seres das sociedades da Europa
ocidental, um pacto de unidade, cujo poder foi passado para o Estado, que
é, então, o governante centralizador e monopolizador. Esse momento da
História provavelmente se deu à medida que o Homem, "sujeito de seu
próprio destino" (MAIRET, 1995, p. 205) torna-se capaz de se distanciar e
romper com o estado originário de natureza. Hobbes e Rousseau capturaram
esse processo de fundação da "civilidade" em favor de tal ruptura do Homem
com sua condição natural. Nesse novo mundo, cuja vontade pertence ao
próprio Homem, passa-se a reconhecer uma ordem política como primeira: o
estado de soberania. Essa nova ordem corresponde a uma liberdade, onde o
Homem é "senhor de sua História e mestre de suas ações" (MAIRET, op. cit.,
p. 206).
A constituição do Estado, porém, pode ser entendida como a renúncia
do indivíduo e sua "potentia" (direito natural), a fim de ser ordenado
pelos objetivos da comunidade, da forma como o Estado os define,
constituindo-se a "potestas" e destituindo-se a "potentia". O indivíduo é,
assim, privado de seus direitos naturais, de acordo com a doutrina clássica
da soberania. O Estado seria a força sem fim e a violência imediata. A
liberdade natural do ser humano teria se tornado sinônimo de servidão e, ao
mesmo tempo, sua sujeição atual seria início da liberdade histórica e
domínio de seu destino.
Nesse novo mundo – profano, histórico – não se tem mais como
referencial o divino, mas uma nova autoridade, a norma do justo e das
conquistas e revoluções. Quem governa, agora, depende apenas das ações e
vontades humanas. É possível dizer que o reconhecimento, por Maquiavel, do
caráter essencialmente profano da política, instaura a modernidade, pois
esse caráter forma a liberdade humana sobre a contingência das ações
humanas. Para Mairet, é a contingência o elemento da liberdade. Os Homens
serão livres apenas se seu princípio estiver neles mesmos, e não fora
deles, ou seja, na natureza ou no divino. A modernidade estaria em se
pensar o mundo como histórico, e não mais como religioso ou natural. Esse
é, com efeito, o contexto atual da ajuda humanitária: sendo secular, não
está mais a serviço de religiões nem de ideologias.
O fato de a política ter sua origem e seu fim no próprio Homem
exprime a noção de soberania. A soberania é, antes de tudo, antes mesmo de
ser a afirmação do uno sobre o múltiplo, a afirmação da autonomia da vida
humana. É a soberania do humano sobre ele mesmo, sobre a natureza e sobre o
divino.
A essa visão cosmológica do Estado e da soberania, baseada nas ideias
de Mairet (op. cit.), soma-se a visão histórica propriamente dita. A origem
da governança centrada no Estado tem origem nos Tratados de Westphalia, de
1648, ao fim da Guerra de 30 anos, considerada um dos conflitos mais
sangrentos e destruidores de toda a História da humanidade. Os Estados
modernos têm, pode-se considerar assim, sua origem em guerras civis e
revoluções, o que lhes conferiu a unidade e a soberania.
Para Henry Kissinger (1996), no entanto, as razões que antecedem o
estabelecimento do sistema moderno de Estado podem ser encontradas um pouco
antes, na pessoa do francês Richelieu, que, para Kissinger, é o nome de
referência quando se trata do nascimento do Estado. Richelieu promulgou,
entre 1624 e 1642, durante seu mandato como I Ministro da França, o
conceito de "raison d'Etat". A "raison d'Etat" afirmava que o bem-estar do
Estado justificava quaisquer meios que fossem empregados para desenvolvê-
lo. Ao mesmo tempo, a "raison d'Etat" surgia como substituição aos valores
morais universais que vigoravam na sociedade medieval com base na religião
católica.
Todos os esforços de Richelieu tinham um objetivo, ou seja, afastar o
domínio do Sacro Império Romano-Germânico que, além de pretender controlar
a Europa (e portanto ameaçava a segurança da França), pretendia reavivar a
universalidade católica, indo contra os ideais nacionalistas do cardeal
Richelieu. Esse processo da Contra-Reforma deu origem, em 1618, à sangrenta
Guerra dos Trinta Anos. Em 1648, com o fim da Guerra, Richelieu adota o
conceito de "raison d'Etat". Apenas um século depois, porém, os outros
Estados europeus o adotariam como princípio regulador da diplomacia
europeia.
Richelieu simplesmente colocou os interesses seculares e nacionais
acima da própria religião, ainda que ele mesmo fosse um religioso. Nas
razões do Estado, aquele que detém o poder frequentemente possui o direito.
Com a nova ordem instituída, inicia-se uma época sem limites morais, onde
os mais fortes dominam. Todo Estado tem, portanto, sua idéia e definição de
ordenar e unificar as diferenças individuais, os valores morais e as
tradições históricas. E de seu ponto de vista, essa norma é a mais justa e
deve ser respeitada dentro dos limites conquistados por esse Estado.
Parece que é importante se entender que as funções exercidas hoje
pelo Estado derivam das necessidades da expansão econômica e da organização
política, que se deu através do crescimento do nacionalismo.
Segundo Chemillier-Gendrau (In RAMONET & GRESH, 1996), este mundo
globalizado em que vivemos passa por uma contradição e uma confusão de
valores, sem que se saiba exatamente qual a base moral e social. Além
disso, a categoria Estado não exprime mais uma realidade clara, e a
igualdade na soberania é a ficção por excelência.
Hoje, no mundo já considerado multicêntrico, com a descentralização
da autoridade e a entrada em cena de novos atores, é preciso que se
reconsidere a noção de soberania. Os governos, embora permaneçam atores
importantes na política mundial, passam a cada vez mais agir em conjunto
com outras entidades, numa governança partilhada.
De maneira clara, os professores Brigagão & Rodrigues (1998) abordam
criticamente alguns efeitos da globalização para o Estado secularmente
baseado na soberania nacional. Para os autores, ainda hoje as relações
entre os atores internacionais são entendidas como um jogo onde
necessariamente um perde e o outro ganha, ou o "jogo de soma zero". Essa
visão admite como pouco provável uma relação de trocas e cooperação,
palavras-chave da era globalizada. E no cenário da globalização, os
problemas e desafios serão contornados de acordo com a capacidade de
governança global, ainda em atrito com a soberania defendida pelos Estados-
nação.

