Abordagem Acerca do Aporte Listiano para a Formação do Pensamento de Raúl Prebisch

May 29, 2017 | Autor: O. Erbereli Júnior | Categoria: Historia Intelectual
Share Embed


Descrição do Produto

ISSN – 1807 - 2674

31

REVISTA de ECONOMIA POLÍTICA e HISTÓRIA ECONÔMICA Ano 09 – Número 31 – Janeiro de 2014 Índice 05 A Unificação Monetária Europeia – a Formação da Área do Euro de 1990 a 2002

Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli

43 Uma Interpretação da Revolução Burguesa no Brasil na Visão de Florestan Fernandes

Glinzer Santa Cruz da Silva Costa

63 Desregulamentação, Desindustrialização e Reconcentração de Renda na Crise dos EUA Robério Paulino

89

Apontamentos para uma História Econômica da Cidade de Diamantina

Alessandro Borsagli Fernanda Guerra Lima Medeiros Borsagli

107 A Soberania Econômica Nacional e a Economia Institucional Europeia

Gustavo Granado

146 Abordagem Acerca do Aporte Listiano para a Formação do Pensamento de Raúl Prebisch

Otávio Erbereli Junior

183 As Minas de Mato Grosso: Apogeu, Crise e Declínio da Mineração

Romyr Conde Garcia

199 Economia Política e Política Econômica no Brasil Recente: O Neodesenvolvimentismo “Restringido” do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Glaudionor Gomes Barbosa Ana Paula Sobreira Bezerra

230 Resenhas: LUSTOSA, C e ROSÁRIO, F. (orgs.) Desenvolvimento Local em Regiões Periféricas: a política dos arranjos produtivos em Alagoas. SINHA, Ajit. Theories of Value from Adam Smith to Piero Sraffa. http://rephe01.googlepages.com

2

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31, Agosto de 2013.

Expediente REVISTA DE ECONOMIA POLÍTICA E HISTÓRIA ECONÔMICA Número 31, Ano 09, Janeiro de 2014. Uma publicação semestral do GEEPHE – Grupo de Estudos de Economia Política e História Econômica.

http://rephe01.googlepages.com e-mail: [email protected] Conselho Editorial: Fernando Almeida Glaudionor Barbosa Haruf Salmen Espíndola Jean Luiz Neves Abreu Júlio Gomes da Silva Neto Lincoln Secco Luiz Eduardo Simões de Souza Marcos Cordeiro Pires Marina Gusmão de Mendonça, Osvaldo Luis Angel Coggiola, Paulo Queiroz Marques, Pedro Cezar Dutra Fonseca, Romyr Conde Garcia, Rubens Toledo Arakaki, Vera Lucia do Amaral Ferlini, Wilson do Nascimento Barbosa Wilson Gomes de Almeida. Edição: Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli Autor Corporativo: GEEPHE – Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica. A REPHE – Revista de Economia Política e História Econômica – constitui mais um periódico acadêmico que visa promover a exposição, o debate e a circulação de ideias referentes às áreas de história econômica e economia política. A periodicidade da REPHE é semestral.

3

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Editorial

Um olhar para a procedência dos pesquisadores que compõem a REPHE mostra a abrangência e pluralidade da proposta do periódico. Todas as regiões do país estão comportadas, do Sul ao Norte, do Nordeste ao Centro-Oeste e Sudeste. Isso mostra a aderência da proposta da REPHE com a política de livre debate e trânsito de ideias que a gerou em 2005. A REPHE 31 inicia com um artigo de Fátima Previdelli sobre a formação da Zona do Euro nos anos 1990. Glinzer Santa Cruz remonta a Florestan Fernandes, Robério Paulino aponta elementos de reconcentração de renda na crise econômica recente dos EUA, Alessandro e Fernanda Borsagli abordam alguns elementos para a história econômica de Diamantina (MG). Gustavo Granado envereda-se por aspectos teóricos do institucionalismo de Douglass North, enquanto Otávio Erbeli Junior busca as raízes alemãs do pensamento econômico do patrono da CEPAL, Raúl Prebisch. Romyr Conde Garcia aborda a economia mineradora de Mato Grosso durante a escravidão e Glaudionor Barbosa e Ana Paula Sobreira fazem um balanço econômico dos oito anos de Governo Lula. Na seção de resenhas, temos as contribuições de Tiago Camarinha Lopes e Rafael Aubert de Araujo Barros. Reiteramos os agradecimentos aos leitores e colaboradores da REPHE e convidamos à leitura de mais este exemplar. A Editora

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

4

Ficha Catalográfica Revista de Economia Política e História Econômica / Maceió, Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica - Número 31, Ano 09, Janeiro de 2014 – Maceió, GEEPHE, 2007. Semestral 1. História Econômica. 1.Economia Política NEPHE

5

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A Unificação Monetária Europeia – a Formação da Área do Euro de 1990 a 20021 Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli2

RESUMO O processo de formação de um bloco de países integrados com unificação de políticas monetárias dentro do continente europeu constitui uma das etapas mais importantes que os países do velho continente realizaram em direção à sua integração. Para compreender como o processo se efetuou e as mudanças ocorridas na economia de seus agentes, este artigo apresenta uma análise dos principais documentos elaborados e assinados durante o processo, bem como a análise de alguns indicadores macroeconômicos, visando verificar as mudanças ocorridas na estrutura desses países no período de implantação da União Monetária, entre 1990 e 2002. Palavras-chave: História Econômica, União Europeia, Área do Euro ABSTRACT The process of formation of a bloc of countries integrated with unified monetary policy within the European continent is one of the most important steps that the countries of Europe held towards their integration. To understand how the process was carried out and the changes in the economy of its agents, this article presents an analysis of key documents drafted and signed during the process as well as the analysis of some macroeconomic indicators, seeking to verify the changes in the structure of these countries during the establishment of the Monetary Union, between 1990 and 2002.

Keywords: Economic History, European Union, the Euro Area

Artigo apresentado em 16/05/2013 e aprovado em 12/08/2013. Economista, Mestre e Doutoranda em História Econômica pela USP-FFLCH, bolsista do CNPq. Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus de Governador Valadares. 1 2

6

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

1 O Processo de Unificação Monetária Europeu

Após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945, as divisas dos diferentes países

era regida pelo chamado padrão

dólar, conforme o acordo firmado em Bretton Woods em 1944. No entanto,

a

supremacia

da

moeda

estadunidense

e

as

desvalorizações forçadas das moedas europeias levaram os dirigentes de suas principais nações a buscar medidas que reduzissem este desequilíbrio relativo às suas moedas frente à “moeda internacional”. O uso da moeda estadudinense representava para as potências do velho continente, ao mesmo tempo que uma submissão à influência da antiga colônia britânica, também

um

risco de vunerabilidade por problemas econômicos que pudessem vir daquele país. A crise de 1929 ainda não havia sido esquecida. Porém, a Guerra Fria exigia uma tomada de posição que criava uma aliança natural com os Estados Unidos, levando à aceitação de sua moeda como moeda internacional. Em 1969, iniciaram-se os planos para a criação de uma moeda única na Europa. Tais propostas resultaram no chamado Plano Barre, elaborado em conjunto pelos então seis membros componentes

da

Comunidade

Econômica

Europeia

(CEE):

Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. Tal documento, concebido sob a reunião de Roma, em fevereiro de 1969, apresentava uma série de operacionalizações das propostas de integração fiscal, monetária e cambial dos países europeus. Uma de suas propostas, ainda sob o sistema de Bretton Woods, era a criação de uma política integrada de câmbio entre os países membros, amparada por um fundo comum de crédito destinado a suprir as flutuações entre as moedas nacionais. Nele, também se observa a primeira sugestão de um numerário comum aos países membros, o European Currency Unit (ECU).

7

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Em síntese, pode-se definir o Plano Barre3 como um conjunto de diretrizes para que se levasse a cabo uma União Europeia, com moeda comum, ausência de barreiras alfandegárias entre seus membros, mobilidade de mão de obra e estabilidade no nível de preços e taxa de câmbio. Elaborado pelos chefes de governo e Bancos Centrais dos seis4 países membros, o documento serviu de base para os posteriores que viriam a concretizar a união monetária. No entanto, as negociações avançaram lentamente e somente no ano de 1971 ocorreram novas conversações relativas à adoção da moeda única. Nesse ano foi elaborado o Plano Werner, como proposta de convergência das economias nacionais dos países membros da CEE para tal fim. O novo documento consistia em 68 páginas produzidas pela Comissão da Comunidade Europeia, presidida por Pierre Werner5, e votadas em março de 1970. Nomeado como Plano Werner6, esse documento contém um endosso às recomendações do Plano Barre, e um planejamento em três etapas para a unificação monetária. A primeira etapa encontra-se detalhada com duração e decisões conforme se pode verificar abaixo: A primeira fase terá início em 1 de Janeiro de 1971 e irá abranger um período de três anos. Além da ação aprovado pelo Conselho na sua decisão de 8 e 9 de Junho 1970, implicará na adoção das seguintes medidas: (I) Os procedimentos de consulta terão um caráter preliminar e obrigatório e exigirão o aumento da atividade dos órgãos comunitários, em particular o Conselho e a Comissão, bem como, o Comité de Gestores dos bancos centrais. Estas consultas incidirão, principalmente, na definição de políticas econômicas de médio prazo, políticas econômicas de curto prazo, política orçamentaria e política monetária7.

Idem. Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Países Baixos e Luxemburgo. 5 Primeiro Ministro e Ministro das Finanças de Luxemburgo. 6 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/ legislation summaries /economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012. 7 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/ legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012. Tradução da autora. 3 4

8

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O texto não detalha as demais etapas a serem adotadas e no final de 1970 o mesmo foi aprovado. No entanto, o colapso do sistema de Bretton Woods e a decisão americana de permitir a flutuação do dólar em Agosto de 1971 provocaram uma onda de instabilidade nos mercados cambiais que prejudicou as paridades entre as moedas europeias levando a uma suspensão do projeto de união monetária. Em Março de 1972, o Grupo dos Seis tentou reativar o processo de integração monetária criando a “Serpente no Túnel”: um

mecanismo

de

flutuação

combinada

das

moedas

(a

“serpente”) no interior de margens de flutuação estreitas em relação ao dólar (o “túnel”). Esse sistema consistia em uma fórmula alternativa ao sistema monetário de Bretton Woods. Tinha como mecanismo o uso de margens de flutuação de 2,25% entre as diversas moedas europeias pertencentes ao sistema. Desse modo, pretendia-se desenvolver um grupo autônomo de taxas de câmbio entre os países da CEE que levasse à posterior eliminação das margens de flutuação entre as moedas dos países membros. Em 1972 o Grupo dos Seis se expandira com a entrada da Irlanda, Dinamarca e Reino Unido. Desse modo, o Grupo dos Nove8 criou o Fundo Europeu de Cooperação Monetária (FECOM), cujas reservas se destinavam a ajudar os bancos centrais nacionais a manter a paridade da sua moeda no mecanismo da Serpente Monetária, agora alinhada ao dólar fora do sistema de convertibilidade. Contudo, as constantes modificações unilaterais dos tipos de câmbio, e as diferenças entre as economias dos países membros levaram ao fim da Serpente Monetária Europeia, em 1978. O sistema estava desestabilizado pelas crises petrolíferas, pela

debilidade

do dólar e

pelas

divergências entre as políticas econômicas e havia perdido a maior parte dos seus membros para finalmente ficar reduzida a uma zona

8

Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Irlanda, Luxemburgo, Países Baixos e Reino Unido.

