Abecedário: educação da diferença

July 4, 2017 | Autor: Sandra Mara Corazza | Categoria: Didactics, Curriculum Studies, Educación, Ensino, Filosofia
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ABECEDÁRIO: EDUCAÇÃO DA DIFERENÇA

Sandra Mara Corazza e Julio Groppa Aquino (organizadores)

Colaboração de:

∴ Adélia Pasta ∴ Alexandre de Oliveira Henz ∴Carla Gonçalves Rodrigues ∴ Cintya Regina Ribeiro ∴ Cláudia Maria Perrone ∴ Cristiano Bedin da Costa ∴ Daniel Dutra ∴ Deniz Alcione Nicolay ∴ Eduardo Pellejero ∴ Ester Maria Dreher Heuser ∴ Gabriel Sausen Feil ∴ Gonzalo Sebastián Aguirre ∴ Jadson Fernando Garcia Gonçalves ∴ Jorge Leal Eiró da Silva ∴ José Menna ∴ Karen Elisabete Rosa Nodari ∴ Luciano Bedin da Costa ∴ Luiz Fuganti ∴ Marcos da Rocha Oliveira ∴ Maria Elizabeth Barros de Barros ∴ Monica Cristina Mussi ∴ Pablo Esteban Rodríguez ∴ Paola Zordan ∴ Rosana Fernandes ∴ Sandra Cristina Gorni Benedetti ∴ Selda Engelman ∴ Tania Mara Galli Fonseca ∴ Thomas Stark Spyer Dulci ∴ Vânia Dutra de Azeredo ∴ Walter Omar Kohan ∴ Wladimir Antonio da Costa Garcia

2009

SUMÁRIO Alguns incidentes e um prefácio... Agenciamento... Aprender... Bando... Brincar... Corpo sem órgãos... Currículo... Desigualdade... Devir... Ensinar... Esquizoanálise... (o) Fora... Formação de professores... Geologia da moral... Gestão escolar... Habilidades e competências... Hecceidade... Imagem do pensamento... Inclusão escolar... Jogo de dados... Jornada escolar... Legislação educacional... Linhas... Máquina... Metodologia do ensino... Níveis de ensino... Nomadismo... Orientação educacional... Outrem... Plano... Pré-Requisitos... (o) Que é a Filosofia?... (o) Que é a Pedagogia?... Regimento escolar... Rizoma... Sala de aula... Sociedade de controle... Tecnologia educacional... (des)Territorialização... Universidade... Univocidade do ser... (trans)Valor-iz-ação do magistério... Virtual/atual... (o) X da questão... Xerox... Zero... Zona de variação contínua...

ALGUNS INCIDENTES E UM PREFÁCIO Sandra Mara Corazza Julio Groppa Aquino

1. Facio ut facias Facio, feci, factum: fazer, causar, criar. Facere; hacer; faire; fare; to do; tun Facio ut facias: Faço para que faças. 2. O tempo Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz: ‘Ah! O velho estilo...’ A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro e o cinema. (Gilles Deleuze. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.18-19.) 3. Idéias tidas e havidas (USP, São Paulo. Corredor da FEUSP. Pós-banca. Pré-almoço. 29 de fevereiro de 2008.) – E se a gente organizasse, juntos, um Abecedário? – Da diferença. Topo. – Um verbete por colaborador. – Serão necessários 26 colaboradores, 24, se excetuarmos nós dois. – Podem ser convidados alguns orientandos. – O verbete pode ser escrito em tom fabulatório ou acadêmico. – Deixar a critério de cada colaborador. – Dar o número de caracteres com espaço. – Dar um prazo. Quando? – Ver uma editora interessada. – Fazer demo? – A? – B? – C? – D? – E? – F? –G? – H? – I? – J? – K? – L? – M? – N? – O? – P? – Q? – R? – S? – T? – U? – V? – W? – X? – Y? – Z? 4. Viventes – Estou sem tempo, mas podemos tocar a idéia do abecedário? Que tal? Começamos a convidar os viventes? 5. Lá – Por aqui, tenho cinco pessoas comigo que estariam mais do que prontas para a tarefa. 1/4 do povo do livro eu garanto, pois. O restante, 20, é contigo. Com certeza, você terá gente pra isso. – Vamos lá. 6. Menos – Poderiam ser dois verbetes por autor.

– Algo não muito extenso. – Duas páginas cada, no máximo. – É, é um bom espaço. – Ou até menos. – Um livrinho pequeno, despretensioso e simpático, afinal. 7. A idéia – Ah, a natureza dos verbetes. – A idéia é um abecedário sobre Educação e (Filosofia da) Diferença... – Ou o léxico do próprio campo, ou o léxico clássico da pedagogia (agora transtornado), ou um misto dos dois. – A idéia do mix me parece boa. 8. Atravessado – Duas entradas distintas. – Tanto de um conceito básico (relacionado à educação), quanto de um outro pedagógico (agora atravessado pela diferença). 9. Alocação – Se pudéssemos pensar uma relação de verbetes. – Sem K, nem W, nem Y. – Depois o problema é a alocação dos autores. – Vai dar uma trabalheira sem fim. 10. O problema de sempre – O problema de sempre. Escrever de modo mais fabulante, ou não? – Em princípio, não me parece necessariamente ruim a idéia de uma escrita menos fabulante. – A questão é relevante, já que se trataria de uma introdução a um leitor não necessariamente habituado ao “idioma”. 11. A pena da graça – Acho que valeria a pena um esforço de articulação conceitual ao universo pedagógico stricto sensu. – Estaria aí a graça da publicação. – Mesmo numa escritura fortemente fabuladora, será preciso realizar esforços de articulação conceitual da filosofia ao educacional ou pedagógico, e vice-versa, de modo que o conjunto do Livro consiga sustentar a sua pretendida Graça-Útil ou Utilidade-Graciosa. 12. Leve, sem caretice – Vamos tentar pegar leve, mas sem caretice (ok, eu sei que isso soou já meio careta, pero...).

13. Disparar – A coisa seria para o segundo semestre, mas podemos disparar a coisa desde já. Pode ser? – Por onde começamos agora? – Espero suas considerações sobre minhas questões. 14. Bestiário – ... de modo que matamos dois coelhos... – Estou com uma pulga atrás da orelha. – Era um monte de bicha-de-monte. –... não bocó. – Leãozinho desdentado, quase criança. 15. Abril – Contraproposta de título... – Quanto mais sintético, melhor, creio. – It's up to you to decide, dear. – 32 almas, ao fim e ao cabo. – Uma entrada de conceitos da diferença articulados explicitamente à educação (a fim de evitar mais um comentário filosófico); outra entrada com termos pedagógicos atravessados pela diferença. 16. Istmo – A Imagem Não Dogmática ou a Fantasia de Escritura do Livro é a da criação de um espaço fortemente interseccionado entre os dois continentes discursivos, da Filosofia da Diferença e da Educação, à moda de um istmo, o que implica tentativas de desalojamento e reinvenção de ambos os continentes. 17. Sem definição prévia – Lista de verbetes. ... Um rascunho muito geral... ... Pura associação livre – Será preciso bater o martelo. – Tarefa de escolher o que achar melhor de cada. E também a pior... ... meu povo ... cada um terá de se responsabilizar por um conceito da diferença e outro da educação. – Estilos assistemático e sistemático bem-vindos, sem definição prévia de nossa parte. – Cada qual manda ver do modo que lhe aprouver. Mais bacana e surpreendente assim. – Prazo: setembro? Primavera, vida nova etc.? – A gente deveria priorizar os (ex)orientandos. Um empurrão pra eles se lançarem no mundão, já que não ficaremos nele pra sempre. Uma mostra também de que há vida inteligente vindo por aí. 18. Nova PS: Invejável a Vita Nova.

19. Quando setembro vier – Começaram a chegar. 20. Toques – Vamos ter que dar uns toques... 21. A desmesura – Acabo de fazer uma coisa terrível, imperdoável, pela qual muitos passaram de uma amizade grande ao ódio sem igual. Verás no anexo tal desmesura. Com meus carinhos assustados. Ai... 22. Nem rastro da autoria – Aprendi uma mesma coisa por duas vias, mas por razões distintas: me metendo nessas coisas editoriais e, sobretudo, prestando atenção no velho e querido Foucault: ninguém é dono do próprio texto. Ninguém mesmo. Às favas, pois, com a soberba autoral. Não ter nem rastro dela comigo foi o que aprendi. Mais: é algo impessoal que nos faz ter de escrever e que, uma vez encerrado o texto, ele retorna ao seu único dono e senhor. No limite, somos cavalos dessa impessoalidade; somos um istmozinho. É o caso aqui e sempre. Portanto, não tenho o mínimo problema com teus apontamentos. Gosto demais disso, por sinal. Acho-o vital, uma vez que reaviva o defunto do texto (para aquele que o assina). Explico-me. Gosto muito de uma analogia escatológica, nada elegante, mas deveras sincera: que o escrito nada é além de dejeto. O escrever, no entanto, é outra coisa. Aquilo que pede passagem, mas ainda e sempre informe. Quando diante do ponto final, nada nos resta a não ser olhar para trás e se despedir de vez daquilo que ali se afirmou. Trata-se, enfim, daquilo que, de um modo ou de outro, já não mais nos toca, não mais nos pertence (se um dia tivemos a ilusão de possuí-lo). Algo parecido com o amor, enfim. Se meu textinho fez avivar essa força do informe em você, ele cumpriu sua missão de escritura. Fez-te escrever, afinal. Isso é tudo que ele podia fazer. E não é pouca coisa, a meu ver. Fico mais contente ainda, pois. Vou processar suas observações e envio a versão última, pronta para ser abandonada de novo e, talvez, reinventada e, de novo, abandonada por um leitor atento (não; melhor que seja desatento) num futuro imponderável. Grato e grato. 23. Amar a algaravia do ramerrão – Amo a idéia de um mosaico das vozes ante-perdidas porque amo a algaravia do ramerrão. Amo ver os andaimes da obra, e não só aquilo-que-é-pro-leitor-ver. Amo ver a vida fiozinho d´água, em devir caudaloso, e não só a vida corredeira, em seu devir “tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte”. Amo ver a pré-face da coisa, mais que a coisa. Gesto germinal. Amo sua genialidade-trovoada sem igual. Ela me faz verter pinguinhos de chuva. É o que me basta. 24. ABC contra – Ah, eu incluiria o velho safado, sem dúvida. Ainda estou com ele na cabeça.

Nosso pequeno ABC é também contra todas aquelas gentes. 25. Genialidade da multidão (Charles Bukowski. Tradução anônima.) Há bastante deslealdade, ódio, violência, Absurdo no ser humano comum Para suprir qualquer exército em qualquer dia. E O Melhor No Assassinato São Aqueles Que Pregam Contra Ele. E O Melhor No Ódio São Aqueles Que Pregam AMOR E O MELHOR NA GUERRA – FINALMENTE – SÃO AQUELES QUE PREGAM PAZ Aqueles Que Pregam DEUS PRECISAM de Deus Aqueles Que Pregam PAZ Não têm paz. AQUELES QUE PREGAM AMOR NÃO TÊM AMOR CUIDADO COM OS PREGADORES Cuidados com os Sabedores. Cuidado Com Aqueles Que Estão SEMPRE LENDO LIVROS Cuidado Com Aqueles Que Detestam Pobreza Ou Que São Orgulhosos Dela CUIDADO Com Aqueles Que Elogiam Fácil Porque Eles Precisam De ELOGIOS De Volta CUIDADO Com Aqueles Que Censuram Fácil: Eles Têm Medo Daquilo Que Não Conhecem Cuidado Com Aqueles Que Procuram Constantes Multidões; Eles Não São Nada Sozinhos Cuidado Com O Homem Comum Com A Mulher Comum CUIDADO Com O Amor Deles O Amor Deles É Comum, Procura O Comum Mas Há Genialidade Em Seu Ódio Há Bastante Genialidade Em Seu Ódio Para Matar Você, Para Matar

Qualquer Um. Sem Esperar Solidão Sem Entender Solidão Eles Tentarão Destruir Qualquer Coisa Que Seja Diferente Deles Mesmos Incapazes De Criar Arte Eles Não Irão Compreender Arte Eles Vão Considerar Sua Falha Como Criadores Apenas Como Uma Falha Do Mundo Incapazes De Amar Completamente Eles Vão ACREDITAR Que Seu Amor É Incompleto E ELES VÃO ODIAR VOCÊ E Seu Ódio Será Perfeito Como Um Diamante Brilhante Como Uma Faca Como Uma Montanha COMO UM TIGRE COMO Cicuta Sua Mais Fina ARTE 26. Mas realmente “quand será-t-on artiste, rien qu’artiste, mais bien artiste”? (Flaubert) “quando é que seremos artistas, nada mais que artistas, mas realmente artistas”? (Trad. Augusto de Campos) 27. Obsessões – Sei que achaste o meu verbete grande demais, não? Ele acabou ficando enorme [tinha 12 páginas]; cortei, cortei... É que o método da dramatização tem que ter as firulas, sabes? – Normal. – 7h, sonhei que havia dois probleminhas no verbete [além do tamanho, claro]. Vale esta segunda versão. – Recebido. – Tedioso falar de minha obsessão, vale esta última versão. – Se eu te falasse de todas as minhas... 28. Hífens – Não consigo parar de trabalhar no ABC... Segue o último do dia, pois amanhã... – Ok, bjs. (taquigraficamente) Escrevê-lo ficou mais comprido.

– Adorei o "taquigraficamente" [tem ou não tem hífen agora?] – Adeus, hífens! 29. Comme il faut [estava escrito “fault”] – Organizei os verbetes em ordem alfabética. Fiquei emocionada... Está se criando; então, reenvio capa e sumário, em ordem. – Todos os verbetes saindo do forno, literalmente. Aguarde mais um átimo. – Esta é uma das coisas boas da vida: estar-se vivo para viver o depois de... – Está tudo indo comme il faut. 30. Este Abecedário disparatado, subversivo e falso desconcertante, perturbador, enigmático põe-se em perspectiva age nos labirintos do pensamento dos autores reiventa-os irrita-se com suas dificuldades convive com seus gostos e desgostos bola-de-emoção apaixonada meio-leitura/meio-escritura/meio-fala gagueja feito duplo, ventríloquo, mascarado meta-dissertação, sem-sentido, fora-da-lei anti-comentário, extra-significação belo para si fazedor de tilt em mim pura-poesia pura-encenação 31. Quando declama a Geologia da Moral no Jogo de Dados entoa cantigas às Linhas da Hecceidade e do Outrem corrupia em torno do Devir, do Agenciamento, do Bando ciranda a Des/Re/Territorialização do Corpo sem Órgãos traceja a Esquizoanálise do Fora roda a Imagem do Pensamento na Máquina Nômade da Sociedade de Controle extasia-se com os Planos de O que é a Filosofia? desliza nos Rizomas da Univocidade do Ser que é O X do Problema 32. Ainda fantasia no Virtual/Atual da Zona de Variação Contínua de uma Educação da Diferença 33. Feita de Universidade e Xerox Currículo e Zero Tecnologia, Orientação e Legislação (Educacional) Habilidades (e Competências) Inclusão, Regimento, Jornada e Gestão (Escolar)

Pré-Requisitos e Metodologia (de Ensino) Formação (de Professores) e Valorização (do Magistério) Níveis (de Ensino) e Sala (de Aula) Ensinar, Brincar e Aprender 34. Rindo o Abecedário encanta-se imaginando, fabulando O Que é a Pedagogia? 35. Em seu Não-Lugar de palavras pintadas pinturas palavreadas alegrias instigantes dançações e mundiações vivênderes e aprendênderes amorosamente potentes 36. Dos autores Adélia Pasta. Doutoranda na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. [email protected] Alexandre de Oliveira Henz. Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica e Professor do Departamento de Ciências da Saúde na Universidade Federal de São Paulo. [email protected] Carla Gonçalves Rodrigues. Professora do Departamento de Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. Líder do Grupo de Pesquisa Educação e contemporaneidade: experimentações com arte e filosofia. [email protected] Cintya Regina Ribeiro. Docente e Pesquisadora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. [email protected] Cláudia Maria Perrone. Professora do Departamento de Psicologia e Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Federal de Santa Maria. [email protected] Cristiano Bedin da Costa. Psicólogo no Colégio de Aplicação e doutorando em Educação, na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Daniel Dutra. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Deniz Alcione Nicolay. Professor do município de Novo Hamburgo, RS. Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação. [email protected] Eduardo Pellejero. Doutor e Pesquisador da Fundação para a Ciência e Tecnologia da Universidade de Lisboa, Portugal. [email protected] Ester Maria Dreher Heuser. Professora de Filosofia. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Gabriel Sausen Feil. Doutorando em Educação, na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Gonzalo Sebastián Aguirre. Doutor em Filosofia e Estética pela Universidade de Barcelona. Professor e Pesquisador de Ciência e Tecnologia da Universidade de Buenos Aires. [email protected]

Jadson Fernando Garcia Gonçalves. Professor e Doutorando do Programa de PósGraduação em Educação do Instituto de Ciências da Educação na Universidade Federal do Pará. Jorge Leal Eiró da Silva. Professor e Mestrando em Educação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Pará e do curso de Artes Visuais da Universidade da Amazônia. [email protected] José Menna Oliveira. Doutorando em Neurociências na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Julio Groppa Aquino. Professor da Graduação e da Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Pesquisador do CNPq. [email protected] Karen Elisabete Rosa Nodari. Doutora em Educação e Coordenadora do Núcleo de Orientação e Psicologia Educacional do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Luciano Bedin da Costa. Doutorando em Educação, na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Luiz Fuganti. Filósofo, arquiteto, escritor e professor. Idealizador e fundador da Escola Nômade de Filosofia. [email protected] Marcos da Rocha Oliveira. Mestrando em Educação, na Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Maria Elizabeth Barros de Barros. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Institucional e em Educação e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Monica Cristina Mussi. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Supervisora Escolar da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. [email protected] Pablo Esteban Rodríguez. Professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais. [email protected] Paola Zordan. Professora do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Compõe o coletivo de artistas Galeria de Marte. Membro do grupo de pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações. [email protected] Sandra Cristina Gorni Benedetti. Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Presidente da Organização Brasileira de Educação e Estudos Contemporâneos – ObeeC. [email protected] Sandra Mara Corazza. Professora do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações. [email protected] Rosana Fernandes. Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Pelotas. [email protected] Selda Engelman. Professora do Centro Universitário IPA Metodista e Doutora em Educação. e-mail: [email protected] Tania Mara Galli Fonseca. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] Thomas Stark Spyer Dulci. Doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. [email protected]

Vânia Dutra de Azeredo. Professora de Filosofia do Centro de Ciências Humanas da Pontíficia Universidade Católica de Campinas. [email protected] Walter Omar Kohan. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Prócientista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro e Pesquisador do CNPq. [email protected] Wladimir Antonio da Costa Garcia. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina, nos cursos de Pós-Graduação em Educação, Literatura e Teoria Literária. [email protected]

AGENCIAMENTO Luiz Fuganti O conceito de agenciamento opera uma dupla ultrapassagem em relação ao modo de pensar da tradição inaugurada pelo humanismo moderno. Por um lado, destitui a idéia dominante de uma natureza humana a priori - cuja forma legitimaria o senso comum do sujeito do conhecimento, a partir da constituição de um modo superior de desejar, neutro e desinteressado; por outro, desqualifica a verdade dos valores universais extraídos ou descobertos a partir de um plano de objetos ideais em si, constitutivo do bom senso - plano pretensamente superior ao plano de natureza e das forças de produção das formações sociais (ainda banhado de paixões humanas interessadas e parciais por natureza), - como fundamento que torna possível o conhecimento verdadeiro, imparcial e universal. Essa dupla ilusão, a de um fundamento neutro formal da subjetividade e a do fundamento ideal como valor em si constituinte da universalidade dos valores humanos, engendra a insípida idéia de autonomia moral e racional como liberdade e conhecimento possíveis do homem. Operar sua desconstrução ao mesmo tempo em que se destitui a idéia de uma interioridade como instância unitária e primeira da vontade ou do desejo, mesmo e sobretudo de caráter natural, suposta como separada e como primeira natureza do homem, juntamente com a destituição da idéia de intencionalidade ou finalidade do desejo, mesmo e sobretudo quando seu objeto se interioriza na pura forma do Dever, é uma tarefa de primeira ordem para quem quer realmente criar um novo conceito e uma prática de educação que invistam na potencialização das capacidades criativas do homem. Para Deleuze e Guattari, criadores do conceito de agenciamento, a Natureza é Fábrica. Como em Spinoza, fábrica de si mesma e de tudo que dela decorre. E o que produz essa fábrica? Real, nada mais, nada menos do que o próprio real como produto de sua Potência absoluta de Acontecer. Ora, se a natureza não é algo dado, mas uma realidade que não pára de produzir-se a si mesma, também as partes que a compõem e dela participam não param de ser produzidas e de participar da produção de si mesmas. E se nós somos partes efetivas dela, não há sujeito ou natureza humana natural já pronta, nem mesmo em progresso ou processo de melhoramento ou reforma de uma essência original, como querem moralistas, racionalistas e humanistas. Também não podem haver objetos ideais ou valores universais que permaneceriam imutáveis num plano que a transcenderia. A natureza humana, seu meio específico e seus objetos estão em processo ininterrupto de modificação e produção de si nos devires, tempos e movimentos reais que atravessam a existência desse animal que se autodenomina homem. A idéia de uma forma humana espiritual e superior à natureza emerge como uma ilusão de consciência, a qual pressupõe um plano de realidade separado como origem da representação do real e que legitimaria o corte homem/natureza, cultura/natureza, industria/natureza. A virtude dessa forma se manifestaria ao longo de sua história, no desenvolvimento de suas relações internas, desdobrando-se em uma prática moral cada vez mais desinteressada e em um conhecimento racional e científico cada vez mais universal, apesar de cada vez mais especializado. Essa forma racional de conhecer e modo moral de se conduzir tornam-se suportes de uma suposta autonomia formal, constitutiva do lugar da autoridade, autorizada e autorizante, que fariam das forças mais nobres da vida função de valores de progresso, desenvolvimento e aperfeiçoamento da

Forma-homem, cujo sentido é em última instância determinado pelas forças constitutivas do tipo de poder que ela integra: nesse sentido, a organização de um corpo eficiente e a formação para uma capacitação de um sujeito competente tornam-se o horizonte comum das práticas do homem sobre si mesmo. Ora, se a educação é a porta de entrada para a inserção da vida humana nesse processo de formação, já adivinhamos sob quais pressupostos ela opera. Na verdade, todo esse plano de organização de uma formação social pressupõe um diagrama virtual e não formal de relações de forças que trabalha de modo microfísico e micrológico, atualizando-se ou concretizando-se através de agenciamentos de poder, que constituem-se como dispositivos ou máquinas concretas sociais de produção de subjetividade e de produção de individualidade. Uma verdadeira fabrica de modos de subjetivação, de individuação e de objetivação. Esses a priori formais em verdade são resultados de compostos de forças, produzidos a posteriori. Em outras palavras, foi preciso antes que essa Forma ou Estrutura humana fosse produzida ou inventada (não por Deus ou por uma Natureza natural ou Humana em evolução espontânea ou inteligente) e constituída como condição de produção de pessoas ou sujeitos (morais e de conhecimento). E conforme a natureza ou qualidade das relações de forças que a compõem e que ela integra, ou conforme a natureza ou qualidade do conjunto afetivo (ações e paixões) que tece uma formação de um corpo social que a sustenta e que ela unifica, essa Forma regula o grau de captura ou de soltura do desejo. Por aqui se pode avaliar a qualidade dos modos de viver que essa formação de poder necessita produzir e/ou é capaz de suportar, que se constitui nela e que ela constitui como legítimos modos de desejar e pensar normais. Durante demasiado tempo a modernidade permaneceu prisioneira da idéia de uma consciência em si como entidade fundante do conhecimento, da verdade científica, e também da noção de uma consciência universal do homem capaz de ultrapassar e se sobrepor aos modos ideológicos de saber e aos seus interesses sempre parciais de poder, com suas armadilhas e modos de ocultar, manipular e usurpar. Deixamos nos aprisionar por esquecimento do que nos torna cúmplices, cegueira, ilusão ou covardia? Porque insistimos em não perceber que a verdade objetiva tanto quanto o sujeito do conhecimento, seu lugar e forma de emissão de verdade, autorizado e autorizante, são produtos de um agenciamento maquínico que serve de função a algo que captura a vida de fora? Será que nosso modo de viver não está ligado a um agenciamento de poder que ao mesmo tempo nos captura e separa de nossas potências próprias de criar realidade, mas também nos sustenta e liga nossa impotência ao poder de reproduzir e transmitir ordens? Qual vantagem recebemos como recompensa pela concessão que fazemos? Quando Foucault, inspirado em Nietzsche, veio nos mostrar que formas de discursos e formas de sensibilidade constituíam-se como verdadeiros dispositivos de produção de corpos submetidos e mentes assujeitadas, que operavam fabricando subjetividades e corporeidades, nas famílias, escolas, quartéis, fábricas, hospitais, prisões, universidades etc., logo quis-se reduzir o alcance dessa desconstrução e do papel desses dispositivos a modos econômicos de produção ou a aparelhos ideológicos de Estado, sequer supondo que ao contrário, eram os modos econômicos e regimes políticos que em certo sentido dependiam de regimes de sensibilidade e regimes de linguagem. O conceito de agenciamento torna-se então um operador de primeira ordem, uma vez que remete ao modo concreto de produção de realidade, em qualquer dimensão, material ou imaterial, e não à uma verdade que representaria o real. O agenciamento é antes de tudo um ACONTECIMENTO multidimensional. Todo agenciamento incide

sobre uma dupla dimensão: 1) uma dimensão relativa às modificações corporais (ações e paixões) ou estados de coisas que efetuam um acontecimento, remetendo-os a uma formação de potências; 2) uma outra dimensão relativa às transformações incorporais ou enunciados de linguagem (atos) que efetuam o acontecimento na sua face incorporal e que remetem a um regime coletivo de enunciação. Estas duas dimensões são necessariamente atravessadas por um duplo processo e um duplo movimento: processo de descodificação das formas (forma própria do regime corpóreo e da forma própria do regime de signos ou da linguagem); e um movimento de desterritorialização ou de dessubstancialização das substâncias (das substâncias corporais ou coisas - estados do movimento - e das substâncias incorporais ou palavras - estados do sentido ou do tempo). A forma dos corpos e seus estados remete a lição das coisas. A forma do discurso remete à lição das palavras. As duas dimensões estão em pressuposição recíprocas e se atravessam e se conjugam, apesar de suas formas próprias heterogêneas manterem-se irredutíveis e autônomas. Esse atravessamento é provocado pela variação dos movimentos de desterritorialização e processos de descodificação do desejo, e faz mudar ora o estado das coisas e a condição de sensibilidade, ora o sentido de mundo e a condição de dizibilidade. Nessa medida, compreendemos que uma linha de fuga (ou de acontecimento) absoluta e virtual atravessa toda experiência real, pondo em variação permanente suas condições, e portando condicionando todo o processo de apreenção e produção do real. Assim também coloca-se em variação as condições de ensino e aprendizado: essa linha de variação virtual acaba por constituir, conforme o agenciamento que a efetua, os limites do que pode ser sentido, movido, dito ou pensado. Se um agenciamento liga, conecta, conjuga, compõe, combina, produz, fabrica, reveza, distribui e consome corpos e mentes, movimentos e pensamentos, então podemos colocar assim o problema da educação: a qual tipo de agenciamento acoplamos a vida que queremos ensinar e criar e a nossa que pretende ensinar? Se as ligamos a um agenciamento negativo de poder, nossa educação será uma EDUCAÇÃO PARA A OBEDIÊNCIA. Se as ligamos a um agenciamento afirmativo de potência, a educação que teremos será uma EDUCAÇÃO PARA A POTÊNCIA. Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a. v. 1. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995b. v. 2. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. v. 3. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997a. v. 4. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997b. v. 5. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. _________. História da sexualidade 1I: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. _________. História da sexualidade 1II: o cuidado de si. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. _________. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 14.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. _________. A arqueologia do saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras: 1998. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

APRENDER Luiz Fuganti Aprender não é operação simples. É um processo complexo geralmente submetido a padrões e, por isso, frequentemente experimentado como um acontecimento frustrante e até mortal. Todo nosso procedimento educacional traz uma espécie de desgosto sutilmente dosado em cada etapa do processo de aprendizado, uma vez que o ensino dominante em nossas formações sociais não visa a um aprendizado potencializador das forças ativas imanentes aos modos criativos de vida. Ao contrário, é parte integrante dos mecanismos que operam a serviço de poderes de captura da vida, impondo um aprendizado a partir da inoculação de uma insuficiência de ser. É preciso desqualificar a experiência direta para depois requalificá-la pela aquisição de um sistema de mediação. É preciso desaprender o desejo intensivo imediato para poder inscrever nele uma intencionalidade que possa legitimá-lo – soldá-lo à norma para formar o sujeito moralmente responsável. É preciso desqualificar os movimentos intensos próprios do corpo, produtores de lugares inéditos, para quantificar movimentos segmentados tornados extensos e úteis, distribui-los num espaço homogêneo e esquadrinhado – organizar o corpo para torná-lo eficientemente útil e atribuir-lhe seu devido lugar! É preciso desqualificar a potência singular dos tempos heterogêneos que emergem na experiência do pensamento, como carente de sujeito neutro e verdade universal, para requalificá-la com representações produzidas por uma cadeia de signos em um tempo homogêneo, submetendo o pensamento à ordem da linguagem com suas generalidades e associações – submeter o pensamento à consciência para formar o sujeito do conhecimento competente que opera com universais. Para encontrar um sentido ativo e potencializador na experiência do aprendizado, é preciso problematizar a própria noção de experimentação. Experimentar não é uma simples troca que produziria um enriquecimento instrutivo e agregador de valor, incorporando procedimentos e tempos como provas para uma unidade subjetiva em formação. Esse seria seu sentido aparentemente positivo, mas ordinário. Experimentar pode ter – e tem – um sentido mais nobre. Pôr-se em variação afirmativamente e de modo extraordinário a partir de um encontro intenso de desejo, é produzir diferença real no modo de existir e memória de futuro como condição de continuidade e de relançamento do desejo e do pensamento assim transmutados. O processo do aprendizado depende: 1) do modo como se extrai o ser do devir que experimentamos e também do modo como se conserva no tempo e se disponibiliza esse algo naquilo que passa, esse passado na condição de ser que é, como função de futuro; e 2) do modo como o ser do movimento que produz corpos é extraído e acumulado na forma de dispositivos cerebrais, os quais disponibilizam o movimento extraído, acumulado e contraído no hábito, que se forma no devir do corpo presente. Isso implica o modo como, nesse processo, se produz e investe o registro, a memória, o hábito (modos de produção de cérebro como síntese de movimento e modos de produção de mente como síntese de tempo) e seus dispositivos de repetição. Toda experimentação, nesse sentido, implica um meio de transpor ou lançar-se fora de si, encontrar o lado de fora da fronteira do corpo e da mente como porvir inédito do movimento e do tempo, simultaneamente ao que se modifica ou devém dentro de si, estabelecendo um ritmo capaz de apreender o que pode atravessar a fronteira e amplificar o ser, segundo o que se passa na própria fronteira do devir. Encontrar não

alguém ou coisa ou referência, mas algo no que acontece, enquanto acontece, como combustível e intensificador da diferença que quer diferenciar-se ou tomar distância de si mesma. No relacional de cada relação está o meio imanente e a condição imediata da experiência real. E não haveria qualquer relação sem esse meio ou ser comum e necessário que põe (topológica e temporalmente) em contato imediato e direto realidades diferenciais. Aqui, experimentar confunde-se com ser modificado ao máximo, conforme a capacidade de abertura ou de dilatação de que se pode dispor para ser afetado, ao mesmo tempo que modificar e diferenciar ao máximo conforme a capacidade de tensionar ou concentrar, para se compor algo do acontecimento com a diferença que nos constitui, criando realidade ou eternidade (existência necessária). A primeira condição do aprendizado criativo é, portanto, a constituição de um entre, um meio comum afirmativo, extremo do acontecimento, como princípio motor de diferenciação e ampliação da diferença que nos constitui. A alegria do diverso como catálise de modos ativos de experimentação, cujo gosto primeiro é o da eternidade que se produz no acontecimento de cada encontro. Nesse sentido, é preciso diferenciar dimensões, zonas autônomas e limiares de experiência na existência humana, capazes de conduzir diretamente ao aprendizado do encontro ou do reencontro com a fonte virtual imediata de produção de realidade, e evocar como primeiro o aprendizado da conquista ou tomada de parte dessa produção. A experiência do pensamento e o aprendizado dos modos imediatos de produção de diferenças e de sínteses do tempo como singularidades: aprender o que pode o pensamento. A experiência do corpo e o aprendizado dos modos imediatos de produção de diferenças e de sínteses de movimento na matéria: aprender o que pode o corpo. A experiência da escolha ou os modos imediatos de produzir diferenças e sínteses de maneiras de ser: aprender o que pode a ética. A experiência da continuidade do querer e o aprendizado dos modos imediatos de produzir diferenças e sínteses como memória de futuro: o que podem os modos de registro como concentração e re-disponibilização de tempo e movimento, como produção de consistência ou linha livre de continuidade auto-sustentável, incluindo aí a continuidade da capacidade sempre crescente de aprender. Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a. v. 1. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995b. v. 2. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. v. 3. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997a. v. 4. ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997b. v. 5. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. _________. História da sexualidade 1I: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. _________. História da sexualidade 1II: o cuidado de si. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. _________. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 14.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. _________. A arqueologia do saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras: 1998. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

BANDO Cristiano Bedin da Costa Luciano Bedin da Costa Escrevemos com aquilo que nos aproxima. Com pedaços dispersos que arrancamos da infância, dos conceitos, das lembranças, das teorias, dos parágrafos. Escrevemos com papai, mamãe & eu. Escrevemos com os édipos gordos e, sobretudo, com os subnutridos. Escrevemos com os triângulos para colocá-los no círculo risível do eterno retorno. Escrevemos com sangue. De um e de tantos outros, pois somos muitos. Escrevemos catando o material por todos os cantos. Musicais, filosóficos, literários, educacionais, cotidianos, familiares. Escrevemos fazendo-nos nada para podermos ser tudo. Escrevemos com os próprios pianos, mesmo que velhos e desafinados, batendo com força, sem receio algum. Escrevemos pelo fio da nossa cançãozinha, por entre duas cordas e um punhado de refrões. Tralalá. Escrevemos para encontrar uma simples saída, à direita, à esquerda, seja lá onde for. Escrevemos nem uma coisa nem outra, para que assim, quem sabe, possamos dizer todas. Escrevemos para cravar na linguagem um buraco após o outro, até que comece a atravessar aquilo que está à espreita, seja isso alguma coisa ou nada. Escrevemos para pecar contra a própria língua. Por nos saber incapazes de escrever. E escrevendo. Escrevemos admitindo a obrigatoriedade da falha. Escrevemos tomando o partido das coisas, garantindo-lhes o direito à palavra, mas deixando-as livres o suficiente para que possam merecer seu próprio silêncio. Escrevemos para defender, de alguma maneira, uma atitude de ironia para com as palavras. E fazendo isso através das palavras. Escrevemos contra a apoteose da palavra, insistindo na necessidade do silêncio. Escrevemos para depor a sintaxe. Escrevemos com sensações, para tornar sensíveis as forças que nos atravessam, que nos afectam e nos fazem devir, não nos distinguindo de uma minoria qualquer. Escrevemos indo ao encontro de uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, sob toda e qualquer relação assinalável. Escrevemos para soterrar o homem e suas percepções e opiniões. Escrevemos dando razão a Céline em sua Viagem ao fim da noite, não cansando de indicar que tudo o que se mostra realmente significativo e interessante nessa história toda não acontece em outro lugar que não seja na sombra. Escrevemos guardando o sorriso sincero para quando o sol se cansa. Escrevemos por uma zona de composição e contágio entre heterogêneos, onde a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades, demarcando uma involução criadora, um devir involutivo capaz de arrastar língua e animalidades que a povoam. Escrevemos não para significar, mas sim para agrimensurar e cartografar regiões ainda por vir. Escrevemos para arrastar algumas coisinhas. Para borrar alguns contornos. Escrevemos de três em pipa. Escrevemos sem chance de ajuda. Necessariamente assim. Escrevemos pelo lugar no coração que nunca será preenchido, e mesmo nos melhores momentos e nos melhores tempos, nós saberemos disso mais que nunca. Saberemos e iremos esperar e esperar nesse lugar. Escrevemos a espera. Escrevemos com fragmentos de poemas roubados à mão armada de uma loucura também roubada e que tomamos de alguém, amém. Escrevemos a partir das coisas, sem distinção, sem escolhas e sem recusas, sem defesas, com os olhos desprovidos de pálpebras. Escrevemos para limpar o campo. Para acabar com a sujeira impregnada na página. Escrevemos para passar à margem do sistema fonológico já instituído e de suas relações arbitrárias subseqüentes. Escrevemos para tentar uma escrita feita de outra matéria, de outras substâncias que não aquelas já previsíveis e tacitamente aceitas. Escrevemos para saturar cada átomo, incluindo o absurdo. Escrevemos líquido ou gasoso, abrindo as palavras, rachando as coisas.

Escrevemos para fazer passar um vento qualquer, um simples sopro de vida. Escrevemos de porte das anteninhas de Henry Miller, tendo o que escreve quase a jorrar do corpo, captando as correntes que há na atmosfera, no cosmo ou em algo que o valha. Escrevemos com o pé na estrada. Partindo, nos evadindo, atravessando o horizonte até poder encontrar uma outra vida. Escrevemos pela fuga que se insinua em uma linha que quase única se segue e persiste, sem recapitular coisa alguma, sem nenhuma preocupação com marcas e origens. Escrevemos por que, no final das contas, nos ensinaram que era preciso libertar a vida lá onde ela estava aprisionada. Escrevemos por banditismo, por uma questão de classe. Escrevemos por tantos planos traçados e por tantas promessas mantidas para não comprometer o enquanto. Escrevemos por uma multiplicidade de sardas sobre um rosto. Por aquele brinco sobre a cômoda. Escrevemos por não poder fazer de outra forma. Por não ter o afã de distribuir o mundo inteiro através de códigos que não funcionam, nunca funcionaram e nunca funcionarão. Escrevemos ao modo de Bandini em meio aos Sonhos de Bunker Hill, começando por algum lugar. Escrevemos os dias profundos, os dias tristes. Escrevemos partindo do ponto simplesmente por ter por onde partir. E cravamos pontos por toda parte, como os impressionistas. Escrevemos quando nada mais nos impressiona, e ponto. Escrevemos com o azul de Yves Klein e com os objetos parciais de Melanie. Escrevemos porque somos kleinianos (sem saber ao certo o que seja isso). Escrevemos nos divertindo fazendo pequenas coisinhas. Escrevemos para forçar as frases, para tirá-las ligeiramente de sua significação habitual, dos esquadros, para deslocá-las forçando assim a deslocação do sentido. Escrevemos para conseguir um pouco mais, para traçar novas conexões, para ampliar ressonâncias em outros campos, para aumentar a orquestra, o salão, as boas e más companhias, o ritmo. Escrevemos para forçar a linguagem, para levá-la até o limite que a separe da animalidade, do grito ou do silêncio, da música ou do piado doloroso. Não escrevemos apenas para alguém, mas, também e fundamentalmente, por alguém ou alguma coisa. Se escrevemos sobre alguém é entre alguém e com o eco do alguém de outros, sendo-se (também) um alguém. Escrevemos para lidar com o vocabulário dissecado, fazendo-o vibrar cada vez mais em intensidade. Escrevemos por uma música e por uma pintura próprias da escrita. Por efeitos de sons, sonoridades e cores que se elevam acima das palavras. É através das palavras, entre as palavras, que se vê e que se ouve. Escrevemos por uma música de palavras, por uma pintura com palavras, que fazem com que as próprias palavras silenciem, incapazes de atingir tal limite de sensação. Escrevemos para arrastar a linguagem até o limite que a separa do silêncio, invadindo-o. Escrevemos para que as palavras silenciem, emudecendo seu próprio significado, confundindo a sintaxe. Escrevemos para avançar para o começo, para chegar até o criançamento das palavras, onde elas ainda urinam na perna e não tenham sido modeladas pelas mãos. Escrevemos para fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, de maneira simples, com sobriedade, no nível das dimensões que dispomos, sempre n-1 (Deleuze e Guattari, 1995, p.14). Escrevemos a n-1, arrancando a unidade da multiplicidade a ser constituída, da vida a ser liberada. Escrevemos colocando tudo numa sacolinha de plástico, na condição de que também sejamos colocados dentro. Escrevemos porque lemos, pelo prazer de ler e pelo desejo de escrever. Para fazer justiça àqueles que conhecemos e amamos, para testemunhar por eles, para imortalizá-los. Escrevemos lendo e lemos escrevendo. Escrilemos e seguimos escrilendo para borrar todas as tristes biografias. Escrilemos para forjar um futuro para tudo que habita o meridiano das mediocridades. Escrilemos para abrir um mundo (e uma nova decisão). Escrilemos com os biografemas que nos pungem. Escrevemos não sobre Nietzsche, Deleuze, Guattari, Barthes ou qualquer outro. Escrevemos com Nietzsche, Deleuze, Guattari, Barthes e os

outros. Mal vistos mal ditos. Escrevemos para descentralizar o pensamento. Escrevemos e proliferamos com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes, colocando em jogo termos inteiramente heterogêneos. Escrevemos com o bando (Deleuze e Guattari, 1997, p.20) com as costas expostas à natureza selvagem. Referências BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. BUKOWSKI, Charles. Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém. Tradução de Fernando Koproski. Rio de janeiro: Editora 7 letras, 2005. CÉLINE, Louis Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das letras, 1994. COSTA, Cristiano Bedin da. Matérias de Escrita. Dissertação de Mestrado defendida em 31/08/2007, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. COSTA, Luciano Bedin da. Ritornelos, Takes e Tralalás. Dissertação de Mestrado defendida em 24/11/2006, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka, Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. ____________. Mil Platôs v.1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. ____________. Mil Platôs v.4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. FANTE, John. Sonhos de Bunker Hill. Tradução de Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2003. KLEIN, Melanie. A Psicanálise de Crianças. Rio de janeiro: Editora Imago, 1997.

