Abolicionismo e visões de liberdade

June 15, 2017 | Autor: Cláudia Santos | Categoria: Reforma Agraria, Abolicionismo, Pós-Abolição
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Título: Abolicionismo e visões de liberdade Autor: Cláudia Regina Andrade dos Santos Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ano 168, n. 436, 2007, pp. 319-334.

Neste artigo, o tema “abolição e abolicionismo” será tratado a partir de dois aspectos principais: a visão de liberdade dos escravos e os projetos sociais de inclusão do liberto na sociedade pós-escravista. Em relação a esse último aspecto, será abordada a relação entre a monarquia e o abolicionismo. Nós sabemos que a abolição da escravidão no dia 13 de maio de 1888 não representou alteração significativa na estrutura sócio-econômica do Brasil e que a inserção do liberto se processou, majoritariamente, ou pela permanência subordinada na grande propriedade ou pela marginalização. Para algumas interpretações historiográficas ou sociológicas sobre o período, as razões para isso se encontrariam em dois fatores: a identificação entre liberdade e ociosidade operada pelo liberto e a ausência de projetos sociais relativos à sua inserção no pós-abolição. Essa explicação encontra-se com muita clareza nas interpretações de certos autores da Escola Sociológica de São Paulo, por exemplo, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Considera-se aí que a violência é o principal mecanismo de submissão do escravo às

relações de trabalho escravistas. Dessa forma, o cativo sofre um processo de brutalização que o torna incapaz de reações e de sentimentos propriamente humanos, por exemplo, o amor pela liberdade. Submetido a um processo de socialização imperfeita ou incompleta, proibido de constituir ou de manter vínculos familiares e de amizade, o escravo perde toda noção de família e toda capacidade de estabelecer vínculos de solidariedade. Toda reação do escravo à escravidão é, sempre, uma reação “animal” contra uma situação isolada de violência, não se transformando nunca em ação “política” contra a instituição escravista. Incapaz de elaborar uma visão de mundo própria, a partir de certos valores e significados, ou ele reage isoladamente à escravidão de forma brutal (o suicídio, a fuga, o assassinato de feitores e senhores) ou incorpora a própria visão de mundo do senhor. Se o senhor define a liberdade pelo não trabalho, o mesmo significado irá atribuir-lhe o escravo alforriado ou emancipado. Dessa forma, a preferência dos senhores pelos imigrantes 1, e a conseqüente marginalização do liberto, decorreria da visão de liberdade assim como da ausência de sentimento familiar entre os ex-escravos. Dois historiadores dos anos 1980, Hebe de Mattos e Sidney Chalhoub, colocaram em discussão essa tese segundo a qual a visão de liberdade do escravo construía-se a partir da negação do trabalho. Em primeiro lugar, tratava-se para esses autores, de explicitar uma questão fundamental a respeito da possibilidade de se falar do escravo, já que, de uma forma geral, não existe, no Brasil, nenhuma documentação produzida pelo próprio escravo. Para se falar do escravo, historiadores e sociólogos haviam se servido, até então, das falas dos senhores de escravos, políticos, intelectuais e viajantes estrangeiros, e nunca de discursos do próprio escravo. Os processos-crime são uns dos raros registros da fala do escravo e foram analisados por esses historiadores, no sentido de formular hipóteses sobre a visão de liberdade do cativo, entre outras questões. No que diz respeito ao mundo rural, Hebe de Matos 2 identificou certos mecanismos da instituição escravista que permitiam aos escravos construírem um certo projeto de liberdade relacionado à posse de uma parcela de terra. Antes da “crise da mão de obra”, advinda da proibição do tráfico atlântico, a entrada constante dos escravos permitia aos senhores acenar com a possibilidade da alforria associada à posse da terra 3. Além disso, parecia legítimo oferecer ao próprio escravo a exploração de uma pequena roça “nos domingos e dias santos” para produção de gêneros que, se comercializados, podiam servir à formação de um pecúlio propiciador da compra da alforria. Obviamente, a alforria sempre foi uma exceção e constituiu-se fundamentalmente como mecanismo de controle e de abrandamento das tensões numa sociedade que, em muitos casos, era formada majoritariamente de escravos. Além disso, a posse da terra foi sempre uma posse precária e sujeita aos interesses do senhor . Mesmo argumentando-se, com razão, que o acesso à “pequena roça”, tanto pelos escravos quanto pelos libertos, servia, sobretudo, à manutenção da ordem escravista, é preciso reconhecer que esses mecanismos serviram para configurar uma certa expectativa em relação à liberdade. Portanto, se para o liberto o fim da condição escrava associava-se ao fim do trabalho na 1