9

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

do "marco" reagrupando a Alemanha Ocidental, o Benelux e a Dinamarca9. Os esforços no sentido de criar uma zona de estabilidade monetária foram retomados em Março de 1979, por iniciativa da França e da Alemanha, com a criação do Sistema Monetário Europeu (SME) baseado no conceito de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. As moedas de todos os Estados-membros, à excepção do Reino Unido, participaram no mecanismo de taxas de câmbio. O SME tinha como objetivo primário interligar as moedas e evitar grandes flutuações entre os seus respectivos valores. Para tanto, foi criado o Mecanismo Europeu das Taxas de Câmbio (MET), através do qual as taxas de câmbio da moeda de cada Estado Membro obedeciam a ligeiras flutuações (+/-2,25%) para cada lado do valor de referência. Este valor, fixado por acordo em relação ao conjunto de todas as moedas participantes, foi chamado Unidade de Moeda Europeia (ECU), seguindo a sugestão britânica de 1975 e era calculando de forma ponderada, segundo a dimensão da economia de cada Estado Membro10. No final dos anos 1980, o mercado de cada um dos Estados Membros cresceu para patamares semelhantes e o objetivo de criação do Mercado Único Europeu tornou-se mais viável. Mas o comércio

internacional

neste

Mercado

Único

poderia

ser

prejudicado pelo risco das taxas de câmbio – apesar da relativa estabilidade introduzida pelo MET – e pelos crescentes custos de transação. A solução, mais uma vez foi depositada na esperança de criação de uma moeda única. Em fevereiro de 1986, a Comissão Europeia presidida por Jacques Delors aprovou o Ato Único Europeu (AUE)11 alterando o Tratado de Roma que, em 1945, havia criado o Grupo dos Seis. As Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and _monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013. 10 Idem. 11 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/ legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012. 9

10

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

alterações visavam a total abertura de fronteiras entre os Estados membros para a circulação de bens, de capitais e de pessoas. O objetivo da mudança era remover as barreiras institucionais e econômicas entre os Estados Membros da CEE e estabelecer como meta

a

formação

do

Mercado

Comum

Europeu

(MCE).

Adicionalmente, o Ato Único Europeu determinava a criação da União

Econômica

e

Monetária

(UEM)

recuperando

as

recomendações dos Planos Werner e Barre. O tratado buscava aprovar

e

regulamentar

a

transformação

da

Comunidade

Econômica Europeia em União Europeia, incluindo definições como o tempo de vigência dos mandatos dos participantes das instituições a serem criadas com vistas a tais transformações para seis anos. Adicionalmente, estabeleceu a data limite para adoção das medidas relativas ao Mercado Interno dos Países Membros. Elegeu ainda como foco das ações a serem tomadas, as áreas social, tecnológica, de meio ambiente, de energia atômica, além da área econômica. Dois anos depois, em 1989, é elaborado o chamado Relatório Delors12, ou “Report on economic and monetary union in the European community” e que foi apresentado à comunidade europeia no dia 17 de abril de 1989 quando foi publicado pelo Comitê para o Estudo da União Econômica e Monetária, cujo presidente era o político e economista francês, Jacques Delors. Por sua importância, torna-se necessário descrever o Relatório Delors em maiores detalhes. Composto de três capítulos, o inicial “Past and present developments in economic and monetary integration in the Community”, faz um resumo dos passos dados até o momento no processo de unificação monetária, conforme a síntese a seguir: 1-

Parte 1 - denominada “The objetive of economic and monetary union” traz, informações sobre os movimentos feitos

nas

décadas

de

1970

e

1980

para

o

estabelecimento da União Econômica e Monetária, 12

Idem.

11

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

destacando a criação do Sistema Monetário Europeu (SME) e da Unidade de Conta Europeia (UCE). 2- Parte 2 - denominada “The European Monetary System and the ECU” recorda a utilização abaixo do potencial do SME causada pela não adesão de alguns países membros ao mecanismo de taxa de troca, bem como a falta de convergência das politicas fiscais, levando a orçamentos deficitários em alguns membros. Já a ECU é relembrada como tendo obtido elevado sucesso e adesão dos países membros, subindo em 6% a participação de títulos europeus nas transações do mercado internacional de títulos e expandindo a emissão de títulos de dívida lastreados na ECU, como forma de diversificação de portfólio. 3- Parte 3 - sob o título “The Single European Act and the Internal Market Programme”, resume o Ato Único Europeu e seus resultados. 4- Parte 4 - relata as expectativas quanto à consolidação do mercado único tido como fator preponderante na eliminação

de

possíveis

tensões

sobre

a

política

monetária. Destacando as duas premissas necessárias à concretização do mercado único: (1) aumento da convergência das performances econômicas dos países membros, e (2) intensificação das políticas conjuntas de implantação do processo. No segundo capítulo do relatório, “The final stage of economic and monetary union” tem-se cinco seções: a primeira, “General considerations” defende a formulação de políticas conjuntas para a livre movimentação dos fatores produtivos (Capital e Trabalho). Nas duas seções seguintes, caracteriza-se o que seria a união monetária e econômica, destacando a necessidade de: (1) completa conversibilidade entre moedas, (2)

12

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

instituição de um mercado com livre mobilidade de capitais, e, por fim, (3) a completa equiparação das economias com a eliminação das margens de flutuação nas paridades. Para a obtenção desses pontos estabeleceram-se como metas: (1) um mercado único com livre mobilidade de bens, capital e pessoas; (2) políticas generalizadas de fortalecimento dos mecanismos de mercado; (3) formulação de politicas com foco nas mudanças estruturais e do desenvolvimento da união; e (4) adoção de politicas macroeconômicas comuns aos países membros para atingir os estágios de desenvolvimento que permitissem uma maior concisão nos panoramas econômicos da União. Há ainda um arcabouço institucional para legitimar o estabelecimento

das

uniões

econômica

e

monetária

na

comunidade europeia, com destaque para a criação de um novo agente monetário – o Sistema Europeu de Bancos Centrais – com maior agilidade de decisão frente a mudanças no mercado financeiro internacional. Este capítulo se encerra destacando o ganho de poder de barganha que uma unificação de Estados europeus obteria frente ao resto do mundo nos processos de determinação de politicas internacionais. O terceiro capítulo do Relatório Delors detalha os passos para a implantação da união econômica e monetária na comunidade europeia.

Tais

passos

são

estruturados

em

três

fases.

Adicionalmente, informa quais etapas deverão ser postas em prática antes mesmo de se iniciar os estágios de implantação da unificação. Entre estas etapas, pode-se destacar a discussão sobre a possibilidade de alteração na ECU para ampliar a eficiência do instrumento e averiguar uma maior integração das politicas monetárias através da ECU. As fases propostas pelo Relatório Delors para a implantação efetiva da União Econômica e Monetária estariam assim expostas: (1)

Uma fase inicial, objetivando o fortalecimento e

convergências das performances econômicas dos países,

13

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

acompanhadas por politicas monetárias coordenadas. Esta fase se caracterizaria por acordos e tratados entre os países membros para implantar tal coordenação. (2)

Fase

de

monitoramento

e

avaliação

dos

resultados obtidos na etapa anterior, de reestruturação das instituições existentes, assim como de criação de novos agentes de monitoramento e formulação de políticas em comum. (3) Etapa de substituição das moedas nacionais por uma moeda única. O período entre a publicação do Relatório Delors e o marco seguinte no estabelecimento da união monetária, o Tratado da União Europeia, foi de três anos. No intermédio desse triênio, o evento mais significativo na mudança do contexto histórico mundial foi a reunificação da Alemanha. A queda do muro de Berlin fez com que a comunidade europeia viesse a lidar com mudanças em um dos seus países membros de maior destaque no grupo, iniciando assim as negociações com a Alemanha unificada que resultariam em sua participação, sob o novo formato em 1990, com uma população de um quarto do total do bloco13. A unificação das duas Alemanhas foi acertada em 18 de maio de 1990, quando os dois Estados assinaram o Tratado que institui a União Monetária, Econômica e Social entre a República Democrática Alemã e a República Federal da Alemanha14 que entrou em vigor em 1 de julho de 1990, com a adoção do Marco da República Federativa como moeda comum, em paridade de um para um com o marco da República Democrática Alemã. Dessa

Em 1990, a Alemanha unificada possuía 79.433.831 habitantes, já os demais países do bloco possuíam um total de 263.611.268 habitantes. O segundo país mais populoso era a França com 56.708.820 habitantes segundo dados disponíveis em http://stats.oecd.org/OECDStat_Metadata /ShowMetadata.ashx?Dataset=POP_ FIVE _HIST & Show OnWeb=true&Lang=en acesso realizado em 12-06-2013. 14 Conforme informações disponíveis no endereço http://www.princeton.edu/~achaney/tmve/wiki100k/ docs/German_reunification.html acesso em 07 de maio de 2013. 13

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

14

forma, o país deu início ao processo que o levaria à posição de principal potência dentro da Área do Euro. Em 1992, as três fases previstas pela Comissão Delors em seu relatório, foram formalizadas no Tratado de Maastricht, no qual se definiram os critérios para a convergência econômica dos países membros e adesão a uma moeda única. Esse tratado marca a transição da Comunidade Econômica Europeia(CEE) para a União Europeia (UE). Tais critérios de adesão à União Europeia e de adoção do euro foram definidos em três documentos a saber: (1) O Tratado de Maastricht de 1992, que entrou em vigor em 1 de Novembro de 1993; (2) Os chamados Critérios de Copenhague, elaborados no mesmo ano pelo Conselho Europeu para detalhar os

objetivos

gerais do Tratado de Maastricht; e (3) O documento de negociação de cada país candidato no momento de pedido de adesão15. O primeiro documento, conhecido como Tratado da União Europeia16, ou Tratado de Maastricht, foi o resultado de uma conferência intergovernamental dos países membros e introduziu o Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, bem como, o Protocolo relativo aos Estatutos do Instituto Monetário Europeu. Entrou em vigor em 1 de novembro de 1993. O Tratado agrega numa só entidade, a União Europeia, as três comunidades europeias anteriores (Euratom, CECA, CEE) e as cooperações políticas institucionalizadas nos domínios da política externa, da defesa, e da justiça. A Comunidade Econômica Europeia passa a ser designada como União Europeia. Além disso, é

As datas de pedido de adesão dos países foram: Bélgica 1972 para Dinamarca, Irlanda e Reino Unido; 1981 para Grécia; 1985 para Portugal e Espanha; 1995 para Áustria, Finlândia, e Suécia; 2004 para Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, e República Checa; e 2007 para Bulgária e Romênia. 16 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/ legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012. 15

15

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

instituída a União Econômica e Monetária (UEM), e novas políticas comunitárias na área da Educação e Cultura são instituídas.