BRINCAR Selda Engelmann Brincar I O país dos brinquedos. Este país não se parecia com nenhum outro país do mundo. A sua população era inteiramente composta de garotos. Os mais velhos tinham quatorze anos, os mais jovens pouco mais de oito. Bando de moleques por toda a parte: uns no jogo de bolinha de gude, outros atirando pedrinhas, sobre velocípedes, em cavalinhos de pau; outros ainda brincando de cabra-cega; de pique, e havia gente vestida de palhaço que engolia fogo; riam urravam, chamavam, batiam palmas, assoviavam, imitavam o canto da galinha quando põe ovo; um tal pandemônio, uma tal algazarra, tamanha baderna endiabrada que era preciso pôr algodão nos ouvidos para não ficar surdo. Ali cada semana tinha 6 sextas-feiras e um domingo. Brincar II O que seria brincar? No dicionário de língua portuguesa Aurélio encontra-se a seguinte definição: divertir-se infantilmente; entreter-se em jogos de criança. Caberia, então, relacionar a questão da diversão com a questão da criança, ou jogos de criança. No mesmo dicionário Aurélio, a palavra criança se define como ser humano de pouca idade, menino ou menina. Já divertir-se seria entreter-se, distrair-se e até mesmo desviar-se de algo considerado sério, sério como os jogos de adultos. Jogos de adultos, mas, então, o que seria um jogo de criança? Como saber na escola o que é ato de brincar? Brincar III Uma escola em Porto Alegre. Hora do recreio. A professora grita brincar. Brincar para as meninas é diferente de brincar para os meninos. As meninas abrem seus estojos de maquiagem, umas maquiam as outras. Já os meninos brincam trocando figurinhas de álbuns, figuras que são desenhos e marcas dos super-heróis que idealizam o modo de ser menino através da TV. O brincar passa por buscar um ideal-menina e um ideal-menino de ser. Ideal de Idéia. Idéia de chegar perto da perfeição, do modelo. Não mais Idéia de Deus, nem mais Idéia de Homem. Idéia de Mídia. Tudo isto refletido no mundo midiático da TV. Nossas crianças já nascem de cabelos brancos. Brincar IV Uma escola em Israel. Uma escola com crianças árabes e judias em Israel. As professoras gritam brincar em duas línguas diferentes: árabe e hebraico. Os meninos árabes e as meninas árabes compreendem a língua hebraica. Os meninos judeus e meninas judias não compreendem a língua árabe. Mas na brincadeira, não é a língua que os afasta. Meninos árabes não brincam com meninas. Meninos judeus brincam com meninas. Uma cortinha invisível impede o brincar de extrapolar fronteiras de gênero, além dos ódios e ressentimentos entre os povos. Micropolíticas do poder no brincar. Transversalidades. Eis que um desenho é solicitado. Desenhar a paz? O mesmo desenho é traçado em mãos diferentes. Duas bandeiras se dão as mãos. Duas bandeiras formam um tapete voador para as crianças flanarem no ar e ali, a-territorializadas e sem lugar,

ensinarem todas juntas os homens a brincar. Brincar V Como crianças, somos humanos? Penso, logo existo. Criança pensa? Impulsos perenes, força de mudança, seres desejantes, a criança não pertence à Razão. Brincar é fazer da Razão uma razão inconstante. Brincar é des-canalizar os devires em prol da criação, é restituir a potência de criação aquele que foi formatado, reprimido pela sociedade, pela escola. Aquele que brinca desloca a repressão social, os padrões de conduta engessados, a inadmissibilidade social de ser espontâneo. O brincar invoca o direito a um pensamento irracional, ilimitado, desrrazoado. Brincar é liberar o desejo. Liberar o desejo é abrir-se para o devir. Brincar VI Brincar. O brincar é como um ovo. Ovo de uma galinha. Sem a galinha não há ovo, mas sem ovo há galinha? O brincar vem da criança. Sem criança não há brincar, mas sem brincar há criança? O ovo não tem um si-mesmo, um si-mesmo do ovo não existe. O brincar tampouco tem, ele precisa viver em alguém. O ovo é a alma da galinha. O brincar é infinitamente a criança. A criança não é galinha nem é ovo, mas gosta de ser olhada de ave. Ave que põe ovos no mundo. Criança que põe mundos no mundo. O brincar abre ovos e mundos. Referências Brincar I AGAMBEN, Giorgio. Infância e História – Destruição da Experiência e Origem da História. Tradução: Henrique Burigo. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2005. Brincar II Dicionário Aurélio XXI. Editora Nova Fronteira. Brincar IV Cena relatada por Débora Engelman em sua recente estada em Israel, 2008, em curso de aperfeiçoamento em Educação no Instituto Levinski – Tel Aviv.

CORPO SEM ÓRGÃOS Pablo Esteban Rodríguez Já faz algum tempo que as ciências e as técnicas contemporâneas vêm produzindo um corpo sem órgãos. Tudo começou com a bem sucedida transferência do princípio de informação (doação incessante de forma que se realiza numa matéria) para o mundo orgânico em geral, quando foi suspensa a referência exclusiva ao modo homem. Em uma aula de 1981, Deleuze (2008) surpreendia-se com certos saberes biológicos (tal como os da genética e da imunologia), os quais outorgavam à matéria viva um tal poder de percepção e de discernimento, que bem poderiam figurar como um dos atributos infinitos da substância para Spinoza: pensamento, extensão, informação (a qual, por outro lado, pode ser entendida como “imaterial”, isto é, não extensa). De fato, as ciências cognitivas mais avançadas lançam-se “em busca de Spinoza”, como indica o título do livro do neurobiólogo Damasio (2006): En busca de Spinoza. Neurobiología de las emociones y los sentimientos. Hoje, pode-se ler, em qualquer obra séria de divulgação, que o sistema imunológico “reconhece” um agente externo, a partir de uma imagem própria do corpo (imagem que não depende, em nada, do estágio lacaniano do espelho, demasiadamente humano); bem como se pode ler que uma proteína “interpreta” o que foi “escrito” por um gene, no sentido de reunir-se com uma ou outra proteína, de maneira a gerar uma célula do fígado; ou, então, pode-se ler que certos neurônios realizam, ativamente, tarefas vinculadas à repressão no aparato psíquico. Os linfócitos, neurônios, genes e proteínas transcendem os órgãos; superam, inclusive, o organismo; reduzem a consciência a um epifenômeno da complexidade orgânica; e projetam formas de subjetivação para além do homem. Já faz algum tempo que as ciências e as técnicas contemporâneas vêm pondo em prática um pensamento da diferença. O próprio conceito de informação designa “uma diferença que faz uma diferença”, segundo Bateson (1998). O sistema é ativado pela produção de diferença, e isso encontra-se compreendido tanto pela lingüística de Saussure quanto pela teoria geral dos sistemas. O processo de individuação, que assume a singularidade como potência (tal como descrito por Simondon, 2005), baseia-se na idéia de ressonância, própria às entidades vivas ou artificiais de informação. A repetição é o contrário da informação; “um clichê não contém nenhuma informação se comparado a um poema” (Wiener, 1988, p. 21). Precisamente, a percepção e o discernimento dependem da proliferação de diferenças, em todos os níveis: material, conceitual, energético, social, vital. A informação é uma medida do acaso, um índice de constituição do acontecimento, um surgimento daquilo que não se pode repetir nem, tampouco, ser atribuído a uma identidade. Por tudo isso, faz algum tempo que as ciências e as técnicas contemporâneas já não são mais o que eram. Logo, é preciso interrogá-las. Mas deve-se distinguir, em primeiro lugar, as formas altas e as formas baixas que essas transformações apresentam. A forma alta do corpo sem órgãos suspende a eficácia simbólica do dualismo cristão e cartesiano, já que, hoje, o corpo possuiria os atributos da alma, enquanto a alma não pode mais estar separada ontologicamente do corpo. Tornam-se impotentes as distinções entre ciências naturais e ciências humanas, entre biologia e psicologia, entre física e sociologia. Corpo e alma convertem-se em formas de sensação, potências de afecção, zonas de variação contínua, sem qualquer governo de identidade entre uma e outra. Ao contrário, a forma baixa desse corpo sem órgãos reencontra, na matéria, as faculdades da alma, a psique ou o espírito, quando é dito que um neurônio “trabalha” para o Inconsciente; que as emoções estão colocadas no córtex pré-frontal; ou que o

medo é “um programa inteligente”, que nos leva a fugir do perigo, mesmo quando ainda não sabemos conscientemente que alguma coisa constitui uma ameaça. Em lugar de pensar no elemento novo, a forma baixa recorre à clássica postura de pensamento, que busca a manutenção daquilo que já existe no sistema; uma postura que, aliás, previamente, atribuíra a esse elemento novo um lugar determinado, para que não corresse nenhum risco. A forma alta da diferença não reconhece qualquer separação entre idéia e coisa, percepção e inteligência, orgânico e inorgânico, humano, artificial e animal, porque o mundo da informação opera, justamente, no intercâmbio entre todos eles. Entretanto, é a forma baixa da diferença que costuma estar na ordem do dia, quando submetida ao regime do novo; mais, especificamente, quando submetida aos modos de excitabilidade instalados pelo marketing. “Diferenciar-se”, criar diferenciação, é introduzir variantes dentro da identidade. De maneira definitiva, já faz tempo que o homem moderno deixou de reconhecer-se nesse mundo de diferenças e de corpos sem órgãos. Trata-se, agora, de responder à pergunta “como falar de nós próprios”? sem, no entanto, pressupor um “nós próprios”. Em vários sentidos, o homem moderno é a produção material, realizada nas instituições educacionais, de um ente que ordena o seu corpo em função de sua (má) consciência, de cima a baixo, do cérebro ao ventre, e que, rapidamente, encontra, em sua própria consciência, as marcas corporais de constituição: a marca mnêmica, da qual falava Freud, e que hoje é convertida, também, em marca sináptica. Esse ordenamento é a hierarquização particular de um campo de forças ativas e reativas, que condiciona a imagem moderna do pensamento: o conceito é tudo, embora a sua consistência seja inversamente proporcional ao tipo de vida que o produz. A tonalidade afetiva de uma inteligência nunca significa demasiadamente, em face do seu fundamento lógico ou prático. Na modernidade, o ato de valorar é quase impossível. Disso tudo já fomos informados. E também, por isso, é que falamos, freqüentemente, em liberação dos corpos, bifurcações esquizo, devires-animais e imperceptíveis, reconhecimento crescente das diferenças (quando, em realidade, nenhuma diferença pode querer “ser reconhecida”). É até mesmo considerado de bom tom criticar a condição moderna. Entretanto, não é assim tão seguro que baste uma inversão dos termos para invalidar a relação que os vincula, nem para inventar uma outra arte da existência. Conviria ser prudente na hora de declarar o que pode um corpo desprovido de órgãos. Referências BATESON, Gregory. “Forma, substancia, diferencia”. En Pasos para una ecología de la mente. Una aproximación revolucionaria a la autocomprensión del hombre. Buenos Aires: Lohlé-Lumen, 1998. DAMASIO, Antonio. En busca de Spinoza. Neurobiología de las emociones y los sentimientos. Barcelona: Crítica, 2006. DELEUZE, Gilles. “Cours du 06/01/1981”. In www.univ-paris8.fr/deleuze/ article.php3?id_article=9. Última consulta: setembro de 2008. FREUD, Sigmund. “Más allá del principio del placer”. In Obras completas, tomo XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1989. SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et information. Grenoble: Millon, 2005. SPINOZA, Baruch. Ética demostrada según el orden geométrico. Madrid: Hyspamérica, 1980. WIENER, Norbert. Cibernética y sociedad. Buenos Aires: Sudamericana, 1988.

CURRÍCULO Sandra Mara Corazza scurrere corre escorre escorrega atravessa bordeja resvala espalha comemora glosa redunda pula turva perscruta cruza fulgura desliza enrodilha gira amplia suspira alegoriza desbasta desvenda descobre encruzilhadas atalhos ardis emboscadas cursus pomba-gira senda a cours sem interrupção rola embola rebola devora ecoa amordaça gera rasteja verdeja viceja repica resseca sente geme treme teme atola-se em trampas curro excita precipita vibra grita pia chia afia desfia desafina silencia vidra inspira cintila crepita irradia propaga acelera exalta levanta cava curra escura rua reluz lua de fel jurema tem pena patuá arruda guiné currere scu esquivo esquisto esquizo enigma criptológico só que a linguagem é mais simples vida é curso percurso transcurso transcurso percurso curso da vida linha à deriva espaço-tempo aberto decorrido vincado onde a vida avança destranca trança ao longo de outras

estrada trajeto trajetória travessia cancha corrida carreira ladeira viagem passagem mobilidade movimento seguimento deslocamento circulação de matérias na errância de galerias no hemisfério de aranhas direção-torta redemoinho-reto corrupio-neutro cucurri álveo voga leito água lisa futurista corrente fluvial arroio regato ribeirão rio vórtice da catarata praia deserta mar de palavras trânsfugas à mercê das ondas texto-fonte de imaginação manancial de escritura flui dilui esvai vaza arrebenta encharca funciona força simula leitura funda muda descuida desfigura pára susta assusta transmuta fantasia na moringa colorida na milonga arteira na mandinga frita de sol currendi gorjeia adeja forceja cerca cerra encarcera repesca quebra descasca desproposita desenlaça desmexe desfaz desdiz dissipa dissemina disfarça desaparece desatravessa veredas mortas o diabo safa gosta separa explode desestrutura apunhala esquarteja objetividade fura a cisterna subjetiva arranca toco raspa couro arreia a bandeira curre então curritote quimérico museu de inconstância informe informal mutante

piadístico satírico labiríntico alquímico estranho estranja estrambótico desmesurado radical anômalo pura faísca antinormativo antimistificador antinatural menos mais aquém além neo arcaico retrô pré a crítico auto pós contra infra inter trans extra ultra meta sobre à la recherche cursurus multivaletudinário idiolético inefável ficcional campo de possíveis terra de ninguém espelho roto torre de mais-valia imprevisível experimento moleque zombeteiro ginete espantoso lúdico amante do vago moinho insensato trama de cinzas relógio de areia todo-mãos todo-olhos todo-veias currendo senhor das cavernas avesso às profundezas anverso sem reverso deus dos inter-rios avatar vodu dédalo intransitivo telepata do passado criador de raios alaúde que poetiza bardo rapsodo cantor de bandos pitonisa que erotiza clepsidra sucessiva rainha das sete saias iansã dos ventos xangô do machado maya de enganos netuno dos peixes serpente infame ventre inaugurante da cevada oleiro da superfície brisa branca de jasmim ensina a argila a mentir cucurrero

emaranha embaça esgota entrevê sombra sem corpo luz ultra-violeta obra infra-vermelha palavra-coisa palavra-total megera faz-de-conta dono sem casa virgílio equívoco guia nebuloso pirâmide de pó boca do abismo unicórnio ferido porão impreciso puma de nuvens navio cheio de cheias chama vital pinta doura abre aurora aruanda oxalá vivifica cursum-shiva la vitae? c’est curriculum... curso-de-vida vida-em-seu-curso passo fugaz ínfima insígnia aura espessa alta tensão gasto sutil secular cristal epifania elementar crepúsculo estival mortal peleja extremo eco violento risco pele de onagro biografema derradeiro in-útil ir-real in-certo in-definível in-descritível in-sondável in-decifrável ine-narrável in-calculável currículo-vida: una disperata vitalità Referências PASOLINI, Pier Paolo. “Una disperata vitalità” in Poesia in forma di rosa 1961-1964. Roma: Garzanti, 2001, p.148-150.

DESIGUALDADE Ester Maria Dreher Heuser Gabriel Sausen Feil

Sem que seja problematizada, a desigualdade é tomada, quase espontaneamente, como algo negativo (pensada sempre enquanto disparidade social e econômica, enquanto desigualdade de oportunidades, de produtividade e renda, de qualidade de vida, de distribuição de riquezas e bens); considerada no sentido de algo a ser superado, em função do seu oposto, a igualdade. Este texto não se ocupa em fazer uma escolha entre a igualdade e a desigualdade, mesmo porque não acredita nas simples oposições (acredita, isso sim, que as oposições até podem se tornar interessantes, desde que sejam tomadas como dois termos que não se relacionam sem afirmar a distância que há entre eles). Diferença pura A desigualdade, o Desigual em si (Deleuze, 2006), é constituinte da diferença pura: tem o primado no plano intensivo (plano incomensurável, provido exclusivamente de singularidades). Trata-se da própria condição do mundo, de todo o fenômeno, de tudo aquilo que aparece; é, pois, a própria razão do sensível; é aquilo pelo qual o dado é dado, princípio, condição transcendental de tudo o que há. Tudo é desigual por princípio. No entanto, em um segundo movimento, no plano extensivo (criado pela própria diferença de intensidade) dos indivíduos já constituídos, a desigualdade primeira é negada, em função da construção do igual, da identidade. Tal construção é legítima, porém, a sua legitimidade não é suficiente para que o igual deixe de ser constituído por elementos necessariamente desiguais. Um livro para todos e para ninguém O que estaria Nietzsche (2003) querendo dizer com o famoso subtítulo de Assim falou Zaratustra? “Um livro para todos e para ninguém”. Hipóteses: 1ª) Embora todos possam ler esse livro, a verdade é que poucos, de fato, o lerão. 2ª) “Para todos”, no sentido de não haver preconceito e distinção; “para ninguém”, no sentido de não ser direcionado especificamente para alguns. 3ª) “Para todos”, no sentido de todos terem a capacidade em lê-lo; “para ninguém” no sentido de o “todos” anterior ser justamente esse “ninguém”. 4ª) A rigor, o “todos” e o “ninguém” são iguais, mas justamente por serem indiferenciados. Moral: a mesma indiferença que há entre o “todos” e o “ninguém” é a mesma que há entre o “igual” e o “desigual”: o igual é o desigual, porém, especificamente em sua forma, que prefere esquecer a natureza indiferenciada que lhe é própria. Amizade Se a relação de amizade não for reduzida ao amigo socrático (aquele que vai acabando com os seus rivais), ela se torna um grande exemplo de relação entre desiguais. A amizade, segundo Foucault (1994), é a relação da provocação permanente; uma relação de rivalidade, não de cumplicidade. Os amigos funcionam como rivais justamente porque se provocam, se instigam e se põem a criar. Trata-se da relação agonística que se opõe à relação sonhada pela democracia e pela Filosofia da

Comunicação, precisamente porque, em vez de se dar entre iguais, se dá entre desiguais, justificando a rivalidade. Em suma, a desigualdade, a dissimetria entre as partes envolvidas, não é uma característica possível das relações livres e criadoras, mas a condição para que elas aconteçam. Dandismo Em Sobre a modernidade, Baudelaire (1996) mostra que o dandismo não se refere apenas aos indivíduos que se dedicam excessivamente à aparência, a um refinamento da linguagem e a um cultivo do ócio. Diz ele: o dandismo não é “um amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física. Para o perfeito dândi essas coisas são apenas um símbolo da superioridade aristocrática de sua mente” (ib., p. 52). O dandismo é a ascensão de uma mente contra os princípios igualitários. Um dândi não é apenas alguém que quer ser superior, mas que se torna superior por superar a ingenuidade da igualdade. É nesse sentido que o dândi rejeita os códigos de conduta burgueses. Enquanto a burguesia enfatiza a igualdade, o dandismo enfatiza a superioridade do desigual. É isso que justifica a importância que o dândi dá ao vestuário, à linguagem apurada e ao ócio: ele quer, a partir disso, realçar a sua diferença e valorizar a distância que há entre ele e o vulgar. O interessante é que o dandismo, assim como a noção de igualdade, e qualquer outra noção, é uma construção humana; porém, ao invés de negar o primado da desigualdade, recupera-o. É por isso que o dandismo é uma maneira de trazer a desigualdade, que é do plano intensivo, para o plano extensivo: o dandismo transforma em estilo de vida algo que já era, desde sempre, da ordem primeira. Ou: como algo que acontece naturalmente (uma vez que não temos a opção de nos livrar da desigualdade), o dandismo transforma-se em estética da existência. Trata-se, pois, da elevação do tipo homem, do qual nasce o misterioso pathos da distância, e da nobreza que deseja aumentar a diferença/desigualdade no interior da própria alma; pathos que quer elaborar estados mais elevados, mais raros, mais remotos e abrangentes capazes de uma contínua auto-superação do próprio homem: variação contínua de si. Aristocracia [Nota sobre o tipo nobre: Os nobres (superiores em pensamento) tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para eles; expressaram o seu poder ao criar uma linguagem que lhes é própria, ao marcar cada coisa e acontecimento com um som, como que se apropriando assim das coisas. O nobre torna raro o que é vulgo, cria outros sentidos a palavras comuns e as faz nobres. Em sua boca toda palavra torna-se preciosa]. Os aristocratas (os aristói, quando ainda eram guerreiros nômades e não homens sedentários favorecidos economicamente) constituíam sociedades de iguais. No entanto, essa igualdade era positiva porque não se submetia a uma questão de igualdade na lei: tratava-se de igualdade de forças e de coragem, igualdade de valores de intensidade, de alegria, de potência, no sentido de não pressupor desigualdades entre os guerreiros envolvidos. Era o guerreiro que, num segundo movimento, valorava as suas ações. Plano intensivo => a desigualdade é primeira (diferença pura); a igualdade uma noção humana, segunda. Plano extensivo => a igualdade é primeira (nada pode impor uma superioridade a priori); a desigualdade uma conseqüência das ações dos guerreiros (conseqüência das diferentes formas de valorar as suas ações). Igualdade afirmada

Porém, na Escola, na relação pedagógica, parte-se da hipótese da desigualdade, e se estabelece como meta alcançar a igualdade, pois, toda experiência pedagógica normal está estruturada por razões da desigualdade: desigualdades intelectuais que devem ser reduzidas na medida em que o mestre dá ao discípulo o que lhe falta; transmite-lhe um saber que ele não tem; guia a inteligência inferior com a sua superioridade de inteligência. Essa hipótese, colocada em funcionamento, contraria a lógica dos aristóis e, portanto, a perspectiva de educação do tipo nobre: a igualdade, de ponto de chegada, passa a se constituir em força primordial. O que há no plano educacional, então, é uma vontade diante da outra, bem como uma inteligência frente à outra, numa relação de irredutível igualdade de forças, de potência, de intensidade e de alegria. E a desigualdade (entendida como variação e a singularidade própria de cada vontade) manifesta-se nas criações do pensamento, nas invenções de modos de existência... Referências BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. (Org. Teixeira Coelho.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado.) Rio de Janeiro: Graal, 2006. FOUCAULT, Michel. “De l’amitié comme mode de vie”. In: ______. Dits et écrits. Vol IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 163-167. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. (Trad. Mário da Silva.) Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. _____. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Trad. Paulo César de Souza.) São Paulo: Companhia das letras, 1992.

DEVIR Vânia Dutra de Azeredo Definir devir, desde a perspectiva da Filosofia da Diferença (cf. Deleuze, 1976. Deleuze; Guattari, 1997, Nietzsche, 1978), é principiar por requerer a efetividade para o fluxo, para o móvel, para o devir mesmo, revendo, com isso, o modo do ser que já não é, mas faz-se, exerce-se, e, ao exercer-se, pode, ao mesmo tempo, ser finalidade e contradição das finalidades. O devir, nessa ótica, é o limite para o sentido e para o valor e, em vista disso, não se pode medi-lo desde o ser sem desvalorizá-lo. É exatamente isso que se faz na História da Filosofia (cf Platão, 1987) quando, se correlaciona ser e conhecer, determinando que o ser corresponde à ciência, o não-ser à ignorância, e o devir à opinião. Por caracterizar-se pelo movimento, o devir aparece como termo intermediário entre o ser e o não-ser. Participa, em certa medida, do ser, já que tem algo de ser: o ser em movimento. Todavia, não chegando jamais à sua perfeição, desvalorizase diante dele. Diversamente, definir devir desde a Filosofia da Diferença é distanciar-se da leitura corrente na Filosofia da tradição (cf. Descartes, 1973. Kant, 1983) e partir do dado de que não existe nada de durável, pois tudo está em movimento. Tal posição, que remete diretamente ao primado do devir, remonta ao filósofo de Éfeso. Heráclito (Heráclito, 1996) tem como ponto de partida a rejeição do ser e a afirmação do devir. Aos existentes, como devir, ainda que pensados como luta entre impulsos, forças ou vontades de potência sempre lhes é atribuída a mobilidade e recusada a unidade do conceito de ser, pois afirmar o devir é afirmar o fluir e o destruir, o fluxo e refluxo com rejeição de qualquer estado que remeta à perenidade, durabilidade e estabilidade. Convém mencionar, seguindo nesse ponto Nietzsche (Nietzsche, 1978), que não se trata de conferir supremacia ao devir, mas de destituir a oposição ser/devir ao querer imprimir ao devir o caráter de ser. Ora, ao rejeitar a hipótese de que haja qualquer estado durável, para além do que incessantemente devém, o filósofo alemão apresenta o devir como sendo a melhor possibilidade interpretativa para aquilo que se manifesta. Inicialmente, o filósofo alemão recusa a presença, seja de um ser perfeito, imutável, pleno, seja de uma privação absoluta de perfeição, imutabilidade, de plenitude, em suma, de ser. Se o devir não tem um estado final, então não se converte em ser. Se sua determinação fosse deixar de ser, converter-se em não ser, já teria deixado de ser. Logo, caso se queira falar em ser, só se pode fazê-lo com referência ao que devém, ao devir que, efetivamente, se manifesta. Imprimir ao devir o caráter de ser é, por um lado, retirá-lo da posição intermediária, conferida a ele por Platão, entre o ser e o não-ser e, por outro, recusar a hipótese de que haja algo de incondicionado, já que a suposição da substância do ser não pode ter vigência. Se não há ser, enquanto unidade estável, nem não-ser, entendido desde a ausência de ser e tampouco um domínio incondicionado que oculte o ser, a oposição ser/devir perde o referencial de sua proveniência, perde a eficácia em termos de construção do conhecimento e do mundo, em suma, perde o sentido e o valor. Imprimir ao devir o caráter de ser é, a nosso ver em Nietzsche, destituir, ao mesmo tempo, o valor do ser e do não-ser conforme a História da Filosofia. Não é por acaso que ele afirma – em O crepúsculo dos ídolos, justamente na parte intitulada "A razão na filosofia" – que: "Heráclito sempre terá razão quanto ao fato de que o Ser é uma ficção vazia. O mundo 'aparente' é o único; o 'mundo verdadeiro' é somente acrescentado de maneira mendaz..." (Nietzsche, 2000, p 26). De outra parte, o devir remete a Dioniso (cf. Azeredo, 2005), enquanto deus da metamorfose que porta uma nova legislação que vem a ser justamente a do devir. O martírio de Dioniso exprime a afirmação do devir, pois enquanto cortado em pedaços é uma promessa de

vida: eternamente renascerá e voltará da destruição. Ao compreender o martírio como promessa de vida, o homem transforma-se, transmuta-se, vem a ser outro. Passa a incorporar o trágico como medida da vida; logo, a inocência torna-se inalienável, extirpando a perspectiva de culpa e, conseqüentemente, de condenação mediante a afirmação da inocência do fluir e, portanto, do primado do devir. Referências AZEREDO, Vânia. O pathos afirmativo em Nietzsche, In: _________. Falando de Nietzsche, Ijuí: Unijuí, 2005, p. 81 - 96. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1730 - Devir-Intenso, devir-Animal, DevirImperceptível; tradução de Suely Rolnik. In. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997. DESCARTES, Renè. Discurso do método, São Paulo: Abril Cultural, 1973. Col. Os Pensadores. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, Segunda Edição. Trad. de Valério Rohden e Udo B. Moosburger; São Paulo: Abril Cultural, 1983, 415 p. (Os pensadores). NIETZSCHE, F. Nietzsche - Obras Incompletas, coleção “Os Pensadores”, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, 1978. ________ Crepúsculo dos ídolos, trad. Marco Antonio Casa nova relume dumará rj, 2000. PLATÃO, República. 3 ed. Tradução Maria Helena Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

ENSINAR Paola Zordan Não chegamos até nossas autênticas tarefas e nos dilaceramos no melhor tempo de nossa vida com essa excessiva atividade de ensinar. Nietzsche

Nada se ensina; tudo se vive. Dizem que a vida ensina. Mas quem ensina, às vezes, esquece da vida. Porque vive para ensinar. Viver para ensinar é mais do que atuar como professor. É viver imerso em sua matéria. Ensinar não passa de um infinitivo deglutir de matérias. Não há começo. No máximo estréias. De apresentações que se repetem e a cada vez variam. Mas que funcionam como fita de Moebius, que por mais que você a parta ao meio, a tira jamais se rompe. Caminhando, aquela obra de Lygia Clarck. Impossível ensinar sem mostrar criações. Atos para fazer prevalecer imagens e perpetuar palavras. Sem verbo ninguém ensina. O verbo codifica signos em linguagens. Codificar os signos é a tarefa do Ensino. Decifrá-los, o intuito da pesquisa. Somente pesquisada uma matéria torna-se digna de estudo. Passa a algo que se nota, algum objeto de anotação, palavra a ser desenvolvida em texto. Se ensinar fosse apenas reproduzir textos, todos os aprenderiam. Quem não pesquisa ao invés de ensinar, apenas reproduz. Quem ensina faz. Os que estão juntos aprendem. Ensinar é esquecer-se de si mesmo, num desdobramento de centenas de corpos que em aulas, palestras, orientações, preleções, lições, atravessam voz e visão. Geralmente ensinamos com palavras, mas o que efetivamente se aprende passa por ações e exercícios que quem ensina propõe. Pelo menos para antever a vivência que realmente ensinará. Porque aquilo que se ensina não é exatamente o enunciado de quem professa o ensinamento. O professor apenas discursa. Fala sobre uma matéria que, uma vez provada, ensina por si. Criam-se sistemas e métodos de ensino para que a matéria caiba numa profissão, numa área curricular, num percurso delimitado de lições, em cursos específicos. Cursar uma instituição de ensino não garante que se aprenda aquilo que ali é ensinado. Um livro pode ensinar mais que um professor. Mas sem professores milhões de livros seriam esquecidos. Os professores explicam e comentam os livros que amam. Ou os que são obrigados a trabalhar. Os alunos só aprendem quando contaminados pelas paixões do professor. E, mesmo assim, muitas vezes, não lêem o que o professor pede. Então, o professor exige fichas, resenhas, documentos comprobatórios. Alunos que lêem acabam professores. O restante faz o mundo. Esse que gira alheio às bibliotecas, templos de quem pesquisa e ensina. Dividem o ensino em tipos. Formal nas instituições criadas exclusivamente para seu fim. Formadoras. Não formal nas instituições que o promovem junto a mostras e atividades culturais. Formação continuada. Informal para tudo o que o mundo ensina. Hábitos sociais, coisas que se aprende por aí. Afinal, qualquer um pode ensinar. O que quiser. As piores bandalheiras. Atrocidades. Mas só os professores ganham, mesmo pouco, para isso. Para ensinar as coisas “certas”. Pais, amigos, padres e padrinhos ensinam por obrigação moral. De graça. Para dar bom exemplo. E formar valores. Na fôrma do humano cônscio de seus diretos e deveres. Todo aquele blábláblá da formação de cidadania. Que por mais que se idealize, por mais ensinado que seja, nunca resolveu os problemas do mundo. Como toda conversa, em essência, nunca fará sentido. Ensinar é produzir sentido. Dar sentido a discursos que nunca levaram a nada. Daí tanta gente

dar as costas ao que a escola ensina. E preferir os ensinos da vida. Quem os aprende não volta depois de passar compulsoriamente tempos incalculáveis junto a instituições às quais o Ensino é legado. Precisam de um mínimo de presença para se formarem. Pois todos precisam de formação, seja ela de qualquer tipo. Quanto mais formal, mais garantias há. Pois todos precisam garantir o seu sustento. A sociedade assim ensina. Quem não se sustenta é inválido. Pior, vagabundo, sem valor. Não ter valor é não ter nada para ensinar. Quem ensina apaixonadamente gosta de transvalorar. Criar valores, operar com a loucura dos sentidos. De outro modo, não estaria submisso ao baixo valor mercantil do magistério. Nem se submeteria a regras que em nada dizem respeito ao amor fatídico do ensino. Quem quer ensinar esquece. E vive. A matéria, as palavras, os livros. Ensinar é uma arte. Mestre é quem faz algo pelos outros, por amor, com paixão por aquilo. O professor que realmente ensina o faz porque aprendeu a mostrar a coisa de um modo tal que todos que dela provam a aprendem. Quem não quer ensinar não ama. A coisa e os outros que a desejam. Porque quem ensina sabe que a coisa tem outro sabor quando dividida. Partir, abrir, devir, sozinho não tem a menor graça. Ensinar é buscar companhia para paixões. Quem ensinou algo sempre estará naquilo que quem aprende leva. Isso basta. Referências Neo-concretismo brasileiro; Objetos relacionais de Lygia Clarck; M.C. Escher; Geometria, cálculo de superfície; salas de aula das Redes pública e privada de Ensino de Porto Alegre, projetos de estágios dos alunos do curso em Licenciatura em Artes Visuais da UFRGS; produções da M.a.t.i.l.h.a. (Movimento apaixonado trabalhando incansavelmente pela liberação de humores artísticos). ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. São Paulo: Brasiliense, 1988. ______. Ovelhas Negras. Porto Alegre: L&PM, 2002. ______. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2001. ______. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Brasiliense, 1991. BARTHES, Roland. A metáfora do olho. In: BATAILLE. História do Olho. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. ______. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ______. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BATAILLE, Georges. História do Olho. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996. ______. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz Orlandi. Campinas: Papirus, 1991. FERREIRA. Márcio P. Porto Alegre: UFRGS/FACED. À flor da pele [escrileitura do sensual]. Dissertação (Mestrado em Educação) 127f. – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. GOULART, Marilu. Porto Alegre: UFRGS/FACED. Amor em fragmentos. Dissertação (Mestrado em Educação), 161f. – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt.Campinas: Papirus, 1990. JAMES, Henri. A fera na selva. São Paulo: Cosac & Naif, 2007. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

______. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. Por que sou um destino In: ______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.109-117. PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. REDIN. Mayra Martins. Impressões, anotações e distrações. Porto Alegre: UFRGS/FACED. Proposta Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001. SERRA, Irineu. O cruzeiro. Rio Branco: fotocópia, s/d. WANDERLEY, Lula. O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o objeto relacional de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ZORDAN, Paola. Potências das Artes Visuais em sala de aula (Relatório de Pesquisa). Porte Alegre: FACED/UFRGS, 2008.

ESQUIZOANÁLISE Claudia Maria Perrone A esquizoanálise emergiu do livro Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Feliz Guattari (1976) como uma maquinação conceitual capaz de engendrar processos de subjetivação formulados numa concepção produtivo-real do inconsciente. Há uma ruptura com o inconsciente freudiano e sua operação primordial, Édipo.Tratava-se de questionar a concepção psicanalítica do desejo como falta e castração e realizar uma defesa ética e estética do inconsciente como espaço político, como espaço movente, cuja maleabilidade é a dos limiares e dos fluxos que constituem o desejo como um sistema aberto que aspira sempre novas conexões (Orlandi, 1995). A tese da esquizoanálise é simples: o desejo é máquina, síntese de máquinas – máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção e qualquer produção é, ao mesmo tempo, desejante e social. A esquizoanálise se opõe ao imperialismo do Um, ao despotismo do significante e o subverte com a pluralidade maquínica do desejo, usina de pulsões e desejos que resiste aos ideais de soberania da representação, do edipiano e do patriarcal, em favor da diferença pura, para estabelecer a primazia ontológica da diferença. O inconsciente não é mais um teatro da representação, é uma fábrica, uma máquina para produzir, uma lógica de puro fluxo. O inconsciente é uma máquina desejante de agenciamento contínuo de fluxos e cortes. “Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, esquenta, come. (...) Somos todos bricoleurs, cada um suas pequenas máquinas (Deleuze; Guattari, 1976, p. 15). A esquizoanálise foi o primeiro movimento para a efetivação de uma “psiquiatria materialista”, aquela capaz de pensar as configurações do real a partir da produção no desejo e o desejo na produção (Deleuze; Parnet,1998, p.28); e, com ela, rompem-se as amarras da interioridade do inconsciente e da exterioridade do mundo. O Inconsciente não produz o Mesmo, o inconsciente produz descentrando o eu, produzindo um sujeito residual, uma rede de singularidades na rede disjuntiva.O sujeito é maquinação, é variação dos estados, é dessubstancializado na operação de corte da psicologização da existência em favor da maquinação plural. Ao estabelecerem a relação entre desejo e campo social, Deleuze e Guattari foram obrigados a problematizar a relação entre capitalismo e psicanálise. Tanto a Psicanálise como o capitalismo opera a partir de fluxos decodificados do desejo, que são codificados por interesses específicos. No capitalismo, o desejo é codificado pelo lucro e na Psicanálise, pelo Édipo. A Psicanálise depende do mecanismo econômico do capitalismo do mesmo modo como o capitalismo necessariamente exige o campo familiar para realizar o seu processo de produção criando. Como pensar relações diferenciais na produção social desejante? Diante desta questão, o esquizofrênico torna-se um personagem conceitual no Anti-Édipo. Ele é decodificado, desterritorializado, processualidade pura. Tanto o capitalismo como a Psicanálise podem ser pensados em sua relação com a esquizofrenia. O capitalismo é esquizofrênico, pois opera decodificando continuamente todos os fluxos através de uma axiomatização generalizada, que reterritorializa os códigos e os fluxos que permanecem ligados ao corpo do capital. O esquizo é aquele que não submete as suas disjunções à triangulação/exclusão edípica. E corre o risco de desorganização, de caos de perda do eu. No entanto, não há nenhuma elegia ao esquizo. A esquizofrenia como processo é distinta da produção do esquizo como entidade clínica: os dois estão em razão inversa. O esquizo enclausurado é a parada do processo, é alguém que desmoronou. A decodificação e desterritorialização do processo esquizo anseia por um corpo sem órgãos, superfície de registro dos processos produtivos do inconsciente maquínico. É a

derrota do organismo, um espaço liso que possibilita registros, conexões, maquinações, alianças, fluidez absoluta, um contínuo circuito de intensidades que marca a estranheza do plano de imanência do corpo sem órgãos em relação ao corpo orgânico. “Uma onda de amplitude variável percorre o corpo sem órgãos, traçando limiares e níveis segundo as variações de sua amplitude. Ao encontro da onda e das forças exteriores, uma sensação aparece. Um órgão será assim determinado por este encontro, mas um órgão provisório que só permanece durante a passagem dessa onda e a ação dessa força e que vai se deslocar para outro lugar” (Deleuze, 1992, p.34-35). Não há uma sucessão história, há o registro das intensidades sobre um mapa intensivo, uma cartografia. Novamente aparece a figura do esquizo como aquele que não realiza nenhuma síntese apaziguadora, mas sim como aquele que vive e cria na disjunção, ele é sendo outra coisa. Não há originário nem derivado, mas deriva generalizada. O corpo sem órgãos opera devires, oscilações, deslocamentos sobre uma matéria genealógica bruta no qual a genealogia edipiana já perdeu todo o sentido. No entanto, o programa antiedipiano não é a negação nem da dor nem da loucura. O esquizofrênico é sempre assombrado pela intimidade de todos os fluxos que, em algum momento, pode sofrer uma parada. Daí o grande desafio da esquizoanálise: É preciso em cada caso repassar as velhas terras. (...) Terras familiares edipianas da neurose, terras artificiais da perversão, terras asilares da psicose, como sobre elas reconquistar cada vez o processo, retomar constantemente a viagem? (Deleuze; Guattari, 1976, p. 403). Como confrontar o animal humano com o que o excede? Como liberar uma subjetividade esquizo? Como devolver ao desejo a sua abertura? O esquizoanalista não é um intérprete, é um mecânico. Não há escavações ou arqueologia do inconsciente. Trata-se de saber quais são as máquinas desejantes de cada um, como elas funcionam, com que sínteses, com que fluxos. Esta tarefa não pode ser separada das destruições indispensáveis das estruturas e representações que impedem a máquina de funcionar e impedem a criação de linhas de fuga. Há por todo lado o molar e o molecular. Em um dos pólos, os grandes conjuntos, as grandes linhas de gregariedade que impedem a fuga. No outro pólo, a fuga esquizofrênica, que faz fugir o social pela multiplicidade de buracos que corroem e furam, cargas moleculares que farão cair o que tem que cair, fugir o que tem de fugir, assegurando a conversão da esquizofrenia em força revolucionária. Do esquizo ao revolucionário há a diferença entre o que foge e aquele que sabe fazer fugir, fazendo passar um fluxo. O esquizo não é o revolucionário, mas o processo esquizo é o potencial de revolução. A esquizoanálise é uma caixa de ferramentas, uma análise das linhas, espaços, devires, acontecimentos, variações contínuas, máquina revolucionária. Referências DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _______ . O que é filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. ORLANDI, Luiz B. L. "Pulsão e campo problemático", In : MOURA, Arthur Hipólito de (org.). As pulsões. São Paulo: Escuta, 1995, p. 62-75. PELBART, Peter P. A vertigem por um fio. São Paulo, Iluminuras, 2000.