Esse tipo de explicação se baseia exclusivamente na experiência de regiões onde a entrada de estrangeiros foi importante na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, como no caso de São Paulo. 2 Estamos nos baseando principalmente no artigo CASTRO, Hebe Maria Mattos de, « O Estranho e o Estrangeiro », in SILVA, Jaime, da (org.), Cativeiro e Liberdade, Rio de Janeiro, UERJ, 1988. 3 O acesso à terra como mecanismo de controle da população escrava é explicitamente proposto no documento produzido pelos fazendeiros de Vassouras organizados numa comissão destinada a “sugerir medidas para a contenção da violência e, em especial, de possíveis levantes”, já que ela é formada após a insurreição de escravos liderada por Manoel Congo em 1838. Neste Instruções para a comissão permanente nomeada pelos fazendeiros do município de Vassouras, os fazendeiros recomendam que os escravos tenham suas roças e se liguem ao solo pelo sentimento de propriedade. Cf. Martins, Roselene de Cássia Coelho, Colonização e política: debates em torno do fim da escravidão em Vassouras (1850-1888), Dissertação de mestrado, orientação Cláudia R. A. dos Santos, 2007, p. 57.

grande lavoura, identificada à escravidão, a liberdade, nem por isso, significava a ociosidade. Para o escravo no mundo rural, a liberdade significava a posse, mesmo instável, de uma pequena parcela de terra a partir da qual seria possível um “modo de vida camponês”. Enquanto a instituição escravista manteve-se sem grandes questionamentos e sem que se cogitasse a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, foi possível aos senhores acenarem com a expectativa de acesso à terra, em função da grande disponibilidade de terras incultas e como forma de amenizar a tensão das relações escravistas. Para o escravo urbano, como mostrou Sidney Chalhoub em relação à cidade do Rio de Janeiro, a visão de liberdade se constrói a partir da experiência do “viver sobre si.”4 A condição do escravo de ganho, definindo-se pela obrigação de fornecer ao senhor uma certa quantia em dinheiro obtida através do seu próprio trabalho, se desdobrava, muitas vezes, numa certa limitação do controle do senhor sobre o escravo. O ideal perseguido pelo escravo de ganho era o de diminuir ao máximo o domínio do senhor sobre o seu cotidiano mesmo se, na prática, isso significasse piores condições de existência, como no caso de residir fora da residência do senhor ou de responsabilizar-se pela sua própria alimentação. Esse “viver sobre si”, construído a duras penas sob a condição escrava, erige-se como sinônimo da própria liberdade para a crescente população de libertos durante a segunda metade do século XIX. Portanto, se essa liberdade tinha muito pouco a ver com aquela do trabalhador livre necessária à empresa capitalista, por outro lado, ela não significava a ociosidade. Nos mais diversos tipos de atividade, tratava-se de garantir a própria subsistência através dos seus próprios meios e dispondo de seu próprio tempo. É interessante observar que esse “viver sobre si” é percebido até mesmo por setores das elites como o ideal dos “nacionais livres”. Observemos o discurso de Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, em 1854, contra o uso de imigrantes na grande lavoura de café, em razão de uma certa visão de liberdade compartilhada com “homens livres do país”: “força é confessar, que a grande cultura só poderá ser sustentada pelos agricultores que possuírem escravos, em número suficiente para o custeio de suas fazendas, e que os grandes proprietários rurais devem desesperar, perder mesmo todas as esperanças de formar em suas plantações um eito de colonos, como eles outrora formavam de escravos. O préstimo, a vantagem, o auxílio da colonização serão valiosos para a produção mercantil, mas não pelo sistema da grande cultura. O colono se estabelecerá no solo que lhe convier e lavrará a terra pelo seu braço, mas à imitação, segundo os instintos dos homens livres do país, ele trabalhará para si e sobre si.”(grifo meu)5. A partir do momento em que se configura a “crise da mão de obra”, principalmente no decorrer da segunda metade do século XIX, acentua-se a tendência em identificar a visão de liberdade do escravo à ociosidade e à vagabundagem. De fato, a idéia segundo a qual seria impossível contar com o liberto na economia pós-escravista afirmou-se, pouco a pouco, como argumento central nos debates que acompanharam o processo de dissolução da ordem escravista. Em torno desse argumento, reuniam-se os defensores da emancipação gradual, os adeptos da imigração como solução para o “problema da mão de obra” e os propagadores da necessidade de medidas coercitivas no pós-abolição6. 4