3. Ação Humanitária

A busca por soluções satisfatórias aos problemas gerados pela
experiência em situações de luta armada e da realização mais eficaz do
princípio humanitário consoante a ideia básica, inspiradora e subjacente da
necessidade de preservação da pessoa humana e da garantia do respeito a sua
dignidade e integridade nos países em conflito armado deu-se, de forma
oficial e codificada a partir de 1864. Costuma-se considerar 1864, quando
da I Convenção de Genebra, como o nascimento do Direito Internacional
Humanitário. No entanto, segundo Swinarski (1988), já no ano 1000 a.C.
existiriam regras sobre os métodos para condução das hostilidades e algumas
normas tendentes à proteção de certas categorias de vítimas dos conflitos
armados.
Na Idade Média, existia entre os militares um certo respeito mútuo
nos campos de batalha. As ideias da cavalaria de honra e respeito mútuo se
completavam, mas apenas entre os militares. O ideal humanitário herda essas
ideias e as transforma, dando-lhes um novo conteúdo. As noções de respeito
mútuo e honra se transformaram através dos tempos no respeito e na proteção
aos feridos, doentes e prisioneiros de guerra, compaixão com o sofrimento
das vítimas das guerras (UNESCO, 1996). A Convenção de 1864 constitui e
outorga da proteção do Direito Internacional a toda uma categoria de
vítimas. Representa, como tal, a limitação da soberania do Estado na
condução das hostilidades no tocante aos indivíduos envolvidos.
É possível afirmar que a regulamentação internacional da guerra no
século XIX tem como referência três nomes, três personalidades marcantes:
Henry Dunant, Francis Lieber e de Martens. Esses homens, na segunda metade
do século XIX, formularam a teoria do direito humanitário da guerra.
Dunant, mais especificamente, tem seu nome associado ao movimento da Cruz
Vermelha, tendo sido seu fundador. Após haver testemunhado os horrores da
batalha de Solferino, Dunant organizou um sistema de cuidados médicos, numa
tentativa de ajuda a todos os mutilados por aquele conflito extremamente
cruel, sobretudo com relação aos civis. Em 1862 publica "Um souvenir de
Solferino", reeditado em 1863. Em 1864, quando da Convenção de Genebra,
Dunant passa a lutar por uma efetiva ajuda humanitária aos que sofrem pelos
conflitos. A Cruz Vermelha é um marco na concepção de ajuda humanitária por
entidades civis independentes a cidadãos em conflito.
No início do século XX, a codificação do direito de guerra vem a ser
a resposta de nosso tempo à questão primordial de saber como conciliar "as
exigências militares com a humanidade indispensável em tempo de guerra"
(UNESCO, 1996, p. 4). A Primeira Guerra Mundial levou a algumas
constatações, entre elas o fato de que, com relação aos direitos humanos, a
Convenção de Genebra de 1906 sobre feridos e doentes era insuficiente, bem
como as regras relativas ao tratamento de prisioneiros. Após a Primeira
Guerra, pareceu necessário ampliar o âmbito dos direitos humanos e, em
1929, foi acrescentada a nova versão da Convenção de Genebra de 1804,
referente aos feridos e doentes, e um novo tratado para regulamentar o
estatuto dos prisioneiros de guerra. Em 1949, quatro Convenções de Genebra
produzem a codificação completa do direito internacional humanitário em
vigor. São Partes nessas quatro Convenções 156 Estados, o que equivale à
maior comunidade convencional de Estados com exceção dos Estados Partes na
Carta das Nações Unidas (SWINARSKI, 1988). Segundo Pictet (1983), os textos
do chamado "direito de Genebra" foram elaborados "au seul profit des
victimes"[6], consagrando a primazia dos direitos do indivíduo e dos
princípios de humanidade. Os Estados Partes se veem na obrigação de
respeitar os padrões da ação humanitária em favor das vítimas.
Pode-se dizer que o Direito Internacional, durante muito tempo
dominado pelos Estados ditos soberanos, dá cada vez mais lugar ao ser
humano, internacionalizando o respeito universal e efetivo dos direitos
humanos, ainda que a realpolitik continue a marginalizar os direitos do
Homem. Tendo sido local e sujeito principal de governança desde o século
XVII, o Estado tem agora sua concepção tradicional colocada em questão,
assim como o próprio paradigma da sociedade centrada no Estado passa a ser
reavaliado.