(o) FORA Monica Cristina Mussi Fora da sala de aula. Fora! No gesto violento, alguém supõe que expulsou, outro alguém finda por achar que escapou. Regogizam-se ambos. Professores e alunos compõem-se numa linha devoradora. Pelo gesto violento, ambos comungam, em segredo, um desfecho exitoso. Exaustos de si e de outro, fartam-se do grão sagrado do dia. Porta aberta, professor e aluno emergem até a superfície: sufocados, tomam ar. Num tempo intervalar, imensurável, sonham com sol a beira-mar. Mas o que há do lado de fora da sala de aula, senão uma expansão de suas paredes, um plissado de sua realeza? À porta aberta, alguém deixa atrás de si um dentro, mas a corporeidade do fora do dentro tem matéria familiar, estratos de significância (Guattari, 1992). Estratos de subjetividade pululam no ar. A arquitetura de corredores, de escadas, do pátio, da sala do diretor escancara, de modo bastante pedagógico, camadas parciais de estratificações de corpos que ali, no fora do dentro da sala de aula, uniformizam-se. Linhas de estratos, entretanto, enredam o corpo do espaço do fora suavemente, com astúcia do novo. Ar puro para quem está fora? Logo depois da porta, do lado de fora da porta, do fora do dentro da sala de aula, de modo dissimulado, perambulam linhas estratificadas. Linhas que atravessam paredes de concreto duro, em forma de vapor. Do lado de fora, insinuam-se, as linhas, com uma dança de entorpecimento, rodopiando alegremente envolta de peles: interface exterior e interior do corpo. Contornam e enlaçam braços, pernas, pescoço, estômago, consciência. Asfixiam órgãos, movimentos, com efeito de elixir. Fora e dentro em oposição, em íntima relação dual. Será? É preciso ter “mau ouvido” para esse tipo de ligação que goteja um possível sempre evidente. Dentro: integração, inclusão, acesso, permanência, participação, adaptação, normalização, autoridade, grilhão. Fora: delinqüência, inaptidão, exclusão, desintegração, castigo, prisão, ociosidade, libertação. Dependência semiótica, causalidade opositora. Entre dentro e fora, quanta selvageria repetitiva! Vidas impelidas para a perspectiva de pedra. Movimentos embotados na moralina (Nietzsche, 1998) que protege com garras venenosas os binarismos: certo-errado, bom-mau, dentro-fora. Dentro e fora das salas de aulas, aprende-se muito bem a separar o joio do trigo – para não fazer o pão. Ali mesmo onde, na superfície das paredes, as vidas exigem multiplicidades, um fora e um seu correlato, o dentro; ali, onde se desenrola um infinito jogo de interfaces, em evidência num único jogo de equilíbrio, de nome dentrofora. Quanto susto e perplexidade outro ouvido pode ter ao enxergar, nas mais duradouras ligações binárias, nas ligações de oposições, um artefato interpretativo pronto a se desfazer na vitalidade de uma possibilidade. Artefato dentro-fora, um sistema redutor de tudo quanto está por acontecer, que acontece na extensão do plissado, nas adjacências de um interior-exterior estabelecido. Entre o dentro-fora determinado, corre a galope o caos, um fora não exterior, um dentro não interior. Corre tresloucado, numa velocidade que é pura intensidade. Corre a contrapelo arrastando sanguessugas que reverenciam toda nutrição da vida nas existências “comuns”, na atitude natural, toda matéria cuja composição são as obviedades binárias. Profusão de violência é o caos, vibrações de toda espécie. Por desmesura de movimento, um encontro! Um traçado no caos, uma linha feita com navalha afiada, um corte em plena velocidade a traçar no corpo uma linha que faz sangue deslizar em mapa incerto. Encontro avassalador cujo acometimento é a descorporificação, estado que desconhece o imperativo de um referente, que recusa a vida como identidade. É com desmesura que se entra na experiência do fora, um fora que já é interior de um dentro; desde sempre subsistem outras histórias possíveis nas

histórias conhecidas, nas verdades, no senso-comum. É então que, no fora de dentro da sala de aula, alguém pela fresta da janela suja do corredor é tocado pelo vento que faz tremeluzir folhas na árvore. Acolher em si uma folha, encarnar um corpo-árvore, absorver tal movimento vegetal, fazer crescer em si nervuras de tronco, exalar o cheiro de flor de laranjeira. Escorrer orvalho, gosma de raiz por orifícios, verdejar na pele, nos olhos, na vida, enquanto toca o sinal. Referências DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia Vol.5. São Paulo: Ed.34, 1997. _______ . Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia Vol.3. São Paulo: Editora 34, 1996. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. GIL, José. O imperceptível devir da imanência – sobre a filosofia de Deleuze. Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2008 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed.34, 1992. LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras: 1998.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES Alexandre de Oliveira Henz O leitor do qual espero alguma coisa deve ser calmo e ler sem pressa. [...] que ele não se intrometa de modo algum, à maneira do homem moderno, e não traga para a leitura a sua “formação”, algo como uma medida, como se com isso possuísse um critério para todas as coisas. Desejamos que ele seja suficientemente formado para pensar em sua formação de modo restrito e até desdenhoso. Nietzsche

As instituições de ensino, tal qual se erigem atualmente, têm muito para corroborar com uma demasiada formação/formatação, a partir do ideal de tornarem-se "centros de excelência", em que se formem os ditos “melhores profissionais do país” e nos quais se produza o denominado “conhecimento de ponta”. Percebida como vocação natural, pouco se destaca que essa aspiração, entretanto, favorece um modelo terrível, pois os excelentes são – e devem ser – poucos (questão agudamente assinalada pelo professor Sidnei José Casetto do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo), a excelência nos campos de conhecimento encerra-se como valor em si, essencial, interessada no poder de capitalização e mercadologização das pesquisas, em formas mais explícitas e outras mais sutis, que redundam na possibilidade de tornarem-se excelentes, secundarizando os aspectos de formação crítica do pensamento, alçando um pensamento que não se pensa. Conforme indica Deleuze (1992, p.225), no âmbito das sociedades de controle, isto implica “o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis de escolaridade”. Valorizam-se a especialização e, particularmente, a autoria de trabalhos como indicadores do desenvolvimento acadêmico, o que convoca à ininterrupta produção, inclusive na maneira de viver e nas relações com outrem. Nessa configuração, o científico tende a ser naturalizado; o ensino, mesmo o público, a operar na lógica da empresa; o cognitivo, a hipertrofiar-se, e o tempo, a acelerar-se de forma vertiginosa. Um certo tipo de saber torna-se hegemônico, bem como a demarcação clara entre quem o domina (e pode transmiti-lo) e quem dele necessita (e precisa recebê-lo). A formação desenha-se nestas linhas, reforçando o ensino verticalizado, o preenchimento máximo da "grade horária", a preferência por um perfil competitivo, e a impaciência dos estudantes com conteúdos que não tenham aplicabilidade imediata. Talvez na formação, contemporaneamente, não possamos falar tão-somente em moldes ou fôrmas, isto é, formatações rígidas de modos de sentir, pensar e fazer. Importa, hoje, ressaltar outros movimentos, espécies de modulações, ondas de autodeformação contínua, que se fixa ora em modos mais impermeáveis, ora em outros mais abertos e porosos. Com isso, haveria linhas de fuga, saídas, novos espaços de resistência e invenção. A todo o momento, nas salas de aula, nas intervenções, escavamos novas e difíceis saídas. Saídas instaurando um espaço de ensino e partilha do sensível, numa espécie de paralelo à exigência da produção de papers e da contagem de pontos nos curricula e relatórios acadêmicos. Na lógica que articulamos na formação (de professores), se tivermos de contar pontos, será para preservar nichos de desregulagens: já que na formação temos a oportunidade de experimentações com sensibilidades in progress, podemos aproveitar para solapar alguns imperativos ditos racionais. E assim,

desertarmos a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização. Podemos exercer, treinar, aproveitar para a sala de aula pequenas táticas não reificadoras, exercícios de invenção, de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia aceita, de dúvida, enfim, exercícios de resistência e largueza de alma. Sabe-se que o fato de haver jovens estudantes, professores em formação, nas universidades não garante a possibilidade de uma configuração inventiva. Em muitas situações, a juventude também pode compor com a mais conservadora das culturas. Para uma grande parcela dos que ingressam na universidade, o que parece estar menos em questão é cuidar de sua formação, pois já chegam aos cursos demasiadamente formados: alguns, paradoxalmente, muito jovens e muito fechados em certezas. A questão não é apenas a da juventude; em alguma medida, trata-se do desafio de deformar, de abrir espaço na forma/fôrma, de tornar porosa a blindagem a que todos – não só os futuros professores – estamos submetidos. De modo geral, estes professores em formação pouco têm inventado em termos de estratégias de resistência que permita introduzir mudanças nos funcionamentos conservadores. Há algumas décadas, havia a crença de que os jovens seriam capazes de produzir marcas ético-estético-políticas com suas mobilizações. Entretanto, isto se tornou gradativamente mais e mais difícil. Não é que a juventude tenha hoje se tornado menos interessante, mas as formas de ação que eram úteis no passado perderam sua efetividade. Muitas manifestações continuaram ocorrendo, em todas as grandes cidades do mundo, com milhões de estudantes nas ruas, sem serem consideradas seriamente pelas instâncias políticas, e menos ainda pelos meios de comunicação de massa, que preferem neutralizar o impacto destes protestos. Mesmo as pequenas rupturas são sentidas como profundas rachaduras num gigantesco iceberg flutuando no mar: alterar sua trajetória, para muitos, parece ser um projeto difícil, tendendo à rendição. Pensar a formação de professores na chave da deformação pode ser uma estratégia eficaz para acompanhar dois movimentos: um primeiro daquilo que está desistindo em um grande cansaço, e um outro, por vezes concomitante, daquilo que está se gestando no registro do sensível e dos processos de aprendizagem. Isto exige um tanto de solidão e disponibilidade, não só para as formas acabadas que parecem definitivas, mas especialmente para as forças do coletivo, que produzem outras formas vivas (esgotadas) de pensar, sentir e colaborar. Essa esfera do sensível é, paradoxalmente, invisível, imperceptível, impalpável, às vezes molecular. O que não significa que seja para iluminados ou videntes, nem que sejam segredos ocultos. São coisas para as quais, em geral, não estamos disponíveis, saturados que estamos pelas formas acabadas, paradoxalmente debilitados e potentes, a experimentar as fissuras, os desfazimentos, os esgotamentos. Referências DELEUZE, G. “Post-Scriptum sobre as sociedades de Controle” In: Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. NIETZSCHE, F. “Pensamento sobre o futuro de nossos institutos de formação” In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro, Editora Sette Letras, 1996.

GEOLOGIA DA MORAL (O pânico é a criação.) Sandra Mara Corazza Wladimir A. da Costa Garcia [O Professor C., além de ministrar impactantes conferências, fazia divertidos cursos e aulas. Só que ele havia esquecido qual era a sua especialidade. Lembrava apenas que não era geólogo, nem biólogo, sequer lingüista, etnólogo ou psicanalista. A seus botões disse: – Misturarei manuais de Geologia, Biologia, Teologia, Filosofia, Educação e, com o meu humor simiesco, farei uma Pragmática do Ensino, por meio de um Diálogo de Mortos, à maneira de um Teatro de Marionetes, que leve a Terra a berrar feito uma máquina dolorífera – em 10.000 a.C. e hoje. Ufa!] – Cá estamos. (O Professor, gastando saliva.) Este Curso, que ora iniciamos (C., com outra obviedade desnecessária), pode receber várias denominações: Rizomática; Estratoanálise; Esquizoanálise; Nomadologia; Micropolítica; Ciência das Multiplicidades. – Qual delas preferir? (Groelândia, interessada.) – Todas e nenhuma! (C., acerbo.) Dependendo da estação, o Curso prefere chamar a si mesmo de: (1) Quem a Terra pensa que é? (2) Mecanosfera e o DeusLagosta. (3) O Juízo de Deus com Dupla Máscara. (4) Partigos no Mundo dos Carrapatos. (5) A Geologia da Moral. (C., comovido.) – Professor, o senhor não quer dizer “A Genealogia da Moral”? (Alasca, aluno que se preferia aos outros, fazendo alusão erudita ao livro de Nietszche.) – Para mim, não funciona o “quer dizer”! Digo o que digo. (C., inflexível, tentando ensinar pelo exemplo.) Ou seja (C., irritado com a falta de imaginação de Alasca), usando Marx, Nietzsche, Freud e outros amigos, mais a ciência moderna, formulo um materialismo filosófico radical, impelido pelo vitalismo, que redefine as noções de realidade e de possibilidade, pela interação entre Virtual e Atual. – No Curso anterior, vimos que Atual é o domínio de constituição dos corpos e Virtual o domínio diferencial de suas transformações potenciais. (Tumaco, sabichão temeroso.) – Prestem atenção! (C. quase complementou:“estúpidos”, mas conteve-se.) O Virtual, como auto-diferenciador (logo criador), não é um caos indiferenciado, mas articulado por Idéias, como “uma” sociedade. Ao campo virtual, dou agora o nome “Terra”. Privilegio o Mapa e a Cartografia, em vez da História; pois esta fornece, simplesmente, o conjunto de condições para atualizar sistemas materiais. – Da História nos desviamos para devir... (Samotrácia, cuidadosa, para não perder a cabeça. Outra vez.) – Mas, assim, radicalizamos ou anulamos a Genealogia? (Pauline, beirando a simploriedade.) – A atividade genealógica (A boca de C. adianta-se, ameaçando deixar o casco morto do rosto) articula as lutas com a memória, para descrever as forças históricas e os seus enfrentamentos, que tornam possíveis as culturas e as formas de vida. (C., aliviando-se, sob a pressão do útil.) – Mais do que uma Historiografia, trata-se então de uma Geografia, que não é apenas física e humana, mas mental, como a paisagem. (Fabien, com ar superior de clandestino.) – Ela mostra que a Moral aparece no Ocidente: em função de uma contingência mais do que de uma necessidade; da potência de um ambiente ou meio, mais do que de

uma origem; de um devir mais do que de estruturas; de uma graça, mais do que de uma natureza. (C., fazendo o que tem de ser feito, com paciência.) – Então, realizamos uma teo-bio-política, que é uma Geofilosofia, como Nietzsche propôs. (Gloria, assassina de charadas.) – Geofilosofia, que não deixa de ser uma Genealogia, só que não possuída pela nuvem histórica. (Northrop, distraído, mascando chiclete.) – Sem memória organizadora ou autômato central, a Geofilosofia opera com memória curta ou com antimemória. Procede por variação, expansão, conquista, picada. Opõe-se a: grafismo, desenho, fotografia, decalques. Refere-se a mapas: sempre desmontáveis, conectáveis, reversíveis, modificáveis, com múltiplas entradas, saídas, linhas de fuga. É rizomática. (O Professor, sinceramente auto-admirativo.) – Trata-se de um Empirismo Transcendental, que funciona em espaço virtual ahistórico. (Herodiade, dançando faceira.) – Uma esplendorosa Estratoanálise, cuja concretude ocorre na captura das linhas caósmicas que segmentarizam a Terra. (Pascal, satisfeito com o seu cataclismo sintetizador.) – Uma Filosofia Política, que analisa os corpos, em seus elementos físicos, químicos, biológicos, nervosos, sociais, desejantes. (Brian, integrado, indulgente.) – Uma Nomadologia, que produz Agenciamentos Maquínicos e Agenciamentos Coletivos de Enunciação. (O Professor, esgotando-se, mas dedicado.) – A Geologia da Moral embaralha todas as árvores genealógicas. (Morel, com os nervos contidos.) – Por isso, ela é uma antigenealogia. (Ártico, com os pés frios.) – O molar é, por definição, obstáculo ontológico do molecular. (Arman, embriagado de Ser.) – Por outro lado, o molecular é evasivo: perturba os aparatos bloqueadores e abre a forma da historicidade. (Honoré, agoniado como ave domesticada.) – Tudo isso para pensar a Natureza? (Julia, maliciosa.) – Para fazer uma micropolítica, que privilegia o domínio molecular e caça as partículas submoleculares. Para resistir e escapar das dominações molares. Para destruir o Aparelho de Estado fazendo-o fugir. Para deixar o Devir-Revolucionário traçar linhas infinitas de vôo. Para produzir novas coletividades, subjetividades, pensamentos: além de Bem e Mal. (Primeiro, Truman, fechando as lapelas do casaco sobre a camisa, que naquele dia era cor de resedá. Em seguida, Faustine, como se vivesse uma vida dupla.) – E para acabar de vez com o Juízo de Deus. (C., elíptico e premonitório.) [O Professor cita uma frase que diz ter encontrado num Manual de Geologia. Era preciso decorá-la: “Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa da vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes”.] – Não sei se tá tudo bem.. Não sei se tá tudo bom... (Bárbara, com a fronte abaulada de estátua, pensando na distinção, ainda enigmática, entre a Genealogia da Moral, de Nietzsche-Foucault, e a Geologia da Moral de Deleuze-Guattari.) – Prossigamos. (Mais uma expressão puramente retórica do Professor C.) – Nem sempre a Terra foi estratificada, via Camadas, Cintas. Ela já foi um Corpo sem Órgãos, atravessado por matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os sentidos, intensidades livres, partículas loucas, transitórias. Por isso, eu a chamo (além de Amada): a Desterritorializada, a Glaciária, a Molécula Gigante. Acontece

que, nela, se produziu um fenômeno importante, inevitável (benéfico, em alguns aspectos; lamentável, em outros): a estratificação. (C. peremptório.) – A estratificação captura corpos. (Stanilas, abocanhando o anzol.) – Dá forma à matéria, aprisiona intensidades, fixa singularidades em sistemas de redundância, em conjuntos molares. Como um buraco negro, pega e não larga mais... (C., assustando os alunos.) – De que são feitos esses estratos? (Jerry, desenvolto, com ar de espião informado.) – De camadas sedimentares, formações históricas, práticas, positividades, empiricidades. (C., dissimulado: sabe que dois amigos seus trataram da Forma e da Substância de Conteúdo e de Expressão, em livros sobre Foucault e Kafka.) – ... (Faz-se uma longa pausa. Não se ouve ruído algum. C. olha o pulso.) – Os estratos são juízos de Deus!!! (C. berra, subindo na mesa.) – O que é isso, Professor? (Michael, o Neutro, em plena histeria docente.) – A Terra escapa, constantemente, ao Juízo de Deus e torna-se desestratificada, desterritorializada. É a Geofilosofia que possibilita testemunhar essa itinerância. (C., repetindo-se, intencionalmente.) – Cavernas dentro de cavernas... (Odile, com nobreza grega.) – Mas, e o tal Juízo de Deus? (Joëlle, louca.) – Impede a chegada de qualquer novo modo de existência. (Olga, revoltada.) – Ninguém se desenvolve por Juízo, mas por combate, que não implica juízo algum. (Hervé, fervilhante.) – O combate não é um Juízo de Deus, mas a maneira de acabar de vez com Deus e com o Juízo. (Carole, fiel ferida.) – Talvez esteja aí o segredo: fazer existir, não julgar. (C., em ação clínicocrítica.) [Os alunos, entediados, apontavam coisas mal-compreendidas, contra-sensos e mesmo malversações na exposição do Professor.] – Professor, não entendi! (Cartagena, que gostava do mastigado.) – O quê? (C., plausível.) – Tudo!!! (Os alunos, afinados, bradaram em uníssono.) – Digam-me o que foi que não entenderam! Especifiquem! (O Professor, furioso, com a ausência de nuances.) – O que os estratos produzem sobre o corpo da Terra? (Stéphanie, incidentalmente intensa.) – Como os estratos organizam aquilo que produzem? (Pécuchet, fingindo-se interessado, mas com a idéia fixa na viagem para Chavignolles.) – Caros Discípulos (C., irônico, atribuindo sentido religioso), na concepção intensiva da Teoria dos Estratos, a substância corresponde à Ousía (incognoscível para Aristóteles); a matéria, à Hylé (de Platão a Aristóteles); e a forma, ao Eidós (idéia para Platão). (C., didático do pior jeito.) – Como o saudoso Príncipe Sombrio, geólogo dinamarquês spinozista, descendente de Hamlet, Hjelmslev escreveu... [A sirene soa. C. pára.] – Mato a cobra e mostraria o pau, se a aula não terminasse. (C., apressado, malicioso.) Adiante, vamos estudar: a teoria da estratificação e sua axiomática; unidade e diversidade de um estrato, em relação às formas e substâncias de conteúdo e de expressão; variação entre os estratos; Ecúmeno e...e... Mas, bateu. Parto para o meu Jardim Venenoso. Levo a Terra comigo. Por debandada, aprendemos. (C., inaudível, saindo.)

– O PÂNICO É A CRIAÇÃO! (O Professor urra, feito elefante.) [Embarca no Carro-Relógio de Lovecraft, em forma de caixão, que martela um tique-taque anormal na Rizosfera.] Referências ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995. BUCHANAN, Ian; MARKS, John (Ed.). Deleuze and literature. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000. CAPOTE, Truman. Música para camaleões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006. DE LANDA, Manuel. The geology of morals: a neo-materialist interpretation in http://www.t0.or.at/delanda/geology.htm. Capturado em 08/11/2008. DELEUZE, Gilles. “Para dar um fim ao juízo” in _____. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.143-153 _____. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. _____. “O método da dramatização” in A ilha deserta: e outros textos. ORLANDI, Luiz B.L.(org.). São Paulo: Iluminuras, 2006, p.145-146. _____; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. _____. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 1997. _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 2000. FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história” in _____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p.15-37. _____. Genealogía del racismo. Buenos Aires: Altamira; Montevideo: NordanComunidad, s.d. KRISTEVA, Julia. Possessões. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. LECERCLE, Jean-Jacques. Deleuze and language. London: Palgrave MacMillan, 2002. LOVECRAFT, H. P. Obras escogidas. Vol. I, II. Barcelona: Editorial Acervo, 1996, 1998. SASSO, Robert; VILLANI, Arnaud (dir.). Vocabulaire de la philosophie contemporaine de langue française – Le vocabulaire de Gilles Deleuze”. Paris: Les Cahiers de Noesis, nº3, Printemps 2003. NIETZSCHE, Friedrich W. “Da utilidade e desvantagem da história para a vida” in Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.66-78. _____. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _____. O anticristo: maldição ao cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. PROTEVI, John. The organism as the Judgment of God: Aristotle, Kant and Deleuze on Nature (that is, on biology, theology and politics) in BRYDEN, Mary (ed.). Deleuze and religion. New York: Routledge, 2001, p. 30-41. _____. A Thousand Plateaus: 3: The Geology of Morals. In [email protected] / http://www.protevi.com/john/DG/PDF/ATP3.pdf March 23, 1999. TADEU, Tomaz. “Deleuze e a questão da literalidade: uma via alternativa” in Educação e Sociedade. Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1331-1338, Set./Dez. 2005. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

GESTÃO ESCOLAR Maria Elizabeth Barros de Barros Tania Mara Galli Fonseca O tema da gestão escolar será traçado, aqui, como um platô constituído por regiões de intensidades que vibram sobre si mesmas, já que é produzido por linhas que buscam se comunicar umas com as outras por meio de microfendas. Texto que cresce nas dimensões de uma multiplicidade que muda de natureza à medida que aumenta suas conexões, de forma que qualquer um de seus pontos pode e deve ser conectado a qualquer outro. Eis a escolha que fizemos: Uma gestão: dobras da imanência Não vamos falar da gestão, mas de uma gestão. Gestão tomada como plano de imanência. Não está em uma coisa, nem pertence a coisa alguma. Não depende de um objeto nem pertence a um sujeito. Gestão como pura imanência, é “uma gestão”, com artigo indefinido, pois está em todas as partes, em todos os momentos que atravessam qualquer sujeito no campo da educação. Uma gestão, processo de singularização que se atualiza nos sujeitos, no modo como se organiza uma escola. Falamos, pois, de um processo que é ao mesmo tempo de objetivação e de subjetivação; que não se coloca como um conjunto de normas exteriores aos agentes; que se desprende deles e ao mesmo tempo os incorpora; que não existe a não ser na imanência do território de forças moventes em que se funda a organização; e que não pode ser reduzido à estratificação dura dos regulamentos e aos modelos dos planejamentos idealizados. Falamos do processo de gerir, como arte das multiplicidades, que difere do gerenciar, uma vez que se coloca como organização própria do múltiplo e que se orienta pelas questões “quanto”, “como” e “em que caso”. (Deleuze, 2006, p.260). Gerir a escola implica considerar que as coisas são encarnações de idéias, sendo, portanto, inseparáveis de um potencial, de uma virtualidade, não implicando qualquer identidade prévia de que se possa dizer do uno e do mesmo. Trata-se de conceber a coisa como sistema indeterminado cuja estrutura se dá por relações de potências intrínsecas a ele mesmo, vetorizadas do virtual para o atual, cujo desenvolvimento não poderia dissociar gênese e estrutura. “Quando alguma coisa é estabelecida entre séries heterogêneas, toda sorte de conseqüências flui no sistema. Alguma coisa ‘passa’ entre as bordas; estouram acontecimentos, fulguram fenômenos do tipo relâmpago ou raio” (Deleuze, 2006, p.173-174). Trata-se, ainda, de saber que a escola, como objeto percebido, implica uma contração de casos e que uma de suas qualidades pode ser lida na outra; refere-se, assim, a um organismo que, ao embaralhar elementos heterogêneos em estado de modulação diversa, move-se desde um nível de sensibilidade vital primária em que o presente vivido já constitui no tempo um passado e um futuro. Uma gestão: lugar de passagens e de conexões Falamos de uma gestão escolar que se constitui a partir da dessubstancialização do lugar do gestor e que é tomada como conector, como passagem entre fluxos de trabalho educacional/saberes, fluxos de subjetivação/sujeito e fluxos de relação/poder. Gestão inseparável de cada uma dessas dobras, sendo ela mesma uma das dobras desse plano. Gestão como ponto de encontro entre sujeito (trabalhador-educador) e objeto

(trabalho pedagógico), colocados em relação de intercessão e de interferência um sobre o outro e não podendo ser pensados fora desta mesma relação (Barros e Fonseca, 2004). Gestão escolar, como sendo não prerrogativa de cargos instituídos na escola; pois, ao contrário do que se encontra representado pelo senso comum, não está na sala do diretor ou da coordenação. Gestão – questão humana que advêm por toda parte onde há variabilidade, onde é necessário lidar com o inusitado da vida, dar conta de algo sem recorrer a procedimentos estereotipados (Schwartz, 2002). Gerir é negociar, é debater normas, regras, valores. É inventar modos de fazer e de habitar as dobras de nossas moradas, não significando situar-se exteriormente ao seu plano e observá-lo desde um ponto de vista fixo, estando na margem. Trata-se de segui-lo e não de rebatê-lo em modelos de reprodução, pois, como mostra Deleuze (1997, p.40): “Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das ‘singularidades’ de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma [...]; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes”. Gestão escolar, então, como modo de lidar com vetores-dobras inseparáveis de: sujeitos (alunos, educadores, familiares), com seus desejos, necessidades, interesses; processos de trabalho, saberes que constituem um saber pedagógico; poder, modos de estabelecer as relações; e políticas públicas, a coletivização dessas relações. (Barros e Benevides, 2007). Trata-se, assim, de considerar modos de gestão escolar, pois se referem à “maneira, jeito de fazer” o trabalho educacional, um modo de dobrar as forças da imanência, como diria Espinosa. Diz o como, com que meios se faz, e não o que se faz. Modo de gestão- maneira de produzir sujeitos e mundos. “Os modos diferem da substância em existência e em essência, sendo, entretanto produzidos nesses mesmos atributos que constituem a essência da substância”. (Deleuze, 2002, pg. 92-3) Uma gestão: clínica da atividade Os modos de gestão dos agrupamentos humanos, em situações de trabalho, e os efeitos de sujeito advindos dessa combinação complexa, não se limitam a modos operatórios ou à expectativa do igual, repetição ou procedimentos estereotipados; mas falam, também, e principalmente, de variabilidade, imprevisibilidade, escolhas, história, arbitragens, valores, a partir dos quais as decisões se elaboram: referem-se à criação. Uma gestão escolar não pode ser reduzida aos mecanismos organizacionais de uma instituição educacional, já que não é apenas organização formal do processo de trabalho, mas se efetiva como um regime de produção de saberes; assim como o planejar, o decidir, o ensinar, o avaliar não se separam entre si e, tampouco, do plano de forças do qual se encontram como efeitos. Tal regime de produção não se dá sem que ao mesmo tempo sujeitos se produzam. Eles inventam mundos, se inventando. Os mundos do trabalho são criações e usos de si (Schwartz, 2003), ou seja, marcas do que é para os humanos a herança de suas vidas, de seus recursos e escolhas, para fazer alguma coisa; é luta e resistência ao trabalhar e a si. Uma gestão refere-se à produção de clinamens (Deleuze, 2006), desvios para outras e novas conexões, e seu nível operatório dá-se nos domínios do que Clot (1999) chama de atividade, que não é passível de observação direta e mensurável, não se reduz a um simples gesto realizado e envolve, além do que foi realizado, o que não foi feito, o que é feito para não fazer, o que se gostaria de fazer e o que deveria ser feito. Os sujeitos realizam constantemente gestão, fazem da atividade algo seu, ao mesmo tempo, em que ela ocorre em um ambiente prévio e de sentidos coletivos. Fazeres cotidianos são espaços de gestão, de afirmação da vida, afirmação da sua

potência indomável. As táticas construídas resistem à captura da lógica que busca sobrecodificar a vida, modelizando-a a partir de metro-padrão. A imprevisibilidade do real e a variabilidade das situações de trabalho na escola com que os/as trabalhadores se deparam a cada dia envolvem diferentes processos decisórios que apontam a gestão micropolítica durante o exercício da atividade. Embora sob condições muito adversas, quando a máquina educacional busca engolir os atos criadores dos viventes humanos, as escolas também se constituem num “espaço de possíveis” em que os sujeitos se manifestam no ato de trabalho, pela diversidade de “usos de si” que sinalizam para a afirmação do movimento da vida. A atividade humana expressa a impossibilidade de se subjugar, de modo absoluto, às prescrições, às normas heterônomas, aos modos verticalizados de gestão. Quando a atividade humana se encontra constrangida por regulações autoritárias, por desqualificações de toda ordem, o que vigora é o tédio e a desistência. O próprio do vivo é fazer seu meio, é compor seu meio. Uma vida, uma imanência, uma gestão. Referências BARROS, M.E.B.; Benevides de Barros, R. “Da dor ao prazer no trabalho”. In: Barros, M.E.B.; Santos, S.; Trabalhador da Saúde: Muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Unijuí, 2007. BARROS, Maria Elizabeth Barros de; Fonseca, Tania Mara Galli. “Psicologia e processos de trabalho: um outro olhar”. Revista Psico, Porto Alegre, n. 2, 2004. p.133140. CLOT, Yves. A função psicológica do trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. “Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível”. In: Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Ed.34, 1997, p.11-114. DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 92-93. SCHWARTZ, Y. Disciplina epistêmica, disciplina ergológica: paidéia e politéia. ProPosições, Faculdade de Educação, UNICAMP, v. 1, n. 37, jan./abr. 2002, p. 75-98. SCHWARTZ, Yves. A abordagem ergológica do trabalho e sua contribuição para a pesquisa em administração. Trabalho apresentado no Seminário Internacional de Administração. Vitória: UFES, 2003.

HABILIDADES E COMPETÊNCIAS Adélia Pasta Monica Cristina Mussi À beira-mar, ondas de ninar dispensam a direção da consciência, qualquer intenção ou antecipação. Quanta preguiça as ondas do mar propõem. À beira-mar, a vontade de palavras certeiras, a ganância por respostas e pela régua de marcação se esvaecem. Todo sentido é excesso, o sentido do sentido gordura ruim, desnutrição. À beira-mar o mundo é gigante sem precisão de festa. Aquém da linguagem, caminha pelas águas. localizar informações explícitas em um texto inferir o sentido de uma palavra ou expressão implícita em um texto distinguir um fato da opinião relativa a esse fato identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros reconhecer diferentes formas de tratar uma informação em função das condições em que foi produzida e daquelas em que será recebida estabelecer relações entre partes de um texto identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto demonstrar domínio da língua culta Entrou na cidade a pé; logo mais, pés descalços. O gesto não fora planejado. Nenhuma solução para nenhum problema; o momento decidiu, a totalidade do momento. Toda uma dimensão a-significante encarnada, ritornelos gestuais (Deleuze, 1997). Onde se impôs a civilização pedagógica alguém certamente perguntaria sobre causas-efeitos. identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa estabelecer relações lógicodiscursivas presentes no texto identificar as marcas lingüísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados diferenciar as partes principais das secundárias identificar a finalidade de textos identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações Quando virou apressado a esquina de placas enormes de cidade-enorme não fazia idéia nenhuma outra senão a de virar a esquina, idéia de perna. Até aquele momento não tinha idéia, idéia de consciência, que um pensamento de estômago, coisa de ventre, irromperia ali aos berros. Foi só quando virou a esquina de placas enormes que um seu olho tragado foi, olho de estômago. Na virada integrou-se ao mundo, mundeou pela boca inundada de garganta. Atrás de si jaziam, tontas, placas enormes da doravante intitulada cidadeeducativa. estabelecer relações entre partes de um texto identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto de diferentes gêneros estabelecer relações entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la Pelo olho da fechadura de uma porta de uma casa impensada, ouviu palavras guturais, rastejantes, furantes, além de disrítmicas, proferidas de uma base monocórdia. Eram sons compostos por fonemas estranhos, inapreensíveis pelos princípios invariantes que detinha. Sons encantados, quatro notas: do, mi bemol, lá bemol e si bemol. Tons de incômodo ralentado na melodia arranjada; a voz infantil soava sem cabimento. Então que diferindo de si mesmo, percebeu de outro jeito. Entre eles circulação de afecção. Deu vontade de andar-chutar pedrinhas em ruas desconhecidas, enquanto repetia suave rebentação. reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido Não era mar nem cidade, mas estrada, passagem sem lugar. Com pernas e estômago lia placas, procurava se orientar empregando técnicas de leitura aprendidas na escola: Placa 1: saída norte → cidade, mar, montanha, céu e inferno; placa 2: saída sul→ inferno, céu, montanha, mar e cidade. A imprevisibilidade de lugares sem novidade encarnava palavras. Ali placas operam a totalização do mundo, invocando escolhas pré-ordenadas. Entretanto, não se fez daquilo um problema; já se havia feito em algum tempo as lições de fórmulas prontas. Voltou a brincar na superfície do espaço, sem fundo e fundamento, um pé na frente do outro em linha reta, equilibrando-se numa linha imaginária. Vez ou outra chutava pedrinhas, ouvindo sons rápidos vindos da terra; ou dava pequenos pulos para escapar de pequenas armadilhas: formigas como dragões, baratinhas como monstros; buraquinhos como grandes cânions o surpreendiam no caminho. Mundeava. identificar seu contexto social político histórico e cultural inferir as escolhas dos temas gêneros e recursos lingüísticos Percebeu-se num lugar que não se ligava a nada referenciado, nem nas placas nem na memória; indiscernível, o lugar

suspendia hábitos de pensamento. A princípio foi como ter encontrado um artefato de bolso, uma nova pedrinha, nunca antes vista. Faria o que fazem meninos quando encontram pequenos tesouros: tomaria em suas mãos e com cuidadoso gesto a arranjaria no bolso, logo mais viraria coleção. Mas não era uma nova pedrinha, era um lugar com força de diferente; lá se praticava outro, um estranho. selecionar relacionar organizar interpretar informações fatos opiniões e argumentos Silencioso, o relevo formava uma superfície pontiaguda com ar fresco, como se um vento soprasse de baixo. Quis ficar lá um pouco, experimentar-se destemido. Ali não havia árvores de placas para colher informações. Afastou-se então da vontade de placas. Ficou ali sem eira nem beira. Divergia ante os interesses da pura cognição. Estava investido de algo que o remetia para um entre, eu-lugar. Em pleno estado de não-reconhecimento, cutucava as saliências pontudas, cavocava o solo. Num monte de terra-pedra, vibração espacial, tudo se move na mão como se mudasse de lugar. Gostava da brincadeira, se encantava com o vibrar da mão, alternando forte e fraco, deserção e gesto. Aos poucos, percebe som de riacho magro e de pássaro escondido, sons minúsculos de bichinhos rastejantes. Ritmos se rompem entre meios ruídos, movimentos. De volta à estrada, um outro olhar mira pedrinhas que vagam no ar, tal qual as ondas de ninar que insistem em chegar até a praia, do além mar. situar a natureza da linguagem.

Referências DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia - vol.4, São Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. GIL, José. O imperceptível devir da imanência – sobre a filosofia de Deleuze. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2008, MEC-INEP. Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB: http://www.inep.gov.br/download/saeb/2001/Miolo_Novas_Perspectivas2001.pdf __________ Competências e Habilidades do ENEM: http://www.enem.inep.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39&Item id=73

HECCEIDADE Jorge Eiró Quem vem lá?