CHALHOUB, Sidney, Visões da liberdade, uma história das últimas décadas da escravidão na corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1990. 5 Luiz Peixoto de Lacerda Werneck APUDH Martins, Roselene de Cássia Coelho, op. Cit., p. 103. 6 Esse é o argumento central do livro do médico francês Louis Couty, L’esclavage au Brésil, que serviu no Brasil e na França de instrumento contra as reivindicações abolicionistas que já em 1883 exigiam abolição imediata e sem indenização. Contra as afirmações do grande abolicionista francês Victor Schoelcher, que acusava D. Pedro II de ser o último imperador a reinar sobre um país de escravos, Louis Couty constrói uma interpretação da escravidão brasileira na qual encontram-se certas idéias com um grande futuro dentro do pensamento social e político brasileiro: “o Brasil não possui povo”, “a escravidão brasileira é mais amena do que a escravidão

Nos debates políticos em torno da abolição da escravidão, muitos foram aqueles que opinaram sobre a melhor forma de se acabar com a escravidão. Intelectuais, políticos, viajantes estrangeiros, conselheiros de Estado posicionaram-se contra ou a favor da abolição imediata, pró ou contra a indenização dos proprietários, a favor ou contra a entrada de imigrantes estrangeiros, etc. Nesses debates, a idéia do “liberto vagabundo” serviu para que a transição fosse vista sob um único prisma, aquele do futuro da grande propriedade exportadora. Nos argumentos dos grandes proprietários de escravos, o Brasil identificava-se à grande lavoura que dependia da mão-de-obra escrava. Já que o Estado brasileiro dependia das exportações da grande lavoura, cabia a ele providenciar uma alternativa à escravidão. Sabendo-se que o liberto não trabalharia nas grandes lavouras, já que para ele, isso seria a continuidade da escravidão, o Estado deveria ou propiciar a entrada de estrangeiros ( por exemplo, pagando-lhes o transporte), ou adotar medidas que coagissem o liberto ao trabalho. Identificando-se a recusa do trabalho na grande lavoura à recusa de todo trabalho, construía-se a argumentação segundo a qual sem a coerção, o liberto tornar-se-ia, necessariamente, um problema social, “um caso de polícia”. Resta saber se essa perspectiva foi a única formulada e defendida dentro desses debates em torno do fim da escravidão no Brasil. Além da visão de liberdade do próprio escravo, fruto das condições brutalizadoras da escravidão, outro fator teria servido, segundo a ótica da sociologia paulista, à manutenção das estruturas de exploração e à marginalização do negro. A ausência de projetos sociais visando a inserção do liberto em outras bases econômicas explicaria a sua posição de marginalidade na sociedade brasileira do pós-abolição. Segundo essa interpretação, a abolição foi “um negócio de brancos para brancos” 7 e o abolicionismo um movimento das elites intelectuais brancas que tinham como única aspiração a emancipação jurídica do escravo. Os abolicionistas teriam se organizado tendo em vista, exclusivamente, a emancipação jurídica dos escravos e, após terem atingido esse objetivo, teriam se dispersado, abandonando os libertos à sua própria sorte. “No Sudeste, estabeleceu-se uma clara relação entre abolicionismo e imigracionismo, como resultado do clima de pessimismo racial do fim do século XIX. Nesse contexto o progresso era entendido como exigindo o branqueamento do país. De certa forma, o pensamento e a prática abolicionista revelam o destino do escravo e da população de cor livre após a abolição [marginalização]. Os abolicionistas viam o escravismo como um obstáculo à modernização econômica, bem como à promoção da imigração européia." 8 A historiadora Célia Maria de Azevedo que renovou, na década de 1980, os estudos sobre a abolição e o abolicionismo, rompeu, por um lado, com a interpretação dos sociólogos paulistas quanto à inexistência de resistência escrava. Segundo essa autora, a escravidão, através de seus mecanismos de violência e de brutalização, nunca foi capaz de aniquilar a resistência escrava, ao contrário, ela foi o principal responsável pela dissolução da ordem escravista. Por outro lado, mantendo a mesma interpretação sobre o abolicionismo, ela considerou que o único objetivo dos abolicionistas era a transformação do escravo em trabalhador livre, sem nenhuma transformação da estrutura sócio-econômica baseada na grande propriedade exportadora. americana”, “as relações raciais são harmônicas”. Quanto à idéia de ausência de povo, ela associa-se, no pensamento de Louis Couty, à idéia segundo a qual o liberto entregar-se-á necessariamente à ociosidade no pósabolição. 7 IANNI, Octávio As metamorfoses do Escravo, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962, p. 235. 8

Hasenbalg, Carlos Alfredo, Discriminação e desigualdades sociais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 153.