Assinado pelos 12 países participantes do bloco, o Tratado apresenta na sua versão consolidada, 55 artigos agrupados em seis títulos ou capítulos. Estruturado como a figura de um templo grego17, o documento possui três pilares: 1- O pilar central foi denominado de “pilar comunitário”, e representa o mercado único, a União Europeia, a União Econômica e Monetária, a PAC, os fundos estruturais e de coesão, bem como as instituições que permeiam todas essas instancias. 2- Os pilares laterais, estavam baseados não nos poderes supranacionais mas na cooperação entre os governos e envolviam (1) a Política Exterior e Segurança Comum (PESC), e (2) Justiça e Assuntos Internos (JAI). Como segundo pilar, baseado na cooperação entre os governos, estabeleceu-se uma Política Externa e de Segurança Comum (ESC) que permitiu empreender ações comuns em matéria de política externa. O Conselho Europeu, com suas decisões passou a definir os princípios e orientações gerais da PESC. 3- O

terceiro

pilar,

baseado

intergovernamental,

baseou-se

na na

cooperação Justiça

e

na

administração de temas de interesse comum para todos os estados membros como terrorismo, imigração clandestina, políticas de asilo, tráfico de drogas, crime e a cooperação judicial.

A diferença entre os pilares reside na forma como se tomam as decisões. Assim, nos pilares de cooperação entre os governos, as decisões deverão tomar-se por consenso e as competências da Comissão, o Parlamento Europeu e o Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em 03-04-2013. 17

16

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tribunal de Justiça são escassas. Já no chamado pilar comunitário, as decisões são tomadas por maioria e o papel das instituições comunitárias é essencial. Ainda em relação a este pilar, o tratado define alguns pontos importantes: como o reconhecimento

de

uma

cidadania

europeia,

e

a

operacionalização da União Econômica e Monetária (UEM) a ser estruturada nas três fases baseadas no Relatório Delors e descritas a seguir: 1- A primeira fase, iniciada em 1990, seria concluída em 31 de Dezembro de 1993 e teria como objetivo completar a livre circulação de capitais entre os países membros. 2- De 1 de Janeiro de 1994 a 1 de Janeiro de 1999, ocorreria a segunda fase na qual os países membros deviam coordenar as suas políticas econômicas objetivando atender aos “critérios de convergência”. 3- A terceira fase começaria em de 1 de Janeiro

de

1999, e marcava a criação da moeda única, o Euro, que teria fixada nessa data a sua equivalência com as moedas nacionais dos países participante, bem como, seria a data para o estabelecimento de um Banco Central Europeu (BCE).

O Tratado da União Europeia18 destaca como um de seus objetivos, a busca por uma homogeneidade econômicosocial das diversas regiões e países comunitários que a compõem. Para tanto, regulamenta o chamado Fundo de Coesão com o objetivo de proporcionar ajuda financeira a ser aplicada nos setores de meio ambiente, transportes e infraestrutura de base. Este fundo estava destinado aos estados membros da União que tivessem um PNB per capita

Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em 03-04-2013. 18

17

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

inferior a 90% da média europeia e implantassem as “políticas de convergência”, ou seja, controle da inflação, controle do déficit das contas públicas e redução da dívida pública. Os principais

beneficiários

destas

políticas

e fundos

foram

Espanha, Grécia, Portugal e Irlanda. O grupo passou a ser conhecido como “Países da Coesão”. Outras áreas definidas ao longo do texto são referentes à política econômica e monetária, política industrial, redes transeuropeias educacionais,

e

política

defesa

desenvolvimento

dos

de

transportes,

consumidores,

tecnológico,

e

políticas

pesquisa

cooperação

e

o

para

a

preservação do meio ambiente19. Assim, o tratado aborda pontos importantes como no caso do 8º artigo, onde estabelece a possibilidade da execução e regulação de acordos com Estados não membros pelas instituições da União. O artigo 10, define que a União deve operar na forma de uma democracia representativa, e no artigo seguinte determina que as operações da União deverão ser expostas de forma transparente ao povo europeu. No que se refere às instituições, o artigo 13 introduz as seguintes medidas: o Parlamento aumenta os seus poderes, o Conselho de Ministros passa a denominar-se Conselho da União Europeia; a Comissão recebe o nome oficial de “Comissão das Comunidades Europeias”, o Tribunal da Justiça, o Tribunal de Contas e o Comitê Econômico e Social reforçam as suas competências, cria-se o Comité das Regiões, com caráter consultivo e prevê-se a criação do Banco Central Europeu, ao iniciar-se a terceira fase da UEM. Nos artigos seguintes, define as funções de cada uma dessas instituições concedendo ao Parlamento Europeu e ao Conselho a função 19

Idem.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

18

legislativa e orçamentária (artigo 14) e atribui ao Conselho Europeu a função de incentivar e regular o desenvolvimento da União sem, no entanto, agir como poder legislativo (artigo 15). Vale destacar que para alguns, como Marsh20, no entanto, o Tratado de Maastricht e as propostas colocadas em vigor com sua assinatura, seguiram todo o modelo do sistema financeiro da Alemanha, país mais forte do grupo. E fortaleceriam a divisão entre países pobres e ricos do bloco. Na versão completa do Tratado da União Europeia21 constam diversos protocolos adicionais dos quais chamam à atenção dois que regulamentam a situação do Reino Unido e da Dinamarca no que se refere à unificação monetária. O primeiro permite ao Reino Unido optar a qualquer momento pela entrada na terceira fase de implantação da moeda única. Assim, o tratado isenta o país de aderir ao uso do Euro e permite que mantenha a libra como moeda oficial. Adicionalmente, mantêm sua autonomia relativa às políticas monetárias e fiscais adotadas. No protocolo relativo à Dinamarca, o tratado faculta a entrada do país na Área do Euro com a realização de uma consulta à população do país. Até 2013, o governo dinamarquês não realizou o referendo sobre a entrada na Área do Euro. Existe uma terceira exceção, que está relacionada com a Suécia. Quando aderiu à União Europeia em 1995, o país não atendia aos critérios necessários para a adoção da moeda única e o povo sueco rejeitou o euro através de referendo, preferindo preservar sua moeda nacional.

Todos os demais países, ao se

candidatarem à União Europeia, automaticamente iniciam o processo de adesão à moeda única, e quando atendem

Conforme MARSH, David. The battle fot the new global currency. London:Yale University Press, 2009. p.12. 21 Conforme documento divulgado pelo Official Journal C 191, de 29 de julho de 1992, disponível em http://europa.eu/ legislationsummarie, acessado em 24 de junho de 2013. 20

19

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

plenamente às exigências dos Critérios de Copenhague, passam a integrar a Área do Euro.

2. Fases de Implantação da UEM Embora a Fase I tivesse começado em 1979 com a criação do SME, o seu início oficial se deu em 1990 e o marco inicial desta fase se deu pela abolição do controle sobre as taxas de câmbio, libertando assim os movimentos de capitais no interior da CEE. Portanto, oficialmente, a Primeira Fase da UEM teve início no dia 1 de julho de 1990 e caracterizou-se pela eliminação de todas as barreiras internas à livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais nos Estados membros da União Europeia. Ainda nessa primeira fase, atribuíram-se responsabilidades ao Comitê de Gestores dos Bancos Centrais dos Estados membros. Em março de 1990, foi definida e regulamentada a prática de realização de consultas relativas à política monetária entre os gestores para a coordenação entre Estados membros, visando controlar a estabilidade de preços e a unificação de medidas. Para tanto, foi elaborado o documento conhecido como a Resolução 141 de 1990 do Conselho Europeu22. O documento estabelecia uma supervisão multilateral a ser efetuada nos países membros, cobrindo todos os aspectos da política econômica, a curto e médio prazo objetivando obter a estabilidade de preços, controle de finanças públicas e condições monetárias favoráveis como balanços de pagamentos favoráveis e a manutenção da abertura de mercados internos aos fluxos de produtos e fatores. Operacionalmente, através de análises e decisões tomadas em sessões restritas, mas com deliberações tornadeas públicas, a supervisão multilateral se dava com base em relatórios períodicos dos países sobre as condições econômicas nacionais, com detalhamento das perspectivas e informações detalhadas das Council Decision 90/141/EEC of 12 March 1990 on the attainment of progressive convergence of economic policies and performance during stage one of economic and monetary union [Official Journal L 78 of 24.03.1990] disponível no endereço http://europa.eu/legislation_summaries economic_and_monetary_affairs/introducing_ euro_practical _aspects/l25006_en.htm acesso em 15-08-2013. 22

20

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

políticas monetária e orçamental; em seguida eram feitas as avaliações periódicas da situação econômica da Comunidade como um todo e gerado um relatório anual a ser avaliado e aprovado pelo Comitê Econômico e Social.

A

fim

de

promover

a

coerência

das

políticas

econômicas e monetárias entre os países pertencentes ao bloco, o presidente do Comitê dos Gestores dos Bancos Centrais participava das reuniões do Conselho e poderia convocar reuniões extraordinárias do Comitê de Gestores de Bancos Centrais para decisões ou detalhamentos que, posteriormente apresentava ao Conselho. Os governos dos países deveriam informar aos seus ministros

e

parlamentos,

sobre

as

recomendações

Conselho para substanciar a elaboração das

do

políticas

econômicas nacionais. Desse modo, tanto os Gestores dos Bancos

Centrais

recomendações

participavam no

nível

da

da

elaboração

comunidade,

quanto

das da

elaboração das políticas econômicas em seus próprios países, garantindo sua unicidade. A criação do Instituto Monetário Europeu (IME) em 1994 marcou o início da Segunda Fase da UEM e, o Comité de Gestores dos Bancos Centrais foi extinto. Cabe esclarecer que o IME não tinha qualquer responsabilidade pela condução da política monetária da União Europeia (UE), a qual continuava a ser da competência das autoridades nacionais, adicionalmente, o IME não podia realizar intervenções cambiais. Suas funções eram de duplo caráter: (1) Reforçar a cooperação entre os bancos centrais e a coordenação das políticas monetárias (ainda que durante essa segunda fase a política monetária continuasse a ser definida no âmbito nacional); e (2) realizar as tarefas necessárias à instituição do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), a quem caberia determinar e conduzir a política monetária única a partir do início

21

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

da terceira fase, e proceder à introdução da moeda única também nessa Terceira Fase da UEM. Em Junho de 1997, o Conselho Europeu se reuniu em Amsterdã e aprovou o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) que criou o MET II, sucessor do SME e do MET. Este somente entraria em vigor após o lançamento do euro na sua forma monetária. O PEC23 continha instruções engessadoras do orçamento dos Estados, visando evitar endividamento dos mesmos. O Pacto de Estabilidade e Crescimento era composto por três partes: (1) que visava

estabelecer um „braço preventivo‟ relativo a problemas

orçamentários; (2) um regimento dos procedimentos de supervisão das situações orçamentais; e (3) o chamado „braço corretivo” a ser aplicado no caso de um país membro apresentar uma situação de “déficit excessivo”. Os principais objetivos do PEC em relação ao orçamento dos estados membros eram obter um compromisso no sentido de respeitar um saldo orçamental próximo do equilíbrio ou de superávit, além de especificar o que seriam cirsuntâncias excepcionais, e sanções aos déficits excessivos. O PEC definiu como valor de referência para teto máximo de déficit público, 3% do PIB. E, definia como situação excepcional, que permitiria valores superiores a esse, uma recessão econômica grave (com taxa de crescimento anual negativa do PIB ou de uma redução cumulativa da produção durante um período prolongado de crescimento anual muito baixo)24. Operacionalmente, cada Estado membro devia apresentar à Comissão Econômica, seus programas de estabilidade (para os participantes da Área do Euro) e programas de convergência (para os que ainda não fazem parte da área do euro). Em ambos os Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em 03-04-2013. 24 De acordo com informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries/economic_and _monetary_affairs /stability_and_growth_pact/l25019_pt.htm, acesso em 16-08-2013. 23

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

22

casos, os programas visavam estabelecer a meta orçamentária para os próximos anos e eram avaliados pela Comissão, sofrendo recomendações do Conselho, específicas para cada Estado. Este era o “braço preventivo” do PEC25. Adicionalmente, o pacto criou um “Semestre Europeu” no início de cada ano para que os países membros pudessem colocar em prática, suas políticas orçamentais. Em seguida a esse período, a Comissão Europeia avaliava as contas apresentadas pelos Estados e elaborava um relatório com informações sobre a situação da economia do país. Caso ocorresse um caso de “déficit excessivo”, o relatório devia pontuar todos os fatores26 relacionados às suas causas e medidas de correção.



o

chamado

“braço

corretivo”

do

pacto,

se

relacionava ao regulamento27 que apresenta as sanções a serem

tomadas

no

caso

de

um

“déficit

excessivo”.