O pintor-professor engendra um jogo entre perceptos e afectos: hecceidades no espaço-tempo pictórico-literário. Personagem conceitual, esse professor-pintor recria-se numa colagem-clonagem de Francis Bacon, o pintor + Samuel Beckett, o dramaturgo. Expõe uma pintura-problema, sob a lógica da sensação do surfista plástico Gilles Deleuze. Bacon, diante da tela-tema, esboça-ensaia um drama Beckett: como escapar da representação na pintura? Bacon-Beckett, ele próprio um personagem-paisagem-empassagem, aponta que o sujeito prostrado no crepúsculo do “eu” não suporta mais a sua configuração, na forma de um auto-retrato como representação, ilustração ou narrativa. A desfiguração da imagem desse sujeito indica que “a pintura deve extrair a Figura do figurativo” (Deleuze, 2007, p. 17), para aludir à composição de um anti-retrato em sua tela plana, plena de imanência. Na arte moderna, à medida que a fotografia assumiu a função ilustrativa e documental, a pintura eximiu-se do compromisso de ser a historiadora visual da realidade. Entretanto, se no jogo ateu da arte moderna, ainda resiste a Figura, e esta é uma opção do pintor, resta-lhe “opor o figural ao figurativo” (Lyotard apud Deleuze, ib., p.12). “Conjurar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo que a Figura necessariamente teria” (ib., p.12) constitui-se, para o pintor Bacon, um tratado de impessoalidade: uma pintura de hecceidades, pois “há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade” (Deleuze, 1997, p.47). A utilização da figura humana, na operação pictórica da desfiguração de Bacon, parece aniquilar, portanto, qualquer tentativa de sublimação do sujeito moderno. Giulio Carlo Argan (1992), crítico de arte italiano, contesta o enquadramento da pintura de Bacon na corrente artística denominada Nova Figuração, posto que “é absurdo falar em ‘nova figuração’ para a deliberada e atroz desfiguração de Bacon, a qual invoca a ‘figura’ apenas para depreciá-la, aviltá-la, desfazê-la sob os olhos espantados do espectador”. E traça uma analogia com a obra de Beckett, já que “descobrir na pintura de Bacon um renascimento da figura seria como apontar um ‘novo humanismo’ nos romances ou nas peças de Beckett, o qual, em certo sentido, pode ser considerado como seu paralelo literário” (ib., p.489). Deleuze confirma: “Beckett e Bacon nunca estiveram tão próximos, e se trata de um passeio à maneira das caminhadas dos personagens de Beckett, que também se deslocam aos trancos, sem deixar sua área redonda ou seu paralelepípedo”. E convoca ao jogo ateu um outro maldito: “Segundo a lei de Beckett e Kafka, para além do movimento há a imobilidade, para além do ser em pé há o ser sentado; e para além do ser sentado, o ser deitado, para finalmente se dissipar. O verdadeiro acrobata é aquele que permanece imóvel na área redonda” (Deleuze, 2007, p.48), emoldurando “o quadro comum dos Personagens de Beckett e das Figuras de Bacon: a área isolante, o Despovoador.” (ib., p. 56). O corrompimento da imagem clássica do sujeito universal evidencia-se nos procedimentos desfigurativos de Bacon, que parecem acelerar a desagregação do “eu” da figura humana, retirando-lhe o ar e bloqueando qualquer perspectiva, muitas vezes passando um pano na pintura fresca, para desfigurar os rostos. Argan, um intelectual comunista de alta patente, ironicamente critica o olhar sócio-politizado das esquerdas do século XX sobre o homem de Bacon: “É quase inacreditável que as esquerdas intelectuais tenham considerado revolucionária [a pintura de Bacon] e que, apenas por

divisarem um fantasma de figura, tenham saudado como restauração da pintura figurativa o que, ao contrário, é sua desapiedada derrisão.” (Argan, 1992, p. 560). Na paisagem niilista que se esboça, uma questão lateja: quem virá depois do sujeito? “- Quem vem lá?...”, pergunta Estragon, um dos personagens da peça Esperando Godot de Beckett. “– Nada a fazer!”, ele sentencia. Mas não se trata de representar o ocaso do sujeito moderno, muito menos a “morte da pintura”, em cenários niilista-minimalistas da arte contemporânea. Sem nada a representar, nenhuma metanarrativa a ilustrar, nesse aparente vazio, instala-se a potência da pintura baconiana, ao redefinir o que Deleuze define como um novo funcionamento da pintura: “A célebre fórmula de Paul Klee, ‘não apresentar o visível, mas tornar visível’, não significa outra coisa. A tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis forças que não são visíveis.” (Deleuze, 2007, p. 62). Bacon pinta as forças que vêm do Fora. Despojado de suas vestes morais e religiosas, sem mais o peso dos escombros da modernidade sobre seus ombros, o Homo Baconianus eclode transfigurado, des-pintado de sua unoidentidade, um “eu” sem rosto, impessoal, (re)tratado em pura carne e espiritualidade. “Retratista, Bacon é pintor de cabeças, e não de rostos. Em vez de correspondências formais, a pintura de Bacon constitui uma zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal.” (ib., p.28). Hecceidade com a potência pictórica da sensação pura, um devir-animal do homem, suprimidos os traços de sua rostidade, configurados em traços de animalidade da cabeça. “Piedade para com a vianda!”, clama a pintura de Bacon. “A vianda é a zona comum do homem e do bicho, sua zona de indiscernibilidade, é o ‘fato’, o próprio estado em que o pintor se identifica com os objetos de seu horror ou de sua compaixão. (...) A cabeça-vianda é um deviranimal do homem!” (ib., p.31; p.35). Como operações de transvaloração agenciadas por meio da pintura e da literatura, Bacon e Beckett, em seus movimentos nietzsche-deleuzeanos, “espalham o ‘homem velho’ para além da ilusão de seu ser pessoal”, na canção de Caetano Veloso: para além do humano, para além do bem e do mal. Hecceidades nômades em permanente combate e à caça de novas possibilidades de vida, tendo em vista uma estética da existência. Um quadro de alegre energia, imanente vital, riso zombeteiro, gargalhada ecoando em deboche a nossas sedentárias identidades: “Deve-se render a Bacon, tanto quanto a Beckett ou a Kafka, a seguinte homenagem: eles deram à vida um novo poder de rir extremamente direto.” (ib., p.69). À primeira vista, a obra desses três artistas parece evocar um pessimismo niilista, desesperançoso: "- Isso está ficando cada vez mais insignificante” (Vladimir). “– Não o suficiente. Ainda” (Estragon). Nada a fazer? Muito a fazer, ainda: as figuras de Bacon e Beckett nos fornecem impulsos para como tornar visíveis forças invisíveis. Um mergulho mais acurado do olhar, uma retina mais nervosamente otimista, “de um otimismo que só acredita na vida” (Deleuze, 2007, p.50), nos seduz a “acreditar, não em um outro mundo, mas no liame entre o homem e o mundo, no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossível, no impensável, que, no entanto, só pode ser pensado: ‘um pouco de possível, senão sufoco’.” (Deleuze, 1997, p.221). Deleuze, uma vida, nos convida a um exílio, em sua Ilha Deserta, para surfar em ondas de imanência, e a nos escreviver, na areia semovente de suas praias, com a “Escrita” do poeta Max Martins: E somos só esta vã escrita nosso riso-risco contra um espelho, praia que nos inverte e desescreve dissolVENDO-NOS.

Referências ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Cosac Naif, 2006. DELEUZE, Gilles. “A imanência: uma vida”. In: Gilles Deleuze, imagens de um filósofo da imanência. VASCONCELLOS, Jorge et alli (orgs). Londrina: UEL, 1997. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon – Lógica da Sensação. São Paulo: Zahar, 1992. MARTINS, Max. Não para consolar. Belém: Cejup, 1992.

IMAGEM DO PENSAMENTO (Todo mundo tem, mesmo os imbecis, ainda que seja uma imagem idiota do pensamento) Ester Maria Dreher Heuser

Estudar as imagens do pensamento é estabelecer os prolegômenos do pensamento, voltar-se à teoria geral do pensamento, à sua forma e à sua função segundo o espaço mental por ele traçado. Trata-se, pois, de fazer uma noologia para saber quais são os princípios que regem um domínio, seja filosófico ou educacional ou político ou artístico ou científico...; estabelecer um sistema de coordenadas, de orientações: altura, profundidade, superfície, verticalidade, ascensão, conversão, horizontalidade. É, em suma, tratar do problema o que significa pensar, orientar-se no pensamento? Kant criou o conceito de “ato de se orientar” ao determinar o que é necessário e aconselhável para servir de orientação para o pensamento ou para o conhecimento dos objetos supra-sensíveis; desenvolveu uma concepção geográfica do pensamento no texto Que significa orientar-se no pensamento? (1974) e criou uma nova orientação para o pensamento que lhe permitiu ir mais longe que seus contemporâneos: pôs o limite, o impensado do pensamento dentro do próprio pensamento. Para Descartes especificamente, mas também para a filosofia antiga e medieval em geral, o que limitava a substância pensante estava fora dela, a res extensa, o corpo era o problemático, a resistência ao pensamento. Kant inverte essa lógica na medida em que percebe que o próprio pensamento abriga sua resistência: a linha pura e vazia do tempo que lhe atravessa, operando uma fissura no eu, como um prato rachado. Kant fez do tempo o limite interior do pensamento mesmo: a partir dele o tempo é o impensável no pensamento que o habita. Com tal inversão, a tarefa da filosofia muda: deixa de ser a de pensar o que é exterior ao pensamento e passa a ser a de pensar o impensável, a fissura que atravessa e aliena o pensamento, mas que, paradoxalmente, possibilita seu desenvolvimento. Obstáculo, morada e potência do pensamento, tudo agora ao mesmo tempo. Gilles Deleuze pegou a flecha lançada por Kant e reenviou-a para outro lugar, para a imanência absoluta da vida; considerou pobre a sinonímia entre pensamento e conhecimento, potencializou o conceito de devir em detrimento do ser e, assim, tratou o pensamento como experimentação e viagem, como encontro contingente com signos e tornou impossível dizer o que o pensamento é senão pela condição de dizer o que ele faz; pôs o pensamento ao lado da vida: ambos concebidos como processo de criação, produção de singularidades e diferenças. Obcecado pela noologia, inaugurou uma nova relação com a filosofia ao criar cartografias do pensamento. Ele compreendeu que, para determinar as condições da filosofia, é imprescindível trazer à luz as imagens do pensamento, uma vez que a própria criação de uma filosofia, com seus problemas e conceitos singulares, é guiada, orientada, necessariamente, por uma imagem do pensamento. Ao retratar as imagens do pensamento, Deleuze tornou visível que: → elas têm variado muito na história e na geografia da filosofia: imagem grega, moderna, contemporânea, oriental, ocidental, religiosa, teológica, ateológica, sedentária, nômade, assentada, vagamunda, socialista, capitalista, anarquista, racionalista, hedonista, vitalista...; → não se trata de conceber tempos e territórios com imagens homogêneas e solitárias; pelo contrário, há várias imagens do pensamento em disputa, coexistindo sobre um mesmo estrato geo-histórico; imagens que traçam orientações, vetores segundo clinâmens imprevisíveis; → uma imagem do pensamento surge cada vez que o pensamento se depara com um novo problema, com o que até então não havia sido pensado. No entanto, não se trata de ultrapassar as imagens já existentes, mas de uma mutação da imagem na medida em que ela segue um devir do pensamento, quando este se depara com o acaso, com forças estrangeiras que o coagem a criar, a escolher e a se distribuir, de outras maneiras, entre várias soluções antes impensadas; → não é exagero dizer que imagens do pensamento determinam variáveis estilísticas, uma pluralidade de ethos, de modos de vida, múltiplas possibilidades de existência: ativa ou reativa,

afirmativa ou negativa, intensiva ou extensiva; → a noologia, na medida em que determina os princípios que orientam o pensamento, estuda também os movimentos estilísticos de uma filosofia, de um pensamento, de uma vida. Estilos expressos na escrita, nas anedotas, na alimentação, nos lugares que determinam maneiras de estar no mundo. Fiquemos com duas imagens distintas, dois retratos de vida e de pensamento gregos, distantes de nós no tempo de Cronos, mas, talvez, nossos contemporâneos no tempo de Aiôn: α) A clássica imagem do filósofo nos meios populares e científicos, imagem retratada pelo indecidível Platão-Sócrates que vence o deus do tempo e se mantém forte entre nós. Ser das ascensões, vive como padrão do ideal ascético: come comidas ruins, toma bebidas horríveis, anda descalço pela polis, não veste túnicas e vive em todas as estações com o mesmo manto sujo que também serve de coberta e colchão, não cobra dinheiro de seus alunos e contenta-se com a existência de mendigo; mestre de miséria, mais que de alegria, ensina as idéias, as virtudes, os conceitos puros que habitam um mundo celeste; afirma que o essencial está em outra parte, no céu inteligível, em um mundo de idéias perfeitas, mas ensina que, para ascendê-lo, é preciso sair da caverna, do mundo de ilusões que nos faz acreditar que a felicidade está na matéria, nas delícias e na magnificência, que ela depende do que se bebe e come e do que o corpo sente. Com o nariz perdido no céu ideal, Platão-Sócrates menospreza a vida e suas necessidades, volta-se para o alto, cria uma cidade perfeita na tentativa de se avizinhar da divindade, se aproximar da perfeição e contemplar a verdade em si, a verdadeira natureza das coisas, sua essência, unicamente por meio da alma imortal e imperecível. Quais são suas coordenadas? O que é orientar-se no pensamento para a imagem clássica do filósofo? O que é viver? Qual é a imagem do pensamento que subjaz a tal ethos? A altura é o seu Oriente; transcender, alcançar a idéia em si mesma é a sua meta; viver é uma doença para a alma que, ao seu fim, encontra a cura (ao ponto de oferendar um galo a Asclépio!) e segue o melhor rumo, transforma, assim, a existência em eterna ocasião de renúncia; a imagem do pensamento é moral e dogmática – assim a caracteriza Deleuze –, pois, com ela, a moral, a filosofia, o ideal ascético e a idéia do pensamento estabeleceram íntimos vínculos. Para tal imagem, pensar significa (re)conhecer as coisas como elas verdadeiramente são em sua natureza; pensar é um exercício natural, universal, mas que, para se efetivar, necessita da boa-vontade do pensador, do abandono do corpo de suas necessidades e vontades, precisa de um método que lhe garanta prosseguir no caminho rumo à verdade do mundo ideal que serve de modelo a esse mundo caído, sem incorrer no erro, na ilusão, na loucura, na errância infinita; pensamento da recognição que só faz buscar a identidade dos objetos. β) Em um tempo e espaço semelhantes, um pré-socrático contemporâneo sic a Sócrates e Platão: Demócrito de Abdera (460-356) (nove anos mais jovem que Sócrates, morreu 9 anos antes que Platão! Estranho para um pré-socrático? Para dizer o mínimo. No entanto, como Cristo, Sócrates é o ponto referencial da História oficial da filosofia, da História contada pelos vencedores que fazem questão de se desvencilhar – para não dizer negar – daquilo que difere de si. Onipotência do idealismo levado a termo pelo indecidível Platão-Sócrates e seus fiéis). Um filósofo menor, defensor do materialismo antigo, acredita no vazio e nos átomos, exclusivamente; dispensa os deuses, celebra o real concreto e imanente, convida os homens a uma existência alegre, jubilosa – inimigo, portanto, de Platão-Sócrates, pois não pensava como ele... Dizem por aí – se é verdade não sei, falam de tudo – que Platão planejou queimar as obras de Demócrito, mas foi dissuadido do plano pelos pitagóricos Amiclas e Clínias. O dinheiro lhe interessava na medida em que servia de meio para tornar a existência simples e ter uma vida feliz – tal como Tales, ele especulou com trigo e acumulou uma considerável fortuna, para exaltar as vantagens do bom uso da razão, da dedução e da suposição.

Preferia a vida solitária e meditativa e às vezes era visto caminhando pelo cemitério. Escreveu uma vasta obra – argumento utilizado pelos pitagóricos para demonstrar a Platão que não conseguiria queimá-lo de todo – e nela afirmou que a única eternidade é a mudança; que o trabalho sobre si possibilita uma auto-modificação decorrente da disposição dos átomos que o compõem; afirmou a integridade do único bem que temos: a entidade constituída de átomos que costumamos expressar por meio das palavras corpo e alma – ambas compostas de átomos, de matéria organizada; indicativo de que não há: alma separada do corpo, depreciação da carne e valorização do espírito, imaterial preso no material; a morte é desagregação de átomos, decomposição das disposições atômicas. Ficou cego, mas a perda da visão física aguçou sua inteligência e a sensibilidade dos demais sentidos. Atomista que era, compreendia que os átomos concernem a todos os sentidos; como prova disso, contam-se duas anedotas: em uma noite, na companhia de Hipócrates, passa por uma moça e a cumprimenta como senhorita; no dia seguinte a encontra outra vez e a saúda como senhora, pois, durante a noite, a jovem havia se tornado uma mulher consumada – a disposição dos átomos havia se modificado! Andando por um porto do Mediterrâneo, Demócrito percebeu a sagacidade de um carregador, comprou-o e promoveu-o a secretário, o qual, mais tarde, se tornou o filósofo Protágoras. As anedotas atingem o ponto secreto no qual vida e pensamento se fundem, dirá Nietzsche. No caso das anedotas atômicas que nos servem de guia nessa sugestiva imagem de vida e pensamento, uma última historieta pode contribuir para determinar com maior precisão as coordenadas de tal imagem: segundo a irmã de Demócrito, a última vontade manifestada pelo irmão antes de morrer foi ter seu cadáver conservado em mel... Quais são os eixos e direções que orientam o pensamento e a vida do atomismo abderiano? Qual é a imagem do pensamento que o condiciona? Tudo passa no plano, na horizontalidade da superfície. Tudo o que acontece, o que se sente e o que se diz acontece, se sente e se diz na superfície. Luta contra a transcendência e a reação à vida, ao real, à matéria, ao corpo; luta contra as ficções platônicas, superação da verdade ideal, da divindade e da alma imaterial. Vida depois da morte? Só se for de uma sensibilidade do corpo pos mortem conservada em banho de mel! Sensibilidade repleta de vontade de vida, forte desejo de continuar registrando modificações atômicas vitais, de sentir a diferença movimentando-se “na própria pele”. Imagem do pensamento sem modelo, sem Imagem e regras prévias; imagem-simulacro que afirma o eterno movimento diferencial dos átomos-simulacros; imagem da repetição e da variação contínua dos átomos, que nunca repetem a mesma forma; imagem rebelde que não se submete a padrão ou modelo algum, que recusa a representação e vive a diferença tragicamente, dizendo sim aos horrores e prazeres, às tristezas e alegrias da existência; imagem que suporta altas doses de imanência e arrisca os perigos, condenações e denegações sem apelar a divindades, mundos superiores, verdades prévias e eternas porque só acredita nas verdades que inventa e sabe que o pensar, o ato do pensamento, é da ordem da raridade, que não é natural nem necessário, mas depende da contingência dos encontros. Trata-se, pois, de organizar os encontros para que sejam potencializadores de notáveis combinações atômicas. Imagem (do pensamento) em variação contínua na história e na geografia do pensamento, no devir da filosofia lançando flechas para o porvir. Referências DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia; tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976 (especialmente no capítulo III “A Crítica”, § 15 “Nova imagem do pensamento”). _____. Diferença e repetição; tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de

Janeiro: Graal, 1988 (terceiro capítulo “A imagem do pensamento”, p. 215-273). _____. Lógica do sentido; tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2003 (mais diretamente as séries 12ª, 14ª, 15ª, 18ª, 31ª e os apêndices: “Platão e o Simulacro”, “Lucrécio e o simulacro” e “Zola e a fissura”). _____. Proust e os signos; tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 (todo o livro é um tratado sobre as condições de efetividade do pensar no pensamento; no entanto, a conclusão da primeira edição “A imagem do pensamento” sintetiza a imagem do pensamento que Deleuze cria a partir da obra literária de Marcel Proust “Em busca do tempo perdido”). _____. Conversações, 1972 – 1990; tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992 (na entrevista “Sobre a filosofia” p. 169-193 Deleuze designa noologia como o estudo das imagens do pensamento). _____. A ilha deserta: e outros textos; edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006 (na entrevista “Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento”, p. 175183). _____. A imagem-tempo; tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34 (os platôs: “Introdução: rizoma” (vol. 1), “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra” (vol. 5). _____. O que é a filosofia?; tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992 (o capítulo intitulado “O plano de imanência”, p. 49-79 e a conclusão “Do caos ao cérebro”, p. 257-279). DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos; tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998 (a primeira parte “Uma conversa, o que é, para que serve?”). CORAZZA, Sandra. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006 (no texto “Uma teatralogia para pensar, chez Deleuze”, a autora apresenta as variações e a equivocidade da imagem do pensamento na obra de Deleuze, sumariamente na segunda parte “Turbulência”, In., p. 75-117). Educação & Realidade, vol. 27, n. 2 (jul./dez). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 131-141 (nesta edição da revista da Faculdade de Educação da UFRGS, o Dossiê Gilles Deleuze, a Imagem do pensamento se atualiza em muitos dos textos que o compõem e dão a pensar o território da educação atravessado pela filosofia de Deleuze; destaco o texto “Noologia do currículo: Vagamundo, o problemático, e Assentado, o resolvido”, de Sandra Corazza, como uma notável abordagem de uma teoria do pensamento do currículo). KANT, Immanuel. Que significa orientar-se no pensamento? In. KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.

INCLUSÃO ESCOLAR Marcos da Rocha Oliveira “Acho que devíamos tentar ser mais diretos. – Mais claros também. – Mais diretos e mais claros, o que nem sempre é compatível” (Blanchot, 2001, p.124). – Neste ponto, destaco, então, três conjuntos de relações entre homens que permitem a tentativa de escrever um verbete Inclusão (hoje) sem demasiado oportunismo, sem conformar-me “à linguagem reinante” (Barthes, 2004, p. 394) – certo de que, com isso, não posso garantir nenhuma compatibilidade. – Escrever sem o recuo dos pronto-entendimentos, das estereotipias débeis, é sempre uma tarefa crítica – que não tem outro escopo que não seja o de pôr em crise a linguagem. – Diante disso, é com “atrozes pruridos de descompor as idéias feitas em educação e em seus confins, quais sejam: galimatias, babaquices, inépcias rutilantes, flagrantes certezas, ignorâncias felizes, grosseiras besteiras, afirmações vergonhosas, clamorosas trivialidades, tolices aparvalhadas, inconcebíveis pobrezas de espírito, absolutas ausências de bom gosto, que passam por preceitos filosóficos, sociológicos, psicológicos, pedagógicos” (Corazza, 2008), que leio a relação interruptiva do homem sem horizonte – aquela da “Diferença da palavra, diferença que precede todo diferente e todo único” (Blanchot, 2001, p123) – e me dedico a esta tarefa crítica que é escrever. Para tanto, apresento brevemente tais conjuntos de relações. 1) O primeiro tipo de relação é a mediata, onde tal relação se dá por intermédio de um terceiro termo, determinante sobre os demais. Império da natureza indiferente, do imenso universo, onde o que é outro deve ser tomado para se conformar com o idêntico; a lei de funcionamento é clara: a do mesmo. Tudo recai e retumba na mesma matéria, de modo que todo elemento pode ser reduzido ao mesmo e este pode assumir a plenitude de uma totalidade; tal trato de adequação e identificação é subsidiado por mediações discursivas que são as próprias vias pelas quais, querendo encontrar uma unidade sistêmica, chega-se a separação de seus elementos. 2) O segundo tipo de relação é a imediata, onde a constatação do funcionamento das relações não encontra um parcelamento da matéria universal, mas sim a distância entre elementos essencialmente diversos. Se, por um lado, as relações do primeiro tipo encontram a unidade através da mediação com um universo maior, o Uno, aqui, neste segundo conjunto de relações, é a própria relação que tende a ser única e irredutível – mas para isso cada elemento posto em relação deve ser essencialmente uma unidade. O funcionamento deste tipo de relação submete-se, a um só tempo, às leis das unidades que participam de tal relação; porém, como há uma unidade primeira Eu-sujeito e uma unidade Outro, ambas acabam imediatamente assumindo uma participação análoga nestas relações singulares – de modo que o Outro, aqui, não passa de um correspondente do Uno que se estabelecia nas relações do primeiro tipo. 3) O terceiro tipo de relação é a interruptiva, a da estranheza que escapa à toda medida praticada nos outros dois conjuntos de relação. A relação do terceiro tipo é múltipla, pois, não se submete ao Uno e não se diversifica com base em alguma unidade, não admite nenhum trato de unificação. Ela é pressentida como “uma outra

forma de palavra e uma outra espécie de relação onde o Outro, a presença do outro, não nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (BLANCHOT, 2001, p.120). Tal estranheza não pode, assim, ser confundida com a separação operada pelas relações do primeiro tipo, bem como de modo algum se confunde com a distância produzida pelo conjunto de relações do segundo tipo; tal interrupção pode ser dita, de maneira mais precisa, pela palavra entre, de modo que não é, simplesmente, o absoluto Nada – mas, talvez, somente a inanidade impassível de ser recolhida pelos dois primeiros tipos de relação: um vazio radicalmente distante de qualquer alcance; quer mediado pelo horizonte último do Uno, quer por intermédio do horizonte contínuo da unidade. “– Gostaria que aqui voltássemos ao nosso ponto de partida, quando um de nós propunha tentarmos ser mais diretos. Parece-me que não fizemos nada a não ser preparar-nos para a franqueza por desvios bastante sinuosos” (Blanchot, 2001, p.124). – Talvez porque tínhamos claro apenas a tentativa de afastar certo oportunismo. – Neste ponto, somente incluo um vazio. – O ponto aqui é, então, como a inclusão escolar trata estes tipos de relação. – Para saber, ora, “é só prestar um pouco mais de atenção, ou menos” (AQUINO, 2007. p. 112). Referências AQUINO, Julio Groppa. Instantâneos da escola contemporânea. São Paulo: Papirus, 2007. BARTHES, Roland. Escritores, intelectuais, professores. In. . O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – A palavra plural. Vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001. . A conversa infinita – A experiência limite. Vol. 2. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007. CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens – filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. . Rolinha Velha. Disponível em . Acessado em 22/07/2008 – 21h 34 min.

JOGO DE DADOS Cintya Regina Ribeiro O urogalo vive solitário e livre entoa um canto triste de que vive e morre se não canta mas se canta atrai o caçador que lhe dá morte É ave vive sobre a morte e cai quando o seu canto lhe aviva a vida que lhe causa a morte. RUY BELO

Sem pedir licença, o poeta nos lança à vertigem dos dados. A circularidade infinita já enuncia as condições do jogo. A vida é convocada, mas se dispensam os adereços das utopias. Não há salvaguarda numa exterioridade metafísica. Não há zonas de conforto sustentadas e protegidas pelas retóricas relativistas. Não há esperança de complacência humanista, seja neste ou noutro mundo. À vida crua cabe apenas fazer o próximo lance, inevitável, fatal e necessariamente. Se repetíssemos alguns dos versos acima numa seqüência frenética, seríamos dragados pela contingência dos lances: o cantar evoca a morte, mas produz vida em expansão; o silêncio preserva a vida, mas fecunda morte em expansão. Aqui, as metafísicas em suas múltiplas cores não mais nos salvam em suas combinações à moda Frankenstein. Agora, vida e morte explicitam suas condições imperativas no mundo dos homens. Não é mais possível negociar a alma, essa moeda apodrecida, nas bancas dos mercados metafísicos, pois o “homem” não é mais o valor no jogo. É a própria vida. Ou, a morte. A problematização das condições e dos efeitos da fatalidade da existência será a arena na qual vida e morte digladiam, em suas forças ativas e reativas. Os tempos do acaso e da necessidade orquestram essa luta, imbricados no jogo de dados. É nosso o problema trazido pelo poeta. Lancemos os dados, pois. Não há escapatória; o canto é simultaneamente condição de vida e de morte. Cantar, ou não, é o gesto possível que, uma vez formatado, torna-se configuração necessária, autenticando vida ou morte. Cantando ou não, já estamos em jogo, necessariamente. E essa condição, por ser inelutável, não pode mais ser tomada como possibilidade de escolha, como efeito de uma disposição alternativa. Estamos, assim, ressoando no coração de Nietzsche. Para ele, a inevitável fatalidade da vida humana nos vincula a um jogo duplo com o acaso e com a necessidade. Tentar escapar desse jogo seria enredar-se na armadilha metafísica, cujo efeito é a despotencialização da vida. O feltro na mesa, os dados, a partida. O acontecimento dos lances desenha continentes e postula verdades. Tudo é muito rápido. Fácil é perder a força do acaso em sua cartografia de possíveis, de conjunção de forças ativas e/ou reativas. Fragmentado, recortado, dissecado em probabilidades, cada pedaço do acaso trazido na combinação do jogo de dados agora se converte em força, enfraquecendo a possibilidade do retorno desse acaso em sua totalidade de possíveis. Se não há como se ausentar dessa partida, eis que, no jogo com o acaso, cantamos, atraímos o caçador que nos dá a morte, silenciando-nos pelo ato já sabidamente perdedor. Eis a verdade alardeada como prova, corroborando o ato perigoso do cantar! O acaso, como possibilidade do múltiplo, perde potência então, pois a “provável inevitabilidade” da morte se impõe como verdade, seqüestrando a possibilidade de seu retorno como força. E se, a despeito disso, continuássemos o canto, evocando a multiplicidade do

acaso e afirmando a possibilidade de vida que o habita à revelia da morte que também o habita? E se, a cada lance, a configuração das condições necessárias (viver ou morrer) não impedisse que o acaso continuasse sendo afirmado? E se, no limite, reafirmássemos a possibilidade do retorno do acaso, ainda que sob o risco do retorno da morte? É a radicalidade dessa posição política que se encontra na estratégia do jogo de dados. Nas trilhas de Nietzsche, faz-se necessário recusar as situações humanas de retroalimentação da esperança infinita numa luta entre bem e mal. Afirmar o acaso é tomar a vida e a morte como condições possíveis, para além de bem e de mal. É só desse lugar do múltiplo que a vida pode ser afirmativa, pois sua força não está na vitória reativa frente à morte, mas na potencialização de si mesma como fluxo de produção. O chamado circular do poema faz repetir essa condição do risco. “Porque o canto mortífero dá vida”, insiste o poeta, numa tautologia sem fim. “E apenas o perigo dá sentido à vida” lembra-nos, novamente. Seria o poema o próprio refrão a se repetir como um canto que insiste cantar, à revelia de si próprio? É a repetição do mote trágico da fatalidade ali implicada que confere ao jogo a abertura ao acaso e a virtualidade da potência. Na repetição afirmativa das condições necessárias, reedita-se permanentemente a possibilidade do outro lance. Amar essa condição fatal do canto, afirmando seu gesto contingente de vitalização ou mortificação, é o convite nietzscheano para essa mesa de jogo. O filósofo nos convida a tomar a contingência dos lances como condição necessária e, ao mesmo tempo, a afirmar o acaso a cada lance. A necessidade não se impõe sobre o acaso, abolindo-o. Ao contrário, o lance que constrange o necessário atualiza-o como força e evoca seu retorno. A radicalidade desse canto perigoso encontra no ato do pensamento sua materialidade. Isso nos convoca a um jogo educacional trançado pelo jogo de dados do pensar. Se este pode ser um lance de dados, tal como nos sugere o poeta Mallarmé, ele é risco, uma vez que, ao evocar o possível da multiplicidade e formatar contingências, se afirma e se atualiza o retorno do acaso do pensamento no próximo lance. Ora, educação é território de fatalidade de vida, jamais promessa de sobrevida metafísica. Requer amar a fatalidade do risco: jogar dados com o pensamento, fazê-lo cantar, ainda que. Referências BELO, Ruy. “O urogalo”. In: ______. Todos os poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. ______. “O trágico”. In: ______. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

JORNADA ESCOLAR Karen Elisabete Rosa Nodari Há tantas jornadas quantos caminhos percorridos. E assim, trajetos se formam. Existem os que conduzem a vários lugares e outros que se repetem. No primeiro caso, rapidamente, surge à mente cenas de uma maratona no parque, do vai e vem dos automóveis numa avenida e, em tempo de Olimpíada, até mesmo, um saque – o Jornada nas Estrelas. Aquele no qual a bola pode alcançar uma altura de 25 m., tal como um foguete lançado no espaço, até cair, velozmente, na quadra adversária. De qualquer forma, seja na terra ou no ar, com ou sem bola, trata-se, invariavelmente, de um deslocamento. Mesmo que este ocorra, como no segundo caso, num único e mesmo local, aonde se vai – do saguão ao laboratório de Informática, do laboratório de Informática à sala de Música, da sala de Música à Biblioteca. Conhecido espaço repleto de salas, horários e regras determinadas. Local em que todos os dias, faça chuva ou sol, exceto o sábado e o domingo eles chegam: trazendo suas mochilas, tênis e boné. Ingressam com mais ou menos sono, com mais ou menos pressa, com mais ou menos vontade de começar... Novamente. Pois, a jornada escolar acaba, justamente, para ser reiniciada no dia seguinte. Há sempre uma pausa entre um turno e outro. Se por um lado, ela dura 8 horas, por outro se estende entre março e dezembro. Dia após dia, ano após ano. Uma vez que, as explicações, os exercícios, as perguntas, as aulas de laboratório, as entrevistas com os pais, bem como, as pautas das inúmeras reuniões de professores para tratar da aprendizagem dos alunos, nunca se esgotam. Há quem não encontre encantos na jornada escolar. Como se esta se traçasse somente com linhas que conduzem a pontos fixos – do primeiro ao segundo período da manhã, da explanação no quadro a resposta correta do exercício de Matemática, da leitura do conto do Nelson Rodrigues ao preenchimento da ficha de leitura. Pode até parecer que tudo que se passa durante o turno da manhã ou da tarde, já foi visto ou dito. É inegável que a rotina faz parte da vida escolar: o primeiro, o segundo, o terceiro trimestres... Os alunos aprovados, os alunos em recuperação e os reprovados... Os Conselhos Participativos... Os Conselhos de Classe... As reuniões de professores... Jornada circular. Caminhos percorridos por tantos pés sem sair do lugar. Os ligeiros, os vagarosos, os grandes, os pequenos, os tímidos e os destemidos. Deslocamentos intensos. Pés que não necessariamente sabem aonde vão chegar quando se trata de aprender. Muito embora seja possível defini-lo: apprendere, quer dizer tomar conhecimento, instruir-se, ficar sabendo, ignora-se como ele ocorre. Sem dúvida, consiste num grande mistério. O qual muitos entendem ser possível pré-estabelecer e fixar os seus rumos. No entanto, aprender implica em partir. Deixar para trás os planos de ensino, os métodos educacionais e as planilhas de rendimento escolar. É descer das alturas e ganhar a terra. Vislumbrar horizontes e perder verticalidade. Ir para os lados e não mais para cima. Desprender-se do conhecido território formado pelas paredes da sala de aula, com suas filas de classe, o quadro que não é mais negro e a mesa de um professor para criar outro. Um ato corajoso de lançar-se ao desconhecido, de explorar territórios inexplorados, de viajar por uma terra estranha. E outras linhas podem ser traçadas. Aquelas que escapam das respostas corretas, do esperado, do planejado. Como sabê-las, sem percorrê-las? O conhecido, o esperado, o velho, oculta o desconhecido, o inesperado e o novo. Uma outra jornada dentro da mesma jornada começa a se desenrolar: os efeitos simétricos ocultam a repetição da dissimetria, o Outro na repetição do Mesmo, a repetição estática na repetição dinâmica. A repetição expressa à singularidade contra o geral, um relevante contra um ordinário, uma universalidade

contra uma particularidade. De repente, toda aquela conhecida sucessão de dias, de horários, de períodos é rompida... Quando menos se espera. Deixa-se de reconhecer, enquadrar, identificar o que se vê. Alguma coisa foge do cogito cartesiano e retira o cérebro do seu torpor. Engana-se quem pensa que se tratam de duas jornadas independentes. Uma é somente o revestimento externo, o invólucro, a casca da outra. Nela forças puras são experimentadas, traços dinâmicos são feitos no espaço, sem intermediários. A verdade da jornada escolar está na máscara, no disfarce, pois a repetição não se oculta, senão disfarçando-se. Referências DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _________. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. _________. O mistério de Ariana. Lisboa: Veja, 1996.

LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL Deniz Alcione Nicolay Aprendemos com os filósofos iluministas que todo Estado para ser bem governado depende da eficácia de seu corpo político. Este, por sua vez, necessita de um sistema que movimente, de modo preciso e indissolúvel, uma verdadeira máquina de jurisprudência. Cabe a está máquina produzir sanções legais que atendam, sobretudo, a vontade geral em detrimento aos interesses de particulares. É sobre as bandeiras da liberdade e da igualdade que as forças da legislação devem operar para, deste modo, conservar seu poder de regulamentação da vida. As leis, portanto, estabelecem as condições de existência da própria sociedade civil. Nesse sentido, a legislação educacional também estabelece as condições de existência dos sistemas educativos. Porém, no vocabulário da Diferença essa expressão (Legislação Educacional), produto da modernidade e a disposição das sociedades disciplinares, deve ser colocada sob suspeita. Ora, as idéias modernas, que embora propunham a superação do modelo Teológico-Dialético pela crítica transcendental kantiana, ainda produzem em seu interior um ódio viscoso e profundo, tão antigo quanto as marcas do ressentimento judaico-cristão. Mesmo abraçando a causa de uma educação pública, democrática e gratuita (como dever do Estado), aquilo que ressoa nos interstícios da lei é o triunfo das forças reativas. Mas para entendermos melhor essa negação da vontade devemos acompanhar Nietzsche (1998, p.17) na sua Genealogia da moral. Quando o filósofo escava a etimologia dos termos “Bom e mau”, “bom e ruim”, ele percebe que as expressões pelas quais primeiramente se designavam virtudes e valores nobres (ou seja, dos senhores) passam para a boca dos escravos com seu próprio sentido revertido. Assim, os bons tornam-se maus, na medida em que sua valoração moral é substituída por uma moral utilitarista, cuja única finalidade é a conservação de uma memória histórica (de rebanho). Não esquecemos nada quando é nossa própria pele que sofre as marcas da desobediência; talvez esse receio de não sofrer é que imponha aos indivíduos, de um modo geral, um clima de respeito e obediência aos mecanismos de jurisprudência. Obedecer as leis, nesse sentido, também é um exercício de fidelidade à Deus. Por isso, tratando-se de Legislação Educacional devemos proceder conforme o método da genealogia, ou seja, avaliar e interpretar quais são as forças que entram em combate na imposição de qualquer lei, regra, norma ou código, que se instala no interior das escolas. A pergunta da Vontade de Potência é “Quem?” e da Força “O que quer ?” (Deleuze, 1976, p.63), de maneira que possamos formular algumas provocações sobre a seriedade da legislação. Por exemplo, “Quem quer a inclusão de crianças com necessidades educativas especiais nas escolas?”, “O que quer o planejamento anual das secretarias?...” Se entendermos, desta forma, um mero exercício de crítica ocasional e oportunista, pois sempre procuramos um culpado pelo insucesso de nossas ações, estamos enganados! É a própria crítica que abandona as aparências (a pergunta socrática-platônica do que é?) para descer as profundezas do conceito, diagnosticar sua doença propriamente dita e, com isso, gerar novos valores, mais saudáveis, puros e leves. Nada de dialética, isto é apenas uma sintomatologia. Chegamos num ponto em que dois movimentos vitais podem ser equiparados, ou seja, legislar = criar. A tábua dos antigos valores deve ser quebrada para que outros valores venham a superar tudo que, até então, entendemos por verdade. Entretanto, devemos ser fortes para superar a transvaloração, para dizer um SIM incondicional ao acaso e, assim, invocar as forças regenerativas do caos. Caso contrário, a roda de

Ezequiel continuará a reproduzir apenas uma seqüência de imagens, produto distorcido da razão que se acreditou (na modernidade) superar a velha metafísica. O próprio Nietzsche (2005, p.105), que de início venerava as funções dos filósofos-legisladores, os únicos capazes de criarem novos valores, acaba qualificando-os de “trabalhadores da filosofia” por não realizarem a verdadeira crítica, mas apenas instalarem um tribunal de juízo à maneira kantiana. Julgar sem criar nada é um mero exercício do poder gregário, uma doença degenerativa dos instintos provocada pelo espírito do ressentimento. Formulamos, então, o grande problema da legislação educacional: “Como acabar com o juízo de Deus nas escolas, a fim de criar uma outra tábua de valores? ”. Com Nietzsche e Deleuze perseguimos um pensamento nômade, ou seja, linhas de fuga que possibilitem a superação do juízo, uma vez que esse cerceamento das consciências inibe qualquer possibilidade de que algo novo (de novo) possa reivindicar a condição de existência. Nada de organismos, apenas um corpo sem órgãos. O único critério de avaliação é aquilo que aumenta ou diminui nossa vontade de viver. Nenhum sujeito, apenas forças em permanente combate. Um profundo vitalismo contra qualquer burocracia. O devir em lugar da História. Nomos em oposição às leis. Nunca mais ideologias, mas noologias. Quem realmente faz a Diferença são as minorias (e não as maiorias). Eis alguns axiomas para desordenar o juízo e os valores cristalizados, normatizados e aplicados pela jurisprudência nas escolas. Se começamos a deixar para trás as heranças das sociedades disciplinares, também as instituições modernas, como a escola, deverão padecer pela rigidez e lentidão de seus órgãos oficiais. Numa perspectiva de formação permanente que se anuncia, onde os riscos de uma lógica de mercado perversa reduz a criação da arte e do conhecimento nas escolas, talvez devêssemos desaprender qualquer forma de imposição.E quem sabe os burocratas, antes de legislar, também aprendessem algumas lições da infância. Referências DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. _________. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. _________. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. ___________. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ___________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LINHAS O Verecdito: linha de morte inelutável José Menna Oliveira Rosana Fernandes Não há saídas em O Verecdito de Kafka. Há sim todo um diagrama de soberania, onde as relações de forças desencadeiam um agenciamento fascista, e acionam um campo no qual o despotismo — com suas linhas de segmentaridades molares ou duras — é a única alternativa ao aniquilamento — composto por linhas que afundam, afogam, ou caem em buracos negros. Nos dois casos, as linhas jamais se conectam a fim de suscitar um agenciamento ativo e afirmativo. A novela de Kafka narra a vida de Georg Bendemann, jovem comerciante, que seguidamente escreve cartas para seu amigo há três anos refugiado em São Petersburgo. A trama transcorre em uma manhã de domingo, em que Georg se vê às voltas com uma missiva de conteúdo inédito: A melhor novidade eu guardei para o fim. Fiquei noivo da senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família bem posta (1993, p.14). Até então, nas correspondências de Georg, o sujeito enunciado aniquilava o sujeito da enunciação — embora exitoso nos negócios e feliz com o noivado, Georg omitia tais notícias. Afinal de contas, o amigo definhava na Rússia, sua vida lá andava mal, e se Georg lhe contasse a verdade, só faria torná-lo cônscio do próprio infortúnio. Decidindo comunicar seu noivado, Georg ensaia uma ruptura, uma linha de fuga possível à lembrança daqueles três anos em cartas. Mas hesita, e antes de enviar a carta consulta o pai. Este tem vários paralelos com o amigo: vive em um quarto escuro (enquanto o amigo vive na Rússia distante), é viúvo (enquanto o amigo se encaminha para a vida de solteiro) e ambos experimentam o declínio profissional. Após uma breve conversa, o pai diz a Georg: Você veio a mim para se aconselhar comigo sobre esse assunto. Isso o honra, sem dúvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade. [...] Você realmente tem esse amigo em São Petersburgo? (1993, p.18) Eis um clímax, que dá visibilidade a uma saída — aparente. Georg pode optar por sim, afirmar diante do pai a carta que tem no bolso, ou então curvar a cabeça, e recolher-se à inexistência do amigo em São Petersburgo. Mas ele não responde, volta-se com cuidados para o pai, decide-se por chamar-lhe um médico e por mudá-lo de quarto, levá-lo para um mais ensolarado. É assim que a linha de fuga incipiente recai sob as linhas molares suscitadas via relação com o pai. As linhas de fuga têm seus perigos e suas ambigüidades. Georg vacila, deixa escapar a chance, não diz sim e não diz não, expressa somente meias-vontades, não tem coragem de arrebatar para si a inocência do devir e perde o tempo da linha de fuga. Ele mesmo não crê na própria inculpabilidade, mas em instâncias superiores — Meu pai continua sendo um gigante (1993, p.16) —, aptas a concederem o bem, a verdade, ou a aplicar penitências, absolvições, sentenças. Mas, ainda no tempo da pergunta, antes que Georg optasse por tergiversar, não havia efetivamente uma saída. Sem que ele soubesse, as duas respostas levariam ou ao despotismo do pai, ou ao próprio aniquilamento. Se Georg optasse por negar ao pai a existência do amigo, tão somente se curvaria às linhas duras e aos enunciados que regulam sua vida desde muito tempo — tem-se aí o despotismo do pai, um agenciamento fascista, e suas linhas molares. Por outro lado, se optasse por sim, afirmando o amigo no estrangeiro, ergueria um bastão reclamando algo que não lhe afirmaria, incorreria em recrutar um adversário. O pai mantém uma correspondência ativa com o amigo, inclusive o desejaria como filho. Diz o pai a Georg: ele [...] amassa sem abrir as suas cartas na mão esquerda enquanto com a direita segura as minhas

diante dos olhos para ler (1993, p.25). Georg deixou o amigo partir com a mesma negligência com que não chorou a morte da mãe, e com a mesma verve trapaceira com que pretende, agora, “cobrir” o pai. Nas missivas, Georg omite a verdade por interesse próprio. Não há, portanto um “amigo” no estrangeiro, e sim um homem ludibriado. O modo como Georg percebe o mundo está em desacordo com o modo como o mundo o percebe, é Georg o estrangeiro, ele não tem aliados, está sozinho. Um suposto salto para a linha que, na concepção de Georg, faria fugir a relação enrijecida que mantinha com o amigo — na realidade um pulo no vazio, um equívoco; a aparente linha criadora — na realidade linha de morte e de abolição. Tem-se aí o aniquilamento, e a sentença de morte por afogamento. Não há, portanto, saídas em O Verecdito. Embora ensaie retirar a carta do bolso, embora tenha concebido enviá-la ao exterior, qualquer empreita estará sempre de antemão fadada ao malogro. A linha do triângulo Georg-amigo-pai recairá sobre si mil vezes, dez mil vezes. Só há como possibilidade a linha segmentarizada do déspota ou a linha de morte. É certo que o rizoma é uma fileira de portas, e que os modos de conexão podem neutralizar as linhas de morte e de destruição que desviam a linha de fuga, bem como podem proporcionar maneiras de eliminar os corpos vazios e fascistas, que se opõem aos corpos potentes e potencializadores. Porém, Georg não tem coragem para proferir o sagrado sim que o liberaria e redimiria todo seu passado. Não é possível viver sem saídas. Se para Georg não é possível fazer fugir, o buraco negro é inevitável. E a linha de morte opera por si, sem dispêndio de energia. Queridos pais, eu sempre os amei! (1993, p.27) — mas eles não sabem disso. O oceano não faz esforço quando afoga um homem. Os buracos negros não fazem nenhum esforço. Referências DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto; Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a. v. 1. (TRANS.) ______. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995b. v. 2. (TRANS.) ______. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto; Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia Cláudia Leão; Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. v. 3. (TRANS.) ______. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997a. v. 4. (TRANS.) ______. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart; Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997b. v. 5. (TRANS.) KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1993.