Podemos continuar aceitando essa hipótese segundo a qual não existiu na segunda metade do século XIX nenhum outro projeto de abolição? Será que para toda a sociedade brasileira da época, o fim da escravidão representava a emancipação jurídica do escravo com a continuidade da grande lavoura exportadora? Nos anos 1990, Maria Helena Machado, no seu livro O plano e o pânico, chamou a atenção, por um lado, para os projetos de liberdade dos próprios escravos e libertos, por outro lado, para a diversidade de projetos sociais existentes na década da abolição e para os diferentes abolicionismos. Uma primeira confirmação dessa pluralidade de projetos nas décadas da abolição me foi fornecida pelos relatos de viajantes franceses que percorreram o Brasil na segunda metade do século XIX e também pelos publicistas que escreveram sobre o Brasil na imprensa francesa da época. Um olhar atento a essa documentação, me fez perceber a existência de um debate em torno do fim da escravidão no Brasil, no qual a crítica à grande propriedade ocupava um lugar central. Apesar de todas as diferenças de posições entre os autores analisados, a crítica ao sistema fundiário brasileiro aparecia como uma unanimidade. O fim da escravidão deveria ser acompanhado de reformas visando a expansão da pequena e média propriedade entre os brasileiros e os estrangeiros. Para a maioria deles, o desmembramento da grande propriedade era a única possibilidade de se constituir uma corrente imigratória de europeus para o Brasil, condição indispensável para a modernização do Império. Alguns não acreditavam nessa possibilidade, pois eram céticos em relação a qualquer transformação do sistema fundiário brasileiro. É o caso do geógrafo Elisée Reclus 9: « A história da colonização, tomada no seu conjunto, prova que os emigrantes da Europa (...) empregados ao lado dos negros nas províncias tropicais do Brasil, não podem alimentar a esperança de serem tratados como homens livres pois a posse do solo, essa primeira garantia da liberdade, lhes é praticamente impossível. Logo depois da descoberta do Brasil, o país inteiro foi dividido entre nove, depois entre dezoito senhores (...) o sistema fundiário foi modificado apenas aparentemente, pois o solo permanece nas mãos dos poderosos proprietários feudais (...) Dessa forma, a posse de um domínio é impossível, devido a essa situação, não somente aos emigrantes da Europa mas aos três milhões de brasileiros livres. (...) Existe um número considereável de sesmarias que recobrem uma superfície imensa e que como nunca foram cultivadas, deveriam retornar ao domínio público para serem cadastradas e colocadas à venda. O governo reivindicou muitas vezes essas sesmarias; mas os fazendeiros unidos, em nome dos interesses da grande cultura, sabem muito bem obstruir qualquer reforma que venha modificar a formação feudal da sociedade. Enquanto que a nação angloamericana (...) é ainda proprietária de 3/4 da superfície da república, mais ou menos 4/5 do solo do imenso império brasileiro já se encontram nas mãos de particulares e 5 ou 6 mil ricos proprietários de escravos se apropriaram da metade do Brasil."10 Certamente, esses estrangeiros vinculavam-se a um debate que se realizava no Brasil! Certos títulos da imprensa do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX exprimiram suas posições e as de seus adversários dentro desse debate. A imprensa abolici onista, principalmente a partir de 1883, enuncia bastante claramente os dois eixos da luta 9

Elisée Reclus, geógrafo francês e teórico do anarquismo (1830-1905). Ele foi perseguido pelas suas idéias republicanas e teve que deixar a França após o golpe de estado de Napoleão III em 1851. Após uma permanência de vários anos na Nova Granada, ele voltou a Paris e publicou artigos em diversos periódicos, principalmente na Revue des Deux Mondes e no Tour du Monde. Foi eleito membro da Sociedade de Geografia de Paris e teve aí um papel importante. Ele foi condenado e banido da França após ter participado da Comuna de Paris em 1871. Cf. BITARD, Adolphe, Dictionnaire de biographie contemporaine, Paris, L. Van Ier, 1880 et LIGOU, Daniel, Dictionnaire de la franco-maçonnerie, Paris, P.U.F., 1987. 10

RECLUS, Elisée, Le Brésil et la colonisation..., p. 405. Tradução do autor.