Inicialmente, estas assumiam a forma de um depósito não remunerado junto à União Europeia. O montante desse depósito incluia uma componente fixa correspondente a 0,2 % do PIB do país; e uma componente variável correspondente a um décimo da diferença entre o déficit (expresso em percentagem do PIB do ano durante o qual o déficit foi considerado excessivo) e o valor de referência (3 %). Nos anos seguntes, o Conselho poderia intensificar as sanções exigindo depósitos suplementares correspondentes ao décimo da diferença entre o déficit expresso como percentagem do PIB do ano anterior e o valor de referência de 3 % do PIB. Caso o “déficit excessivo” não fosse corrigido após dois anos, os depósitos passam a ser considerados como Idem. Nomeadamente: o potencial de crescimento; as condições conjunturais; a execução das políticas que visem incentivar a pesquisa e inovação; a evolução do orçamento no médio prazo, com os esforços de equilíbrio orçamental; e dados relativos a mudanças no sentido de diminuir as políticas assistenciais de aposentadorias e pensões. 27 Conhecido como Regulamento (CE) n.º 1467/97 do Conselho, de 7 de Julho de 1997, relativo à aceleração e clarificação da aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos. Disponível no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and _monetary_affairs/stability_and_growth_pact/l25020_pt.htm acessado em 16-08-2013. 25 26

23

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

multas e, juntamente com os juros a eles relacionados, são distribuídos pelos Estados membros que não tenham um “déficit excessivo”, de modo proporcional à sua participação no PIB total do bloco28. Ainda em 1998, em reunião do Conselho Europeu em Bruxelas, foram aprovados os onze países que poderiam adoptar o euro em 199929. Eram estes: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, e Portugal. Os Chefes de Estado ou de Governo de tais países nomearam, através de acordos políticos, os componentes da Comissão Executiva do BCE. Em relação às taxas de câmbio, nesse mesmo ano, os ministros da área financeira dos Estados membros que iriam adotar o euro, entraram em acordo com os gestores dos respectivos bancos centrais nacionais, a Comissão Europeia e o IME. Tal acordo visava estabelecer quais as taxas centrais bilaterais no MTC das moedas dos Estados membros participantes a serem utilizadas para a conversão das moedas nacionais em euros. Com a instituição do BCE em 1 de junho de 1998, o IME cessou as suas funções. Em conformidade com o artigo 123 (exartigo 109-L) do Tratado que Institui a Comunidade Europeia30, o IME entrou em liquidação no momento em que o BCE iniciou a atividade. Ainda

nesta

fase,

os

Estados

membros

deveriam

compatibilizar suas legislações nacionais com esse Tratado e os

Idem. Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and _monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013. 30 O Tratado de Roma de 1957 foi sendo modificado ao longo dos anos a cada novo tratado e acordo assinado, deste modo, ao original foram adicionadas as decisões posteriores e o documento resultante recebe esta denominação e representa a versão consolidada das decisões dos países membros relativas à norma da União Europeia, suas instituições e órgão componentes. 28 29

24

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC)

31,

em

especial no que diz respeito à independência dos seus bancos centrais. Da mesma forma, era esperado que cada país se adequasse aos

chamados

“critérios

de

convergência”

ou

Critérios

de

Copenhague, a saber: (1) manutenção das divisas nos limites fixados pelo MET por período não inferior a dois anos; (2) taxas de juro de longo prazo não superiores a 2% das taxas dos três países membros que obtivessem melhor desempenho no período; (3) inflação inferior a um valor de referência (num período até 3 anos os preços não poderiam ser superiores a 1,5% dos do Estado melhor posicionado); e (4) o endividamento público deveria ser inferior a 60% do PIB (ou caminhar neste sentido), com déficit do orçamento público obrigatoriamente inferior a 3%32. No final dessa fase, o BCE começou a operar com a missão de dirigir a política monetária da União Europeia e fiscalizar as atividades do Sistema Europeu de Bancos Centrais. Tendo confirmada sua data de início durante o Conselho Europeu de Madrid, em 15 e 16 de Dezembro de 1995, a terceira fase de implantação da UEM começou em 1 de janeiro de 1999, com a fixação irrevogável das taxas de câmbio das moedas dos iniciais 11 Estados membros participantes da Área do Euro para o valor do último dia útil de 1998. Adicionalmente ocorreu a introdução do euro como moeda única, ainda na forma não monetária. Nessa

data,

tem-se

também

a

passagem

da

responsabilidade pela condução da política monetária da área do euro para o Conselho do BCE. Oficialmente, a transferência dessa função ocorreu na reunião do Conselho Europeu, com a presença

Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and _monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013. 32 Segundo informações disponíveis no endereço http://europa.eu/pol/emu/index_pt.htm acessado em 12-052013. 31

25

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

de Chefes de Estado ou de Governo, em maio de 1998, onde foram confirmados os onze Estados definidos na fase anterior33 já que haviam cumprido os critérios de convergência exigidos para a adoção da moeda única. No entanto, o BCE ainda operaria em conjunto com os Bancos Centrais nacionais para fixação das metas monetárias até o ano de 2002, quando passou a operar sozinho. Nesse período em que a moeda única ainda não estava em circulação na sua forma monetária, os valores em euro eram usados na contabilidade e as empresas podiam fazer as chamadas transações seguras em euros, uma vez que as taxas de câmbio entre as divisas eram fixas. Para acostumar a população à nova moeda,

valores

em

euros

surgiam

nas

contas

bancárias

acompanhando os valores nas moedas nacionais. A transição para o euro em sua forma monetária ocorreu em primeiro de janeiro de 2002 com a introdução das notas e moedas de euro. O Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio (MET) deu lugar ao MET-II, funcionando como o anterior, mas agora no contexto de um euro realmente existente. Em primeiro de janeiro de 2002, as caixas eletrônicas dos bancos começaram a fornecer a nova moeda um minuto depois da meia-noite e os cidadãos, poucos dias depois, estavam utilizando a nova moeda de forma corriqueira apesar de algumas resistências da população mais idosa que não compreendia as mudanças nominais de preços e protestou contra possíveis perdas de poder aquisitivo34.

3 Análise do Ambiente Econômico dos Países da Área do Euro (1990 a 2002)

Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, e Portugal. Em 2000, a Grécia foi aprovada e se tornou o décimo segundo país a entrar na Área do Euro. 34 De acordo com informações disponíveis no endereço http://ec.europa.eu/economy_finance/euro/adoption/ acessado em 8 de julho de 2013. 33

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

26

A seguir analisam-se alguns indicadores relativos às três fases de implantação da União Econômica e Monetária conforme acordado no Tratado de Maastricht, objetivando verificar as alterações observadas nas estruturas econômicas dos países candidatos à integração monetária. Dessa forma, priorizou-se o estudo das variáveis que foram objeto de maiores mudanças em virtude da busca pelo cumprimento dos critérios de convergência, conhecidos como Critérios de Copenhague.

Evolução da População, Produto, e Consumo Privado Segundo a Tabela 1, Alemanha, França, Itália e Espanha, conjuntamente, representam aproximadamente 80 % da população total da Área do Euro. Tal justifica sua força em termos de voto no Parlamento Europeu, e demais instituições da União Europeia. Em termos agregados, não se observam alterações na composição populacional entre as nações da região da Área do Euro. Visando facilitar a análise dos dados em função desssa representatividade,

optou-se

por

manter

a

ordem

de

apresentação dos países nas tabelas a seguir, em ordem decrescente de participação populacional no grupo dos doze formadores iniciais da Área do Euro.

27

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 1: Participação da população no total do Grupo (Área do Euro), por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002) 1ª Fase

2ª Fase

3ª Fase

Média

1990-1993

1994-1998

1999-2002

1990-2002

Alemanha

27,00

27,16

26,95

27,04

França

19,77

19,77

19,92

19,84

Itália

19,15

18,89

18,67

18,89

Espanha

13,15

13,10

13,22

13,15

Países Baixos

5,08

5,15

5,22

5,15

Grécia

3,46

3,54

3,58

3,53

Bélgica

3,38

3,37

3,36

3,37

Portugal

3,37

3,34

3,35

3,35

Áustria

2,62

2,64

2,63

2,63

Finlândia

1,69

1,70

1,70

1,70

Irlanda

1,19

1,21

1,25

1,22

Luxemburgo

0,13

0,14

0,14

0,14

País

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de EUROSTAT35.

Ao se analisar as mudanças econômicas desta primeira fase de implantação da UEM, observa-se uma reestruturação dos ritmos de crescimento econômico dos países envolvidos na Área do Euro. Praticamente todos arrefecem suas taxas de crescimento em 1993, para algo próximo a um terço ou à metade dos valores observados em 1990, como consta na Tabela 2.

Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/ acesso em 10-05-2013. 35

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

28

Tabela 2: Taxa média anual de variação Porcentual do PIB, por país, por fase de implantação da UEM 1ª Fase (1990 a 1993) 5,92 4,15 4,03 4,61 5,47 3,57 4,43 4,91 7,69 6,47 7,24 8,15

País Alemanha França Itália Espanha Países Baixos Grécia Bélgica Portugal Áustria Finlândia Irlanda Luxemburgo

2ª Fase (1994-1998) 3,23 4,30 4,27 5,48 5,84 4,45 3,75 5,26 3,49 6,35 10,54 4,85

3ª Fase (1999-2002) 3,35 5,69 3,21 7,29 6,57 7,34 5,71 5,65 3,72 5,35 9,95 8,82

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE36.

É possível atribuir-se o efeito de refreamento da intensidade de crescimento econômico às tentativas de coordenação de políticas econômicas dos países-membros, especialmente as de caráter fiscal e monetário, o que teve impactos sobre o suprimento das respectivas demandas efetivas dos mesmos. A retomada do ritmo de crescimento econômico em patamar mais homogêneo marca o comportamento da variação percentual do PIB na segunda fase de implantação da moeda comum. Neste período, de 1994 a 1998, as médias de crescimento ficam entre 3% e 6%, com exceção da Irlanda, que apresenta um crescimento médio anual de 10,56%, no período. De maneira geral, com exceção novamente da Irlanda, isso representa que, essa segunda fase de

coordenação

das

políticas

econômicas

visando

a

implantação da UEM, é caracterizada pelo surgimento de um poder arbitral entre as políticas fiscais, cambiais e monetárias. Observa-se

um arrefecimento do ritmo dos países que

cresciam mais na primeira fase, notadamente Alemanha e Áustria, e uma intensificação do crescimento nos países que antes cresciam a taxas inferiores a 3%, em 1993, como 36

Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.