MÁQUINA Sandra Cristina Gorni Benedetti

Máquina de fluxo “Uma aula foi feita com fragmentos do I Ching; uma saída até a pracinha nos arredores; um sentar-se em círculo; um falar da vida. Os estudantes queriam mais. Mais saídas, outros assuntos e até mesmo aquele tema que mais inflamava a professora, embora aquilo tudo soasse muito estranho: máquinas disso e máquinas daquilo. Uma multidão de máquinas, mesmo dentro de uma mesma sala de aula. Uma máquina imprevisível em cada professor que entra (passamos a notar) cria um clima, mostra na cara e no tom de voz se veio para briga ou se é da paz. Uma professora entra e faz mais barulho que toda a sala junta. Parece que está entrando num palco. Mas não, está apenas dando partida a mais uma aula-foguete, que termina quando bem podia estar apenas começando. Há os que jogam bolsa, pastas e diários sobre a mesa e dão início a uma espécie de acesso de ânimo artificial, na justa medida para continuar a aula anterior. Um entra em silêncio, não olha para a cara de ninguém e passa a dar tapas na mesa. Consegue um segundo de silêncio no grito e então: tóin, tóin, tóin... Ô moleque, quieto aí! Número trinta e quatro, trinta e cinco... Tóin, tóin, tóin, tóin... Quietos, vocês do fundo. Já pra frente, ao meu lado! Voz estridente-fura-tímpanos. Sua matéria foi boa com o outro professor. Nas aulas insuportáveis, cada um da turma inventa um jeito de desertar dali, à sua maneira. Uns rabiscam o caderno, outros largam o corpo na cadeira, olham para frente, mas estão longe... Outros dois tentam sair juntos para beber água, ir ao banheiro ou andar no pátio, atentos para a desculpa que poderiam passar, caso fossem interrogados pela diretora, aquele quadrado em pessoa, que foi ralhar com a melhor professora que a classe já teve. Só porque em sua aula o povo enlouquece antes de entrar em sua onda. Ela consegue! Percebe, na hora, quando sua pegada não pega e muda o jeito, muda a entrada no assunto. Salta da pausa para uma lorota engraçada que vai acabar tendo a ver com o que ela, em vão, tentava explicar há cinco minutos. É só esperar. Conseguimos então ver as tais máquinas desejantes de que ela fala funcionando ali, em ato, no envolvimento de todos. Sua paixão por determinado assunto espalha-se no ar. Parece gripe. Já aconteceu mais de uma vez. Minha opção pela jardinagem e pelo vestibular de Física não é mera coincidência. Um único professor, uma única professora pode conseguir despertar o que mais de vinte soldadinhos de chumbo fizeram questão de achatar, bloquear, conter, matar ao longo dos onze, doze, treze anos de escola.” Máquina de corte Desejo é fábrica. Desejo é máquina viva que funciona sempre na iminência de alguma avaria. A qualquer momento, desponta a necessidade de experimentar a troca de componentes para que suas populações possam se virar cortando o deserto ou o caos. Condição de ereção de novos territórios existenciais. Máquina que não funciona sem outra ou fora de um complexo de emissão e de corte de fluxos. Sob a pele e sobre ela, a mecanosfera trabalha conectando e desconectando componentes de máquinas tecnológicas, máquinas-semióticas, máquinas urbanas de Estado, máquinas-ferramenta, máquinas-sensoriais, máquinas-bancárias, máquinas-publicitárias, máquinas-comerciais, religiosas, jornalísticas, sindicais, cibernéticas, musicais, plásticas, literárias, acadêmicas. Entre cada uma delas, incidências mútuas, simbioses, alianças e panes.

Todo desejo procede disso, sempre de algum encontro a fim de produzir realidade, contra e longe de qualquer suposta interioridade. Sua fome de conexão é tamanha que ele não espera o encontro para se exercer. Ele o inventa, maquinando, selecionando e arranjando seus componentes temporários, os mais díspares. É como um anelo monocromático, que gradua os brancos sobre quaisquer materiais, sem nunca se repetir no fazer de um artista obcecado pela luz. É como uma cobiça incinerária, no maçarico de outro artista que cola fragmentos queimados sobre a pele das coisas. São máquinas desejantes as que fazem fugir mundos saturados, pelo advento do inimaginável "não ainda". Essas máquinas moleculares, desejantes, são também máquinas de guerra: ocupam desfazendo, perfurando, arruinando, desarranjando as fronteiras e os territórios dos bem assentados e(E)stados instituídos. O desejo em seu funcionamento abre alas, ou inventa sua abertura junto a campos de possíveis para fazer passar, escorrer, escoar, vazar seu magma, seus gases, sua tromba d'água, sua avalanche de terra e outros fluxos insuspeitos. É por essa razão que toda criação, em qualquer campo, domínio, setor, contexto, passa por uma máquina molecular, máquina de desejo ou de guerra. Contudo, se o desejo produtor-produto de fluxos mutantes produz acontecimentos inusitados, impensáveis, ainda é desejo o que produz a reprodução do mesmo: máquina de guerra cooptada por máquinas molares, como as de Estado. Ainda é desejo o que deseja sua própria escravidão. O desejo é sempre produtivo, ele é o que produz. E se é alguma coisa, o desejo só pode ser o que seu agenciamento determina que ele seja. A lógica desejante não conhece negação. Conhece apenas devires. Mesmo quando produz sua linha de destruição ou de abolição suicida, não é o desejo que deseja a morte, é a morte que deseja nas adjacências de um sujeito em devir-farrapo. De outro modo, não se pode conceber desejo fora de um agenciamento determinado: de um agenciamento de enunciação e, ao mesmo tempo maquínico. Nem desejo fora de um determinado plano a ser, ele próprio, construído como produto de seu processo de produção (de produção, de reprodução, de antiprodução). O desejo e o seu objeto são uma só e mesma coisa; seu produto é seu próprio produzir-se. Uma aula, um encontro, uma obra de arte que produzem e são produzidos por maquinações desejantes, assim o atestam. Referências BAREMBLITT, Gregorio. (2002) Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 5ed. Belo Horizonte : Ed. Instituto Félix Guattari. 214p. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (s.d.) O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim. 430p. (Peninsulares / Especial, 41). ______. (1997b) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed.34. 236p, v.5. (Coleção TRANS).

METODOLOGIA DO ENSINO Adélia Pasta Cintya Regina Ribeiro Tempo linear No conto Funes, o memorioso, o escritor argentino Jorge Luis Borges narra a tragicidade de um jovem condenado à precisão dos atos de percepção e memória, evocando um desconforto existencial frente à incomensurabilidade de registros de experiência humana. A morte do protagonista por congestão pulmonar é síntese alegórica da condição insuportável de apego a uma memória intransitiva. Num outro conto Borges liberta do esquecimento o escritor Pierre Menard, autor de Quixote. Sua maior obra, “interminavelmente heróica”, é a escrita parcial de Dom Quixote. Seu método é simples: conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros, esquecer parte da história da Europa, ser Miguel de Cervantes. Com afinco ao método, Menard escreve recorrendo à lembrança e ao esquecimento de forma inusitada. Impressionante! Em sua escrita encontramos as mesmas palavras de Cervantes, trezentos anos depois. Tempo de mímesis O menino vê a caixa transparente repleta de clips coloridos. Agita-a. Aquele clips vermelho, na superfície e no canto da direita, agora já não era o mesmo porque se deslocara para o fundo, embaixo do amarelo, no lado de lá. Situações semelhantes ocorreram com o azul, o verde, o branco. Assim, as infinitas possibilidades de movimentos espaço-temporais dos arames coloridos e também das gotas de chuva que escorreram na vidraça no Natal passado eram relembradas. Enquanto isso, na mesa, vê o pó circundando a caixa. Assopra-o, num novo desenho. Da janela vê a multiplicidade das folhas das árvores dançando ao vento. Então começa a contar folhas de árvores, formas de brisa, grãos de poeira, clips, gotas. Chega ao número Luis Melián Lafinur, contabilizando presente, passado e futuro. Tempo linear de mímesis Os procedimentos do método de Menard são quase impossíveis: esquecimento e ato corajoso de materialização do espírito que produz uma obra. Então, um jovem escritor, sem credenciais no mundo das letras, resolveu percorrer outro caminho e encontra Menard. Atento ao método, esqueceu tudo o que leu de Borges. Aprendeu inglês, viajou para a Espanha, fingiu cegueira na solidão. Seu resultado mais impactante é o conto Funes, o memorioso. O jovem autor alcançou perfeição quando criou repetindo, palavra por palavra, a história do rapaz de dezenove anos que não podia esquecer. Tempo de encontros Funes inventou um sistema original de numeração. “Em lugar de sete mil e treze, dizia Máximo Perez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olimar” etc. Cada palavra, um signo. Borges lhe diz que “essa rapsódia de termos desconexos era precisamente o contrário de um sistema de numeração. (...) Dizer trezentos e sessenta e cinco era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades: análise que não existe nos ‘números’ O Negro Timóteo ou manta de carne”. Desabafa: “Funes não me entendeu ou não quis me entender”. O jovem escritor entendeu e não insistiu: Funes precisa desta invenção para continuar a pensar. Não

podendo, a cada vez, rememorar todo um percurso, aciona seu extenso arquivo por palavras-chave. Tempos de intercessão Na biblioteca elas se encontram com a sensação de se conhecerem. Após tentativas de rememoração percebem o que as levou àquele lugar: buscam alguém que ensina um método de escrita que as levaria para o além do aqui-agora: o antes e o depois. Elza procura um conto de Borges que ensina como escrever tal e qual um outro. Maria busca um jovem escritor que, tal como Menard fez com Quixote, escreveu um conto chamado Funes, o memorioso, como se fosse Borges. Elza quer um método para escrever grandes obras; Maria, um método para esquecer. Tempos intempestivos I Já adulto, Menard acorda na exata hora em que o professor, em mais uma de suas aulas para um público de “não-filósofos”, lança um vetor de pensamento: intercessores. A idéia despertou-o. Servia ao propósito literário que o trouxera à Universidade de Vincennes. Transtornado por tal vetor, Menard desdobra-se: não havia método para escrever grandes obras. Cervantes, seu autor preferido, poderia ser “tão somente” um intercessor potente, alguém a lhe provocar outras conexões; pensamento cortando pensamento, criando outra “imagem de pensamento”. Entre Cervantes e Menard abria-se um território impensado. Somente nesse vão se desdobrariam condições de emergência de obra: nem maior, nem menor; criação insuspeita. Apenas escritura-ato, não pertencente a ninguém; efeito de anonimato de alegres e potentes encontros – essas infinitas e intempestivas forças de intercessão. Assim, Menard ultrapassou a “obra-prima” que escrevera durante seu longo sono de vigília, repudiando no corpo a perfeição daquela aderência. E então, aprendeu. II Na saída da biblioteca as meninas encontraram Claire com um amigo. Ele, só silêncio. Ela, só conversação com o escritor e professor Borges, vértice da literatura latino-americana. Este dizia que embora gostasse de dar aulas, preferia escrever. Ambas ouvem quando o professor, provocado por Claire, desconstrói o princípio de “método de ensino”. Dizia que, numa aula, cada um aprende o que lhe convêm e nem tudo convém a todos; há sempre alguém adormecido. Sono de espera - despertado misteriosamente quando lhe convém pela força dos ventos de uma idéia-conceito, que se anuncia potente. É preciso acordar a tempo. As duas meninas acordam. Entreolham-se e (des)encontram-se na “certeza” de suas perguntas. O que buscam, afinal? III O jovem escritor acompanhou Claire, a amiga francesa, na visita à Universidade de Buenos Aires. Projeto ambicioso: entrevistar Borges, organizando um Abecedário Literário no qual as perguntas seriam substituídas por palavras-provocações enunciadas na seqüência das letras do alfabeto. Borges devolveria afecções de pensamento. O jovem prepara a escuta, como num concerto. Claire dispara: “A” de “amarelinha”. Borges evoca um gigante argentino: Julio Cortázar e seu romance “o jogo da amarelinha”. Ali se constroem jogos de imaginação por múltiplas possibilidades de combinação narrativa, convocando o leitor, implicando-o nos lances do caleidoscópo

lingüístico. Borges delirava naquela arquitetura literária enquanto o jovem era dragado pela força vertiginosa da narrativa de Cortázar. Findo o abecedário, o jovem escritor, por descaminhos irreversíveis, encontrara-se com a arte dos (des)encontros na fluida linguagem da conversação. Pela primeira vez a folha em branco convidou-o à escritura, acompanhado do esquecimento de Funes, Menard e Borges. Referências BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 2001. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. – Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. _________. Abecedário. In: http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemi d=51. Capturado em 03 de novembro de 2008.

NÍVEIS DE ENSINO Carla Gonçalves Rodrigues É próprio da educação abranger uma pluralidade de domínios constituintes: educação básica (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio) e educação superior. Níveis de pausa, interrupção, intervalo de uma ordem movente. Níveis de impulso, alavanca, locomoção de uma desordem imóvel. Daí que é possível continuar tensionando a hierárquica questão: O que é mais importante? Leis, decretos, pareceres, resoluções? Planejar, orientar, coordenar, supervisionar? O que é mais importante? Políticas, financiamentos, orientações? Universalização, expansão, monitoramentos? O que é mais importante? Eficiência, eqüidade, qualidade? Educação básica, educação superior? Sob esse aspecto, educação básica e superior freqüentemente se misturam, transitam uma no domínio da outra, coexistem fazendo interpenetrar suas molaridades nas brechas moleculares também aí existentes. Menos se sobrepõem e impõem prescrições uma à outra na linearidade superior, de cima para baixo em prol de uma educação transcendente, sob a voz comunicativa e informativa do especialista educacional. Salta-se de um nível ao outro no estabelecimento de transversais, “sem nunca reduzir o múltiplo ao uno; sem nunca reunir o múltiplo em um todo, mas afirmando a unidade bastante original daquele múltiplo” (Deleuze, 2003, p. 119). Há uma tendência habitual, ao considerar um universo fragmentado, dos níveis funcionarem como partes disjuntas. Eles resguardam o limite que demarcam e a distância relativa numa escala de valores. Ora funcionam como opostos, ora como degraus com posições fixas em que se pode colocar o pé para subir ou descer em uma longa e profunda escadaria. Não é possível negar: existe uma separação entre os níveis. Entretanto, é bem menos um distanciamento de posição que o faz permanecer fechado em si. Mais um potencial para o traçado de ligações sem intervalos e sem segmentos entre os próprios níveis, fazendo passar continuamente um no outro. Mas que transversalidades tais níveis traçarão? Eis uma possível transversal da multiplicidade educacional capaz para relacionar a educação básica com a superior e vice-versa: a aprendizagem. Com Gilles Deleuze (1988), a idéia filosófica de aprendizagem pode vir a ser um diferenciador que maquina dessemelhantes significados na existência dos níveis abordados pelas ciências da educação. Não há o que ensinar: desafio de fazer e pensar a educação mais fortemente desprendida das forças normalizadoras e identitárias. Sendo assim, educação básica e educação superior constituem um arranjo de uma outra espécie: funcionamento de heterogêneos coexistentes que afirmam e fazem ressoar tanto suas convergências como divergências não excludentes na concretude, nas circunstâncias, no ato do produzido nos seus encontros fazendo-se acontecimento (em que caso, onde e como?). Relação construída distante da subordinação, da aprovação, da congregação de significações. Conjugação de ressonância mútua naquilo que é capturado de um nível pelo outro. Aprender, aprender, aprender... sem reduzir um nível ao outro, sem engolir um nível pelo outro, sem deixar aniquilar-se pelos níveis. “Isso funciona, e como é que funciona?’ Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro” (Deleuze, 2000, p. 16).

Referências DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. _________. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _________. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000.

NOMADISMO Gabriel Sausen Feil Embora apreciasse sentir-se segura debaixo do teto institucional, deliciava-se em deteriorá-lo seguidamente. Já não bastava derrubar as colunas e sair em fuga. Cigana a vagar pelo mundo? Não mais. Era preciso, agora, ficar. Permanecer e fazer exaurir (não por uma simples decisão voluntária, mas por uma questão de impossibilidade em não proceder exatamente dessa maneira). Foi ela própria quem disse que a sua maior Fantasia era tornar-se uma nômade de verdade. Dando vazão a sua tendência errante, sem ter de abandonar o teto, Cigana fez “da Fantasia um Guia Iniciático” (Barthes, 2005, p. 22), capaz de ordenar o seu Ensino. 1) Não esquecer que, mesmo permanecendo no mesmo lugar, é a impermanência que continua regendo as circunstâncias e os acontecimentos. 2) A impermanência deve valer também para as aulas, seminários, orientações, textos. Por isso: não realizar adorações, pois qualquer vínculo pode ser perigoso. Por isso, também: tudo bem contribuir com os nichos de pesquisa, desde que o envolvimento não se transforme em necessidade de primeira hora. 3) A noção de nomadismo deve sempre lembrar que as aulas, os seminários, as orientações e os textos não poderiam existir se não fossem atravessados permanentemente pelo retorno da impermanência; já que os estados institucionalizados são segundos em relação às aventuras errantes. 4) Não esquecer que ninguém é somente nômade. Nem mesmo uma cigana. A questão é abrir-se, criar uma nova sensibilidade, novas antenas, para as pulsões de fuga que atravessam todos os indivíduos. Todos, mesmo os mais sedentários. 5) Desarticular a Instituição, mesmo sem abrir mão dela. 6) A única maneira de fazer a aventura prosseguir é retomar o descaminho da errância. 7) O gosto pela aventura, a tendência à aventura, é condição para criar o novo. É condição, ainda, para o desconforto, isto que justamente nos incita a produzir. Ela tinha, agora, um olhar estranho, meio desatinado, repleto de desdém pelas formas de conteúdo e de expressão consagradas. Mais estranho até do que antes, quando aprontava das dela e, de imediato, retirava-se. Estranho, porque era um olhar demasiadamente superior para uma mulher desprezada pela Sociedade. O seu olhar tinha uma direção, embora não fosse muito precisa: era direcionado àqueles que faziam questão de ficarem presos a formas específicas. Achava curioso o modo como eles defendiam as formas que lhe eram familiares, como se dependessem dessa defesa para sobreviver. “Em breve”, pensou ela, “quando não houver fome, vai-se morrer de tédio ou de desespero” (Maffesoli, 2001, p. 21). Deleuze e Guattari disseram: no nomadismo, “o ponto de água só existe para ser abandonado”. Porém, esse abandono não implica, necessariamente, um movimento em direção a outro lugar, mas, antes, um fazer, desse lugar, outro. “É falso definir o nômade pelo movimento”, disseram eles. É por isso que este Texto não questiona apenas o marasmo do sedentário, mas também a ingenuidade daqueles que definem o nômade, simplesmente, a partir dos seus movimentos geográficos. O nômade é aquele que “se reterritorializa na própria desterritorialização” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 50; p. 52; p.53); aquele que reinventa (ou renasce ou se desdobra ou...) no próprio vão atacado por sua bravura.

A recente decisão de permanecer um pouco mais implicava, ainda, outra questão: permanecendo, ela se tornaria infiel. Quando ia atrás de sua ciganice, seguindo-a, ela era, pejorativamente, uma cigana; mas apenas isso; apenas isto: agia como agia, por ser errante, facilmente distinguida dos demais. Agora, tratava-se de uma Professora errante, mas que permanecia no lugar exato em que forjava as suas errâncias; isto é, de alguém que, com a sua infidelidade, incomodava sobremaneira. Era preciso saber lidar com isso. Sua tarefa se complicava. De qualquer maneira, mesmo sendo um incômodo, preferia infinitamente ser infiel, a ter de abrir mão da possibilidade de sentir prazer, alegria. Trocava a segurança da fidelidade em prol da paixão pelo que fazia, dizia, pensava, escrevia. Ali estava ela, fantasiando ser nômade. Não mais viver deambulando, mas viver o nomadismo (viver nomadicamente), no exato lugar em que se encontrava. Sabia que teria que suportar casas com banheiros e esgotos, camas arrumadas e perfumadas, horários e listas, registros e planos... Diante dessas condições indigestas, a Fantasia guiava-a: tomava todos os cuidados para não negar o nomadismo, pois agora se encontrava num limiar que a colocava extremamente próxima dos sedentários. Era aí que estava a graça! Agora fazia sentido! Entrava no jogo dos inimigos, mas não sem jogar a partir de outras regras, regras inventadas por ela mesma. Assim como acontece no vampirismo (Fann, 1985), seduziria as vítimas (os inimigos) pouco a pouco, cultivando e prolongando o seu prazer com refinamento, e não simplesmente indo direto ao objetivo, alcançando-o sem perícia e morosidade. Contudo, sabia que não podia agarrar-se à Fantasia por muito tempo; ela deveria variar de ano a ano, de semestre a semestre, de turma a turma, de orientando a orientando, de texto a texto; pois, um apego, mesmo à vida nômade, também é uma forma de negar o nomadismo. Logo, a própria Fantasia deveria ser traída também, reinventada. (A forma de expressão nômade não podia ser negada pela forma de conteúdo que dava conta do nomadismo). Reiteradamente, a insegurança haveria de retornar. E isso tinha uma hora para acontecer: a hora a ser anunciada pelo próprio Sintoma da Segurança (assim que ele aparece, é sinal de que já está na hora de mudar): a segurança alcançada, o Guia perde o seu caráter iniciático, e, com isso, toda a sua função e beleza. Mas ainda restava o maior dos riscos: mesmo ela tomando todos os cuidados para não se prender às suas fabulações e de sempre reinventar-se, ela ainda assim poderia ser capturada pelos Ulisses (em Tratado de Nomadologia, Deleuze e Guattari (1997, p. 16) afirmam: é “Ulisses quem herda as armas de Aquiles, para modificar-lhes o uso, submetê-las ao direito de Estado”. Trata-se do maior dos riscos porque ele aparece justamente quando a invenção nômade é tomada como algo interessante e potente, a ponto de chamar a atenção institucional. Os Ulisses elogiarão a produção “inovadora”, ao mesmo tempo em que tentarão tomar as armas nômades, a fim de adaptá-las aos usos da Instituição, submetê-las aos seus interesses. Isso significa que não basta à Cigana apenas reinventar e permanecer; ainda é preciso destruir as suas armas, apagar os seus rastros: “margear, cercar, arrebentar”, como se fosse um peão do go (Deleuze e Guattari, 1997, p. 14). A destruição nômade como algo positivo, já que efetuado em função da continuidade da guerra (a graça do nomadismo, aliás, é estar sempre em guerra). Embora a Fantasia da Cigana fosse se tornar uma nômade de verdade, essa não era a sua questão: tratava-se de criar condições para que uma mudança acontecesse. A existência de um antes (uma nômade ambulante) e de um depois (uma nômade que permanece) sempre é problemática quando não se acredita em mudanças voluntárias,

porém, esse antes apenas se torna um depois por se fazer insustentável, justamente pela necessidade de uma mudança estar se impondo... Referências BARTHES, Roland. A preparação do romance – vol I. (Trad. Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra. In: ______; ______. Mil Platôs – vol 5. (Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo: 34, 1997. FANN, Sheridan le. Carmilla. (Trad. Maria Lucia Machado). São Paulo: Brasiliense, 1985. MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. (Trad. Marcos de Castro). Rio de Janeiro: Record, 2001.

ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL Gonzalo Sebastián Aguirre A confusão entre educação inevitável e educação obrigatória encontra-se na base de toda desorientação educacional. Toda necessidade de orientação indica uma crescente diminuição da capacidade auditiva para atender ao chamado da vocação. A vocação foi trocada pela profissão. O curioso é que ambos os termos podem ser traduzidos ao alemão como Beruf. Em seus célebres textos “Política como Beruf” e “Ciência como Beruf”, Max Weber não trataria tanto de distinguir entre Beruf como vocação e Beruf como profissão; senão que, ao contrário, dedica-se a assinalar essa indistinção no mundo moderno, tanto em nível das práticas vitais, como em nível do saber. Para Weber, o homem moderno perdeu toda capacidade de seguir uma vocação (um chamado), que não seja estatístico-utilitária, e cuja expressão não seja, resumidamente, um crescente acúmulo de riquezas em termos de dinheiro. Mais precisamente, a educação obrigatória compele o homem a uma profissão, cujo chamado é o da comodidade; isto é, o chamado para que se acomode às circunstâncias comunicacionais que o educam. Os dispositivos de atividades comuns, tanto analógicos como digitais, que substituíram a possibilidade de comunhão com o mundo, que varreram todo vestígio de espírito do mundo e de alma do homem, deram lugar a profissões comuns. Profissões, como afirmaram Simmel e Colli, cuja única comunidade possível sustenta-se no acesso cada vez maior ao dinheiro ou na ampliação do alcance de comodidades individuais. Assim, a desorientação é inevitável e a educação só pode consistir no “esclarecimento” estatístico do homem; o qual apenas pode mostrar uma atitude orientada se conseguir dissimular a obscuridade crescente, típica dos desígnios desse mesmo esclarecimento. O mecanismo de orientação caracteriza-se, portanto, como inevitavelmente estatístico. Só que podem ser distinguidos vários tipos médios de “esclarecimento/acomodamento” e de rumos a seguir na obscuridade. Trata-se de distribuir cada tipo em seu/s sulco/s: a cada um, o sulco que lhe corresponde. Por sua vez, cada um deve descobrir qual é o tipo de iluminação, com o qual foi contemplado; e, a seguir, descobrir qual é o sulco ou o conjunto de sulcos que lhe concerne. Dessa maneira, toda orientação educacional implica uma “sulcologia” que objetiva evitar o delírio daqueles que lançam as sementes fora do sulco. Hoje em dia, contudo, pode-se constatar uma inflação de sulcos, de tal porte, que se torna quase impossível – ou, melhor, irrelevante – distinguir um sulco do outro. Assiste-se à digitalização informatizada dos sulcos analógicos e históricos, bem como à sua subseqüente multiplicação em rede. Em função disso, todo delírio, toda desorientação torna-se praticamente impossível. A nova subjetividade (“dividual”) encontra-se sempre orientada. Em outras palabras, pode ser dito que a nova subjetividade sempre conhece a sua posição, graças a mecanismos tais como o GPS, a telefonia celular ou o correio eletrônico: “Você está sempre aqui, e aqui é sempre todos os lugares”. Por conseguinte, os únicos desorientados acabam sendo os profissionais da histórica orientação educacional, dirigida tão-somente aos indivíduos. A orientação se torna definitivamente obrigatória, ou, o que dá no mesmo, inevitável. Não resta nenhum outro remédio a não ser sulcar a rede com sulcos totalmente entrelaçados ou “linkeados” entre si. Desse modo, a educação completa o seu ciclo e regressa à sua inevitabilidade primeva; só que, dessa vez, sem qualquer vislumbre de sabedoria vocacional. O novo fazedor de sulcos (sulcador) é apenas sensível ao seu próprio sulcar ou navegar. Se não navega, não existe. A bússola totalizou-se. Já que orientar-se implicaria um trabalho de

desorientação absoluta, uma desconexão que liberasse a sensibilidade do seu implante substitutivo. Porém, não existe nenhuma profissão que possa colaborar em tal tarefa. O velho orientador educacional sabe disso, na medida em que ele é o único que perdeu o norte; pois, finalmente, esse norte encontra-se, agora, em todos os lugares. E o velho orientador educacional está livre. Entretanto, ele não suporta essa sua condição. Sobralhe, apenas, o expediente de formar formadores; e, mais fortemente ainda, de formar formadores de formadores; e, assim, de inserir-se no domínio da in-formação permanente. Desse jeito, nunca chegaremos ao porto, porque, a cada instante, nossa navegação é esse porto e, ainda, porque, a cada momento, esse porto é um air-port, ou seja, um porto de ar. Vocês me escutam? O ouvido é o órgão do equilibrio. O único movimento que nos sustenta é o sulcar. Perdemos toda capacidade de nos sustentar em pé, quietos, com a cabeça erguida, com um canto na ponta da língua e um horizonte na ponta do olhar. Somos, novamente, répteis, anfíbios, ratões. Concluímos o nosso experimento orientador obrigatório adaptativo. Mesmo que pareçamos estar desejando que o carrapato nos inveje por nossa simplicidade. Referências WEBER, Max. “La política como vocación” in Ensayos de sociología contemporánea. Barcelona: Planeta-De Agostini: 1985, tomo I. COLLI, Giorgio. El libro de nuestra crisis. Barcelona: Paidós, 1991. SIMMEL Georg. Filosofía del dinero. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1977.

OUTREM Alexandre de Oliveira Henz A alma não deve acumular defesas à sua volta. Não deve retirar-se para procurar o céu dentro de si, em êxtases místicos. Não deve clamar por um Deus transcendente, pedindo para ser salva. Deve fazer-se à estrada larga, à medida que a estrada vai se abrindo ao desconhecido, na companhia daqueles cuja alma os leva para junto dela, nada realizando além da viagem, e das obras inerentes à viagem, à longa viagem de uma vida inteira rumo ao desconhecido, através da qual se realiza a alma, nas suas subtis simpatias. D.H. Lawrence

Viver é ser afetado por algo estrangeiro, radicalmente outro e incorporar as singularidades desse outro ou, pelo menos, tentar interpretá-las. A cada um, cabe apropriar-se disso que lhe vem de fora, com o que é confrontado, essa alteridade que lhe cabe assimilar. Se o sujeito busca tornar idêntico o outro, isso sinaliza a radicalidade da experiência com esse fora, o qual – ele é obrigado a reconhecer – não é o sujeito ele mesmo. A apropriação já é uma mudança, pois implica ter sido afetado por um outro. Nesse processo, o que importa é que se trata apenas de uma tendência a transformar o estranho em algo idêntico mas, de fato, nessa operação não há êxito. O outro se mantém outro, e o que há é um transformar si mesmo em outro... Quanto mais complexo é o ser vivo, mais aberto ele está à alteridade, a sua própria exterioridade, e também mais intensa é a conexão com a diferença, inclusive de si em relação a si mesmo. No entanto, também está menos assujeitado à alteridade, com maior poder de, em relação à alteridade que o afeta, selecionar o que serve e afastar o que não serve. O corpo humano é exposição à alteridade, mas também seleção do conveniente. Não seria esse um viés interessante a ser explorado nas práticas educativas? Não se está fazendo apologia da exposição absoluta. Nietzsche (1995, p. 47) muitas vezes recomenda a solidão e o silêncio, não deixar vir a si muitas coisas, não ter, não ver... Uma política do esgotamento pode estar nesse silêncio. Um não dizer que é um sim. Que isola para estar à altura das experimentações. Um fechar-se estratégico, isolar-se para “não ver muitas coisas, não ouvi-las, uma autodefesa. Seu imperativo obriga não só dizer NÃO onde o SIM seria um “altruísmo”, mas também a dizer NÃO o mínimo possível. Separar-se, afastar-se, daquilo que tornaria o não sempre necessário […] reagir com menor freqüência possível”, não se deixar determinar pelo acaso desta exposição, defender-se contra certas coisas que destruiriam a nossa capacidade de nos expormos. E mais importante: a seleção subordina-se à exposição, a seleção tem de se subordinar à abertura, à exposição. A experimentação é primeira. A seleção teria de vir a serviço de aumentar uma margem de manobra. Como pensar que o sujeito é, antes de tudo, um sujeito a ser afetado, e que isso precisa ser preservado? É o mais aberto (pensem nos estudantes) que precisa cuidar de não destruir essa abertura, não obstruir sua sensibilidade, sua capacidade de ser afetado (existem coisas que blindam). Há tipos de invasão que, quando permitidas, inviabilizam uma afecção. Uma proposição à educação – prudência, seleção, uma ética... Há uma precisão que demanda uma fineza para ser vista e apreciada. Uma sensibilidade que vai sendo exercitada e vai determinando o que destrói e o que não destrói, o que reduz nossa capacidade de estar aberto. Não basta ter o mesmo critério, a própria avaliação do

que me afeta modifica-se no exercício. Uma espécie de treino com o intensivo precisa ser feito. Como manter a abertura para a alteridade sem se deixar levar por clichês de aberturas? Para Nietzsche, o homem, em sua complexidade, depende de uma multidão de estímulos. Como um organismo complexo e múltiplo pode dar conta de tudo? Daí a importância do gosto, indissociável da afecção: cumpre atentar para aquilo que me afeta sem deteriorar o gosto, e isso é uma avaliação do corpo, do que me compõe e do que me decompõe. Podemos falar de uma fabricação do organismo, mas também de uma fabricação social, cultural do gosto... É essa a capacidade/filtragem da afetação. Talvez os processos inventivos em educação comecem nessa seleção, no modo de afetar-se, recusar, filtrar... Para Nietzsche, viver já é selecionar. Nossas questões com outrem partem do combate, do corpo, entendido como uma espécie de sistema nervoso turbilhonar atravessado por dores, impulsos, reflexos, graus de excitação. No meio disso tudo, o cérebro é uma superfície de reverberação dessas excitações. Superfície onde se inscrevem ondas, por meio de signos. Considerando os processos de formação (e deformação), podemos pensar que o cérebro colhe, recolhe e registra esse movimento turbilhonar do corpo, e paradoxalmente codifica, filtra, seleciona, falsifica, amortece, até mesmo inverte tudo que lhe vem do corpo. Numa certa medida, ele exprime o corpo; numa outra, ele o amortece. A consciência poderia ser concebida como uma espécie de codificação dos impulsos do corpo. Nessa concepção, ela é uma espécie de efeito, ela é segunda, vem sempre a reboque do corpo, espécie de apêndice menor, mesmo que nossa tradição tenha lhe atribuído uma condição prioritária em relação ao corpo. Quanto a Nietzsche, ele reivindica que esses estados corporais ganhem expressão, então, em educação, se for assumida tal perspectiva, pode-se deixar falar os estados corporais que a consciência costuma escamotear. Com o arauto da transvaloração, podemos contrabandear para o campo da ação e da educação um pensar o corpo, como um conjunto de variações de humor e de tonalidade. Essa não é uma idéia simples porque ela põe em xeque algo que nos é elementar, como as noções de coesão e familiaridade. Noções que, em parte, tem a ver com nossa insistência numa unidade do eu, que entende o corpo como a manifestação material dessa identidade subjetiva coesa. Na medida em que questiona a identidade do eu, Nietzsche também desestabiliza a coesão do corpo. Ele reivindica um entregar-se à variação infinita, espécie de diluição numa pluralidade anárquica. Mas, não é um vale tudo, é um esgotamento intensivo Nietzsche, Espinosa e também Deleuze combatem por uma nova coesão. Não a do eu que filtra e organiza esse caos que lhe vem de outrem e de baixo, isto é, do corpo. Propõem, sim, um pensamento corpóreo ou a coesão de um pensamento tendo por fio condutor o corpo. Restituir o pensamento às forças corpóreas e destituir o eu de sua prevalência, invocando outrem. Referências NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo - Como Alguém se Torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LAWRENCE, D. H. Walt Whitman. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa, Relógio D’Água, 1994. DELEUZE, G. L’ Épuisé. Paris: Minuit, 1992.