abolicionista: abolição imediata (sem indenização) e a democracia rural. A democratização do acesso à terra é vista como a consequência lógica do fim da escravidão em vários textos abolicionistas: “A propaganda abolicionista (...) compreende duas grandes reformas sociais: 1). Abolição imediata, instantânea e sem indenização alguma, em dinheiro ou em prestação de serviços por prazo determinado. 2). A destruição do monopólio territorial, a terminação dos latifúndios; a eliminação da landocracia ou da aristocracia rural dos exploradores da raça africana. O primeiro combate reúne no Partido abolicionista todos os verdadeiros filantropos; (...) todos os que compreendem que a cor negra não é um estigma (...) O segundo escopo é o de todos os Democratas e de todos os Financeiros, dignos desses nomes (...) Ora, tudo depende, em nossa pátria, da organização da Democracia rural; impossível por certo, enquanto a terra estiver monopolizada em latifúndios de léguas quadradas (...) O trabalho democrático atual deve ser, pois, duplo: cumpre libertar a terra e restituir a Liberdade à raça africana. Em nosso estandarte deve ler-se - Abolição e Democracia rural.” 11 Em torno desse projeto, se organiza uma parte do abolicionismo do Rio de Janeiro, que engloba uma liderança ampla e atuante na imprensa e nos eventos abolicionistas, e é responsável pela criação de vários Clubs e associações. 12 Mas essa proposta de democratização do acesso à propriedade não deve ser compreendida como um enunciado revolucionário, fora de contexto, fruto de um espírito visionário como o de André Rebouças ou de alguns poucos abolicionistas. Em 1884, a proposta de concessão de terras para os libertos estará no centro das discussões em torno do projeto Dantas de Lei do Sexagenário. 13 Em longo discurso no Teatro Polyteama, José do Patrocínio e João Clapp explicam o apoio dos abolicionistas ao projeto Dantas, justamente em função da disposição do ministro de conceder terras aos libertos. Esta é também a razão da aliança que une os abolicionistas aos fundadores da Sociedade Central de Imigração, como o Visconde de Taunay, conhecido imigrantista e membro do partido conservador. Esta Sociedade, que conta entre os seus membros André Rebouças e Ennes de Souza, elabora um programa no qual se exige do Estado certas medidas, entre elas, a adoção de um imposto territorial visando a democratização do acesso à terra. Essa medida propiciaria a formação de uma corrente de imigração européia para o Brasil e, principalmente, permitiria aos próprios brasileiros o acesso à terra. Dessa forma, se a abolição não significou uma ruptura significativa com a ordem escravista, isso não se deve à ausência de projetos de transformação das estruturas sócioeconômicas visando à inserção dos libertos. Para diversos setores do movimento abolicionista, entre outros, a abolição deveria assinalar o rompimento com um certo modelo econômico baseado na grande propriedade exportadora. E isso não somente para promover a imigração européia, mas sobretudo para modificar a condição dos libertos: "Nesse caso [ criação de um fundo para os libertos para torná-lo "pequeno lavrador e pequeno proprietário"] estaremos com o governo, porque o liberto não será mais uma labareda para alimentar as forjas (...) um perigo contra o qual se levanta a máquina destrutora da colônia militar, mas um trabalhador contendo um pequeno lavrador e pequeno proprietário. Libertar 11

REBOUÇAS, André, Abolição imediata e sem indenização, Rio de Janeiro, Typ. Central E. R. da Costa, 1883. Por exemplo, o Clube Gutemberg e o Club dos Libertos de Niterói. 13 O Gabinete Dantas, do partido Liberal, foi constituído em junho de 1884 e encaminhou à Câmara um projeto de reforma da escravidão cujos principais pontos - além da concessão de terras para os libertos - foram: fim do tráfico interno, ampliação do fundo de emancipação, liberação sem indenização de todos os escravos tendo completado 60 anos. 12