29

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Finlândia e Portugal. Contudo, não é possível formular ainda a hipótese de que já nessa segunda fase, a Área do Euro poderia ser considerada uma unidade territorial, do ponto de vista econômico. Na terceira e última fase de implantação do Euro, de 1999

a

2002,

percebe-se

o

reforço

da

tendência

à

homogeneização das taxas de crescimento dos países membros. É possível dividir o conjunto de países em dois grupos distintos: um primeiro, que cresce entre 3% a 5%; e um outro, que cresce nas faixas de 6% a 9% anuais. A Irlanda apresenta extrapolação com variações excepcionais de 12%, em 2000, por exemplo. Mas é importante notar-se a criação desses “grupos” ou “sub-blocos” dentro do grupo em função das oscilações que ocorreriam nos anos seguintes. Nivelam-se os ritmos de crescimento do produto desses grupos na Área do Euro a partir do primeiro, ou seja, por baixo. Visto como um todo, o período de 1990 a 2002 representa uma fase de financeirização e transferência da relevância da composição do produto para ativos imobiliários, conforme se observa na Tabela 3, onde claramente se percebe um crescimento da participação do setor de serviços financeiros e imobiliários em todos os países do grupo. Tabela 3: Variação percentual da Participação Setorial no PIB, por país, média do período 1990- 2002 Agricultura, País Alemanha França Itália Espanha Países Baixos Bélgica Portugal Áustria Finlândia Irlanda

Pesca, Extrativismo -33,9 -40,9 -71,7 -27,4 -46,4 -46,1 -63,7 -50,1 -51,6 -74,9

Serviços Indústria -21,1 -21,8 -17,7 -22,3 -22,7 -23,5 -15,1 -12,7 7,0 1,7

Construção -13,8 -22,1 -19,3 -2,5 -2,2 -8,3 31,0 7,2 -25,4 37,6

e outros

e imobiliários 28,0 14,3 31,1 19,5 28,4 23,2 4,7 29,1 28,0 50,3

serviços 6,0 8,6 -0,3 5,0 3,7 5,5 15,4 -0,5 -1,3 -12,0

Luxemburgo -60,4 -48,3 -19,1 50,4 Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE37.

37

Comércio

financeiros

Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.

-5,0

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

30

Observadas as taxas de variação do consumo privado durante as três fases de implantação da UEM, constata-se que, Alemanha e Áustria apresentam redução do consumo privado. Dos demais países, à exceção de Portugal, todos demonstram uma intensificação do aumento de consumo privado em termos de porcentagem do PIB durante todo o período. como se pode verificar na Tabela 4. Tabela 4: Variação do Consumo Privado em porcentagem do PIB, média anual, por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). País

1ª. Fase

2ª. Fase

3ª. Fase

1990-1993 1994-1998 1999-2002 Alemanha 3,06 1,35 1,30 França 0,94 1,76 2,80 Itália 0,85 2,16 1,48 Espanha 1,67 2,62 4,12 Países Baixos 2,07 3,51 2,94 Bélgica 1,91 2,10 1,67 Portugal 4,13 2,71 2,98 Áustria 2,70 1,61 1,80 Finlândia -2,97 3,72 2,61 Grécia 1,75 2,61 3,55 Irlanda 2,25 6,14 7,13 Luxemburgo 2,63 3,70 4,46

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 38.

Poupança e Formação Bruta de Capital Fixo A poupança líquida dos doze países candidatos à unificação monetária se mostra inalterada durante o período preparatório para a adoção da moeda única, como consta da Tabela 5. Porém destacam-se como exceções Portugal e Grécia que apresentaram queda em suas poupanças líquidas ao final do período.

38

Idem..

31

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 5: Poupança líquida, valores em porcentagem do PIB, por país, anos selecionados, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). País Alemanha França Itália Espanha Países Baixos Grécia Bélgica Portugal Áustria Finlândia Irlanda

1ª Fase 1990 1993 9,68 7,26 7,98 5,35 7,13 5,31 9,46 6,90 10,97 9,61 0,10 0,10 10,39 10,35 10,64 4,82 11,37 6,93 5,83 4,24 7,79 7,17

2ª Fase 1994 1998 7,33 8,44 5,89 8,85 5,60 7,08 6,38 9,47 11,03 10,77 0,10 0,09 11,60 10,67 3,91 5,16 6,81 6,66 0,14 9,37 7,15 14,36

3ª Fase 1999 2002 8,26 9,58 9,70 7,39 6,66 6,05 9,25 9,79 12,51 10,83 0,08 0,93 11,20 10,01 4,45 0,81 6,05 5,25 10,89 12,39 13,25 10,27

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 39. (*) Luxemburgo não apresenta dados referentes a este indicador nas bases de dados da OCDE e EuroStat.

A análise das diferentes fases de implantação da UEM relativas à Formação Bruta de Capital Fixo, na Tabela 6 revela que somente Espanha, Grécia e Luxemburgo apresentam elevação dessa capacidade. Tabela 6: Formação Bruta de Capital Fixo como porcentagem do PIB, valor médio anual, por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). País

1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase Variação % 1990-1993 1994-1998 1999-2002 1990-2002 Alemanha 23,01 21,59 20,31 -19,44 França 19,61 17,35 18,56 -11,71 Itália 21,08 19,11 20,46 -5,04 Espanha 23,34 21,69 25,68 3,86 Países Baixos 21,96 21,43 21,48 -12,10 Grécia 20,73 18,58 22,46 6,33 Bélgica 21,14 20,19 20,50 -15,32 Portugal 24,52 24,39 26,87 -3,38 Áustria 24,39 24,28 23,37 -7,98 Finlândia 22,20 17,94 19,61 -33,37 Irlanda 16,63 18,82 22,58 18,40 Luxemburgo 21,59 20,81 22,33 4,18

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 40.

Já os dados desagregados por área de investimento mostram que os investimentos ocorridos na Grécia durante o 39 40

Idem. Idem.

32

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

período

de

implantação

da

UEM,

se

concentraram

em

equipamentos de transporte como navios e aviões (de 10% do total de FBCF em 1990 para 17% em 2002)41, em segundo lugar, o país apresentou aumento no investimento em máquinas, equipamentos e infraestrutura (ambos com aumento de 3% na participação do total no período analisado). No caso da Espanha, ocorreu uma elevação do investimento para ampliação de áreas cultivadas e para exploração de produtos de origem animal (de 33% do valor total da variável em 1993 para 45%, em 2002). Por fim, Luxemburgo ampliou o investimento nos setores de construção de infraestrutura que apresentavam uma participação de 36% em 1995, e de 45% em 2002.

Políticas Fiscais Em conformidade com os “critérios de convergência” constantes do Tratado que Institui a Comunidade Europeia. Tais critérios receberam o nome de “Critérios de Copenhague”, conforme citado anteriormente. Assim, os países que desejassem adotar a moeda única deveriam, segundo o 4º critério, apresentar déficit orçamental inferior a 3%. Na Tabela 7 observam-se os esforços empreendidos pelas políticas fiscais no sentido de aproximar seus gastos com a arrecadação, e desse modo, reduzir o déficit das contas públicas.

Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/ acesso em 15-05-2013. 41

33

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 7: Contas do Governo, média anual em porcentagem do PIB, por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). 1ª Fase: 2ª Fase: 3ª Fase: 1990 a 1993 1994 a 1998 1998 a 2002 Arrecadação Gasto Arrecadação Gasto Arrecadação Gasto Alemanha 44,06 46,89 45,55 49,59 45,37 47,22 França 47,71 51,84 49,80 53,98 50,14 52,21 Itália 43,58 54,34 45,47 51,30 44,82 47,14 Espanha 36,48 45,75 37,52 43,27 38,42 39,17 Países Baixos 51,58 55,31 47,37 50,72 45,44 45,44 Grécia 30,80 43,50 38,38 44,93 41,77 45,83 Bélgica 46,16 53,63 48,34 51,73 49,39 49,52 Portugal 35,45 42,00 37,20 41,46 38,66 42,33 Áustria 50,52 53,49 51,22 55,08 50,49 51,83 Finlândia 55,85 58,16 55,78 58,94 53,76 49,25 Irlanda 41,41 44,18 39,18 39,37 34,95 32,99 Luxemburgo 40,54 38,99 42,92 40,30 43,51 39,12 País

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 42. Os esforços no sentido de atender os critérios de conversão também podem ser observados na Tabela 8, com os valores médios anuais das taxas que os países adotaram durante as três fases de implantação da UEM. Merecem destaque os aumentos efetuados pela Grécia (passando de taxas médias de 27% na primeira fase para 33,65% na terceira). Em contra partida, a Alemanha manteve suas taxas inalteradas, em torno de 36%. Já países como Bélgica, Países Baixos e Irlanda, ao contrário dos demais, diminuíram as mesmas em torno 2% para o primeiro e 4% para os outros dois, no entanto atingindo o equilíbrio das contas públicas na terceira fase, como visto na Tabela 7. Tabela 8: Taxas como percentual do PIB, valores médios anuais, por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002) 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase 1990-1993 1994-1998 1999-2002 Alemanha 36,17 36,74 36,68 França 42,39 43,82 44,29 Itália 39,53 41,21 41,76 Espanha 32,96 32,60 34,19 Países Baixos 44,45 41,07 38,80 Grécia 27,05 31,28 33,65 Bélgica 42,22 44,03 44,75 Portugal 28,25 29,67 30,88 Áustria 40,92 42,85 43,83 Finlândia 44,61 46,41 45,64 Irlanda 33,35 32,30 29,63 Luxemburgo 34,91 38,03 39,12 País

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 43.

42 43

Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012. Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

34

A depreciação dos títulos públicos de longo prazo pode ser observada na Tabela 9. Apesar de todos os países do grupo apresentarem quedas significativas da remuneração de tais títulos, destaca-se principalmente Portugal, Espanha, Itália e Grécia, conhecidos como “os países do grupo do Sul”. Tabela 9: Média anual da remuneração dos títulos públicos de longo prazo (10 anos), por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase 1990-1993 1994-1998 1999-2002 Alemanha 7,88 6,03 4,83 França 9,09 6,69 4,90 Itália 12,82 8,77 5,13 Espanha 13,11 9,32 5,05 Países Baixos 8,03 6,03 4,97 Grécia 24,91 14,28 5,71 Bélgica 8,80 6,44 5,12 Portugal 13,74 8,35 5,14 Áustria 8,05 6,18 5,07 Finlândia 12,26 7,94 5,01 Irlanda 9,02 6,91 5,06 País

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados da EUROSTAT44.

Tal comportamento reflete a padronização das políticas monetárias no cumprimento das exigências para a unificação monetária, mais propriamente o segundo critério de convergência que estipulavam taxas de juro de longo prazo não superiores a 2% das taxas dos três países membros que obtivessem melhor desempenho econômico no período.