PLANO Carla Gonçalves Rodrigues Um plano pode ser dito de muitas maneiras: lingüístico, educacional, matemático, arquitetônico, artístico, de saúde, econômico, comunicacional, filosófico, entre tantos outros. Sendo assim, pode funcionar de muitos modos: formal, discursivo, fonético; de ensino, de unidade; euclidiano, cartesiano; diretor, horizontal, vertical, estrutural, de necessidades, urbanístico. Também pode funcionar como um plano de estudos, um primeiro plano ou um plano de fundo. Ainda como plano público ou privado; Cruzado, Real, Collor, Bresser. De interesse, de informação. Imanente, consistente, etc. Na perspectiva da ciência matemática, mais especificamente da euclidiana, um plano funciona como uma superfície bidimensional que pode conter pontos e linhas. Ponto, linha e plano são aceitos sem definições. Por isso, são considerados entes primitivos. Admitem-se suas propriedades sem demonstração, sendo denominadas postulados ou axiomas. Neste sistema geométrico, formado inicialmente por esses três entes matemáticos, cada elemento existe independentemente do outro. É possível que a articulação entre eles seja de ordem hierárquica. Por exemplo, uma linha estar subordinada ao ponto, ou melhor, ao conjunto de pontos que a constitui. Há que se fixar, no mínimo, dois pontos para dar existência a um segmento contido em um determinado plano, assim como há que se determinar uma linha horizontal ou vertical para submeter a elas outra linha dita diagonal. Desse modo, um plano euclidiano existe a partir de referências pré-determinadas, na relação limitada de conter pontos e linhas. Seu traçado é primário, ordinário, visto que ele é tido como um conceito inaugural que encerra a existência em si próprio. Com Descartes, o plano, agora chamado cartesiano, funciona como um princípio que tem como referência eixos de simbologia “x” denominado abscissa e, “y” como ordenada. O filósofo e matemático contemplou a finalidade de traçar pontos no plano como pares ordenados a partir de eixos coordenados. Cada ponto do plano cartesiano está associado a um único par ordenado (x;y) e, reciprocamente, cada par ordenado (x;y) está associado a um único ponto. Para especificar a posição de um ponto ou objeto em uma superfície, Descartes utilizou esses dois eixos perpendiculares para orientar sua geometria. Eixos e pontos são essências do sistema em questão. São eles que condensam a diversidade das funções, as relações duais definidas por regras que associam a cada elemento de um eixo, não mais de um elemento do outro. Para Euclides e Descartes, os métodos geométricos apresentam-se, preferencialmente, em classes, ordens ou níveis diferentes. O modo de conexão entre os elementos envolvidos, tanto no plano da geometria euclidiana como da analítica, tende a ser entendido como fragmentário, gradual e com encadeamento lógico pré-determinado. Sistemas abstratos como estes necessitam de princípios de organização para dar unidade ao que se oferece em variadas categorias e tipos, impondo seus modos de funcionamento totalitários. Classificar e agrupar no plano de acordo com a estrutura e origem dos organismos pertencentes aos conjuntos em questão é sua tarefa primordial. Nada foge ao próprio plano, que opera na composição binária para sustentar as verdades dos seus teoremas naquilo que quer demonstrar. Em uma outra perspectiva, um plano funciona menos como superfície encerrada em duas dimensões, mas sempre como um fractal: plano de consistência enunciado por Deleuze e Guattari (1992) em sua filosofia da diferença. Aqui, um plano deixa de existir em um sistema geométrico que tem como elevada relevância o ato de medir. Nada a determinar ou verificar. Nenhum conjunto de elementos fixos com funcionamento

definido na sua origem. Por ora, um plano geográfico de grafismos da Terra nas formas e substâncias das linhas de vida aí reunidas. Desenho de paisagem em que “rios principais: não há nenhum. Montanhas principais: estou em cima da única que existe, mas acho que não tem nome. Cidades principais...” – Alice de Carrol (1980, p. 159) tateando um traçado no passeio Através do espelho. Menos um plano de organização que concede informações sobre o caminho a ser trilhado: “Qual a melhor maneira de sair deste bosque: está ficando tão escuro. Vocês podiam me dizer, por favor?” (ib., p. 170). Mais um plano de orientação que possibilita a experiência da desterritorialização em co-existência com a invenção de um outro território. Um plano para orientar o pensamento nas forças caóticas que potencializam o sem-sentido, a não-identificação, a assignificação, “quando nos pegam e nos atiram, com as lagostas para o mar! Não tenha medo, meu querido, venha juntar-se à nossa dança. Você quer, ou não quer, não quer juntar-se à nossa dança? Você quer, ou não quer, ou não juntar-se à nossa dança?” – canto da Falsa Tartaruga durante as Aventuras de Alice no país das maravilhas (Carrol, 1980, p. 113). Para aqueles que se dedicam à problematização da educação, a filosofia da diferença tratada por Deleuze e Guattari oferece um conjunto de conceitos indissociados. Tais conceitos apresentam-se com intensidade para tensionar o planejamento, o currículo e a avaliação. Talvez sejam esses os três elementos presentes, recorrente e inseparavelmente, no trabalho docente. Se, em tempos passados, a educação foi buscar, na matemática lógica e geométrica, na psicologia, na antropologia, na sociologia e, até mesmo na filosofia clássica, idéias para fornecer unidade aos seus pensamentos; por ora, a filosofia da diferença tem-se oferecido à educação como uma corrente de ar possível para arejar o pensamento educacional. Uma saída?! Pensar a educação como multiplicidades, como uma realidade múltipla. Parece radical? Talvez sim, quando estamos confortavelmente aconchegados e protegidos em um paradigma sustentado em imagens de dimensões limitadas para o fazer educacional. Bem ao modo como é exprimido na reta euclidiana, que tem sua dimensão definida por dois pontos ou no ponto cartesiano, que é delimitado por suas coordenadas. E, quando nos encontramos amparados por uma superfície compacta e impermeável, mantemo-nos quietinhos ou distraídos diante dos efeitos das forças que fazem inchar algum incômodo com aquilo que a educação produz em nossa corporeidade. Mas o que essa saída pode propor à educação? Aqui, o pensamento educacional trabalha em prol da agregação de ilimitadas formas, tanto de expressão como de conteúdo, formas maleáveis advindas da ciência, da arte e da filosofia. Reunião capaz de produzir um movimento de complexidade infinita no pensamento, tal como Benoît Mandelbrot demonstra com sua geometria dos fractais. Deleuze e Guattari realizam essa operação rizomática do pensamento em seus Mil platôs, reunindo elementos da geologia, do cinema, da pintura, da biologia, da música, da matemática, da literatura, da própria filosofia para orientarem sua filosofia da diferença. Catar, juntar, agregar, associar, encontrar para relacionar heterogêneos. Talvez estejamos pouco acostumados a realizar esse exercício, pois na educação há tantas prescrições (é necessário, é preciso, é indispensável...) que a invenção e a criação acabam andando de mãos dadas com as palavras de ordem. Nunca saberemos ao certo quando começamos ou começaremos a habitar essa postura de catador. Nas primeiras vezes, quiçá mais pareça que o pensamento enlouqueceu: “Estou sendo abatido por uma bruta velocidade no pensar. Será que me tornei incapaz de organizar meu pensamento?”. Nesta perspectiva educacional, não há o que organizar naquilo que agenciamos. Quanto mais materiais reunimos em torno de uma temática ou de uma ação, mais somos

capturados pelos signos que tais materiais nos emitem. Incessante movimento caótico que faz do encontro um acontecimento desterritorializante! Ora, nem sempre aquilo que é reunido gruda, arranja, engalfinha: “Esse arranjo funciona, esse outro não funciona”. Não é simplesmente um ato de sobreposição e, de pronto, funcionou!!! Nenhuma determinação exterior, transcendência ou magia põe a funcionar uma composição. Não há uma causa na origem da composição passível de sofrer transformações. Há que maquinar o pensar, orientado sem direção definida, com conceitos filosóficos imanentes ao arranjo e nas relações nele inventadas. São eles que possibilitam consistência as forças emitidas pelas formas reunidas no plano em que “implica uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências, da embriaguez ou do excesso” (Deleuze & Guattari, 1992, p. 58). Plano que nunca se fecha, permanecendo sempre aberto a novas composições feitas de partes que se entremeiam. Referências CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas. Através do espelho e o que Alice encontrou lá. 3. ed. São Paulo: Summus, 1980. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

PRÉ-REQUISITO Rosana Fernandes Em Vincennes, Deleuze dava aula para um público de estudantes muito variado, composto por pacientes de hospitais psiquiátricos, pintores, músicos, drogados, arquitetos etc. Ele considerava isso fantástico, diz em O Abecedário de Gilles Deleuze que o que acontecia ali era filosofia plena, dirigida tanto a filósofos quanto a nãofilósofos (2001, letra “p” de professor), sem passar por simplificações ou requerer prérequisitos. Afinal, ainda quando a leitura de algum texto filosófico, realizada por um leigo em filosofia, se mostra difícil, como uma leitura não-filosófica de Kant (2001, letra “n” de neurologia), alguma leitura daí há de se obter, e ela não carece de nada, possui sua suficiência (2001, letra “n” de neurologia), e expressa tão somente mundos possíveis. Na música, por exemplo, é o mesmo Berg e o mesmo Beethoven que se dirigem a quem não é especialista em música e também a músicos (2001, letra “p” de professor). É assim que a filosofia — a arte, a ciência, e toda forma de expressão de pensamento — está para todos, especialistas e não-especialistas, e é lançada no mundo como uma flecha é lançada por um pensador e recolhida por outro, sem direção definida, e sem solicitar pré-requisitos que são, antes de tudo, a imagem da boa natureza e da boa vontade. Para Deleuze, uma aula, bem como um aprendizado, são da ordem da afecção e do contágio. Se uma leitura, um estudo, um aprender se prolongam, demoram, se estendem, é porque contagiam, afetam, e efetuam um movimento que não prolonga idéias, seja explicando-as, ou esclarecendo-as. Um corpo não-pensante (DELEUZE, 1990, p. 227) aprende porque é tocado por algo que o leva a pensar, e não porque responde a um pré-requisito que está sempre no encalço de uma história, uma evolução, um desenvolvimento, um futuro. Aprender é conjugar fluxos, é criar problemas, é falsear respostas, é perder-se em campos problemáticos, é dar-se aos signos. Uma posição oposta subordinaria a aprendizagem a um saber que está em conformidade com pré-requisitos, atribuindo a ela o êxito da lição sabida de cor, que ratifica respostas para questões e problemas presumidamente dados. Em uma aprendizagem que atende a demanda de um pré-requisito, tem-se, primeiro, a imagem do saber, que, ao obter soluções e adquirir conhecimentos, tende a finalizar-se e apagar-se, tem-se respostas que apenas atendem a uma teleologia, e desempenham uma correlação entre o intelecto e o mundo da extensão. E, em seguida, a imagem da recognição, um reconhecimento em deferência a um modelo, uma reprodução do Mesmo, e o exercício de todas faculdades sobre um objeto que se supõe o mesmo. O mundo das essências e das aparências, original e cópia, um modelo, uma verdade. Um aprendizado, segundo Deleuze, ao invés de apagar-se ou fixar-se em um saber, se dá no desenrolar de respostas impossíveis de serem antevistas, seja nos signos, seja nas respostas. Ilimitado, o aprender persiste através dos resultados, propõe a criação de um duplo e não de uma cópia, e nunca vem a ser o intermédio entre não-saber e saber. Aprender é uma experiência de criação, de disparidade, de subversão, é ato de fabulação que faz retornar a diferença. As leituras se cruzam, fazem rizoma e multiplicam seus lados, conjugam suas forças ora como as duas asas de um pássaro, ora como dois riachos que se encontram, ora como um canto que ecoa alhures. Trata-se de um roubo, de uma doação, de uma invasão ou de uma dupla-captura, na qual cada elemento é levado a aprender o signo do não-percebido naquilo que é percebido. Aprender não desencadeia uma troca, as leituras não reclamam equivalência, não traçam uma linha regular feita de

pré-requisitos, requisitos, recognições, reproduções. Mas sim uma linha dinâmica, cheia de lances, ziguezagues, revezamentos, atravessada por idéias que se articulam com outras idéias por meio de conexões reflexivas e repercussões. Dupla-captura, e não supostas mutualidades. E se o aprender não corresponde a finalidades, é porque não é a roda da causalidade que faz girar o trajeto signo-resposta. Um livro, um autor, um professor não deveriam ser tratados como objetos de recognição, já que não passam de matéria, signos a serem desdobrados no heterogêneo, possibilidades de um agenciamento. Nunca pedir um pré-requisito, nem continuar uma idéia. Incorporar o movimento do falso em suas relações. Falsear verdades estabelecidas. Perseguir a linha, não um ponto de origem, um germe, um centro. Jogar os dados. Jogo desprovido de certezas e de garantias, universo do acaso. Jogo sem vencedores, vencidos ou regras pré-existentes, no qual cada lance cria suas regras, arrasta consigo suas próprias regras, não possui finalidades com as quais contar. A vida não tem finalidade, não tem causas, não pede pré-requisitos. É só à maneira dos nômades que se vai de um ponto a outro. São os trajetos que fabricam os pontos e rumam em suas direções sem deixar de terem consistência ou independência próprias. Não existem pontos, nem pré-requisitos, que antecedam os trajetos ou configurem limites. O leitmotiv de um aprender é a exploração dos signos, a propagação, decifração, diferenciação, o que nunca se dá antes do encontro, da empatia e do entrelaçamento. Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender — que amores tornam alguém bom em Latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar (DELEUZE, 1988, p. 270). Não seria, pois, esse o movimento próprio da vida, de tudo que vive e dura? Referências DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi; Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _________. Cinema 2: A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 227. L’ABÉCÉDAIRE de Gilles Deleuze. Editação: Brasil, Ministério de Educação, “TV Escola”, 2001. Paris: Editions Montparnasse, 1997. 1 videocassete, VHS, son., color.

(o) QUE É A FILOSOFIA? Walter Omar Kohan Um grito. Seco, prolongado, intermitente, a filosofia é grito puro, ou a velocidade de um grito que não pára, que recomeça uma e outra vez. E ponto. Bastaria afirmar isso. Bastaria… Mas, não basta... ela também não é só grito. O grito não é suficiente para dizê-la. É verdade. A filosofia é mais do que um grito. Muitos gritos? Sim, gritos que dão palavra à voz, forma ao fundo, tom ao som. Mas ela é também muitas outras coisas. É sangue, luta, velocidade. Em tudo caso, não é fácil dizer a filosofia. As imagens e as palavras ajudam, mas também atrapalham: de que maneira coisas tão banais quanto sangue, luta e velocidade poderiam dar as notas sobre uma senhora tão nobre e digna como a filosofia? Algo pareceria estar muito fora do seu lugar. Não o está. Em tudo caso, não há de que se preocupar: a filosofia é um não lugar, um fora, uma borda. Com ela estamos sempre num lugar de difícil entrada e saída: as palavras exigem serem explicadas e a filosofia é tudo menos uma explicação: terra de aporia. Ela não explica, e também não pode ser explicada; muito menos podem sê-lo as palavras que pretendem mostrá-la. Daremos então um rodeio. Também precisamos de outro tempo. A filosofia cria. Gilles Deleuze já foi suficientemente explícito: a filosofia cria conceitos. Mas não é verdade que a filosofia possa se caracterizar pela criação de conceitos. Não. No mínimo, não inteiramente. A filosofia faz algumas outras coisas. Pelo menos cria outras coisas: estados de espírito, afecções, emoções, vibrações, mundos... E não só cria. Também faz outras coisas: des-cria, des-crê e des-entende; intensifica, interrompe, interfere; sus-pende; sus-peita; sus-tenta. E muito mais. Inclusive, pace Deleuze, não é verdade que ela não reflita e não comunique. Claro que a filosofia não é a única nem imprescindível para refletir, mas também ela pode refletir de outra maneira; e ela também pode comunicar outra coisa diferente dos comunicadores, a começar por outra relação comunicante. De modo que a filosofia não explica nem justifica, mas reflete e comunica. Eis que a coisa se torna mais interessante. Embora a pretensão de (quase) todos os filósofos, a filosofia não faz uma coisa só. Por isso é indefinível. Por isso a pergunta por ela própria está num verbete de um dicionário de educação da diferença. Porque a filosofia ensina, ou melhor, deixa aprender. Também por isso essa pergunta não perde nunca sentido. Nunca? Por favor, os leitores que sejam indulgentes. Está bem, quase nunca. De modo que a pergunta que nos ocupa poderia ter uma única palavra como resposta verdadeira: a filosofia é filosofias. Mas também ali não poderíamos terminar. De forma alguma. Sabemos: o múltiplo não é o plural. Ao contrário, ali começaríamos novamente: filosofias? Múltiplos inícios... Múltiplos. Só sugiro alguns inícios, arbitrários, contingentes, ocasionais, como (quase?) todo início, até retornar ao primeiro início. Sim, o leitor atento não está enganado: a filosofia não termina, ela é também eterno retorno. E se é para retornar, há que retornar a Platão, início duplo, múltiplo, início de inícios. Ele o coloca muito claramente na boca de Sócrates, iniciado também como iniciador entre os iniciantes, quando estava a ponto de morrer perante os amigos (e não é um detalhe que, no início, o filósofo morra entre amigos): a filosofia é música, a maior, a mais intensa música. Harmonia, ouvido, relação, vínculo, ritmo. Isso é a filosofia –música. Uma forma de acorde para voltar ao início. Também o disse Platão: aprender é lembrar; saber é lembrar; pensar é lembrar. Sim, claro, Foucault agregou que se trata de lembrar para esquecer. Mesmo assim, o esquecimento da filosofia não apaga

a lembrança: outorga-lhe uma nova posição. Eis o movimento de opostos, não dialético, da filosofia. Heráclito, que tanto amava opostos, disse: a filosofia não tem nada a ver com a erudição. De modo que a filosofia é também esquecimento de lembrança e filosofar é lembrar para poder continuar esquecendo. Lembrar para esquecer, para começar de novo, no pensamento. Isso também é a filosofia. Principiar. Início sem fim. Começar cada vez. Pensar cada vez como se fosse a primeira. E a última. Sorrir perante as pretensas explicações. Máscara nascente. Infância. Sim, a filosofia é também e, sobretudo, infância. A filosofia é uma forma de sensibilidade. Como Giuseppe Ferraro lembra, a filosofia é o único saber que tem um sentimento na sua denominação: o amor. Sim, a filosofia é uma forma de amor, e não apenas amor dos saberes ou dos outros, a filosofia é um modo de amar o impossível de ser amado: o mundo. Saber sem conteúdo, a filosofia é também ignorância. Não estou brincando ou ingenuizando (claro, a filosofia também é uma forma de inventar palavras). A filosofia não sabe nada, no sentido forte da expressão. Sim, afirmamos, a filosofia cria conceitos. Mas, alegremente, logo ignora os conceitos que ela própria cria. Necessita fazer isso, para poder criar outros e, também, para continuar ignorando-os e para provocar os seus efeitos. Na verdade, se a filosofia só criasse conceitos seria insuportável. Como também o seria se somente ignorasse os conceitos que cria. Entretanto, desde o início, a filosofia não é menos ignorância do que saber. É a potência do ignorar; e, como a ignorância é humanamente insuportável, também desde o início, a filosofia é morte. É hora de terminar. Talvez possamos agora voltar àquelas palavras primeiras, que dizem o que é a filosofia, não mais, mas também não menos que tantas outras palavras e do que as definições mais rutilantes dos filósofos. Já o dissemos: a filosofia é sangue, luta, velocidade. Trindade da filosofia. Vida da filosofia. Morte da filosofia. Sim, a filosofia também vive e morre de números. Paramos neles. A esta altura, espero, já não preciso explicar mais nada. Referências DELEUZE, Gilles; GATTARI, Félix. O que é a filosofia. São Paulo: Editora 34, 2000. FERRARO, Giuseppe. La Scuola dei sentimenti. Napoli: Filema, 2003. FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Vols.I-IV. Paris: Gallimard, 1994. HERÁCLITO. Fragmentos. Trad. de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. PLATÃO, Apología de Sócrates. Buenos Aires: EUDEBA, 1985.

(o) QUE É A PEDAGOGIA? Walter Omar Kohan A pedagogia é um mistério, um enigma, uma pergunta. Não é difícil justificar tal afirmação: não há razões para ser pedagogo. Só há motivos, desculpas ou necessidades. É verdade que também não há razões e que só há motivos, desculpas ou necessidades para não ser pedagogo. Mas isso justamente também faz parte do enigma. No entanto, é inegável que, desde o início na Grécia, aquilo que se chama pedagogia ocidental sustenta-se numa base irracional. Externa e internamente. A começar pelo fato dos pedagogos serem escravos. Literalmente. A própria palavra o diz: o paid-agogo referiase àquele que conduzia a criança até o lugar onde ela seria... instruída. O pedagogo não educava, apenas conduzia ao lugar da instrução. Sócrates o diz claramente no Alcebíades: a própria existência de escravos pedagogos é um sintoma de que a força de Atenas vai acabar, de que se educa ao contrário de como se deveria educar, de que a polis está caindo aos pedaços. Assim, a pedagogia, no chamado Ocidente, nasce como o triste exercício de um escravo que é levado a levar a criança lá onde um terceiro, invisível, quer que a leve. Irracionalidade a três. Ou a quatro, se incluímos o instrutor. Não há dúvida: na pedagogia, ao menos em sua origem grega, ninguém é dono de si. É claro que as coisas podem ser diferentes e não é necessário confundir uma pedagogia com todas as pedagogias. Mas também podemos suspeitar que as coisas sejam verdadeiramente diferentes se algumas relações forem mantidas, mesmo que recebam nomes distintos. Em tudo caso, a diferença na pedagogia se reveste da forma de um desafio: sair da escravidão. Não me refiro a tão falada escravidão da criança. Suspeito que ela será sempre uma ficção dos adultos. Refiro-me à primeira escravidão, àquela mais forte, a principal: a escravidão de si mesmo. Esta, o pedagogo ainda carrega consigo. De modo que a pedagogia é, para além de um mistério, o desafio da libertação da escravidão. Desde que inventaram a escola, a pedagogia já não é apenas um mistério, um enigma, uma pergunta e um desafio, mas ela é também um impossível: círculo quadrado; educar para a autonomia; óleo na água: emancipar o cidadão; sorvete quente: formar para a liberdade. Depois de “o que é pedagogia?” segue outro signo: a interrogação vira exclamação... O que é pedagogia!!! Como é possível!!! Como!!! De modo que a pedagogia é também impossível. Porém, pelo caminho do impossível, ela fica mais próxima do pensamento. Pensamos porque, como, quando, onde é impossível pensar. Educamos porque, como, quando, onde é impossível educar. A verdadeira pedagogia, a que vale a pena de ser pensada, só diz respeito ao impossível. Sócrates, pedagogo impossível, o sabia, inclusive antes de serem inventadas as escolas. Tão impossível era a pedagogia de Sócrates que o mataram. Ou se deixou matar, o que, neste caso, não faz diferença. As razões estão explícitas na acusação: Sócrates corrompia os jovens. E de verdade os corrompia. Tradicionalmente, eles eram ensinados que não sabiam e que deveriam aprender o que ignoravam. Sócrates também lhes ensinava que não sabiam, mas pretendia que aprendessem outra coisa: o contrário do saber, a ignorância. Mais uma mostra da impossibilidade da pedagogia: quando ela é verdadeira, ensina um impossível, ou seja, que a ignorância é um saber, que a ignorância é, de fato, o único saber que é necessário saber porque permite sempre saber diferentemente e não saber apenas o já sabido. A ignorância é o duplo impossível da pedagogia. O caso de Sócrates ensina que o verdadeiramente importante na pedagogia é aquilo que se aprende e não aquilo que se ensina. Também ensina que não há como

antecipar, controlar ou determinar aquilo que alguém aprende. Mais uma vez, o que se aprende, quando se aprende de verdade, é um mistério ou um impossível. Não sabemos por que se aprende, o que se aprende, como se aprende, nem para que se aprende. Nunca o saberemos. Mas é ali que a pedagogia se torna interessante: quando deixa aprender sem se preocupar em dirigir o que se aprende, como se aprende, para que se aprende. Finalmente, Sócrates ensina que a única pedagogia que vale a pena é aquela que se aproxima da vida e da morte. Ou para dizer melhor: a pedagogia, quando é levada a sério, ou seja, quando afirma o impossível, é também vida e morte. Num sentido primeiro, a pedagogia ajuda a viver e a morrer. Mas, também, a pedagogia entrega vida e entrega morte. Exige vida e exige morte. Vive da vida e morre da morte. Permite aprender a viver e aprender a morrer. Deixa viver e deixa morrer de verdade. Finalmente, como um impossível, a pedagogia é infância. Diferença de infância. Afirmação de infância. Sensibilidade de infância. Experiência. Criação. Afeto: trindade impossível da pedagogia. A pedagogia não é um espaço, não é um tempo, nem é uma linguagem. A pedagogia é uma utopia da terra: chegar à infância. Referências PLATÃO, Mênon. Trad. M. Iglesias. Rio de Janeiro: PUC; Loyola, 2001; _______. Alcibíades. Trad. O. Velásquez. Santiago de Chile: Dionysos,1979. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

REGIMENTO ESCOLAR Regimentum omnium rerum – ou Da máquina de corrigir escolares infernais Jadson Fernando Garcia Gonçalves

UM EPISÓDIO PORTARIA DE TRANSFERÊNCIA A direção da escola [...], usando das atribuições que lhes são conferidas e levando em consideração os atos de indisciplina, desrespeito e violência cometidos pelo aluno [...] da [...] série, do turno [...]. RESOLVE: TRANSFERI-LO, desta unidade Escolar, por não cumprir com as determinações do Regimento Escolar das Escolas Estaduais de Educação Básica, conforme o artigo nº 144, inciso IVtransferir, após ouvir o conselho escolar (...) e de acordo com o artigo 147, que considera faltas graves, inciso II, agressão física. Dê-se ciência, publique-se e cumpra-se. (Portaria afixada em uma escola e assinada pela Direção Escolar.)

UMA TECNOLOGIA Que isto sirva de exemplo!... – dizem os guardiões da moral pedagógica. O episódio e a frase refletem o perfeito funcionamento de uma tecnologia incorporada, desde há muito, à maquinaria escolar. Desnecessário localizar o momento preciso desta incorporação, tendo em vista que a educação, de maneira geral ou sob a tutela do Estado, não se realiza sem uma orientação ou direção de espírito, sem um governo de conduta, sem um regime. Sob a tutela do Estado, a educação, como mecanismo de governo da conduta, precisa ser legiferada e o dispositivo daí resultante deve ser colocado em funcionamento. O Regimento, esta racionalidade de governo da coletividade, esta tecnologia de gestão da vida, caracteriza-se como um conjunto de regras que a tudo e todos atinge ao ganhar força e amplitude de lei. Ao ser incorporado ao aparelho de Estado e à educação estatal, torna-se um aparato intrínseco ao pedagógico e atravessará incólume em suas distintas finalidades e aprimorando-se em sutilezas as sociedades soberanas, disciplinares e de controle. O Regimento, através de uma segmentaridade binária e linear (DELEUZE, 1996), funciona por re-partição, por segmentação, e o que faz é dispor e estabelecer as coisas e os seres em suas devidas localizações institucionais e espaciais, definindo deveres, permissões, proibições, compromissos, organizando e objetivando, assim, a vida escolar [...] para tornar muito mais econômico e efetivo um controle e uma gestão que até então se davam sobre elementos muito mais dispersos e desordenados, tudo isso implica trazer essas múltiplas cabeças para bem próximo, incluí-las e ordená-las num novo e cada vez maior e mais matizado campo de saberes (VEIGA-NETO, 2001, p. 114).

EFEITOS Podemos dizer com Larrosa que “é no momento em que se objetivam certos aspectos do humano que se torna possível a manipulação técnica institucionalizada dos indivíduos” (2002, p. 52); no momento em que, através do saber pedagógico, se institucionaliza o indivíduo transformando-o em sujeito pedagógico e por extensão transformando-o no objeto do saber pedagógico. Um saber que, nesta dimensão do pedagógico, e como um modo de objetivação, transforma os seres humanos em sujeito (FOUCAULT, 1995, p. 231). Ao institucionalizar o individuo singular, é possível integrálo a uma massa, homogeneizá-lo, enquadrá-lo a um conjunto governável de sujeitos,

colocá-los na ordem da “lei” pedagógica. (Estou utilizando “lei” no sentido da aproximação que Foucault faz deste termo, no pensamento grego, ao termo pastor, para me referir a uma “pastoral pedagógica”. Diz Foucault: O termo nomos (a lei) está ligado ao termo nomeus (pastor): o pastor reparte, a lei designa. E Zeus é denominado Nomios e Némeios porque provê ao sustento das suas ovelhas, 2004a, p. 4). Tal operação permite considerá-los “como composições multiformes, mas relativamente coesas, como multiplicidades a serem investidas pela ordem do poder” (BUJES, 2002, p. 95). O Regimento Escolar ao ser colocado em funcionamento como dispositivo de governo e direcionado ao sujeito institucional pedagógico, como elemento homogeneizado, envolto em uma rede de normas e “leis” pedagógicas, funciona de modo produtivo e econômico na realização de um diagnóstico e de um processo terapêutico institucional dos sujeitos a ele submetido. Ao ser capturado nesta rede de normas e “leis” pedagógicas, o sujeito pedagógico torna-se objeto e alvo a partir do qual e sobre o qual deverá ser implementada a organização da vida escolar. Assim, as segmentarizações operadas pelo Regimento Escolar permitem que o sujeito pedagógico seja colocado em segmentos lineares, duros, e esteja sujeito a uma minuciosa seleção, organização e distribuição que delimita o campo de ação dos elementos da máquina escolar. As segmentaridades instituídas pelo Regimento Escolar se materializam não somente em sua formatação hierárquica, em seus Títulos, Capítulos, Secções, Subsecções... –desdobramentos contínuos, procedimentalmente detalhados, qual uma rede de multiplicidades, que antes de dispersar a todos, num aparente paradoxo, detalha, parte e reparte utilizando-se de uma economia eficaz de melhor governar uma multiplicidade de sujeitos: segmentarizar para unificar, dispersar para incluir –, mas também em seus efeitos diagnósticos, disciplinares e terapêuticos das questões escolares que se aplicam à instituição e a todos os sujeitos pedagógicos através de avaliações contínuas, permanentes e multidirecionais, no sentido de corrigir distorções e aperfeiçoar a maquinaria escolar. O Regimento Escolar, como racionalidade de governo de escolares, não se encontra isento de poder; ele emerge de relações de poder e mantém tais relações ao instituir, entre outras parafernálias, novas formas de avaliação dos escolares “[...] centradas na descrição do perfil global dos alunos [...] formas de avaliação que, supostamente, reconhecem e liberam as qualidades individuais, permitem e assinalam um maior controle sobre o processo de avaliação” (BERNSTEIN, 1996, p. 128). Como técnica de governo e de poder, objetiva, de diferentes modos, estabelecer aquilo que Foucault chama de “práticas divisórias”, as quais incidem sobre o sujeito pedagógico, de modo que o “sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros” (1995, p. 231). Um possível efeito dessas práticas divisórias e individualizantes é a atribuição ao sujeito escolar de uma suposta autonomia e responsabilidades no exercício de seus direitos e deveres escolares. Investido do sentimento de autonomia e responsabilidade o sujeito escolar é capaz de realizar escolhas com plena liberdade, admitindo-se de antemão que esta liberdade está circunscrita ao permitido e ao proibido nos diversos dispositivos de controle, entre os quais o próprio Regimento Escolar. Esta circunscrição permite à máquina escolar um refinamento do exercício de controle sobre os sujeitos escolares já que estes se tornam sujeitos governáveis, no âmbito coletivo, e autogovernados, no âmbito individual. O Regimento Escolar se traduz ainda em um conjunto de regras e estratégias a partir do qual é possível por em operação tecnologias de governo pedagógico pastoral – como guia da conduta, ação, comportamento, pensamento –, que em última instância,

operam sobre os sujeitos na forma de técnicas de si, como uma maneira de subjetivar moralmente tais sujeitos. Como técnica de governo pedagógico pastoral, o Regimento Escolar estigmatiza o anômalo e vê no que lhe é exterior, naquilo que escapa à sua regularidade, à sua ordem, um perigo que é preciso controlar e evitar, vigiar e fazer que se saiba vigiado: “O sujeito - tanto o sujeito da razão como o sujeito moral - é o grande invento no qual o próprio sujeito assume a dupla tarefa de vigiar e ser vigiado, de dominar e ser dominado, de julgar e ser julgado, de castigar e ser castigado, de mandar e de obedecer” (LARROSA, 2002a, p. 113). Como máquina desejante, o que o Regimento Escolar deseja fundamentalmente é constituir um sujeito escolar moral, daí sua incidência sobre o corpo dos sujeitos escolares: sobre os corpos incide a moral. Daí seu empenho em fixar o corpo ao tempoespaço institucional escolar: conformação do corpo ao tempo-espaço medido, esquadrinhado, plenamente utilizado, sem lacunas, hierarquizado. A hierarquia como lugar da normalidade, da regularidade dos corpos pedagógicos. Normalidade, regularidade que advém de relações de poder políticos sobre os corpos, "seu controle, sua sujeição, a maneira como esse poder se exerce direta ou indiretamente sobre eles, a maneira como são dobrados, fixados, utilizados [...]” (FOUCAULT, 1997, p. 42), enfim uma disciplina que incide sobre a vida, sobre o corpo e o tempo-vida deste corpo. Conforme Foucault, a “primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões confusas [...] em multiplicidades organizadas [e governáveis] [...]. O quadro [...] é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma ‘ordem’” (2004, p126 - 167). O Regimento Escolar é esta “anatomia política do detalhe” de que fala Foucault, composta por “pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza” (FOUCAULT, 2004, p. 120). [...] o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica de poder” [...] ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos exercitados, corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2004, p. 119).

Assim, as práticas de governo, nas quais se insere o Regimento Escolar, se utilizam fortemente da tecnologia disciplinar “como investimento político e detalhado do corpo” (Idem, p. 120). Ora como biopolítica, ora como biopoder, a disciplina, como tecnologia política, exerce sobre o corpo político, singular ou em sua multiplicidade, um processo otimizado de gestão. Como forma de racionalidade de governo, a biopolítica é esta tecnologia que incide sobre uma população ou coletividade com a finalidade de ordená-la e extrair-lhe, através de técnicas e cálculos precisos e explícitos, saberes peculiares, de modo que estes saberes se convertam em estratégias de domínio, regulação, transformação e gestão da própria vida da coletividade; em outras palavras, se convertam em um poder, em um biopoder. A biopolítica é uma técnica de saber político gerindo a vida. Enquanto a biopolítica se relaciona ao saber político, o biopoder está relacionado a um tipo de poder cuja preocupação é a vigilância e o controle da população; entretanto, ambos se voltam, utilizando-se dos mais variados mecanismos, técnicas e instrumentos disciplinares, para a gestão da vida coletiva ou individual. É assim que Foucault (1999) os integra a uma

mesma e maleável tecnologia política de gestão, disciplinar em todo caso, que tem por alvo e efeito a coletividade e, por extensão, o indivíduo. Entretanto, Foucault deixa o alerta para o fato de que a [...] “disciplina” não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia [...]. Daí o fato de as disciplinas utilizarem processos de separação e de verticalidade, de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano barreiras tão estanques quanto possível, de definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante. Elas devem também fazer crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplicidade, mas por meios que sejam os mais rápidos e menos custosos, ou seja, utilizando a própria multiplicidade como instrumento desse crescimento [...] Enfim, a disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima, mas na própria trama da multiplicidade, da maneira mais discreta possível, articulada do melhor modo sobre as outras funções dessas multiplicidades, e também o menos dispendiosamente possível: atendem a isso instrumentos de poder anônimos e coextensivos à multiplicidade que regimentam, como a vigilância hierárquica, o registro contínuo, o julgamento e a classificação perpétuos (FOUCAULT, 2004, p. 177 e 181).

SEMPRE VAZA Entretanto, por ser apresentar como uma hierarquia segmentar o Regimento Escolar está sujeito a fluxos, refluxos, infiltrações, vazamentos, como todo dispositivo. Este conjunto multilinear que caracteriza o dispositivo é assim expresso por Deleuze: [O dispositivo é uma] máquina abstrata, definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda a distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma não-discursiva. É uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar (1991, p. 44).

São estas múltiplas linhas, curvas e regimes, sempre atravessadas por vetores e tensores, que constituem as visibilidades e as invisibilidades, as enunciações, as forças, as relações, as posições de sujeito. Como linhas bifurcadas, submetidas a variações de direção e sujeitas a derivações, são sempre efêmeras e transitórias. O Regimento Escolar/dispositivo, como um conjunto multilinear, de modo algum demarca fronteiras intransponíveis ou contornos definitivos entre saber, poder e subjetividade; nada garante seu sucesso ou insucesso definitivos; o dispositivo constitui e define os próprios regimes de enunciação e de silêncio, estes não são nem sujeitos, nem objetos, são regimes e “num regime de controle nunca se termina nada” (DELEUZE, 1992, p. 216). Nestes regimes, são muitas as linhas de força que atravessam, de um ponto a outro, o dispositivo e isto os tornam instáveis, em permanente desequilíbrio – tanto o dispositivo quanto os regimes: há linhas de sedimentação, mas também de segmentaridade, de fratura, de fissura, de visibilidade, de enunciação, de forças, de transgressão, de ruptura, de subjetivação. Trata-se de linhas que se bifurcam, de curvas que tangenciam regimes de saberes móveis e entrecruzados, ligados a configurações de poder e designados a produzir modos de subjetivação específicos. Quando as linhas de forças se curvam, formam meandros, se fundem e se fazem subterrâneas, são linhas de objetivação; quando, ao invés de entrar em contato com outra força, se voltam sobre si mesmas, e sobre si mesmas se exercem, estamos diante da dimensão do si-mesmo. A produção da subjetividade é um dispositivo; permite que ocorra uma linha de subjetivação; escapa às linhas anteriores; se escapa (EIZIRIK, 2002, p. 69).

É o entrecruzamento destas linhas, suas instabilidades, que suscitam múltiplas variações e mutações no próprio dispositivo e também nos regimes, mas, paradoxalmente, os torna suscetíveis a contínuas acomodações quanto às tentativas de se efetivar “processos singulares de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação” (DELEUZE, 1999, p. 158).

Mas nem por isso, ou exatamente por isso, não se consegue evitar os vazamentos. É que os “[...] centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência, muito mais do que por sua zona de potência” (DELEUZE, 1996, p. 96). UMA IRÔNICA CONSTATAÇÃO Nós, os imoralistas! – Este mundo que nos diz respeito no seio do qual nós temos que temer e que amar, este mundo quase invisível, inaudível, do mandar delicado, do obedecer delicado, um mundo do “quase” em todos os aspectos, escabroso, capcioso, pontiagudo, terno: sim, está bem definido de espectadores grosseiros e da curiosidade familiar! Estamos enfiados numa rede e numa camisa-de-forças de deveres e não podemos libertar-nos – é justamente nisso que somos “homens do dever”, nós também! É verdade que, por vezes, dançamos nas nossas “cadeias” e entre as nossas espadas; não é menos verdade que, mais frequentemente, gememos debaixo delas e somos impacientes com toda a secreta dureza do nosso destino. Mas, seja o que for que façamos: os patetas e a evidência dizem contra nós “estes são homens sem deveres” – temos sempre contra nós os patetas e a evidência! (NIETZSCHE, 1982, p. 145; grifos do autor).

REFERÊNCIAS BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico: classes, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996. BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo-SP: Brasiliense, 1991. ______. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3; Rio de Janeiro: Ed.34, 1996. DELEUZE, Gilles. Que és un dispositivo? In.: BALBIER, Etienne. et. al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 155 – 163. EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: Um pensador do presente. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In.: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de janeiro: Forense, 1995, p. 231-249. ______. A sociedade punitiva (1972-1973). In.: Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar; 1997, p. 25 - 44. ______. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999. ______. Vigiar e punir – história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2004. ______. “Omnes et singulatim”: para uma crítica da razão política. 2004a. Disponível em . Acesso em: 15/03/2004. LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In.: SILVA, Tomaz Tadeu. da. (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis-RJ: Vozes; 2002, p.35-86. ______. Nietzsche & a educação. Belo horizonte: Autêntica, 2002a. NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Lisboa: Guimarães Editores; 1982. VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para excluir. In.: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.105-118.