para destruir é arruinar duas vezes a nação (...) O país que não regateia proteger o europeu que nada vem fazer na lavoura, não pode negar-se a proteger o ex-escravo, que tudo tem feito. Eis os termos do nosso pacto com o governo. Sabemos que ele não o aceitará (...) Não há pois aliança possível.14" Estamos aqui muito longe daquela idéia do liberto vagabundo contra o qual seria preciso elaborar medidas coercitivas obrigando-o ao trabalho! Em diversos textos de época, encontramos as objeções aos argumentos escravistas segundo os quais a visão de liberdade do escravo tornava imprescindível uma emancipação a mais gradual possível. Na passagem que se segue, o Conselheiro Beaurepaire-Rohan procura outras explicações para a suposta aversão do brasileiro ao trabalho: "Mas, enquanto se discute a conveniência de agenciar braços para a lavoura enquanto se oscila entre o pensamento de atrair colonos europeus, ou de importar asiáticos, - onde ficam os brasileiros? - que destino reserva aos naturais desta terra? - Há, por ventura, falta de gente neste país? - Não, por certo. (...) E por que não tirar deles toda a vantagem possível?”15 É interessante ressaltar que essa oposição entre dois discursos antagônicos referentes aos significados da liberdade para o mundo dos escravos, nós a reencontramos nos debates historiográficos do século XX. Por um lado, a sociologia paulista que incorpora o argumento segundo o qual a liberdade significa ociosidade, por outro lado, o trabalho de Hebe de Mattos que repercute a afirmação de André Rebouças do século XIX: “ser livre e ser proprietário rural constitui a maior aspiração do escravo dessa terra miserável” 16 Mesmo sendo impossível negar a existência, no contexto da abolição, de projetos sociais relativos ao liberto, é preciso admitir que eles tiveram pouco efeito transformador na sociedade do pós-abolição, além de terem sido praticamente esquecidos pela historiografia. Se o movimento abolicionista não se contentou em exigir a emancipação jurídica do escravo, é preciso se perguntar sobre as razões do fracasso desse movimento ao propor outras reformas. Uma das explicações para isso, estaria na dispersão do movimento logo após a abolição assim como argumenta Paula Beiguelman em Pequenos estudos de Ciência Política: "O movimento abolicionista, que se propunha a transformação estrutural do país extinguiu-se no dia seguinte ao seu grande triunfo - a abolição."17 Diversos textos de época não permitem, no entanto, manter essa versão sobre o desaparecimento do movimento abolicionista no pós-abolição. Apesar do clima de conciliação nacional e de festividades em torno da promulgação da Lei Áurea, é muito nítida, na imprensa da época, a permanência do embate entre o abolicionismo e o escravismo. Ainda que os abolicionistas tenham sido os principais responsáveis, no Brasil e no exterior, pela idéia de que a abolição havia sido realizada consensualmente, "por meio de flores", “sem o derramamento de uma única gota de sangue” 18, estava claro, para os dois campos, que o fato 14

José do Patrocínio, Conferência na sessão da Confederação abolicionista do dia 17 de maio de 1885, (após dissolução do ministério Dantas e já sob o governo Saraiva). 15 Apud André Rebouças - Abolição Imediata e sem indenização, Rio de Janeiro, Typ. Central E. R. da Costa, 1883. 16 . André Rebouças, Agricultura nacional, Rio de Janeiro, Lamoureux, 1883, p. 126. 17 Paula Beiguelman, Pequenos estudos de Ciência política, São Paulo, Pioneira, 1969, p. 115. 18 Expressões utilizadas pelos oradores do “Banquete comemorativo” da abolição a escravidão no Brasil, realizado no hotel « Aix-les-Bains », em Paris, no dia 10 juillet 1888, organizado pelo « Comité francobrésilien ». Esse comitê organizou diversas atividades na França com o objetivo de preparar a participação do Brasil na Exposição Universal de Paris em 1889 e também visando levar imigrantes europeus para o Brasil. Souza Dantas era o vice-presidente deste comitê.

de ter sido feita de modo incondicional e sem indenização encobria uma divergência. Essa er a a abolição reivindicada pelos abolicionistas e não a dos seus adversários. Prova disso, o debate que se iniciou logo nos primeiros dias do pós-abolição em torno da questão da indenização. Mas os abolicionistas continuaram sua atuação, na imprensa e no parlamento, não apenas para defender a abolição sem indenização, mas também para dar continuidade às reformas vistas como consequência natural do fim da escravidão. Vejamos o artigo de José do Patrocínio de 18 de maio de 1889: " O abolicionismo teve sempre um programa. Não discutiu coletivamente a forma de governo; ameaçou o trono, ontem, como o condenará amanhã, se ele for um obstáculo à ultimação da reforma social, iniciada em 13 de maio. Não terá a Coroa aliado mais leal, nem mais dedicado, enquanto se comportar, como até agora, que, ainda malferida pelo combate à escravidão, se atira à campanha da terra e da autonomia local. Para que A rua possa compreender a coerência da nossa atitude, é preciso fazer entrar como um dos seus fatores a oposição já levantada pelo liberalismo e pelo republicanismo ao tópico da fala do trono relativo à reorganização territorial. (...) O que eu não quero é escravizar o meu país a uma palavra, que é a glória na Suíça, mas que é a vergonha no Peru, só para não parecer contraditório, quando, na realidade, sou coerente perante a Ciência Política sustentando, em nome do meu amor pela liberdade, a Monarquia que nos promete a integridade e o progresso pela democracia rural, e opondo-me a essa república, também combatida pela A rua e de que nos resultará a landocracia a mais audaciosa e a oligarquia a mais bestial." 19 De fato, os abolicionistas estão na imprensa, logo nas primeiras horas, para defender a democracia rural. Para isso, eles contam agora com o apoio de outros setores sem vinculação aparente com o movimento. É o caso do Jornal dos Economistas que, partidário do desenvolvimento econômico do Brasil conforme os princípios liberais, defende a reestruturação do sistema fundiário brasileiro no sentido de propiciar a democratização do acesso à terra. O resultado esperado é a constituição de um mercado interno a partir da integração dos ex-escravos e imigrantes enquanto pequenos produtores rurais. Esse jornal espera do ministério João Alfredo a continuidade das reformas iniciadas pel a abolição e acredita na disposição do ministro em empreendê-las: "O desejo manifesto de utilizar as terras devolutas, por meio da imigração, dá a medida do plano organizador que tem em vista o ministério, extinguindo a escravidão para estabelecer o verdadeiro regime da liberdade do trabalho e da democracia territorial. O Brasil, que era até agora nominalmente possuído, de ora em diante vai ter como proprietários do solo quem os souber beneficiar e cultivar. "20 Finalmente, esse projeto parece efetivamente ter sido encampado pelo ministério João Alfredo e pela Coroa21, já que segundo a fala do trono de 3 de maio de 1889, o Imperador pedia que se examinasse com atenção as propostas de "adoção de um imposto territorial e desapropriação de terras em torno das estradas de ferro" visando a instalação de libertos e imigrantes. Imediatamente divulgado na França, esse projeto recebeu amplo apoio daqueles que, partidários da emigração francesa para o Brasil e da ampliação das relações França Brasil, acreditavam na urgência da reforma do sistema fundiário brasileiro 22.