Comércio Internacional Um dos objetivos principais da integração econômica consiste no aumento das transações comerciais entre os países membros do grupo. Assim, uma análise do comércio externo dos países pertencentes à Área do Euro na sua fase de implantação da moeda única (1990-2002) pode ser observada na Tabela 10. O volume de transações de comércio exterior é, sem duvida, dominado pelo grupo dos países da União Europeia. Ao longo das três fases de implantação da UEM, tem-se uma intensificação 44

Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/ acesso em 22/10/2012

35

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

dessas transações por parte de praticamente todos os países do grupo. Já o comércio interpaíses da Área do Euro atinge um patamar de equilíbrio ao final do período, comprovando a eficácia das medidas adotadas para estabelecimento do mercado único. A única exceção a destacar é o caso da Grécia, que perde espaço para suas exportações nos países do grupo e também diminui o ritmo de suas importações dentro da Área do Euro. A análise da evolução das transações dos países membros da Área do Euro em relação aos Estados Unidos permite observar um crescimento para a maioria dos países do bloco, seja em termos de exportações, seja de importações, destacando-se a Irlanda nesse contexto. As relações comerciais com o resto do mundo mostram queda de transações em geral, o que pode ser justificado pelas medidas de estímulo às trocas dentro do bloco europeu. Um olhar mais detalhado para as quatro maiores economias do grupo45 analisado permite destacar que a Alemanha caminha para um maior déficit comercial com os países da Área do Euro, já que aumenta suas importações desse grupo, mas não altera significativamente suas exportações para o mesmo grupo. Já a França tem uma melhora nesse quesito, na medida em que aumenta suas transações de venda para os EUA, diminuindo suas compras desse país. A Itália apresenta uma pressão de aumento do seu déficit comercial com a Área do Euro e também com a União Europeia ao aumentar suas importações desses grupos. Por fim, a Espanha caminha em direção a um saldo comercial crescente com os EUA e um déficit comercial com a Área do Euro.

As quatro maiores economias do grupo incluem Alemanha. França, Itália e Espanha e o critério para sua escolha recai sobre a participação no total do grupo, em termos de PIB. A média no período (1990-2002) da participação do país no PIB do grupo que formaria a Área do Euro ficou da seguinte forma: 1º.Alemanha (29,4%), 2º França (20%), 3º Itália (19,7%), 4º Espanha (10,8%), 5º Países Baixos (5,7%), 6º Bélgica (3,7%), 7º Áustria (2,8%), 8º Grécia (2,6%), 9º Portugal (2,3%), 10º Finlândia (1,6%), 11º. Irlanda (1,2%) e 12º Luxemburgo (0,3%) segundo dados da OECD disponíveis no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 05-12-2012. 45

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

36

Tabela 10: Média anual da composição percentual de importações e exportações por destino, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002). País

Parceiro

EUA Alemanh União Europeia a Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia França Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Itália Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Espanha Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Países Baixos Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Grécia Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Bélgica Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Portugal Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Áustria Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Finlândia Área do Euro (12) Resto do Mundo (*) EUA União Europeia Irlanda Área do Euro (12) Resto do Mundo (*)

Importações 1990199419991993 1998 2002 6,49% 7,20% 8,00% 53,18% 54,49% 59,75% 39,68% 37,58% 40,54% 40,34% 38,31% 32,25% 8,73% 8,41% 8,63% 55,84% 56,94% 63,33% 44,96% 44,76% 50,71% 35,43% 34,65% 28,03% 5,31% 4,88% 4,91% 58,50% 59,81% 62,36% 48,71% 47,39% 50,09% 36,19% 35,31% 32,73% 7,76% 6,38% 4,85% 60,26% 63,56% 66,42% 50,19% 52,26% 55,44% 31,98% 30,06% 28,73% 7,91% 8,66% 10,34% 52,83% 50,58% 52,03% 40,29% 35,80% 37,37% 39,27% 40,76% 37,64% 3,82% 3,60% 4,13% 64,15% 66,27% 61,50% 53,56% 53,36% 49,71% 32,03% 30,13% 34,37% 6,14% 6,94% 7,16% 73,42% 73,56% 71,94% 60,68% 60,10% 58,90% 20,45% 19,50% 20,90% 3,38% 3,21% 2,87% 70,81% 72,78% 77,97% 61,06% 63,48% 68,94% 25,81% 24,01% 19,15% 4,16% 5,34% 78,03% 77,65% 64,91% 62,43% 17,80% 17,01% 6,74% 7,51% 7,08% 58,30% 58,17% 59,18% 32,93% 31,61% 32,93% 34,97% 34,32% 33,74% 15,12% 16,51% 15,95% 66,65% 55,67% 57,76% 21,22% 18,04% 20,53% 18,22% 27,82% 26,29%

Exportações 1990199419991993 1998 2002 6,64% 7,96% 10,19% 56,36% 56,00% 62,82% 41,76% 37,30% 42,66% 37,00% 36,03% 26,98% 6,54% 6,59% 8,37% 58,63% 58,10% 65,86% 46,39% 43,82% 50,08% 34,83% 35,31% 25,77% 7,30% 7,78% 9,65% 60,54% 58,49% 61,38% 49,54% 44,86% 46,28% 32,16% 33,73% 28,96% 5,09% 4,35% 4,49% 69,80% 69,90% 73,51% 59,24% 58,09% 60,04% 25,11% 25,75% 22,00% 3,62% 3,47% 4,82% 62,18% 60,65% 72,68% 49,29% 46,54% 55,66% 34,20% 35,88% 22,50% 4,92% 4,30% 5,51% 71,26% 64,82% 60,33% 54,87% 45,09% 35,84% 23,82% 30,88% 34,16% 4,34% 4,49% 6,10% 78,50% 78,65% 77,14% 66,94% 65,43% 62,48% 17,16% 16,87% 16,76% 4,13% 4,74% 5,54% 77,84% 77,48% 82,10% 60,63% 61,11% 67,09% 18,03% 17,78% 12,35% 3,34% 4,98% 73,99% 75,04% 55,70% 54,92% 22,67% 19,98% 6,35% 7,13% 8,33% 62,53% 58,52% 60,35% 33,36% 28,81% 32,64% 31,11% 34,35% 31,32% 8,53% 10,17% 16,79% 71,73% 65,95% 64,23% 37,23% 36,97% 37,92% 19,74% 23,87% 18,98%

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE46. (*) Exclui os países da UE e EUA.

46

Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-05-2013.

37

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

3 Algumas Considerações A formação da Área do Euro, ao que parece, consistiu etapa

intermediária

integração

do

de

território

um

processo

europeu,

pelo

mais

amplo

que

se

de

pode

depreender da documentação observada no período entre o pós-guerra

(1945-1973)

desmoronamento”

e

a

(1973-1991).

chamada

“era

Precedida

por

do uma

integração comercial, e como fechamento de um processo de

padronização

das

instituições

ligadas

às

relações

econômicas, a integração monetária representada pela criação do euro daria consistência ao ambiente para uma então provável integração política e territorial da Europa. As vantagens oferecidas por este cenário aos grupos de interesse econômico envolvidos no ambiente europeu seriam óbvias: ampliação do volume de comércio, possibilidade de aumento na produtividade de fatores produtivos, expansão e integração de mercado e a criação de um ambiente institucional sólido para os negócios interregionais. Por outro lado, a integração econômica comprometeria gravemente os interesses localizados dos mesmos grupos, em vários aspectos, eliminando os custos de transação e ganhos de

escala,

além

de

afetar

a

autonomia

de

política

econômica dos Estados-nação. Ainda que a vontade de reconstruir algo em conjunto fosse bastante forte, e até mesmo reconhecível como honesta, a autonomia dos Estados-nação derivados das contingências da Era dos Impérios (1870–1914) ainda era-lhes muito cara.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

38

Como resultado, no processo de integração europeia, existiram três tipos de países, a saber: (1) países interessados em uma integração ampla e funcional; (2) países não interessados na integração a princípio, mas suscetíveis se colocados em posição vantajosa; e (3) países interessados em uma integração, ainda que secundária, à Área do Euro. Os países do primeiro tipo, associados aos países do segundo, constituíram o arcabouço institucional do euro, controlando o processo político de construção de acordos e normas ligadas à união monetária. Restaria aos países do terceiro tipo a anuência a uma inserção com representatividade e poder de barganha reduzidos no sistema. Assim foi construído o processo de instituição do euro. Países como Alemanha e França dominaram o processo positivo. Em sentido oposto, Inglaterra e Dinamarca, além da Suécia, repuseram contraponto a este, obtendo diferentes graus

de

autonomia

em

um

processo

originalmente

concebido como universal. Um terceiro grupo simplesmente aquiesceu à agenda resultante do embate entre esses dois lados. O resultado foi um processo composto por três etapas, as quais podem ser caracterizadas da seguinte maneira: I: Ajuste (1990–1993). Tal etapa se caracterizou pelo ajuste das cestas de comércio exterior e de política fiscal, com o objetivo de padronizar os ritmos de crescimento dos países participantes da Zona de União Monetária. II: Convergência (1994–1998). Uma vez realizado o conjunto de ajustes comerciais e fiscais, os países convergiriam suas políticas cambiais, monetárias e de investimento.

39

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

III: Implantação (1999–2002). Etapa caracterizada pela criação da moeda única, e consolidação das funções do Banco Central Europeu. No período 1990–2002, de modo geral, é possível afirmar que houve financeirização e uma chamada “imobilização ativa” do produto. De maneira geral, ocorreu redução do setor primário. Aparentemente, as políticas de ajuste e convergência

monetária

nivelaram

o

dinamismo

das

economias por baixo.

Quanto ao desenvolvimento do

produto,

geral

em

caráter

também,

observa-se

um

refreamento do setor primário na fase I (1990–1993); uma redução no setor industrial, que parece resultante de uma primeira competição predatória pelos mercados abertos, na fase II (1994–1998), com financeirização plena, ou seja, predomínio completo do setor financeiro, na fase III (1999– 2002). Durante a implantação do euro, apenas Áustria e Alemanha têm observado uma redução na participação do consumo privado no Produto Interno Bruto. Isso significaria, à primeira vista, que a estrutura de composição do produto, quanto aos agregados, teria criado apenas espaço para o governo ou para os estoques de capital naqueles dois países. Mas, a observação dos dados fiscais indica que tal não se refletiu em aumento da participação do governo na composição do PIB de Alemanha ou Áustria, ou mesmo na formação bruta de capital. É provável que tal redução tenha relação com o comércio externo à Área do Euro. Ao final do período de implementação da moeda única, alguns países – notadamente Portugal e Grécia – sofreram redução em suas taxas de poupança líquida. Isso indica um movimento tendencial rumo à estagnação. Nesse

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

40

sentido, outros países apresentaram uma significativa queda em sua formação bruta de capital, como Alemanha e França, por exemplo, o que reforça a construção do quadro de estagnação então presente. A criação da Área do Euro parece ter servido a um propósito mais imediato, qual fosse, o de intensificar as relações comerciais entre os países integrantes. Há uma concentração progressiva da demanda em países como Alemanha e França, entre 1990 e 2002. Contudo, não houve resolução de problemas que se faziam presentes desde os anos 1970 na economia europeia – o desemprego e a redução progressiva da rede de proteção social derivada do Estado de Bem-Estar – os quais foram apresentados pelos governos

dos

países

membros

como

resolvíveis

pela

integração econômica e monetária. A taxa de desemprego permaneceu na casa dos dois dígitos por todo o período 19902002. Tais resultados levaram à busca por novas soluções e o Tratado de Lisboa, assinado em 2007, traria como prioridade, políticas relativas à capacitação de mão de obra e criação de emprego.