RIZOMA Daniel Dutra Trindade Tania Mara Galli Fonseca Você abraça seu amante, deita-se à sombra de uma árvore, ensina em sua classe, escreve um texto, passeia pela cidade. Você precisa se esquivar daquilo que sempre foge de seu domínio. Quer reter como memória longa aquilo que se traduz como aparição e desaparição, necessita de um pouco de ordem para se proteger do caos. Você busca um acordo entre coisas e pensamento, quer dar testemunho de mundos conhecidos e estáveis, quer saber das filiações, das origens e busca estabilizar o que abraça e o que o enlaça, utilizando um guarda-sol em forma arborescente. Você, sendo um comum, trata de vencer o caos, esquivar-se da catástrofe de ver-se arrastado pelo que não tem juízo e medida; você planta em sua cabeça uma árvore, cujas conjunções procedem por unificação e por recognição das formas. Enquanto isso, acontece em seu pensamento uma espécie de degenerescência. O mundo que você desejava experimentar como potência e invenção, transforma-se em tédio e fadiga. Que arrebatamentos seriam possíveis se víssemos saltarem linhas enosadas da assinatura de nosso próprio nome? Que vertigens transmutariam nosso equilíbrio se nossos romances explodissem em partículas infinitesimais, poeira e névoa? Que espantos nos assolariam se pudéssemos perceber, enquanto ensinamos, as milhares de (des)conexões que faíscam céleres nas mentes? Que fracasso e impotência se efetuariam, quando o mestre de obras percebesse quão distante sua obra se encontra do que havia sido planejado e previsto? Que horizontes vislumbraríamos para além de nossos olhos e sentidos, quando pudéssemos nos desfazer da idéia corriqueira de um mundo comparável, analogizável, divisível e homogêneo ou quando observássemos caules de rizomas que não param de surgir das árvores, aplicando-lhes germinações diversas que funcionam sempre por n-1 (Deleuze e Guattari, 1995), recusando um destino único e unificado? O que e como pensar se viéssemos saber, como nos dizem Deleuze e Guattari (1992, p.268) que o que nos passa e acontece provêm de profundas fendas sinápticas, de hiatos, intervalos e entre-tempos “de um cérebro inobjetivável” que nos desapossa da certeza de que somos humanos porque pensamos? É o cérebro que pensa e não o homem. O homem sendo apenas uma cristalização cerebral. O homem e o mundo não como formas percebidas, mas como “uma forma em si que não remete a nenhum ponto exterior, (...), uma forma consistente que se sobrevoa independentemente de qualquer dimensão suplementar, que não apela, pois, a nenhuma transcendência, que só tem um único lado, qualquer que seja o número de suas dimensões, que permanece co-presente a todas as suas determinações, sem proximidade ou distanciamento, que as percorre numa velocidade infinita (...), e que faz delas variações inseparáveis, às quais confere uma equipotencialidade sem confusão” (1992, p.270). O cérebro é o espírito-pensante, mas o mundo todo, as rochas e as plantas que não dispõem de sistema nervoso possuem uma “força-cérebro” que estende um plano de intensidades para a criação e para o acontecimento. Mundo-rizoma, lido como maquínica de enosamentos, de linhas duras, flexíveis e de fuga. O rizoma como uma verdadeira comunidade, uma comunidade pura, sem extremos ou pólos que sejam fixos por natureza, destituindo-nos da possibilidade de ancorar modos de agir, pensar e sentir em nenhuma espécie de Ser ou Substância. Não há finalidade essencial alguma num rizoma, sendo a comunidade pura de que é feito tão somente um meio de proliferação de acontecimentos vários. No rizoma, não há lugar para disjunções exclusivas, já que sua lógica destrona o verbo ser para dar lugar ao devir. Ao ou,ou advém o e,e,e. Uma de nossas crenças bastante enraizada corresponde a de que a insignificância do sujeito e do

objeto como norteadores da vida implica um declínio para o nada – a indiferença pura; mas o funcionamento ou a pragmática que diz respeito ao rizoma implica o contrário: as diferenciações proliferam cada vez mais justamente porque não existem elementos centralizadores e unificadores, sendo cada acontecimento rizomático marcado única e exclusivamente por sua singularidade. A própria vida, nesse sentido, subverte a exclusividade da perspectiva do sujeito e dá margem para que o mundo apareça sob uma infinidade de modos a-subjetivos: num rizoma se vive um pluralismo de fato. Quando a unidade do sujeito definha, uma miríade de novas vidas agradece; atrás das cortinas que findam o sujeito é o futuro que aplaude. Quando o sujeito deixa de representar, a vida, enfim, se apresenta. Esta é a perspectiva da comunidade pura, do rizoma. Num rizoma se ouve: – deixe de se preocupar com seus fantasmas, enfrente problemas reais, experimente; não se apegue aos deveres, ao já dado e representado, não viva por obrigação; apegue-se aos devires, ao impensado, viva por paixão. Contudo, não pense no rizoma como utopia, pulverize tal imagem distorcida, uma vez que doravante se está mais para a heterotopia, pois conceber o mundo e a nós mesmos como rizoma, não significa buscar lugares e tempos ainda inexistentes: a lógica do rizoma nos revela simplesmente que todos os lugares são possíveis, porque é de sua natureza que seus planos componentes sempre deslizem na direção de novas dimensões: o rizoma não é uma máquina de sonhos, é uma máquina de metamorfoses. Nele e através dele cavalgamos um tempo-massa, um presente complexo que não se estira como flecha em direção reta ao futuro. No rizoma, estamos em um cipoal de incompossíveis, habitamos labirintos que percorremos apenas ao som de um discreto trá-lá-lá. No rizoma, sempre estamos fundando nosso natal, presos apenas pelo fio da cançãozinha contraída em nós e que se ajusta, como uma pequena aliança, em nosso dedo anular (Deleuze e Guattari, 1997). Assim, o rizoma perfaz uma ética, um jeito de viver, pensar, amar na contramão das centralizações significantes e subjetivas. Os modelos identitários fracassam e vemonos lançados nos mapas das máscaras de um teatro de individuações regido pelo regime do finito-ilimitado (Deleuze, 2006). No rizoma, não há juízos e as operações se encontram para além das verdades e das mentiras. Seu sentido é extra-moral, sendo que a multiplicidade advém como substantivo, não mais como um atributo do sujeito (espírito) ou de um objeto (natureza), mas como a própria realidade das coisas. E, com o recesso do Sujeito-Objeto-Fundamento lá se vão a fixidez e as hierarquias, restando apenas um plano onde a multiplicidade convive e cria novas dimensões, sempre mudando a sua natureza, porque a sua lei é metamórfica. Questões preciosas emergem: como amar aquém do sujeito e dos significantes como formas de poder? Como aprender e ensinar aquém das hierarquias? Como pensar sem a referência do Um e suas dicotomias? O ser humano como representação do Um e o dever da escolha interminável: homo ou heterossexualidade, cidadania ou marginalidade, oportunismo ou fracasso, não é esta a velha ladainha? Enquanto a perspectiva do Sujeito e suas representações prevalecem, a riqueza infinita de outras formas de vida aborta. O fim pode ser o começo: viver a multiplicidade, colocar o sujeito em xeque, daí então o jogo da vida recomeça. Rizoma. Referências DELEUZE, Gilles. “O método da dramatização”. In:____; A Ilha deserta. (Trad. Luiz B. L. Orlandi) São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 129-154 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? (Trad. Alberto A. Muñoz; Bento Prado Jr.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. _________. “Rizoma”. In: _________. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. (Trad. Aurélio Guerra Neto) Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.

_________. “Acerca do Ritornelo”. In: _________. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. (Trad. Suely Rolnik) São Paulo: Ed. 34, 1997, p.115-170.

SALA DE AULA Julio Groppa Aquino A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica arroio, lágrima Olho d’água, bebida. A vida é líquida. Hilda Hilst

Não é lugar, mas ocasião. E nem sempre é bom. Não é templo, não é tribuna, não é mesa de operação. É tabuleiro de guerra, canibalização: o inimigo sorvido, deglutido e expelido. Não é tropa, trincheira ou bastião; antes, um ritmo, onda, flutuação. Não é repartição, laboratório ou oficina, mas arrebentação. Rumina-se, transtorna-se, desliza-se. Life is on the table. Não é jaula, estufa, reserva. É cabaninha de forte apache, e olhe lá. Mas pode ser lona de circo, buraco de fechadura, travesseiro, tapete voador. Alto lá, alto lá! É só um jogo de botão. Mas, se alguém porventura dele se cansar, eis que vira outra coisa. Por exemplo, telefone sem fio. Daí que não é sucursal nem terminal. Não é feito de bits, bytes, ram, rom, emoticons. É duro-mole, gira em falso, monta-desmonta. É caleidoscopização. Não é toca, é oca. Paragem dos eremitas, dos patifes e dos extravagantes. Um céu que nos abriga, mas que não protege. Arrefece, amolece, umedece. Deixa passar. Não é palco, passarela, divã, balcão. Ali, não se quer expressão, jamais comunicação. Migalhas do dito, voragem do dizer. Ou quase. É conversa fiada, perdigoto, vociferação. Patati, patatá. Não é paisagem, tanto menos edificação. É página em branco, celulose, clorofila, oxigênio, molécula. Tim-tim por tim-tim. Imaterialização. Não é praça, maquete ou caldeirão. É campo minado, fogo amigo, pau e pedra. Mutatis mutandis, extorsão. Cem, mil anos de perdão. Não é fome, é devoração. Anti-sobra do porvir. Vampirização. De costas, de lado e de ponta-cabeça também. D.O.S. – damn our souls. Não é big bang, é gang bang. Algema, chicote e focinheira. Todos contra um, um por um. Turba. É defloração. Em suma, transubstanciação. É a pequena arte, então. Impossível explicá-la para quem não a faz. Não é brisa, nem vendaval. É aluvião. Miríade de quinquilharias, engenhocas e gestos infinitesimais, inúteis, inutilérrimos. Delícia e horror. Agulha em palheiro. Entrementes, nem o show do milhão. Nem poente, nem nascente, é insolação. Algum delírio que não sufoca. Descompostura. Sem bis. Sem exceção. Não é indumentária de Salomão. É trapo, pano de chão. É rouxinol que canta com espinho cravado no peito. Desolação. Outrossim, é excesso e fastio. Mas também é espuma do mar, emanação: fluidos, miasmas, excreção. Um luxo só. Não é o ninho do corvo, então. É o passo da galinha. Mais precisamente: as iluminuras do ovo, tantas. Por assim dizer, não é a antevisão da uva, mas a fúria da bolha de sabão. É também o ranger dos dentes. Ah, é puro ramerrão. E que logo se diga: custa a ser bom. Não é via crucis, não é caravana, não é tripulação. É de faz-de-conta, é de guache, é de papelão. Se se quiser, tão-somente desfiguração. Maravilha de quinta

categoria, de terceiro escalão. Comme il fault, meu sinhô. Nem raízes, nem asas, é rabo. E nada além. Serve para espantar as moscas, a pudicícia e a poeira das idéias. É graça pura e mau jeito: a flor do sal da vida. Sim, definitivamente é rabo, não cajado. E nada aquém. Não é falange, não é comboio, tampouco legião. É alcatéia, estampido, estouro. Praga, pragas: 7, 49, 196, 38416. É o cão. É trem desembestado, trem das cores, trem da alegria. Uni, duni, tê. É ritual, algum consolo, carnavalização. Sem abre-alas, sem pódio, sem cinzas. É brasa, mora? Não é luz, não é ruína, mas um clarão. Explosão, explosões. Whack! Pow! Plact! Não é pajelança, não é utopia, não é orquestração. Não é, não é. É a casa grande dos apátridas; é o cortejo dos fracos, dos patéticos, dos que não contam; é o planeta azul das bestas. Caterva, corja, súcia. Desprocuram-se. Não é mapa, bússola ou marionete. Um istmozinho, na melhor das hipóteses. Pensando bem, é vapor. É liquefação. E ponto final. Em tempo: não é amor, não é ódio. É blefe, trapaça e lassidão. E é mais que bom. É fumaça, enfim. E também, quase sempre, solidão. Dragão, dragão, dragão. Fiozinho d´água. Gota de suor. Pingo de chuva. Cachaça pro santo. Saliva em descomunhão, o contrário do beijo. Sala de aula é ambiência molhada. E já o sabíamos.

Referências AQUINO, Julio Groppa. Instantâneos da escola contemporânea. São Paulo: Papirus, 2007. COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CORAZZA, Sandra M. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. CORAZZA, Sandra M.; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. DELEUZE, Gilles. Abecedário. In: http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com _content&task=view&id=67&Itemid=51. Capturado em 03 de novembro de 2008. _________. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. _________. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. FOUCAULT, Michel. “Introdução à vida não-fascista”. Comunicação&política, v.24, n.2, 2006, p.229-233. ___________. Ética, sexualidade, política. Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. HILST, Hilda. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004. KOHAN, W. O. (2007) “O que pode um professor?”. Deleuze pensa a educação. São Paulo: Segmento, p.48-57.

SOCIEDADE DE CONTROLE Thomas Stark Spyer Dulci Julio Groppa Aquino Deus sabe que, no dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal. Gênesis

Do ponto mais alto de uma árvore ancestral, um Corvus Corax observa, impassível, o ermo. Sua rotina se divide entre a necessidade de manter o equilíbrio sobre um galho retorcido e a contemplação da paisagem nas imediações de sua árvorereino. Axis mundi. De um lado, o desenho cambiante dos montículos de terra expelidos dos túneis subterrâneos onde habita uma família de toupeiras. Do outro, um traçado desalinhado, frenético. Um emaranhado de répteis escamados, ondulantes, justapostos. A ave insone entretém-se com o murmúrio incessante que brota da circunvizinhança. Aos pés da árvore-feudo, serpentes de diferentes formas e tamanhos encontramse absortas com sua própria música sibilante, atonal. Algaravias. Em vez da hierarquia de vozes ritmadas dos vizinhos do subterrâneo, uma algazarra de sons, um disse-medisse incompreensível ao observador do cume do mundo. Intensidades flexíveis e fugidias, sopros ofegantes, murmúrios solitários. Os seres da superfície operam segundo modulações, cada um isolado em seu próprio buraco negro. Sem fundamento nem finalidade, deitam suas existências sem nada legar às crias. Estas são submetidas a um jogo permanente de forças que ora incita seus gestos, ora os oprime. Jogos de ação e reação tão-somente: do ovo ao bote, ou à morte; em iguais medida e probabilidade. Risco puro. Sem cessar, os corpos alongados anunciam movimentos inesperados que voltam a curto-circuitar com as linhas mestras do emaranhado solitário. As serpentes sabem que não durarão por muito tempo, já que encarnam vidas expressas, condensadas, sem passado nem futuro. Por sua vez, as crias, libertas das paredes do ovo, são recepcionadas com botes incessantes, vindos de vários pontos, imputando-lhes a certeza de que apenas rivalidade e hostilização as aguardam. O bote maternal avisa: “não pára, movimenta-te; não te defendas, ataca”. E não é incomum a agonia de um filhote sufocado da cabeça à cauda pelos próprios pares. Naquele território cambiante, o deslocamento é a chave da sobrevivência. Sem desvelo de nenhuma ordem, as serpentes-mães demonstram que é justamente esse continuum molecular, quântico, que eventualmente garantirá sobrevida aos rebentos. Pouco importam os buracos negros que se formam naquele pântano de escamas. Há ali uma independência sem precedentes, mas também a iminência da autodestruição. Os botes constituem, portanto, o próprio mecanismo de individuação no interior daquela multiplicidade, já que, desde sempre, cada ofídio seguirá suas linhas próprias, impondo a si a cadência do movimento de vida-morte, indistintamente. Alguns palmos abaixo dali, o burburinho dos filhotes das toupeiras é perfeitamente audível para o observador. No mundo subterrâneo, tudo é conduzido de modo diligente pelas toupeiras-mães que, além da manutenção habitual da edificação, têm como tarefa precípua demonstrar às crias, futuras mantenedoras dos túneis seculares, a maneira apropriada de proceder. Repetem-se os movimentos maternos em uníssono: escavar, arrastar, empurrar, bater a cabeça, solidificar, descansar e, então, recomeçar.

Rebeldias tímidas despontam, porém, entre os filhotes, que se dão conta desde cedo da eficácia incerta das técnicas que lhes são ensinadas – o que é tão logo abafado pelas mães, cônscias de seu dever de vangloriar a experiência acumulada como a alma do trabalho, e este como razão de ser de suas existências. Tudo ali se resume a dar cabeçadas, a fim de que se edifique um novo túnel que desemboque numa outra praça interna, da qual derivaram novos túneis, e assim sucessivamente. Trata-se, portanto, de uma questão essencialmente energética. Não obstante sua missão honorífica, os mamíferos subterrâneos andam queixando-se da instabilidade dos dutos. A terra está mais arenosa do que de costume, o que exige o dobro do tempo e do esforço para manter rígidas as paredes. Sempre exaustas, as pobres criaturas vêem sua testa sangrar com freqüência, resultado de sua obstinação apaixonada. E, quando menos se espera, sua engenhosa obra ameaça desabar, principalmente nos estratos altos, mais exíguos e mais frágeis. Pequenos deslizamentos são constantes. Há ainda a tarefa mais intrincada de todas: a monitoração dos filhotes, a fim de protegê-los dos perigos do mundo externo que, sem cessar, rondam a toca-refúgio. Para as toupeiras, um dos piores inimigos são os próprios sentidos. É preciso ter acuidade e atenção máximas para memorizar os caminhos labirínticos, para internalizar as poucas rotas de escape, mediante a aproximação pressentida dos predadores. Não obstante, o esforço contínuo e o número incontável de cabeçadas as desorientam amiúde, principalmente as crias, levando-as a confundirem sua localização precisa na estrutura e, tanto pior, aproximando-as perigosamente do fora. Falha na equação; excesso de variáveis; desorientação. Certa feita, deu-se que as cavidades arenosas que uma das crias havia começado a escavar dobraram-se, fazendo curvar-se a linha de sustentação da estrutura. Situação limítrofe. O filhote, sem sabê-lo, estava tão próximo da superfície que o desabamento foi insuficiente para manter seu corpo abrigado, catapultando-o para o fora. Somente suas pequenas patas ainda permaneciam enterradas. Não se podia precisar ao certo se a expressão de pasmo, no rosto do filhote, era produzida pela intensa claridade ou pela lufada de vento que jamais testemunhara no interior de sua morada. A pequena toupeira, agora arremessada a um plano de existência desconhecido, conheceria de imediato as dentadas, o entorpecimento, a vertigem. Tateando sofregamente o entorno, vê-se então subsumida a um duto escuro, úmido e quente. Uma segunda pele; anéis, não mais órgãos. O inimaginável. Deixa-se então tragar, adormecendo lentamente. E eis que, enfeitiçado pela canção dos guizos, o velho corvo lança-se num vôo cego. Fim? Referências COSTA, Rogério. “Sociedade de controle”. São Paulo em perspectiva, v.18, n.1, 2004, p.151-160. DELEUZE, Gilles. "Controle e devir". In: _________. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p.209-218. _________. "Post-scriptum sobre as sociedades de controle". In: _________. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p.219-226. _________. "Políticas". In: _________. PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p.145-171. GADELHA COSTA, Sylvio S. “Educação, políticas de subjetivação e sociedades de controle”. In: MARCONDES, A.; FERNANDES, A.; ROCHA, M. (orgs.) Novos

possíveis no encontro da psicologia com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p.15-36. HARDT, Michael. “A sociedade mundial de controle”. In: ALLIEZ, E. (org.) Deleuze: uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000, p.357-372. KAFKA, Franz. Um artista da fome e a construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. PASSETI, Edson. “Segurança, confiança e tolerância: comandos na sociedade de controle”. São Paulo em perspectiva, v.18, n.1, 2004, p.161-167. PELBART, Peter P. Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2003. VEIGA-NETO, Alfredo. “Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de Império”. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (orgs.) Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p.13-38.

TECNOLOGIA EDUCACIONAL Pablo Esteban Rodríguez A modernidade inventou uma tecnologia geral de vida que substituiu diversas artes da existência. Constituiu procedimentos legitimados, onde, anteriormente, proliferavam apenas táticas e estratégias dispersas. Para manipular e transformar os objetos, criou a indústria, que deslocou a techné (arte); para multiplicar os signos, inventou os “meios de comunicação”; para fazer a dominação funcionar, entre os homens, atribuiu um lugar privilegiado às disciplinas; assim como, para realizar o governo de si, instituiu a relação exclusiva do sujeito com a verdade. As tecnologias educacionais da modernidade mostraram-se, desse modo, altamente eficazes, por conseguiram fazer da formação uma indústria; por encontrarem, na pedagogia, o modo de constituírem um grande meio de comunicação; por disporem corpos e almas num vasto diagrama disciplinar; além de garantirem um tipo de subjetivação, no qual a pergunta ética “o que significa estar no mundo”? é substituída pela interrogação moral “o que se deve saber para ter um desempenho exitoso na vida”? No entanto, a malha educacional moderna mostra-se com rasgões. A indústria da formação já não gera bens duráveis, a não ser serviços em permanente processo de obsolescência: “formação permanente”. A formação permanente de docentes (que são alunos) e de alunos (que são docentes) pode ser pensada como “formação histórica”; acumulação de pedras indigestas de saber (absorbidas bulicamente, sem fome); consciência saturada de tudo o que não lhe é próprio (cf. Nietzsche, 2003). A formação permanente consiste, precisamente, no resultado do aumento da informação. Informação que, de acordo com a cibernética e com a teoria dos sistemas, é uma categoria que transcende o espaço e o tempo. Logo, já não existem nem extensão espacial nem duração temporal; já não resta mais nada a ser formado, de uma vez para sempre; tampouco, nada há para ser modelado. Se é possível mudar constantemente de configuração é porque se pode modular. Antes, e mais eficazmente, do que as escolas e as universidades modernas, são, hoje, os novos meios de comunicação informatizados que mudam e modulam as suas próprias configurações, Os meios de modulação, que deslocam os meios de formação histórica, desativam também as tecnologias pedagógicas disponíveis, às quais restam somente tentar “aplicar” ou “adaptar as tecnologias de informação e de comunicação” ao seu próprio modelo. Surgem, assim, disparates, tais como os forúns, os campi e as aulas virtuais. Nessas expressões, parece que o “virtual” se opõe ao real; embora, efetivamente, trate-se da outra face do atual, isto é, do possível, da potência de atuar. Como assegura o senso comum, as tecnologias virtuais são tecnologias de informação; no entanto, se aceitamos, de um lado, a educação moderna como real e, de outro, a educação virtual como a sua “cópia”, restabelecemos, desse modo, o platonismo, ou seja, o processo de distinção entre os pretendentes falsos e os verdadeiros, em prol da maior glória do Modelo: representante entronizado da Idéia. As tecnologias virtuais são, assim, máquinas de informação que liquefazem o Modelo; e, além disso, dão lugar novamente a todos aqueles professores e alunos que foram, voluntariamente, máquinas de ensinar e de aprender na educação moderna. Por isso, a escola virtual é a escola moderna; mas uma escola que, não obstante, conseguiu desembaraçar-se do espaço e do tempo, graças aos fluxos de informação. Já a virtualidade, como modo de educação, pode ambicionar a exploração de terrenos impensados, desde que implica uma outra forma de possível.

As tecnologias virtuais de ação a distância abarcam aquelas experiências que, anteriormente, integraram a técnica do espaço fechado disciplinar. Essas tecnologias são os verdadeiros meios de comunicação, que substituem o papel, assumido na modernidade, pela pedagogia, e inauguram aquilo que Deleuze (1999) denomina “sociedades de controle”. A antiga idéia de “transmissão de conhecimento”, enquanto comunicação de dados (formação histórica), esfarela-se diante do fato de que as tecnologias virtuais (como a Internet, os telefones celulares, etc.), justamente, não cessam de enviar e de receber informação, abrindo o antigo espaço fechado disciplinar e fazendo caducar o adestramento dos corpos para usar cadeiras e mesas. Já não importa mais “o que há para saber?”, pois isso foi transferido para as máquinas. A tecnologia educacional da modernidade – ou a educação moderna, entendida como técnica de criação dos seres humanos – fundamentou-se na alfabetização, que foi um modo particular de estabilizar a relação entre consciência e corpo. A palavra, tornada gramatical, transformou-se na maneira de incorporar a própria humanidade aos seres humanos. Por isso, a educação moderna consistiu na correspondência de três atitudes: ler, permanecer sentado e acalmar-se (Sloterdijk, 2000). Agora, a informação – no tríplice sentido de formação permanente, virtualização e controle – assume, de bom grado, que as propriedades da linguagem não são exclusivas do homem; mas que também pertencem aos meios e entidades orgânicas que funcionam com padrões informatizados, como a Internet, a dotação genética e o sistema imunológico. O caráter extenso do corpo e a experiência da duração, na consciência, já não são mais condição de possibilidade para a aquisição da linguagem. Produz-se, assim, um desacoplamento entre linguagem e modo de subjetivação. Se isso acontece assim, a tecnologia educacional encontra-se diante da sua grande oportunidade de retornar a uma idéia de psicagogia, qual seja: uma educação da alma, que não pressupõe mais uma criança (a peda-gogia), que necessita ser formada historicamente, mediante a disciplina, graças a métodos de comunicação que tendem a fabricar vontade de verdade. O psicagogo (figura anterior à idéia cartesiana de subjetividade) considerava que a relação educacional só se produzia quando aquele que ensinava transformava-se no mesmo compasso daquele que aprendia. Não havia, nessa concepção, nenhum acesso universal à verdade, a não ser o acesso dos sujeitos a um saber de si próprios; saber que, não necessariamente, era algum conhecimento útil ou pré-formativo. Ora, para o psicagogo, em qualquer relação educacional, tem que “acontecer algo”; para tanto, todo docente deve transformar-se em Mestre e todo aluno em Discípulo. Estaríamos, assim, tratando de um novo modo de subjetivação que aceita o fim da pedagogia; sem, contudo, deixar-se aprisionar na recuperação platônica da educação moderna, feita por uma parcela do dispositivo virtual informático. Referências DELEUZE, Gilles. “Posdata sobre las sociedades de control”. In Christian Ferrer (comp.), El lenguaje libertario. Antología del pensamiento anarquista contemporáneo. Buenos Aires: Altamira, 1999. NIETZSCHE, Friedrich. “De la utilidad y los inconvenientes de la historia para la vida”. In: Antología. Barcelona: Península, 2003. SLOTERDIJK, Peter. “Reglas para un parque humano”. In Revista Pensamiento de los Confines. n.8. Buenos Aires: Diótima, 2000.

(DES)TERRITORIALIZAÇÃO Karen Elisabete Rosa Nodari Não é nenhuma novidade o fato do território escolar ser, atualmente, um palco privilegiado da chamada inclusão social. Cada vez mais, a essa instituição cabe acolher segmentos sociais que outrora, ou permaneciam à margem da escolarização, ou preenchiam as matrículas da chamada Educação Especial. Neste sentido, a sistemática de ingresso na escola, é bastante reveladora desta nova política. Qual será o modo mais adequado de se recrutar os alunos? Pelo bairro de residência da família? Por uma prova de seleção? Pelo seu nível sócio-econômico? Ou quem sabe, a maneira menos excludente seja outra? Uma forma de ingresso que revela uma vontade de não estabelecer critérios, de não barrar ninguém de antemão. A observar, somente, o preceito legal idade para a série de ingresso. Então, cria-se um sorteio. Uma seleção aleatória, um lace de dados que, a cada ano, afirma o acaso. Nada de contornos bem definidos, bem traçados, de estriar um espaço. E uma grande mistura se produz, a diluir todas as formas, a não querer identificar nada, nem ninguém e ver o que daí possa resultar. Uma seleção que contraria o bom senso, o sentido único, na medida em que, não há uma ordem que estabeleça uma direção a seguir: só serão aceitos os alunos mais aptos, os melhores preparados, os que tenham determinados pré-requisitos, ou aqueles que residam na região da escola. Institui-se um modo de seleção que inviabiliza qualquer tentativa de escolha do candidato por parte da escola: nada de preencher fichas contendo informações pregressas, nenhuma entrevista com o próprio, ou com seus pais, somente é necessário que alguém o inscreva. Bem como, nenhum teste ou prova de conhecimentos são aplicados. Uma mesa, um quadro verde, um microfone, caixas de som e um grande globo de metal contendo 50 bolinhas compõem esse jogo. E a cada giro do globo uma incógnita se repete: qual será a composição das novas turmas? Quem terá a chance de ingressar na escola? Quem ficará fora? É o que tenta adivinhar pelo olhar a platéia hipnotizada, mas de 300 pessoas a se espremer no saguão. A cada interrupção do movimento caótico das bolinhas no globo, um número é lido, um aluno a mais, uma vaga a menos. Será que basta o aluno ser sorteado para pertencer ao território escolar? Aquele que foi contemplado com uma vaga passa a ter todos os direitos e os deveres dos demais alunos, como: freqüência as aulas, uso da camiseta do uniforme, zelar pela conservação do patrimônio escolar, etc. Em tese, é isto que ocorre. E, na prática? É sabido que mochilas, quadros, classes, cadernos, lápis, murais, canetas, giz, o ruído das brincadeiras no pátio, das conversas, dos risos no saguão, o soar de uma sirene – a apressar os passos que vem do corredor, misturado a vozes que explicam um exercício de Ciências, formam um território. Neste caso, não se trata de um território qualquer, mas de um especial. Bem delimitado. Bem planejado. Repleto de rotinas. E, de objetivos que sinalizam aonde se quer chegar. Às oito horas da manhã soa o sinal, tem início o primeiro período da manhã. Neste exato momento, os alunos já devem estar dentro da sala de aula e, aqueles que não estiverem? Estes devem aguardar com os seus materiais do lado de fora, sem perturbar os demais, até o próximo sinal, a fim de poderem entrar em aula. Passam-se cinqüenta minutos... Alunos entram, professores saem. Mais um período. Uma aula a menos. Neste meio tempo, tanta coisa acontece... Conversas, risos, confidências, combinações entre os colegas, planos e mais planos para o final de semana são traçados. Com ou sem a participação dos novos colegas. Não é novidade que o território escolar é formado por vários outros. Aos poucos, vai se

delineando outro território dentro daquele maior. Quem a ele pertence comunga do mesmo jeito de vestir, gesticula da mesma forma, assiste aos mesmos filmes, ouve as mesmas músicas, usa o mesmo corte de cabelo, fala a mesma língua. Constrói-se um território fechado, com códigos e regras próprias, ao qual poucos têm acesso. Evidentemente, os professores dele estão fora. Mas, não apenas os adultos. Como, também, colegas como Aline. Aluna nova na classe. E, apesar de ter a mesma idade dos demais, situa-se a anos-luz de qualquer grupo. Geograficamente tão próxima deles e, ao mesmo tempo, tão distante. Completamente desterritorializada. Aparentemente, uma aluna como qualquer outra. Mas, de fato, somente igual a ela mesma. Única. Afinal, quem usa aquele cabelo, as roupas daquelas cores, caminha daquele jeito, erra ao pronunciar certas palavras? Aline e seus tropeços num território tão conhecido e desconhecido, ao mesmo tempo. Uma vez que ela já havia freqüentado uma escola, anteriormente. A flutuar pelas salas, pelos pátios e corredores. Simultaneamente, vista e não vista. Até mesmo, quando chega atrasada. Naquela manhã, os colegas já estavam sentados em grupo, alguns conversando, outros fazendo a pesquisa. Como sempre, olharam e não olharam para ela. No exato momento que a aluna aproximava-se do professor, a fim de lhe entregar o bilhete do atraso, num salto afasta-se da sua mesa e grita. Mas, não soltou um grito qualquer. Nunca tinham ouvido nada igual. Tão dramático, tão intenso, tão visceral. Num instante, aquele som longo e agudo conduziu alunos e professores para outro lugar... Onde não havia mais quadro, nem classes agrupadas, nem um professor a falar... Um local bem distante do Campus do Vale, sem terem deixado a sala. Aline, a que não pertencia a lugar algum, fora capaz de tirá-los todos dali, mesmo que por apenas alguns segundos. Instante eterno. Referências DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. _________. 11. 1887 - Acerca do ritornelo. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.v. V. II. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995. KAFKA, Franz. Um artista da fome e a construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

UNIVERSIDADE Vânia Dutra de Azeredo Definir Universidade é principiar por estabelecer o lugar privilegiado de convivência e conciliação da diversidade e da resistência crítica, pois a Universidade, por um lado, promove e acolhe a multiplicidade de perspectivas manifestas desde a sua própria definição etimológica de totalidade de universos que remete à convivência da heterogeneidade dos saberes. A universidade é o lugar legítimo da interpretação da realidade, da produção de significados, da criação técnica e tecnológica dos mecanismos de transformação e salvaguarda da dignificação humana através do intercâmbio dos conhecimentos, mediante os quais ela exerce sua função humanizadora. Sendo a universidade o lugar de investigação, análise, discussão, reflexão, sistematização e crítica do conhecimento humano, também compete a ela promover a inter-relação teórica e prática dos saberes prescindindo desta distinção. Não se concebe, portanto, a universidade como instrumento ideológico, nem como produtora de conhecimento fechado e nem como subserviente do mercado. Nesse sentido que, de outro lado, a Universidade comporta uma carga expressiva de crítica enquanto resistência frente a todo e qualquer poder de apropriação absoluta que impõe, por si mesma, uma impossibilidade de se conceder seja ao poder dogmático instituído seja ao mercado a tutela da Universalidade. Ela não pode jamais se converter em função de um ou de outro sem a conseqüente perda de identidade. Daí também a sua definição como lugar de resistência crítica e, porque não dizer com Derrida, mais que de crítica de desconstrução enquanto uma espécie de princípio de desobediência civil que a Universidade, com seu direito primordial de tudo dizer, carrega e expressa (cf. Derrida, 1999). Há, ainda, uma especificidade no dizer da Universidade que também a define, por justamente, fazê-la ser desde uma perspectiva da filosofia da diferença. O seu dizer carrega a consideração de que a linguagem não contém apenas um conjunto de sentenças com um determinado conteúdo, mas, também, os condicionantes para a sua aplicação, tendo em vista que a mesma sentença pode ter um sentido pragmático, alusivo ao contexto de enunciação, diferente conforme seja proferida como ordem, promessa ou afirmação. Tal sentença, e essa é a especificidade do dizer, tem uma parte proposicional e uma parte performativa, já que ao ser proferida, ao mesmo tempo, designa algo e realiza uma ação – como no caso de: ‘Eu professo que p’. A parte performativa compreende a ação feita e a parte proposicional aquilo que está sendo designado pela proposição, no caso p. As ações lingüísticas passam a ser ações comunicativas porque os atos lingüísticos são, de fato, atos. Trata-se dos atos de fala performativos de Austin que mostram que ao dizer algo realizamos uma ação (cf. Austin, 1990). Ao professar, proferimento próprio da Universidade, se está não apenas dizendo algo, mas realizando uma ação que compromete o falante, no caso, o professor sob um aspecto e o estudante sob outro, em termos da responsabilidade diante da promessa, juramento, testemunho que seu ato de fala carrega. É isso que Derrida quer dizer ao afirmar que a declaração de quem professa é performativa, pois não há como declarar sem, ao mesmo tempo, realizar e assumir o ato da declaração (cf. Derrida, 1999). Eis a especificidade do dizer na Universidade, uma vez que ele realiza uma ação ao mesmo tempo em que fala. E isso permite conciliar a universalidade com a diferença e a singularidade. A declaração é, ao mesmo tempo, universal e singular, pois enquanto universal contém um conteúdo constatativo referente ao mundo objetivo das coisas com relação ao qual cabem pretensões de verdade, mas em termos do professar, o falante como singularidade se auto-representa diante do outro tendo pretensões, não de verdade,

mas de sinceridade. O valor do mundo está nas interpretações perspectivas professadas, por meio das quais ele vem a ser enquanto algo que sempre se desloca e não atinge a verdade por não existir nenhuma verdade, exceto como avaliação perspectiva e provisória singularmente assinadas. O discurso veicula interpretações que são avaliações perspectivas por meio das quais o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências se constituem enquanto diferença, simultaneamente, universal e singular. Eis o domínio designativo do universo de variedades que faz a Universidade e que a Universidade faz. Referências APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, Trad. de Benno Disching, Petrópolis, vozes, 1994. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer, Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. CHAUÍ, M. Escritos sobre a universidade, São Paulo: Unesp, 2001. DERRIDA, J. O olho da universidade, Trad. Ricardo Conko e Ignácio Antônio Veis, São Paulo: Estação Liberdade, 1999. ROUANET, Sérgio Paulo, "Ética iluminista e ética discursiva", In: Tempo brasileiro, 1989, p. 23 - 78.

UNIVOCIDADE DO SER Eduardo Pellejero Somos todos a mesma coisa. A univocidade é uma tese da filosofia política e este é o seu enunciado mínimo irredutível. Tem uma hora para ser pronunciado (meianoite), um lugar (fora) e uma forma (palavra de ordem). Caso seja pronunciado em outras horas, em outro lugar ou de outra forma, não produz outro efeito que uma sombra de transcendência (panteísmo, humanismo, eterno retorno do mesmo). E mesmo quando, ao ser pronunciado, comece efetivamente um novo dia, caiam todas as barreiras e se instaure uma ordem diferente, na manhã do dia seguinte, não aparecerá mais do que como um duplo formal (estéril) das teses da equivocidade. Mas o mundo já não é o mesmo, o mesmo não volta, uma vez que tem lugar a expressão do comum, o acontecimento duma comunidade metafísica (Duns Escoto), imanente (Espinosa), ou intempestiva (Nietzsche), que problematiza e (re)parte as identidades instituídas. A equivocidade ou plurivocidade do ser é o princípio de uma filosofia política incomensurável (o seu duplo reativo): o ouro, a prata, o bronze e o ferro são repartidos nas almas dos homens segundo uma hierarquia inabalável. Há gente que é mais gente que outra gente. Do modelo à cópia, e da cópia ao simulacro, a plenitude do ser conhece assim a finitude, a corrupção, a carência; do per prius da substância ao per posterius dos acidentes, o ser diz-se de diferentes maneiras (a relação, o lugar, a qualidade afantasmam-se na in(e)minência da substância); a realidade de Deus não é (não pode ser) a das criaturas, que não são completamente reais ou não têm toda a realidade que é possível. Mas, do mesmo modo que a equivocidade recusa a plenitude do ser, volta a assumi-la, mediante uma dupla negação (modo eminentiori), numa instância transcendente, princípio inviolável cuja realidade é a plenitudo essendi. Nesse sentido, também não despreza a diferença dos entes (a sua força de trabalho), na medida em que necessita deles e do seu ser segundo para produzir a sombra de transcendência que assegura a eminência do ser primeiro (acumulação de mais-valia). A analogia (quando não a homonímia não acidental) constitui a dimensão conceitual dessa hierarquia do ser em relação a um primeiro (Deus, Rei, Estado, Capital), que representa a perfeição do ser (a diferença afirmada pela equivocidade é sempre uma diferença de segundo grau, em relação a um ser eminente, do qual só dispomos dos despojos, dos restos: PLURIVOCIDADE ≠ PLURALISMO). O ser (a vida, o desejo) não está aqui entre nós (está sempre em outro lugar, ou em outro momento), mas os entes podem conjurar essa ausência negando o seu próprio ser: Deus não é bom, nem justo nem belo, pelo menos no sentido no qual as criaturas podem sê-lo, mas na eminência da sua bondade, da sua justiça e da sua beleza, fundadas na negação da finitude dos nossos atributos, recebemos cada um a parte que nos cabe neste mundo; do mesmo modo, o Estado é uma alienação da vida nua (da sua soberania), mas a vida nua confunde o momento da sua determinação efetiva com a cidadania que emana do primeiro, e pensa a sua diferença como um direito adquirido, não como uma potência inata; o Capital, por fim, nega o valor do trabalho para afirmar, para se apropriar do seu valor como valor de câmbio, elevando a seguir esse atributo como critério universal (abstrato) de toda identidade e de toda relação. Não surpreende, portanto, que a doutrina da equivocidade do ser apareça sucessivamente como teologia negativa, ontoteologia, contrato social, lei do mercado (reproduzindo indefinidamente uma certa imagem do pensamento).

A univocidade do ser, por sua vez, opera por meio da afirmação de perspectivas, suspensão de sentido, alianças estratégicas, linhas de fuga. O ser unívoco é uma suma ateológica (lugar onde a renúncia a toda totalização da realidade pela representação vem transvalorar a morte de Deus, para além do fim das utopias historicistas e da celebração do niilismo reinante). Nesse sentido, não se reconhece na forma da substância, mas apenas numa variação contínua. Somente assim ressoam em nós, efetivamente, as formulações canônicas da univocidade do ser: ens dicitur per unam rationem de omnibus de quibus dicitur; isto é, o ser diz-se num só sentido de tudo aquilo do que é dito; o ser acontece como um acontecimento único para tudo aquilo que acontece às coisas mais diversas e dos mais diversos modos (eventum tantum). Talvez a história seja sempre a história da equivocidade (e, em segundo lugar, da analogia), mas as rupturas históricas, as revoltas, os carnavais e as revoluções são unívocas. O ser unívoco é um ato (impessoal), um acontecimento (neutro), um devir (duplo). Contra as repartições da história, o ser unívoco é a afirmação de um movimento comum de divergência (agenciamento coletivo). Em outras palavras, a univocidade celebra as bodas contra-natureza de perspectivas não necessariamente convergentes, para além da sobredeterminação histórica dos sujeitos (e dos objetos) dessas perspectivas. Contra o contrato entre desiguais, afirma alianças entre diferenças intensivas, entre diferentes graus de uma mesma potência, sem necessidade de uma história comum nem projeções transcendentes (MONISMO = PLURALISMO). É neste sentido que Deleuze via no Maio Francês uma irrupção da realidade em estado puro (do ser unívoco): toda essa gente que não tinha nada em comum (fora do seu desejo reprimido, da sua vida alienada, do seu trabalho explorado) é ganha por uma força que a leva além de qualquer condição de possibilidade (o ser unívoco é sempre e necessariamente uma exigência do impossível). A univocidade, portanto, ao afirmar o mesmo ser para todas as coisas e para todos os entes, afirma, reciprocamente, uma descontinuidade, uma diferença primeira: o ser unívoco não se estende como uma continuidade bem nivelada, mas é retomado (repetido, contra-efetuado) de acontecimento em acontecimento (da aguda ponta do nosso presente, todos os instantes passados aparecem como contemporâneos entre si, tal como as estrelas no firmamento aparecem todas sobre o mesmo plano da noite, apenas mais ou menos brilhantes, mais ou menos intensas). Mas o clamor do ser não é uma manifestação nem de Deus nem da Natureza, como também não expressa uma língua ou um tempo originais. O clamor do ser é a voz da multidão. Agenciamento coletivo de enunciação, que excede as equívocas determinações nas quais nos encontramos comprometidos como sujeitos de saber e de poder. A univocidade ressoa nas falhas, nas gretas, nos pontos cegos, nas dobras e nas linhas de fuga dos dispositivos dos mais diversos signos. Daí, o seu caráter sedicioso (e, consequentemente, o perigo que implica para o pensamento). Contra a organização do corpo, contra a estratificação da terra, contra a divisão do trabalho, contra a repartição do sensível, a univocidade afirma uma potência impessoal, pré-individual, a-subjetiva, capaz de criar novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho, sem imagens preconcebidas de uma verdade, de um estado ou de um sentido a conquistar. Por isso, a enunciação da univocidade do ser é, fatalmente, uma enunciação paradoxal, na medida em que o sujeito da mesma peca sempre por excesso ou por defeito. Entretanto, existem outros modos de afirmar a univocidade (uma praxis da univocidade); meios e procedimentos capazes de suscitar, contra as distinções equívocas e as estruturas analógicas, efeitos de univocidade. Sem pretensões de ser exaustivos,

mencionemos a colagem, a minorização, a montagem, a produção do corpo sem órgãos, o traçado de planos de imanência, a liquidação do juízo de Deus, o tiranicídio (e a guilhotina, claro), a crítica da superstição, o materialismo, a filosofia. A univocidade do ser é a tese necessária de qualquer filosofia política que pretenda pensar um lugar para a resistência (o ser é – diz – o retorno das diferenças). A univocidade do ser é o suplemento ontológico que des-funda qualquer tentativa de totalização da realidade pelas categorias da representação, e perpetua o movimento sempre por recomeçar do pensamento (da luta), negando-nos qualquer possibilidade de repouso, de acordo ou de institucionalização. Acontecimento que explode nos interstícios das nossas condições de (im)possibilidade – articulando estrategicamente um sentido (sem pretensões de significação) –, e que é enunciado de forma coletiva, de singularidade em singularidade, de foco em foco, como um rumor ou como uma conjura: Somos todos a mesma coisa. A mesma coisa. Referências 1) Para uma aproximação histórica ao conceito de univocidade: AVICENNE, Abu-Ali. Liber de Philosophia prima sive scientia divina – Édition critique de la traduction latine médiévale par S. Van Riet. Louvain-Leiden: Ed. Peeters - E. J. Brill, 1977. DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968. SCOTO, Duns J. Joannis Duns Scoti Opera Omnia, Ciudade do Vaticano: Ed. C. Balic, 1950. SPINOZA, Baruch. Ethica ordine geometrico demonstrata, Spinoza, Opera, vol. II, Heidelberg: Ed. Carl Gebhardt, 1925. 2) Para a sua dramatização política: ARANOA, Fernando León de. Los lunes al sol. España-Francia-Italia: Warner Sogefilms A.I.E., 2002. HARDT, Michel. Gilles Deleuze: an apprenticeship in philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. NEGRI, Antonio. L’anomalia selvaggia: saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza, Milano: Feltrinelli, 1981.