19

Cidade do Rio, 18 de maio de 1889. Jornal dos Economistas, 15 de maio de 1888. 21 Essa parte do texto está no artigo publicado na Revista Nossa História em julho de 2006. 22 É o caso do geógrafo francês Emile Levasseur . 20

Essa proposta desencadeou uma oposição muito grande não chegando a ser levada à votação23. Logo em seguida, João Alfredo tornou-se alvo de denúncias de corrupção, o que acabou levando à queda do seu ministério. Segue-se um período extremamente conturbado e ainda pouquíssimo explorado pela historiografia no que diz respeito a uma análise mais profunda e menos factual: a nomeação de um novo ministério, a apresentação do programa de governo e a dissolução da Câmara em função da reação desfavorável ao projeto; o atentado ao Imperador em julho, unanimemente tratado pelos contemporâneos, assim como pelos historiadores, como ato sem nenhuma significação política (apesar de ter ocorrido 4 meses antes da queda do regime); os comícios organizados por Silva Jardim e as violências entre os republicanos e a guarda negra. É em meio a esse contexto que se insere também a carta da princesa Isabel dirigida ao Visconde de Santa Victória, recentemente publicada pela revista Nossa História e que revela a intenção da princesa de apresentar no dia 20 de novembro, data prevista para a reunião da nova Câmara, com o apoio dos abolicionistas e de alguns senadores, o projeto de instalação dos ex-escravos em pequenas propriedades 24. Para isso, ela contava com os recursos provenientes da venda dos bens do Visconde de Santa Victória. Examinada isoladamente, essa correspondência poderia ser compreendida como a expressão de um espírito sonhador e à frente do seu tempo, revelador de um “lado rebelde da princesa”. Significado inteiramente diferente possui a carta da princesa quando colocada no contexto da luta do movimento abolicionista, e de outros setores, pela “democracia rural”. Nesse caso, é preciso constatar que não somente o movimento abolicionista continuou existindo no pós-abolição como obteve o apoio da monarquia no que diz respeito ao projeto de instalação dos libertos em pequenas propriedades. A carta da Princesa faz referência direta ao apoio de Nabuco, “além dos senhores Rebouças, Patrocínio25 e Dantas" que, por sua vez, já haviam apoiado o projeto de João Alfredo em maio de 1889. A diferença entre este projeto, ao qual faz alusão a Princesa Isabel, e aquele apresentado por João Alfredo, parece ser o fato de que a Princesa dispõe, nesse último contexto, dos recursos necessários para "collocar estes ex-escravos, agora livres, em terras suas proprias trabalhando na agricultura e na pecuária e dellas tirando seos proprios proventos". Dentre as várias possibilidades de investigação delineadas a partir dessa nova documentação está a possibilidade de se colocar, sobre novas bases, a hipótese da existência de um projeto de Terceiro Reinado em articulação com o programa abolicionista de 23