41

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Rui Lourenço Amaral de. Portugal e a Europa: ideias, factos e desafios. Lisboa:Edições Sílabo, 2005ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997. ARRIGHI, G. SILVER, B. (orgs). Caos e Governabilidade no Moderno Sistena Mundial. Rio de Janeiro: Contraponto/UFRJ, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Europa. Uma aventura inacabada. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2006 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo. São Paulo: Editora Unesp, 2003. BEREND, I. From the Soviet Bloc to the European Union. The Economic and Social Traansformation of Central and Eastern Europe since 1973. New York: Cambridge University Press, 2009. BLAIR, A. The European Union since 1945. London, Pearson, 2nd ed, 2010. BOYD, Andrew and Frances. Western Union. A study of the Trend Toward European Unity. Washington USA: Public Affairs Press, 1949 DAHRENDORF, R. Reflexões sobre a revolução na Europa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991 DEDMAN, M. J. The origins and development of the European Union, 194595.London: Routledge, 1996. DINAN, Desmond. An ever closer union? And introduction to the European Community. Colorado, USA: Lynne Rienner, 1994 DUNCAN, Richard. The Dollar Crisis, causes consequences, cures. USA:Willey Editorial, 2003 EICHENGREEN, Barry. A Globalização do Capital – Uma História do Sistema Monetário Internacional. São Paulo: Editora34, 2000 FERRER, A. Historia de la globalización V.II. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económico, 1998 FOX, J. O Mito dos Mercados Racionais. Uma história de risco, recompensa e decepção em Wall Street. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. GUERNOT, Ulrike et alli. União Europeia: Transtornos e Alcance da Integração Regional.São Paulo: Fundação Adenauer, 2001 HABERMAS, Jürgen. The Crisis of The European Union, a response. Cambridge, UK: Polity Press, 2012. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914 – 1991. Lisboa: Perspectiva, 1995 HOBSBAWM, E. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 KRUGMAN, P. E OBSTFELD, M. Economia Internacional – Teoria e política. 6ª. Ed. São Paulo: Pearson, 2005 LAQUEUR, Walter. After The Fall – The end of the european dream and the decline of a continente. New York, USA: St.Martin‟s Press, 2012. MARSH, D. The Euro – the battle for the new global currency. USA: Yale University Press, 20. e GONZÁLEZ, C.R. The European Union, current problems and prospects. London: Palgrave Macmillian, 2007. MCGIFFEN, S. The European Union. A Critical Guide. London: Pluto Press, 2005. MILWARD, A.S. The European Rescue of the Nation State. London: Routledge, 1992. SÖDERSTEN, B. Economia Internacional. Rio de Janeiro: Interciência, 1979. SOUZA, L. Contas Nacionais. São Paulo: LCTE, 2007. STAAB, A. The European Union explained. 2Ed. Bloomington: Indiana University Press, 2011.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

42

STIGLITZ, Joseph E., O mundo em queda livre: os Estados Unidos, o Mercado Livre e o naufrágio da Economia Nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 THORSTENNSEN, Vera.Tudo sobre Comunidade Europeia.São Paulo: Brasiliense, 1992 VALÉRIO, Nuno. História da União Europeia. Lisboa: Presença, 2010 WINTERBERG. Jörg. O debate sobre a União Econômica e Monetária Europeia. São Paulo: Adenauer, 1997. Obras de Referência: COMISSÃO EUROPEIA. Direcção-Geral da Imprensa e Comunicação. “Como Funciona a União Europeia. Guia das instituições da União Europeia” IN: A Europa em Movimento, Jul. 2007 COMUNIDADES EUROPEIAS, COMISSÃO. A Europa passo a passo, Cronologia da Comunidade Europeia, 6ª.Ed. Luxembrugo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1987. COMISSÃO EUROPEIA. Direcção-Geral da Imprensa e Comunicação. “Uma globalização benéfica para todos. A União Europeia e o comércio mundial” IN: A Europa em Movimento, Dez. 2002. Estatísticas Oficiais da União Europeia: www.eurostat.net OCDE: http://www.ocde.org União Europeia: http://europa.eu Banco Central Europeu: http://www.ecb.int/stats/html/index.en.html

43

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Uma Interpretação da Revolução Burguesa no Brasil na Visão de Florestan Fernandes1 Glinzer Santa Cruz da Silva Costa2 RESUMO A revolução burguesa no Brasil ocorreu entre o último quartel do século XIX e o primeiro quartel do século XX, seus agentes mais destacados foram o fazendeiro cafeicultor e o imigrante estrangeiro, seu locus foi nas regiões brasileiras do Vale do Paraíba e Sudeste, o focus foram os novos comportamentos políticos, culturais e econômicos que surgiram dentro da nova estrutura econômica colonialista periférica e dependente do Brasil. A forma interpretativa do sociólogo Florestan Fernandes sobre a revolução burguesa no Brasil colonial é integrativa e totalizadora entre os agentes, objetos e processos na ordem econômica, política, cultural e sociológica; todavia, este texto ressalta alguns conteúdos econômicos de forma evolutiva, sem desconsiderar seus agentes nos processos mais integradores. Palavras-Chave: Revolução, Classes Sociais, Brasil, Florestan Fernandes

ABSTRACT The bourgeois revolution in Brazil took place between the last quarter of the century XIX and the first quarter of the century XX, his most outstanding agents were the farmer coffee-grower and the foreign immigrant, his locus was in the Valley of Paraiba and in the South-east Brazilians, the focus it was the new political, cultural and economical behaviors that appeared inside the new economical colonialist periphery and dependent structure of colonial Brazil. The interpretative form of the sociologist Florestan Fernandes on the bourgeois revolution in colonial Brazil is integrative and tantalization between the agents, objects and processes in the economical, political, cultural and sociological order; however this text emphasizes some economical contents of evaluative form, and his agents do not disregard in more integrative processes. Keywords: Revolution, Social Classes, Brazil, Florestan Fernandes

1. INTRODUÇÃO

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976, (2a ed.), (Biblioteca de Ciências Sociais). Esta primeira parte analisa apenas o “Capítulo 3: O desencadeamento histórico da revolução burguesa” (p. 86-145). Na segunda parte será feita a análise do “Capítulo 4: Esboço de um estudo sobre a formação e desenvolvimento da ordem social competitiva” (p. 145197). Texto apresentado em 02/07/2013 e aprovado em 10/09/2013. 2 Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC/Universidade Federal de Alagoas – UFAL; Doutor em História Econômica pela Universidade de Oviedo (Espanha). 1

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

44

As alterações políticas que condicionaram a reorganização da sociedade e da economia brasileira a partir da última metade do século XIX, indo até a primeira metade do século seguinte, caracterizaram a revolução burguesa no Brasil na visão do sociólogo Florestan Fernandes [1976]. Entretanto, o sistema econômico colonial brasileiro se transformou, desde o início daquele marco histórico, numa espécie de capitalismo comercial tupiniquim, quando inseriu o país na organização da economia mundial através de novos padrões voltados para atividades e operações mercantis nos setores de importações e de exportações, nos mecanismos monetários, do crédito, financeiro e bancário conforme constatou Florestan Fernandes. Todavia, esses novos padrões que qualificavam um novo sistema da economia colonial brasileira se formaram através do surgimento de novas organizações empresariais e econômicas e o seu comportamento estava dotado de modernas tecnologias, de capitais e de recursos humanos especializados. Surgiram,

também,

substratos

sociais,

através

das

transformações na configuração da sociedade local, rearranjos sociais se conformaram com os novos agentes externos - os imigrantes estrangeiros - quando em conjunto criaram novos paradigmas econômicos e sociais similares aos das economias centrais e mais focados nas atividades mercantis de exportação e importação. O autor faz uma análise sociológica da revolução burguesa no Brasil de forma integrativa e totalizadora; entretanto, o enfoque dado neste texto está mais voltado para os conteúdos econômicos evolutivos, considerando seus agentes, os objetos e os processos integradores. Os principais agentes econômicos internos e externos – o fazendeiro do café e o imigrante, respectivamente – construíram um sistema colonial, todavia, moderno porque inseriu a economia colonial local na economia mundial através de um sistema de

45

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

poder: o econômico, voltado para o lado mercantil e o poder político coercitivo próprio da aristocracia agrária. As vantagens econômicas

dessa

aristocracia

eram

auferidas

através

do

desenvolvimento econômico urbano, então emergente3. Através da burocratização da dominação patrimonialista, o poder político, também, resultou na elevação do status senhorial, pela captação do excedente econômico, que se destinava ao crescimento horizontal da grande lavoura exportadora de café. E a redistribuição da renda se dava entre a estrutura capitalista do sistema de mercados e a divisão do trabalho social. O perfil econômico do burguês cafeicultor resultou num agente gestor da grande lavoura do café, que era privilegiado pelo capitalismo

comercial

e

financeiro.

Isso

ocorreu

concomitantemente com uma evolução estrutural do meio social brasileiro. A concentração, a centralização do capital comercial e financeiro aparecia em conexão com a concentração do capital industrial, posteriormente, à década de trinta, e nesse caso o principal agente passa a ser o imigrante estrangeiro. Dentro ainda da dimensão histórica da revolução burguesa no Brasil – que vai de 1890 a 1930 -, uma nova mentalidade capitalista se cristaliza internamente com o ingresso do imigrante, quando a sua racionalidade econômica, provocava mudanças na tradição cultural, na desagregação da ordem escravocrata e senhorial, na alteração da estratificação estamental da sociedade, na especialização econômica, na introdução de novos métodos e técnicas

de

análise

econômico-financeira

e,

finalmente,

as

conexões internacionais deram o caráter econômico à explicação de fatos sociológicos, p.ex., o padrão do equilíbrio do poder político, as ideologias das elites nativas no poder, etc. Finalmente, a análise segue a forma do discurso do autor, sua estrutura, o seu raciocínio, sua dialética histórica e a sua lógica na interpretação dos eventos sociológicos, políticos, culturais no Para compreender a geração e a apropriação do excedente e a manifestação material da existência de um sistema de poder nas sociedades capitalistas veja FURTADO, Celso. Prefácio à nova Economia Política. São Paulo, Paz e Terra, 1976, (p. 29-30). 3

46

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

cenário e estado da arte econômica, isso caracterizou a burguesia no Brasil colonial. Convém ressaltar que os comentários interpretativos da obra de