(TRANS) VALOR-IZ-AÇÃO DO MAGISTÉRIO Sandra Cristina Gorni Benedetti Thomas Stark Spyer Dulci O Ministério da Educação adverte: a transvaloração dos valores que se alastra no quadro do magistério nacional pode causar danos morais irreversíveis às futuras gerações. Sintomas de inconformidade, fúrias súbitas, isolamento, imoralismo, paganismo, desobediência, devassidão, ostracismo voluntário, entre vários outros, anunciam o processo. Diretores, coordenadores pedagógicos e supervisores de ensino, que ainda não se contaminaram, devem ficar atentos aos possíveis sinais, tomando as medidas cabíveis a tempo. Aos pais, atenção redobrada com os filhos, sobretudo quando estes chegarem em casa com idéias estranhas e atitudes suspeitas. Trata-se de algo comum; vários casos já foram constatados: docentes dirigindo pensamentos de baixo calão a superiores, quando questionados. Força policial pode ser necessária. Quanto a tal medida extrema, as autoridades locais e as escolas podem dispor de toda a tecnologia jurídica acumulada: inquéritos reparatórios, processos disciplinares e outros métodos afins de investigação. Se preciso for, pode-se levantar o histórico médico dos sujeitos, a fim de subsidiar o quebra-cabeças da peça processual. Os sistemas estaduais de ensino, que já implementaram esse recurso, concluem que a denúncia voluntário-solidária é uma importante aliada no combate às desordens psicossociais que se prenunciam no ambiente escolar. Isso porque a alteração fisio-psicológica, em questão, não é somente de ordem privada, mas afeta todo o entorno, podendo ser claramente atestada entre os procedimentos usuais de trabalho dos acometidos. Planejamentos pedagógicos mutantes; desprezo pelos parâmetros curriculares e pelos livros didáticos; desconsideração pelos sistemas de avaliação institucional; entrega de diários de classe rasurados; recusa em fazer relatórios diagnósticos de alunos; falta de cooperação com os colegas nos trabalhos interdisciplinares propostos pelas secretarias de educação; envilecimento das reuniões pedagógicas: todos eles efeitos inerentes a esse mal transvalorante dos mais caros valores que a instituição escolar tem por missão histórica defender. É preciso combater tais desvios, com todas as armas disponíveis, pois a transvaloração é contagiosa, visto que a alteração radical dos valores vigentes pode ter conseqüências nefastas ao bom desempenho de todas e quaisquer instituições sociais, e não apenas da escola. Para tanto, o Ministério da Educação possui uma coleção de cartilhas de ação, consubstanciadas nos programas de valorização dos trabalhadores da educação. Com essa ampla gama de providências, os profissionais da educação encontrarão muitos modos de serem valorizados e recobrarem a paz de espírito perdida. É digno de nota o intenso trabalho do Ministério para planejar, já há 20 anos (desde a última constituição), um projeto nacional de reconhecimento salarial e profissional. Atualmente, os esforços estão no âmbito preliminar do conhecimento. Após essa etapa, passará ao do reconhecimento. O Ministério não descarta estágios de re-reconhecimento e, porventura, re-re-reconhecimento. O fundamental é que esse trabalho nunca pare. Assim, membros do corpo federativo ensaiam, há algum tempo, métodos consagrados de incentivo financeiro: premiação para escolas que se destaquem pelos índices elevados de aprovação, além do sucesso comprovado na Prova Brasil, no Enem e em outros tantos por vir; premiação a diretores que reduzam sensivelmente a incidência de faltas do corpo docente e, em especial àqueles que consigam passar o ano sem falta alguma. Em segundo lugar, deveras preocupado com a condição de produtividade de seus funcionários, o Ministério tem lançado incessantes programas de formação

perpétua. Por meio deles, tem sido possível acompanhar, corpo-a-corpo, o desenvolvimento constante e ininterrupto de todos os integrantes da heróica educação nacional. Destaque, ainda, para um terceiro modo de valorização: o inexorável cuidado com a saúde dos funcionários. Programas de cuidado bio-psico-social vêm sendo levados a cabo por psicólogos, psicopedagogos e médicos, com vistas ao bem-estar definitivo de nossos professores. O objetivo essencial de tais ações ministeriais é o de conectar as secretarias de saúde com as de educação para que haja uma operacionalidade sistêmica, eficiente e rápida, tanto de diagnóstico quanto de recuperação terapêutica e, eventualmente, internação dos enfermos. O Ministério reconhece o adoecimento docente como presença marcante na rede, e já não são poucos os professores readaptados, retirados do contato com os alunos e remanejados a postos incidentais da burocracia, garantindo a boa sanidade escolar. Afinal, como a transvaloração é um perigo iminente, medidas de contenção preventivas são o melhor remédio. *** Em toda parte as gralhas grasnam: nada mais brota ou cresce por aqui! Mas, as gralhas também se enganam. O alunado, nem tanto. Queixa-se no começo e, sem entender o que se passa, acusa o professor infectado de desmedido e extravagante. Mas algo ali acontece. E o que era desinteresse, desprezo até, passa a se dar como uma veneração incerta, respeito ao incomum e adesão a modos singulares de dar a ver, dar a falar, dar a ouvir, dar a dar. Dar à pele o que a opacidade da repetição vazia oblitera em todos os poros e buracos da paisagem escolar. Esse é o placebo que mantém alguns infectados não-terminais na lida diária dos trigais.

Referências DELEUZE, G. (1976) Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio. 170p. (Coleção SEMEION, 4). BRASIL. Ministério da Educação / Secretaria de Educação Básica – MEC / SEB. Formação dos Profissionais da Educação. Disponível em . Acessado em: 02 nov. 2008.

VIRTUAL/ATUAL Selda Engelman A questão do tempo inegavelmente ocupou Deleuze em suas obras e textos variados, principalmente quanto aos paradoxos do tempo. Na esteira de Bergson, Deleuze traz o tempo como duração, aquilo que na duração difere de si abrindo, então, possibilidades de criação. (Deleuze, 1999, p.103) Já com Guattari, invoca o tempo como multiplicidade, cuja lógica se encontra no rizoma: no rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, ele é feito de direções móveis, sem inicio nem fim, mas apenas meio, por onde ele cresce e transborda. (D&G, 1995, p. 32,33) Nestas conexões, o paradoxo está nesta imagem-tempo que desobedece a tripartição diacrônica do passado, presente e futuro e que sai fora dos gonzos, alucina, transgride. O tempo, aquele que entorta a linha, descentra o circulo, desvia o fluxo, corrompe a ordem e apresenta-se como turbilhão, como variação infinita, como forma da nãoforma: informal e plástico. Difícil condição imaginar o tempo sem o bom senso da flecha, ou melhor, não seria a própria flecha do tempo quem se desfaz num mundo que ficou reduzido a migalhas e caos? (Deleuze, 1990) Difícil perceber que a divisão espaço-temporal da vida não segue mais a evolução da linha: da família para a escola; da escola para o exército; do exército para a fábrica e a evolução natural: criança, jovem, adulto, velho. Mas, é em meio a estes destemperos do tempo que Deleuze invoca um jogo, o jogo entre o atual/virtual na criação de possíveis. O possível jamais é dado antecipadamente, ele jorra do encontro entre atual e virtual, em um jogo do virtual. Cada atual é encoberto por uma nuvem de imagens virtuais. (Deleuze e Parnet, 1998) O atual refere-se ao estado de coisas, ao que já é dado, constituído, percebido e sentido. O virtual é a insistência do que não é dado, ou seja, significa que nem tudo é dado, nem passível de ser dado. Ao mesmo tempo, tudo que o que acontece só pode provir do mundo, deste mundo, em uma crença da imanência, o que nas palavras de Deleuze seria “crer neste mundo”. Ou seja, o virtual seria como um mundo originário, um mundo que duplica um meio real, histórico e geográfico, é imanente a ele e não existe independente dele: uma reserva imaterial que duplica o mundo empírico. (Pelbart, 1998, p. 109) Só existe então objeto reconhecido como possível em vias de atualização. E eis porque o processo de atualização é logicamente inseparável do movimento de cristalização, que restitui ao dado sua parte irredutível de virtualidade. (Zourabichvili, 2004, p. 119) A atualização refere-se ao processo do virtual para o atual, a cristalização refere-se ao jogo do atual para o virtual, sempre em uma lógica dos encontros, na criação de possíveis. São estes possíveis que afirmam, mais uma vez, tanto uma temporalidade múltipla, de um tempo multidimensional, quanto à duração como diferença. São estes possíveis que se bifurcam e se diferenciam constantemente. No entanto, Deleuze é cuidadoso quanto a duas questões fundamentais sobre o possível. Uma delas seria a realização do possível. A outra, a abertura do possível. Na primeira, realiza-se o possível, pois ele é algo que pode acontecer, efetiva ou logicamente. Neste caso, tende-se a pensar, por exemplo, em uma educação utópica, metodologia utópica, currículo utópico, sala de aula utópica, comportamento infantil utópico. Os direitos da educação para todos, currículo flexível, metodologias participativas e inventivas, a diferença incluída na escola são, por exemplo, pautas reconhecidas, percebidas e incorporadas no contemporâneo escolar. São possíveis a serem realizados. Passam por uma disponibilidade atual de um projeto a realizar “ou a imagem de uma nova situação pela qual se pretende, brutalmente, substituir a atual, esperando alcançar o real a partir do imaginário; operação sobre o real e não do próprio real.” (Zourabichvili, 2000, p. 335) A segunda seria a abertura a

criação do possível e de possibilidades de vida. Ou seja, não se sabe o que passará, o que se passou, o que aconteceu, o que acontecerá. Tudo é da ordem da revolução e do acontecimento. Sendo que o acontecimento é primeiro, a revolução é primeira, o possível chega pelo acontecimento e não o inverso, em um engendramento entre atual e virtual. Trata-se de uma redistribuição de papéis e funções, da instalação de novas condições históricas e sociais em função das quais algo poderá ocorrer, da emergência do Novo. O Novo como tempo. O Novo como futuro. Para Deleuze, o tempo futuro refere-se a novos modos de viver, de amar, de estudar, de ministrar aulas, de afetar e ser afetado, de perceber e ser percebido. O Futuro é um novo mapa de afetos distribuídos diferentemente, uma nova circunscrição do que se designa, inclusive, como tolerável e intolerável no mundo. Trata-se da invenção de novas formas sociais concretas que correspondam a uma nova sensibilidade, a uma nova atmosfera: a um agenciamento espaço-temporal coletivo inédito. (ib., p. 344) Incorre na revelação de uma realidade não cronológica do tempo, mais profunda que a cronologia: a exterioridade no tempo (o Fora). Paradoxalmente um Fora que não é exterior ao tempo, mas é interior ao próprio tempo, separando-o multiplamente de si. Daí abre-se o sentido fundamentalmente temporal do virtual e sua importância incondicional a Deleuze: o tempo do virtual. O futuro como tempo virtual efetivo. O cristal do tempo Nessa síntese de dimensões heterogêneas do tempo que se faz ver o cristal: “O que se vê no cristal é pois um desdobramento que o próprio cristal não pára de fazer girar sobre si, que ele impede de findar, já que é um perpétuo se distinguir, distinção se fazendo que retoma sempre em si os termos distintos, sendo que a imagem-cristal é o ponto de indiscernibilidade de duas imagens distintas, a atual e a virtual” (Deleuze, 1990, p. 103). Foi na busca de expressão máxima da imagem cristal do tempo que Deleuze escreveu os dois tomos de Cinema: imagem-movimento e imagem-tempo, textos que concentram suas teses maiores sobre o tempo, enriquecidas com uma forma de expressão inventiva e uma narratividade sistemática e dramatizada. Deleuze novamente invoca Bergson para utilizar sua teoria sobre matéria e memória nas imagens do cinema. A memória como virtual é aquela em que o passado se conserva em si, sendo contemporâneo do presente que ele foi. (Deleuze, 1999, p. 45) O passado e o presente não designam dois momentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem: um é o presente que não para de passar, o outro é o passado pelo qual todos os presentes passam. Para tanto, o tempo desdobra-se a cada instante em presente e passado. O presente atual diferencia-se de natureza do passado virtual. Esta operação é, para Deleuze, a operação mais fundamental do tempo, na qual o tempo “se cinde em dois jatos dissimétricos, um dos quais se faz passar todo o presente, e outro conserva todo o passado”. Expressar a imagem cristal é mostrar esta troca perpétua entre o atual e o virtual, é mostrar como eles se tornam indiscerníveis. Foram vários os filmes e cineastas que Deleuze trouxe para expressar a imagem cristal, tais como E La nave va (1976) de Fellini ou O Leopardo (1963), de Visconti ou Hitler, um filme da Alemanha (1978) e Réquiem (1972), de Syberberg. O filósofo descreve cenas específicas que indicam a produção do cristal, o movimento de fundação do tempo. No entanto, em nenhum destes filmes Deleuze apresenta o a imagem cristal em quase toda a extensão da superfície fílmica, tal como acontece com o filme Arca Russa de Sokurov (Sokurov, 2002). Ali não são apenas cenas que se extrai para expressão desta imagem, da imagem cristal. O filme é uma imagem cristal. Arca Russa foi um filme rodado em um único plano seqüência de 96 minutos, um plano de duração contínua em um percurso atemporal,

sem montagem, que tem como marco o século XVIII na Rússia a partir do Hermitage, o museu de Leningrado. Nesta arca do tempo, Catarina II aparece e desaparece, visitantes contemporâneos se cruzam com personagens de outros séculos e o Hermitage surge deserto durante o cerco de Leningrado pelos nazistas. Há muitos tempos no “tempo real” da Arca Russa – temporalidades históricas diversas, tempos musicais e afetivos, tempos suspensos na pintura dos grandes mestres, tempos intensos do cinema que ressoam neste filme. Cada imagem se envolve com uma atmosfera de mundo, pluralidade de mundos. (Santos, 2002, p. 81) Arca Russa é uma memória virtual que se atualiza nos dois visitantes que fazem o percurso no Hermitage. Uma memória que dialoga com o presente e mistura-se a ele Um espírito percorre o palácio da memória, mas aquele a quem segue e com quem conversa também não é homem de carne e osso, um é estrangeiro no espaço, o outro é estrangeiro no tempo. Tudo se mostra em um plano impalpável, em uma percepção direta do labirinto da memória. A câmera de Sokurov salta neste labirinto trazendo a olho nu as pequenas percepções dos vários universos filmados. Na paisagem do baile, o luxo se mistura ao mau cheiro, obrigando o afastamento dos bailarinos do salão nobre. A rainha solicita o banheiro. Pessoas comuns circulam entre príncipes e princesas. Nas faces do cristal reluzem relíquias, arte, ouro, personagens deslumbrantes e guerras, invernos e desertos em uma mise-en-scène quase insana. Tudo ocorre como se a vida presente e passada do palácio ganhasse corpo e viesse ao encontro do espectador, à medida que ele adentrasse as salas ou passasse de uma para outra. (ib., p. 67) Imagens com uma intensidade em tempo real que reivindicam não o possível realizado, mas sua produção, a insubmissão mesma a realidade, a exigência de uma vontade criadora, (Furtado, 2007) a abertura de novos possíveis no mundo. Nesta indiscernibilidade entre presente, passado e futuro, entre virtual e atual, estas imagens extrapolam a história e abrem-se para um puro devir. Referências DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed 34. 1999, p. 103. _______________. A imagem-tempo. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990 __________& PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. __________& GUATARRI, F. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, pgs. 32, 33. FURTADO, Beatriz. “Imagem-intensidade em Sokurov”. In: Nietzsche-Deleuze: Imagem. Literatura, Educação. Lins, D. (org.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. PELBART, Peter. O tempo não reconciliado: imagens do tempo em Deleuze. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998, p. 109. SANTOS, Laymert. “Entrando na Arca russa”. In: Aleksandr Sokurov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 81. SOKUROV, Alexander. Arca Russa. Rússia: 2002, 1 DVD, 92”, cor. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2004, p. 119. ____________ “Deleuze e o possível”. In: Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Eric Alliez (org). Tradução de Maria Cristina Franco Ferraz. São Paulo: Ed 34, 2000, p. 335.

(o) X DA QUESTÃO Paola Zordan Caractere Código expresso em glifo alfabético para: a primeira incógnita de uma equação o gene feminino encruzilhadas dois paus cruzados estacas de impedimento as diagonais de um quadrado linhas convergindo em um ponto partindo de quatro multiplicado a três virou indício de pornografia signo de alerta ressalva perigo só passa quem desvendá-lo pois a questão só existe porque assim um problema a formulou é a fórmula da questão que demanda um x resolver a questão é encontrar uma variável ultrapassar a linha de um resultado. Quando nada resulta um x faz arte ao cubo pode ser demais visto que ao quadrado se abstrai no mínimo múltiplo matado a mil. Potência que questão alguma quer. Questionar é extrair do x o que o pensamento em natureza por n razões deforma em noção

verdadeira sempre a ser posta em Xeque. Real quantum diferencial que absurdamente se cria sem forma partícula em devir. Que é tão? depois de só uma letra para assinalar o vácuo ( ) nome ( ) número ( ) númen ( ) nomos ( ) novo

texto Referências ANTUNES, Arnaldo. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 2001. _____. Palavra Desordem. Iluminuras, 2002. LEMINSKI, Paulo. Caprichos & Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______. Bergsonismo. Trad. Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Ed.34,1999. ______. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007. HILST, Hilda. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004. ______. Poemas malditos, gozosos e devotos. São Paulo: Globo, 2005 PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus (seleção poética). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

XEROX Claudia Maria Perrone É interessante pensar nas variações de sentido que a palavra xerox provoca. Xerox é a grande máquina copiadora. Xerox é uma ferramenta educacional sem a qual a universidade não funciona. Gerações e gerações de estudantes formaram-se copiando capítulos de livros. E a cópia foi a solução dos seus problemas. A difusão do conhecimento através do livro no Brasil ainda é um privilégio da elite pois o livro é um objeto caro, quase um luxo. Assim, o xerox não somente é uma ferramenta educacional como também permite o acesso ao conhecimento e a cultura. Nesse sentido, a cópia livre de pequenos trechos de uma obra ou de capítulos é um direito. O direito de uns, no entanto, não pode prejudicar o direito de outros, pois o editor e o autor seriam lesados pela reprodução eletrônica sem nenhum controle. Mas este não é o único argumento. Antes das tecnologias eletrônicas de reprodução, uma obra constituía uma unidade distinta, uma forma que avançava de modo gradual e permitia acompanhar a evolução ordenada de um pensamento, de um argumento ou de uma estética, uma obra exigia um autor. A máquina da cópia é habitada pela tentação abusiva da simplificação que reproduz o mesmo. É preciso mudar apenas uma ou duas palavras para que o sentido crie-se como o mesmo. Jovens falsários não copiavam os mestres? Abandone a experiência, afunde-se na cópia. Abandone a espontaneidade bruta, saia para o saque e procure o lugar seguro da experiência vivida... Pelo outro. Não seria a repetição a base da vida? A realização da profecia do nosso maior filósofo-xerox, Chacrinha: nada se cria, tudo se copia. A reprodução de algumas páginas ou de alguns capítulos não significa a destruição simbólica da obra? A exposição de um pensamento é fragmentada ou muito simplesmente mutilada a alguns de seus fragmentos e, não raramente, ouvimos o argumento de que a profundidade da obra perdeu-se, há uma deformação simplificada do que foi outrora uma totalidade. Forma-se uma trama simplificada das idéias, imagens e argumentos de um autor, que não correspondem a riqueza originária. A idéia catastrófica é a de que o conhecimento degrada-se, talvez se transforme apenas em informação. Estranho gesto este de pedir um xerox. A produção, distribuição e consumo de um livro são explodidos em um único ato que, paradoxalmente, garante a circulação ininterrupta da obra. O progresso do conhecimento humano foi beneficiado pela criação de copiadoras xerox? Ou a vida melhorou apenas nos escritórios e repartições burocráticas, facilitando a vida dos copistas? Destruídos pela substância, ocupamos apenas o lugar da aparência. Alunos preguiçosos, sem paciência para enfrentar a longa jornada de um livro, na exaustão do pensamento abandonam as obras como se fossem cantores afônicos, seguem as indicações de professores deprimidos e apáticos, vedetes insípidas que atravessam o céu do xerox na educação. O que se disse até aqui basta para perceber que um xerox é muito mais do que um xerox. Há um fluxo ininterrupto de problemas culturais que habitam em um xerox. Adiamos esta discussão pelo maior tempo possível. Hoje é preciso provar e dar razões, é preciso escrever um verbete em um dicionário para um problema que ainda organiza

as suas idéias. A circulação ininterrupta, a cópia sem controle tornou-se uma questão ainda maior e não apenas para livros, mas para qualquer produto cultural. Basta escanear e colocar na rede. Ou compartilhar arquivos. A noção de origem e, conseqüentemente, o controle que nela estava pressuposto está totalmente abalado. Um xerox pelo menos garantia que uma cópia era uma cópia. Nos meios eletrônicos, fragmentos interagem com fragmentos, a obra é on-line, todos podem ser o autor pois a própria obra é recombinante. Cada cópia é um agente duplo. Alguns usam o uniforme da polícia e a lei dos direitos autorais. Outros pensam apenas que a boa cópia pode criar um artista ou um autor. Uma corrente percorre fragmentos de idéias, troçando das palavras, dos signos para perturbar a ordem semiológica, autoral, legal. Atentados iconoclastas que desejam liquidar o autor e seu direito, que fique apenas a voz. Como não pretender que a cópia fascine os espíritos, não dobre nossas leis até fazer disso uma disposição natural? Mas ninguém faz caretas 24 horas sob o peso do inautêntico. Assim como os pensadores mais radicais mentem com palavras, copiam idéia, os jovens estudantes despedaçam os originais. A cópia fica suspensa na sua corda mais radical. Ela tece, agarrada a sua energia, a última convulsão: a morte do autor. Evolução do gênero literário: a cópia criativa. Há um ideário do século XX que foi abalado na data crucial de nascimento das copiadoras Xerox. Feita essa ressalva, é impressionante a radicalidade com que nos atiramos à demolição da herança recebida. Para resumir: um xerox é um ato cultural complexo e a naturalidade de muitas relações se vê questionada de modo radical. Mas os lacaios não se assustam. Eles estrangulam os senhores. Copiadores que se alimentam do desejo de autenticidade, copiadores de sentidos alimentam-se do prazer de copiar, tomar de assalto a cultura, mesmo que aos fragmentos, tem prazer de roubar e alterar, de estar em todas as partes do mundo e em todas as suas formas. Olhar o mundo com o xerox-máquina: não seria difícil ver o flash na escuridão.

Referências BEY, H. Caos – terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2008. TAKAHASHI, F. Universitários lançam frente pró-xerox. Disponível na internet via www.URL:www.Folha.uol.com.br/. Última atualização em 04 de novembro de 2008.

ZERO Cristiano Bedin da Costa Luciano Bedin da Costa

Os fracos e malogrados devem perecer: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E deve-se ajudá-los nisso (Nietzsche, 2007, §2, p.11).

Kételin (12 anos), Michel (12 anos) e Richarlyson (13 anos) receberam as três piores notas na prova de matemática. Das dez questões propostas, responderam quatro. E erraram todas. “Os números não perdoam”, disse o professor, com um sorriso entediado.

Laura (23 anos), recentemente formada em Psicologia, é chamada para proferir uma palestra no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Ela organiza trinta lâminas de PowerPoint, abordando a questão do “Papel dos pais na educação dos seus filhos”. Após 1h30min de palestra, a conselheira tutelar Vera Regina (38 anos) pede a palavra: “A família, que deveria ser o pilar de tudo, não faz sua parte, e acaba sobrando tudo para nós. Eu trabalho 50 horas semanais, de sábado a sábado, e mesmo assim não consigo dar conta” – queixa-se a conselheira, mãe de Bárbara (3 anos) e de Ana Letícia (2 anos), ambas matriculadas em turno integral na Creche Comunitária Mundo Encantado.

De acordo com a literatura científica, a Síndrome de Burnout é um dos quadros psicopatológicos mais recorrentes relacionados à atividade laboral. Trata-se de um estresse persistente, causado pelo ambiente de trabalho, através de manifestações como: apatia, esgotamento, exaustão e falta de entusiasmo. Em casos mais graves, o paciente acometido sofre de insônia, ataques súbitos de raiva, ansiedade exacerbada, episódios de pânico e depressão. O magistério é associado a um grande fator de risco.

Pelo segundo ano consecutivo, Fauzi (44 anos), professor de Sociologia, é chamado pela coordenação do curso de Enfermagem, por haver recebido críticas severas

por parte dos alunos. As turmas do quarto e quinto semestres têm reclamado da sua falta de motivação. Dizem que as aulas de Sociologia da Saúde são demasiadamente chatas e que não conseguem entender nada do que está sendo dito. Fauzi relata à coordenadora que os alunos não lêem o material básico deixado no Xerox. O mês é novembro e as provas finais estão marcadas para o início de dezembro. 95% dos alunos serão aprovados. Um será reprovado, por desistência, e outro, por excesso incontornável de faltas.

A ONG Protetores da Infância Melhor distribuiu quinhentas cartilhas do ECA para as crianças contempladas pelo projeto Educar para a Vida, com financiamento do Governo Federal. O Promotor de Justiça da cidade concedeu uma entrevista dizendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma arma poderosa para assegurar os direitos dos mesmos, mas que precisa ser cumprido. Por determinação judicial, o Abrigo João & Maria é obrigado a ceder 75% das vagas a meninos e meninas em situação de rua. “O único problema é que eles não conseguem ficar na casa por muito tempo”, relata Vera (44 anos), assistente social, militante e diretora interina.

Rodízio de Pizza Di Italiano, 5 de julho, 22h. “Discurso... Discurso...”. Na festa de seu trigésimo aniversário, os amigos de Marília insistem para que ela formule um desejo: “Espero que este ano acabe logo para que no próximo eu possa me organizar diferente”. Os amigos batem palmas. Na mesa ao lado, um estranho começa a cantar parabéns. Dentro de 40 segundos todo o restaurante cantará também.

O interessante de um pensamento ao ar livre é que ele possa escapar e arejar outros corações. A maior contribuição da filosofia peripatética de Nietzsche à humanidade é sua intransigência frente aos estados próximos de zero. Em outras palavras, é preciso que a vontade seja levada até o fim, que a força possa exercer aquilo que de mais nobre ela possui. Para o filósofo dos sopros, a única atividade digna de uma força é efetivar-se e, neste sentido, todo e qualquer meio-querer não é bem-vindo. Entretanto, a intolerância diante do zero não diz respeito a uma aversão ao nada. Levar a força até o fim é, sobretudo, querer o seu próprio esgotamento.

“Ah, não... Tu tens que te dar maior valor” – por telefone, Eloísa (19 anos) repreende Gabi (21 anos), sua melhor amiga. No XXVIII Encontro de Psicologia, o Comitê de Pesquisa Social apontou como prioridade a necessidade de uma maior valorização profissional. Deleuze (1976), em Nietzsche e a filosofia, arrisca um sentido possível para a palavra nihil: aquilo que possui valor de nada. O maior problema do

niilismo não é o de não acreditar em nada, mas o de não levar este nada até o fim. Em Fédon (PLATÃO, s/d), Sócrates renuncia à vida, buscando na morte a libertação de todo o peso da existência. Sendo um engodo, a vida passa a ser negada. Somente morto, o corpo se dá por satisfeito. Com o cristianismo, o nada socrático assume outra faceta. Ao invés de um mundo das idéias puras, o valor assenta-se no mundo ideal. Em ambos os casos, a vida está sempre estendida para depois, para um além-mundo que nunca se efetiva no mundo onde se vive em ato. Toda e qualquer pessoa é capaz de ascender a estes valores superiores, basta que cumpra uma série de privações em vida, que fixe sua existência num ideal ascético. Na república platônica o filósofo é o pretendente mais qualificado a habitar este mundo inabitável – dentre todos os personagens da pólis, será ele o mais indicado a governá-la, por estar mais próximo dos valores ideais preconizados. Não podendo ser o “Bem”, a “Justiça” e a “Beleza”, propriamente ditos, o filósofo será a cópia mais perfeita, o mais capacitado a ser “o bom”, “o justo” e “o belo”. De toda forma, há uma atividade nobre nessa seleção. Com os ideais cristãos, a ascensão se torna possível a qualquer um, basta que se afaste das impurezas deste mundo tomado como potencialmente perigoso. “O cristianismo é um platonismo para o povo”, assinala Nietzsche (2005), no prefácio de seu Além do bem e do mal. A vontade platônica de nada é estendida para todos através do cristianismo. Em ambos os casos, a vida neste mundo deve se tornar um ato de renúncia em prol de valores superiores e transcendentes. Enquanto, em Platão, o valor da vida fixa-se num mundo ideal, com o cristianismo este ideal é sustentado na promessa de uma vida eterna. Trata-se de duas vontades ligadas a um mesmo sintoma de decadência: o niilismo. A vida passa a ser negada por uma vontade assentada num nada. Vive-se sempre para um depois daqui. Das idéias platônicas à vida eterna com Deus, o que há é uma hostilidade à vida. Mas não é a vontade que é negada pelos valores superiores, mas os valores superiores que parasitam uma vontade de negar. De todo modo, antes de um “nada de vontade”, há um querer, uma “vontade de nada”, um querer que quer o seu próprio empobrecimento enquanto vontade. Uma vontade de nada que atua no enaltecimento de tais valores superiores. Por querer justamente o nada, a vida mesma acaba assumindo o valor de nada – eis o princípio primeiro do niilismo, segundo Nietzsche.

“Agora é tudo conosco”. Se anteriormente vivíamos na tranqüilidade dos lugares definidos por uma ordem ideal e divina para tudo o que existe, agora nos encontramos sozinhos. Se antes a Pedagogia era sustentada por uma concepção divina acerca do que é bom e necessário para trazer a luz àquele que não possui, agora somos nós, os psico & pedagogos, que ditamos as regras do jogo para os alunos. Com o assassinato de Deus, o homem acaba assumindo o trono abandonado. Sem a perspectiva de habitar um mundo ideal e viver uma vida eterna, o homem cai no vazio de sua própria existência. Trata-se do segundo sentido para o niilismo, de acordo com Nietzsche. Não mais uma vontade de nada parasitária de valores superiores, mas uma reação a estes mesmos valores. O niilismo reage contra tudo o que até então fora colocado como valor supremo, negandolhe a existência. Entretanto, ao negar estes valores, ao recusar essa vontade de nada, a vida mesmo acaba sendo negada. O niilismo opera não mais com a desvalorização da vida em nome dos valores superiores, mas com a negação destes mesmos valores. Não mais o valor de nada assumido pela vida, mas o pleno nada de valores. Resta, apenas, uma vontade niilista que reage a Deus, ao bem, ao verdadeiro, enfim, a qualquer tipo de transcendência. Em Nietzsche e a filosofia, Deleuze (1976, p.124) sintetiza este

movimento niilista: “nada é verdadeiro, nada é bom e Deus está morto”. O zero de vontade não é apenas um sintoma de uma vontade de nada, mas a própria negação desta vontade. O zero de vontade instaura uma ética calcada na monotonia, naquilo que Deleuze chama de toedium vitae. Um grande tédio e um nojo a tudo que insinua movimento. Apenas é tolerado aquilo que tediosamente habita os estados próximos de zero, que não deseja nada que não seja sua própria negação. Mas ao tolerar os estados reativos, é o próprio niilismo negativo (vontade de nada) que acaba se tornando intolerável. Qualquer tipo de vontade torna-se insuportável, até mesmo uma vontade de nada. Ao afirmar sua própria reatividade até o fim, opera-se uma espécie de seleção vital. Ao querer triunfar solitariamente, a vida reativa rompe seu pacto com a vontade negativa, com o niilismo negativo. Não basta apenas desejar os estados próximos de zero, mas é preciso levar este zero até o fim, até sua própria consumação. Em sua plenitude, o nada querer aponta para uma extinção passiva. O niilismo passivo é o fim extremo do niilismo reativo: melhor exterminar-se passivamente do que viver para um mundo que não o nosso. Niilismo negativo, niilismo reativo e niilismo passivo formam a tríade própria da vida, assumida, respectivamente, por Deus, seu assassinato e O último dos homens, aquele que não vê no mundo nada que não seja uma total falta de sentido. Entretanto, é este último dos homens que anuncia a morte própria do niilismo. “Todas as fontes secaram e o mar se retirou”, Zaratustra (NIETZSCHE, s/d, p.128) anuncia a grande meia-noite. Que brotem dos túmulos, não cadáveres (deixem que os mortos enterrem os mortos), mas os energéticos ventos do riso. Diante do zero inevitável que se instaura sobre uma existência sem valores, resta, apenas, criá-los.

O certo é que não demos certo. Deixemo-nos morrer. Referências DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes. Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _______. Assim falava Zaratustra. Tradução de José Mendes de Souza. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sem data. _______. O anticristo: maldição ao cristianismo: Ditirambos de Dioniso. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. PLATÃO. A República. Tradução de Érico Corvisiere. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004. _______. Diálogos: Fédon, Sofista, Político (12ª edição). Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.

ZONA DE VARIAÇÃO CONTÍNUA Gonzalo Sebastián Aguirre Os espaços-moldes, como a aula e o quartel, moldavam a variação contínua de forças, gerando sujeitos históricos capazes de trabalhar e de progredir (ter sucesso) na vida. Esses sujeitos eram reproduções do molde-aula, o qual conjurava a dissipação ou a divagação daquela zona que a incessante variação (contínua) de forças não cessava de produzir. Desse modo, as regras ortográficas impõem uma forma fixa à variação contínua da língua. A língua é sempre expressão da variação contínua de forças, cujos diferenciais geram uma zona de expressão ou de conversação, na qual se materializam subjetividades falantes, que não são a simples forma gramatical do sujeito histórico moldado (eu, tu, ele…), senão a expressão singular de uma vida que se diz a si própria. Contudo, desde que os homens não sabem dizer-e a si mesmos; isto é, desde que não se conhecem a si próprios; ou seja, desde a decadência, que Platão diagnosticara para Atenas, aquela única e grande composição da variação contínua de forças que os gregos chamaram “polis”; desde então, os homens desenvolveram modos substitutivos para lidar com o medo, diante da variação contínua de força e da zona de incerteza, que não cessa de ser gerada pelos modos que buscam a segurança. Friedrich Nietzsche, em “História de um erro”, realiza uma resenha completa das fases desses modos que buscam a segurança. Começa com a “paidéia” platónica, que distribui as forças, sob a forma de “honras” e de “riquezas”, a cada ignorante de si próprio, conforme lhe corresponde. A seguir, trata da formação cristã e da distribuição a priori da força original, enquanto culpa adâmica. Prossegue com a crítica kantiana, que se declara impotente diante da variação contínua de forças, além de reservar uma zona noumênica praticamente inacessível ao homem racional. Desemboca, então, no homem histórico positivista, que declara a inutilidade da zona noumênica. A partir daí, vivemos no mundo do molde mediano, no mundo de lugares situados cadastralmente, onde a variação contínua é reduzida à variação histórica regular ou ao “progresso”. Entretanto, para a própria variação contínua de forças, não tem a mínima importância se ela é ou não é reconhecida. De qualquer modo, ela segue operando, laminando e roendo os diques de todo tipo que tentam mantê-la na linha. Mais precisamente, a variação contínua de forças é também a força originária de toda e qualquer intenção de evitá-la. Disso decorre que, em cada relação de forças do tipo anti-zonal, está sendo expressa a força que se tenta evitar: em cada aula tranqüila, vibra, zumbe, também, uma zona indeterminada, que se manifesta regularmente sob a forma de “indisciplina”; em cada regra de ortografia acertadamente seguida, vibra, zumbe, também, um devir-zona de escritura, uma força diferencial que anuncia uma zona poética ou catastrófica (crackup), que se manifesta regularmente sob a forma de “erro ortográfico”. Essas vibrações ou zumbidos são crescentemente imanejáveis pelos modos de produção da segurança anti-zonal. Pela via de Marx, é possível dizer que cada modo de produção da força normalizada tende a decrescer, em sua capacidade de captar, normalizadamente, a força excedente que produz para poder normalizar. Nisso reside, por conseguinte, a sua crescente anormalidade. Diante dessa situação, sobram apenas dois caminhos: a catástrofe ou a reformulação. Na reformulação, podemos constatar a mutação daquilo que Foucault chamou “sociedades disciplinares” e que Deleuze identificou como “sociedades de controle”. Com efeito, o controle já não pretende moldar as forças em variação contínua, senão simplesmente modulá-las. A modulação já não necessita de aulas nem de quartéis, mas somente de espaços abertos, para que

ocorra uma melhor e mais rápida circulação de forças. Essa abertura vai dando lugar, por sua vez, a redes de circulação de forças, que são chamadas de “redes informáticas”, sendo o dispositivo informático aquilo que permite tal circulação. Dessa maneira, assistimos ao nascimento de zonas de subjetivação não moldadas; as quais, contudo, não constituem nem zonas selvagens, nem zonas de composição poética da variação contínua de forças. Essas novas zonas de subjetivação foram caracterizadas por Deleuze como “dividuais”, em contraste com a “individualidade” (indivisibilidade), que caracterizava aquele sujeito histórico cadastralmente localizado. O novo ser dividual consiste, assim, numa espécie de membrana, pela qual circula a força-informação; e cuja capacidade de suportar essa circulação cresce junto com a sua des-individualização. Por isso, a aula e todos os dispositivos moldantes e localizantes tornam-se não apenas crescentemente obsoletos, mas, acima de tudo, perturbadores da modulação zonal informática da crescente variação contínua de forças. Referências COLLI, Giorgio. Platone político. Adelphi: Milán, 2007. DELEUZE, Gilles.“Post-scriptum a las sociedades de control” in Conversaciones. Valencia: Pre-textos, 1999. _____. Derrames. Entre capitalismo y esquizofrenia. Buenos Aires: Cactus, 2006. _____. “Porcelana y volcán” in Lógica del sentido. Barcelona: Paidós, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. “De cómo el ‘mundo verdadero’ se ha convertido en una fábula. Historia de un error” in El crepúsculo de los ídolos. Madrid: Alianza, 1998. PLATÓN. República. Buenos Aires: Eudeba, 1988. MARX, Karl. “Ley de baja tendencial de la tasa de ganancia”, 3º sección de “El proceso global de producción capitalista” in libro III de El Capital (tomo III), vol. VI. México, Buenos Aires: Siglo XXI, 2004.

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