4. Ação humanitária e sociedade civil global

Para Turner (1998), existem dois fatos contemporâneos significativos
na base dos questionamentos ao modelo clássico de sociedade centrada no
Estado:
o poder e a mobilidade das corporações transnacionais;
a proliferação de ONGs nacionais e internacionais e de movimentos sociais,
ou sociedade civil global, que estende a ação do cidadão para além da
soberania do Estado (TURNER, 1988, p.25).

O próprio Estado, como se sabe, ao mesmo tempo que adota a Declaração
dos Direitos Humanos, é capaz de realizar atos de violação ao que foi
estabelecido. A sociedade civil seria, portanto, um desafio à teoria
realista das Relações Internacionais e uma alternativa à governança, hoje
ainda baseada no Estado e em suas instituições. A sociedade civil global,
mais do que um desafio ao modelo realista de política internacional, sugere
a necessidade de mudança, sendo um diferencial à marginalização dos
direitos humanos. As ONGs não são orientadas para o Estado e rejeitam os
sistemas e ideologias. Essencialmente, rejeitam a violência e o absolutismo
estatal.
O fato de existirem leis e tratados internacionais aceitos pela
diplomacia e a política externa dos Estados já apresenta uma diminuição do
absolutismo da teoria realista. E os direitos do Homem já ocupam um lugar
central na retórica internacional, mesmo que a realpolitik continue a
marginalizá-los. Segundo Abdallah (1998), a Declaração de 1948 é mais do
que uma simples recomendação da Assembleia geral da ONU, pois não deixa
nenhum Estado indiferente, mesmo os que não votaram a seu favor.
Pouco ainda se sabe sobre o fato de como a sociedade civil pode ser
alternativa a este modelo realista. Sabe-se, no entanto, que essa sociedade
civil quer, como possibilidade de novo paradigma, ser um novo ator
legítimo, com prioridades diferentes das estabelecidas pelos Estados,
observando e criticando os que julgam estar contra os direitos humanos, mas
sem excluir o Estado ou muito menos se confundir com o papel deste.
No discurso por ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Paz de 1999, o
presidente e o ex-presidente dos Médicos sem fronteiras fizeram uma análise
da ação humanitária e do direito de ingerência, enfatizando que a ação
humanitária não se pode confundir com a intervenção política e militar de
grandes potências em situações de crise. Para eles, não se pode politizar o
socorro e a assistência, nem colocar soldados na função de voluntários,
desarmando-os ou dando-lhes o direito de matar em nome do humanitário.
No contexto da ação humanitária, as organizações humanitárias não-
governamentais têm como papel intervir diretamente, "com um testemunho cuja
função principal é o alerta em caso de atque ou violência direta contra as
populações"[7], ao mesmo tempo em que o ajuda a atravessar um período de
ruptura do equilíbrio anterior.
A ação humanitária tem seu significado no fato de ajudar os
indivíduos, na medida do possível, de maneira rápida e eficaz, independente
e imparcial, a superar períodos difíceis, sejam eles de origem natural e
política, tremores de terra ou guerras civis, até o momento em que volta a
autonomia anterior. As iniciativas das ONGs vêm precedendo as dos poderes
públicos nessa ajuda a doentes e feridos e na busca pela paz, e não se deve
confundir a ação desses atores. A intenção da ação humanitária privada está
no mesmo nível dos seus resultados, e isso deve ser levado em alta
consideração.