Antes mesmo da apresentação do projeto à Câmara, a oposição já era bastante forte. Vide a fala de Coelho Bastos, chefe de polícia do gabinete Cotegipe, que, em abril de 1889, criticava a proposta de um imposto territorial, acusava a princesa de querer impor a reforma agrária e pedia a queda do ministério João Alfredo. 24 Para se analisar essa informação sobre o projeto da herdeira do trono brasileiro para o pós-abolição, seria preciso recuperar um pouco da história dessa carta-documento. Antes de ser fonte para o historiador, o documento é, ele mesmo, um acontecimento histórico produzido num determinado contexto. Nesse sentido, seria interessante, por exemplo, comparar essa carta de Isabel a outras de suas correspondências, saber se existiu troca de correspondência entre o Visconde de Santa Victória e a Princesa e em quais outras situações. É i nevitável também procurar identificar o papel do Visconde de Santa Victória nesse contexto e se dedicar a compreender tanto a trajetória desse que "demonstra amor devotado pelo Brasil", quanto o contexto da doação de "mais de 2/3 da venda de seus bens" ao projeto dedicado à instalação de ex-escravos "em terras suas próprias". 25

Em agosto de 1889, José do Patrocínio já teria rompido com a Coroa em função da queda de João Alfredo. No entanto, a princesa parece estar convencida da lealdade de Patrocínio no caso da apresentação desse projeto. De fato, apesar de republicano, Patrocínio se mostrou um grande defensor da monarquia no pós -abolição. Como mostra um artigo de 18 de maio de 1889: "Não terá a Coroa aliado mais leal, nem mais dedicado, enquanto se comportar, como até agora, que, ainda malferida pelo combate à escravidão, se atira à campanha da terra (...) sou coerente (...) sustentando (...) a Monarquia que nos promete a integridade e o progresso pela democracia rural."

democracia rural.26 Esta carta contribui também para fortalecer a suspeita de que a República, nesse contexto, tenha servido à obstrução de um projeto social e político que visava diminuir as consequências extremamente negativas da escravidão. Nesse sentido, a ruptura dos proprietários de terra com a monarquia poderia ser explicada menos pelo ressentimento com a não-indenização do que pelo temor de que o projeto abolicionista, na sua completude, fosse encampado pela Coroa 27. É nesse sentido que se pode entender a fala do porta-voz da indenização no pós-abolição, o Barão de Cotegipe, exprimindo o temor dos proprietários com relação à reforma do sistema de propriedade. Pode ser interessante levantar uma última questão sobre o projeto dos abolicionistas e da princesa e o seu aspecto aparentemente revolucionário. É possível imaginar, de fato, que se a reforma do sistema fundiário tivesse sido realizada nesse contexto, teria gerado ótimas consequências no sentido de produzir uma sociedade pós-escravista menos desigual e uma economia menos dependente da exportação. Principalmente, ela teria propiciado a emergência de uma outra interpretação sobre a visão de liberdade dos ex-escravos, impossibilitando que a população dos libertos e de seus descendentes fosse vista enquanto “problema social”. Além disso, o teor revolucionário do projeto nos parece mais nítido quando pensamos na enorme reação que ele provocou, não só no contexto abolicionista mas durante todo o século XX, fazendo da luta pela reforma agrária um "acontecimento de longa duração" da história brasileira. Basta lembrar que esse projeto está ainda na ordem do dia e para ser realizado a longo prazo! Esse caráter revolucionário do projeto parece se confirmar quando pensamos nos adjetivos utilizados pelos seus opositores para designar os abolicionistas (comunista e anarquista) e também quando levamos em consideração os argumentos utilizados pelos abolicionistas em prol do projeto de democracia rural, já que eles são extremamente radicais no que diz respeito às duras críticas ao sistema fundiário brasileiro e aos detentores do monopólio da terra. No entanto, as medidas propostas para reformar esse sistema, no contexto abolicionista, estavam completamente de acordo com as regras de um Estado liberal: adoção de um imposto territorial e desapropriação de terras com indenização. Além disso, cumpre enfatizar que em outras partes do mundo a reforma agrária nem sempre foi uma bandeira "de esquerda". Como exemplo, os Estados Unidos e o Japão que se serviram da reforma agrária para propiciar um desenvolvimento nos moldes capitalistas. Mais do que refletir sobre o suposto caráter revolucionário do projeto abolicionista, seria interessante, portanto, refletir sobre o extremo conservadorismo das elites brasileiras que durante mais de um século resistiram à adoção de uma medida inteiramente de acordo com as regras liberais, qual seja, um imposto sobre as terras!

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Hipótese formulada por Maria Luiza de Carvalho Mesquita na sua monografia Quem tem medo do terceiro Império ou por que não Isabel? Rio de Janeiro, UCAM, 2005. 27 Essa hipótese foi formulada pela primeira vez pelo brasilianista Richard Graham em 1970, no seu livro Escravidão, reforma e imperialismo, São Paulo: Perspectiva, 1979.

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