Conclusão

Em julho de 2012, os governos de Brasil, Venezuela, Equador, Peru e
Colômbia se uniram para enfrentar 700 organizações não-governamentais de
todo o mundo, agrupadas na Coalizão Internacional pelos Direitos Humanos
nas Américas. Essas entidades acusam os governos de ineficácia em relação a
várias sentenças emitidas pelo Tribunal da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e afirmam haver uma lista de promessas não cumpridas pelos
governos. Na opinião do jornalista José Casado, esse confronto é decisivo
para o futuro do sistema de proteção dos direitos humanos nas Américas.
Esse evento vem como introito a essa conclusão como exemplo das ações dos
órgãos civis de direitos humanos em relação a Estados constituídos e que
ainda criam obstáculos aos avanços desses direitos.
O conceito de direito de ingerência deve ser analisado sob os
aspectos da ação e da omissão frente às necessidades dos grupos humanos. A
entrada em cena de novos atores traz enormes benefícios às Relações
Internacionais, mas não quebra paradigmas. A realpolitik vive e está na
base das relações entre Estados e entre Estados e governados, assumindo-se
o estabelecimento do poder do mais forte. As forças econômica, monetária,
política e militar podem ainda controlar as relações entre os Estados e,
consequentemente, ações que se tornam contra ou a favor dos Estados. A era
globalizada pode estabelecer espaços ainda maiores entre os favorecidos e
os desfavorecidos. Citando Lepargneur (1997), a globalização tem a
tendência a "esquecer o próximo em benefício exclusivo do longínquo,
trazido em realidade virtual sobre o prato da mídia". Enfim, a realidade
acerca da ingerência passa também por todo o contexto a seu redor.
Percebe-se que hoje o conceito de raison d'Etat é relativizado, não
mais totalmente preso aos ideais do nacionalismo construído para destituir
o poder divino universal. As razões utilizadas para proteger o Estado
nacional passam a ser observadas no sentido de, cada vez mais, se
introduzirem parâmetros morais e humanitários.
Pode-se dizer que ainda hoje persiste a necessidade de justificativa
moral para atos do poder não-sorrateiros, e parece que esse papel é feito
pelas ONGs e pela mídia internacional.
A sociedade civil global ainda precisa responder de que maneira
poderia ser uma alternativa ao modelo realista da sociedade centrada no
Estado. A maior característica, que lhe confere esse status, é o poder de
intervenção rápida, direta e eficaz na preservação da vida e da dignidade
humana, com atos que se colocam no mesmo nível dos resultados. O direito-
dever de ingerência tem como fim maior exatamente providenciar dignidade ao
povo em crise para que, fortalecido, tenha liberdade de reger seu destino.
Nesse caso, a contingência, como entendida por Mairet (1997), é elemento de
liberdade, pois proporciona aos seres humanos agir sobre seus destinos sem
serem dominados pela imposição ilimitada do poder (a potestas).
Sabe-se sem sombra de dúvidas que a ação de entidades humanitárias
salva milhares de vidas e ajuda a diminuir o sofrimento de centenas de
pessoas no mundo inteiro. Deve-se, no entanto, atentar constantemente para
que organizações civis neutras e desvinculadas de ideologias não sejam
manipuladas para a perpetuação da violência, muito menos para os interesses
alheios à ajuda de caráter puramente humanitário.



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-----------------------
[1] Na resolução de 5 de abril de 1991, o Conselho de Segurança da ONU,
entre outros aspectos, insiste para que o Iraque permita o acesso imediato
de organizações humanitárias internacionais a todos os que necessitassem de
assistência em todas as partes daquele país, facilitando deste modo todas
as operações. A Resolução foi aprovada por 10 votos a 3 (Cuba, Yemen e
Zimbábue) e duas abstenções (China e Índia).
[2] Em entrevista à revista francesa L´Événement nr. 754, abril de 1999,
p. 55.
[3] A expressão state-centered é citada por TURNER, Scott. Global civil
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[4] Comissão sobre governança global. Nossa comunidade global. Rio de
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de ingerência e é citado em BRIGAGÃO & RODRIGUES (1998).
[5] Discurso por ocasião da 51ª Conferência Anual do Departamento de
informação e das organizações não governamentais (1998). Disponível em:
. Acesso em: Dez 1998.
[6] Em proveito somente das vítimas.
[7] Disponível em: < www.paris.msf.org>. Acesso em: 10/08/2012
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