Florestan

Fernandes

estão,

metodologicamente,

no

desenvolvimento do texto e nas notas de rodapé, evidentemente seguindo a cronologia e a sua dialética, quando o autor aborda os agentes e as categorias econômico-sociais integrados a processos sócio-econômicos. 2. A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL: LAÇOS E TRAÇOS POLÍTICOS, CULTURAIS E ECONÔMICOS O desenvolvimento histórico da revolução burguesa no Brasil conforme o pensamento de Florestan Fernandes [1976] ocorreu, mais profundamente, por alterações políticas, sendo que estas implicaram na reorganização da sociedade e da economia. Todavia, o país inseria sua economia colonial no mercado mundial, ao mesmo tempo, em que criava seus mercados internos. Isso equivalia

dizer

que

aproximadamente, econômica

das

o

modelo

colonial

igual,

ou

equivalente,

economias

centrais

vigente à

daquela

aqui

era,

organização época

e

se

processava no seguinte período: o fim do século XIX até o início do século XX4. Todavia, a revolução burguesa na economia colonial brasileira se deu, mais acentuadamente, por forças controladoras de fora nas relações de negócios de exportação e de importação [Fernandes, 1976:89]. Entretanto, o país com sua economia colonial e na condição de economia periférica e dependente favoreceu a criação de Para FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Rio de Janeiro, Vozes, 1997, outra obra de sua autoria, este autor afirma que o período colonial brasileiro compreende a seguinte dimensão temporal, ou seja, vai do século XVI até o início do século XIX. Quando no primeiro decêndio do século XIX a família real se transfere para o Brasil, como conseqüência da invasão de Portugal por tropas francesas – naquela época surgem os primeiros ofícios administrativos e financeiros, criados em núcleos urbanos de atividade intelectual, em função de contatos com os centros europeus de produção artística, cultural, científica, intelectual e técnica [p.17]. Enfatize-se que o conceito de Sociologia para Fernandes é a análise de fenômenos histórico-culturais e econômicos [p.25]. Sobre os traços burocráticos que perpassaram o período colonial brasileiro e chegaram à república veja COSTA, Glinzer S.C. da Silva. “A gestão pública brasileira, alguns elementos inovadores que perpassam desde o Brasil Colonial até o Brasil Republicano”. São Paulo, Revista de Economia Política e História Econômica, ano 08, n. 25, jun/2011, p. 72-86. Veja também a seguir a NR n. 6. 4

47

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mercados internos (a partir daquele período) e esses ocorreram geralmente nos centros urbanos, dado a dinamicidade da sua economia primário-exportadora com as relações econômicas internacionais. Enquanto o núcleo vital da economia continuava sendo o setor primário-exportador e que produzia para os mercados interno e externo, o fator mais importante desse setor – o voltado para o mercado externo - era a especialização na produção agrícola para a exportação do café. No caso brasileiro a economia produzia para fora

e

consumia

de

fora.

Essas

circunstâncias

restringiram

consideravelmente a amplitude e a intensidade do campo dentro do qual se processou, inicialmente, a absorção dos modelos de organização da vida econômica que podiam ser transplantados [Fernandes, 1976:87]. No processo da geração do excedente econômico em novos setores dinâmicos da economia brasileira, em atividades de exportação e importação, a partir dos mercados internos emergiu um

capitalismo

moderno

e

extracolonial,

conforme

afirma

Fernandes [1976:88]. Como também permitiu que uma classe senhorial, típica do colonialismo vigente, desse lugar a uma moderna burguesia que acumulou e aplicou a apropriação do excedente

num

novo

padrão

de

consumo

social

e

em

investimentos no setor produtivo da cafeicultura e noutros setores econômicos

emergentes,

comunicações,

além

dos

tais

como

setores

o

de

financeiros,

transportes bancários,

e de

comércio e serviços diversos5. Veja RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2006; para este autor, (...) no conjunto dessa população colonial (apostólica e romana), destaca-se uma camada superior, desligada de tarefas produtivas formada por três setores letrados, tais como: uma burocracia colonial comandada por Lisboa; outra religiosa; e a última que viabilizava a economia de exportação [p.112]. A camada ligada ao setor produtivo detinha o sistema de fazenda e alcançou, com a implantação das grandes lavouras de café, um novo auge só comparável ao êxito dos engenhos açucareiros. Seu efeito crucial foi reviabilizar o Brasil como unidade agro-exportadora do mercado mundial e como um próspero mercado importador de bens industriais [p.335]. O que caracteriza e tipifica essa camada é a oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas deformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da renda nacional [p.364]. Seu agente ou sujeito é o velho senhor de engenho que é substituído por um patronato gerencial de empresas que caíram em mãos de firmas bancárias. Os filhos bacharéis dos antigos senhores, todos eles 5

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

48

O que caracterizou esse modelo colonial brasileiro foi a sua forma de capitalismo dependente, ou seja, o conjunto de uma estrutura de mercado heteronômico – um sistema de ética segundo o qual as normas de ação provêm de fora –; e autonômico, isto é, um sistema que possui relativa autonomia. Entretanto, mais importante ausência de conteúdo que poderia completar esse conceito

é

a

inexistência

de

projetos

de

desenvolvimento

econômico numa completude para a moderna burguesia brasileira emergente. Por outro lado, a autonomização política significa para Fernandes dois conteúdos, no primeiro o domínio dos importadores europeus; no segundo a produção da grande lavoura exportadora. Dois eventos históricos anteriores à revolução burguesa no Brasil, que sem sombra de dúvida devem ter contribuído bastante com aquela revolução, foi a transferência da Corte Portuguesa para a colônia brasileira em 24 de janeiro de 1808 e após quatro dias à sua chegada à Bahia a abertura dos portos brasileiros às

citadinos, têm agora como as “fazendas” a cota de ações que restou da propriedade familiar e, sobretudo, o erário público de que se torna uma das principais clientelas [p.276]. Contudo na obra de PRADO JR., Caio. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1986, (33a ed.), para se compreender o caráter da colonização brasileira, (especificamente no capítulo 2), na Europa do século XV originam-se as empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores dos principais países, tais como, Portugal, Espanha, e a Itália, posteriormente, a França, Inglaterra, Holanda, Suécia e a Dinamarca. O comércio interno europeu era o que interessava; e esse seria abastecido por iguarias, metais preciosos, madeiras de construção ou tinturarias, peles de animais e a pesca, tal estado da arte ocorre entre os séculos XV-XVI. Nesse período, a idéia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum dos países citados, logo a colonização principia pelo estabelecimento de feitorias comerciais [p.14-15]. De forma resumida, o autor afirma: a empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas mantendo o caráter comercial, dá o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; logo a essência da nossa formação foi fornecer o açúcar, tabaco; mais tarde, metais preciosos; depois o algodão e, por fim, o café. Esse comércio reorganiza a economia e a sociedade da colônia brasileira, a partir dos seus caracteres de produtora e mercantil [p. 22-23]. Entretanto, para FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil.São Paulo, Editora Nacional, 1976, (14a ed.), contribuindo para a compreensão da colonização brasileira, ele argumenta através de um conjunto de fatores que contribuíram para o êxito da grande empresa colonial agrícola européia foi a inserção de uma mercadoria – o açúcar - em grande escala de produção num mercado de dimensão mundial – o mercado europeu, a partir do século XVI, quando Portugal desenvolveu tecnologias para sua produção nas ilhas do Atlântico [p. 9-12]. A etapa colonial fundamentada nesse processo de ocupação social e econômica se encerra na segunda metade do século XVII, quando Portugal perdia para o comércio oriental, desorganizado o comércio do açúcar, não dispunha de meios para defender o que lhe sobrara das colônias numa época de crescente atividade imperialista. Portugal compreendeu, assim, que para sobreviver como metrópole colonial deveria ligar o seu destino a uma grande potência, o que significaria necessariamente alienar parte da sua soberania. Os acordos concluídos com a Inglaterra em 1642, 1654 e 1661 estruturaram essa aliança que marcará profundamente a vida política e econômica de Portugal e do Brasil durante esses dois séculos seguintes [p. 32-38].

49

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

nações amigas, especialmente, ao comércio britânico, pondo um fim ao Pacto Colonial6. Todavia, os agentes econômicos que promoveram essa revolução burguesa foram o fazendeiro do café, antes o senhor rural, na dimensão histórica da burguesia brasileira representado por seu status social, conforme Fernandes [1976:103]. O outro agente foi o imigrante que aqui chegou fora do contexto do tradicionalismo, quer escravocrata, ou como uma mão-de-obra livre, porém, pertencente a especializada

uma divisão internacional para

o

setor

do trabalho mais

agropecuário.

Ambos

agentes

romperam com o passado colonial, anteriormente, controlado pela aristocracia agrária7. Entretanto,

os

agentes

dessa

aristocracia

agrária

e

cafeicultora das regiões brasileiras do Vale do Paraíba e do Sudeste, também, dispunham de recursos técnicos, financeiros, humanos e institucionais, economia

que

levaram

brasileira

no

à

reintegração

sistema

econômico

(grifo

nosso)

internacional.

da A

expressão reintegração completa a interpretação de Darcy Ribeiro sobre o que se passou após o ciclo da economia açucareira. Essa

A Carta Régia promulgada pelo Príncipe-regente de Portugal Dom João de Bragança foi assinada no dia 28 de janeiro de 1808, na Capitania da Baia de Todos os Santos, em Salvador, foi a primeira experiência liberal do mundo após a Revolução Industrial.(...). A carta marcou o fim do Pacto Colonial, o qual na prática obrigava a que todos os produtos das colônias passassem antes pelas alfândegas em Portugal, ou seja, os demais países não podiam vender produtos para o Brasil, nem importar matérias-primas diretamente das colônias alheias, sendo forçados a fazer negócios com as respectivas metrópoles. In: [acesso em mar/2013]. 7 Na formação do povo brasileiro de RIBEIRO [2006, op.cit.] o sistema de fazenda cafeicultora implantado no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, visava a produção de artigos para a exportação e substituiu as relações de solidariedade, de companheirismo e de compadrio do caipirismo pela única forma de relacionamento, as relações comerciais. O primeiro modelo empresarial das fazendas cafeicultoras é o modelo escravocrata, quando o fazendeiro ainda residia na propriedade, na vivenda senhorial em oposição à senzala. Somente na segunda metade do século XIX os cafeicultores se constituem numa oligarquia nacional com superpoderes. Esse segundo modelo é, relativamente, mais bem sucedido que o modelo da sucrocracia, p.q. controla todo ciclo produtivo do café até a exportação. As novas fazendas de café estruturadas para um novo sistema de colonato são monocultoras e extensivas no plantio do café, o fazendeiro – ora visto como empresário e também como barão do café – é um absenteísta, não mais reside na fazenda e sim na cidade, administra e dirige seus negócios à distância, por intermédio de gestores. O sistema de fazendas somente atingiu o êxito que havia atingido os engenhos de açúcar, cujo efeito crucial foi re-viabilizar o Brasil como unidade agro-exportadora do mercado mundial e como um próspero mercado importador de bens industriais [p. 352-353; veja também as pgs. 355, 357 e 362]. Por outro lado analisando o papel de outro agente da revolução burguesa no Brasil a imigração européia maciça coloca milhões de trabalhadores à disposição da lavoura comercial, essa nova massa vinha de velhas sociedades estratificadas e disciplinadas para o trabalho assalariado e que levaria alguns, posteriormente, à condição de pequenos proprietários [p. 351-352]. Noutra a obra do mesmo autor Gentidades. Porto Alegre, L&PM, 2011, ele no primeiro ensaio emblemático, desse livro, analisa Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e discute a sociedade patriarcal, sua formação econômicosocial e a sua configuração histórico-cultural, inclusive sob o ponto de vista crítico da ausência no aprofundamento da análise freyriana dessas categorias sociais [p. 11-30]. 6

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

50

nova aristocracia agrária vai se transformar, como afirma Fernandes [1976:93],

numa

espécie

de

sócio

menor

da

burguesia

patrimonialista [veja as NR´s n´s. 10 e 12]. O conceito de alto comércio, como conseqüência da inserção da economia colonialista brasileira na economia mundial se deu pela participação das agências empresariais, com técnicas de organização e comandadas por economias centrais além da transferência de tecnologias e capitais sem, contudo, possuir o caráter de uma relação entre matriz e filiais [veja a N.R. n. 8]. Ambos, os agentes econômicos, inseridos no ambiente de alto comércio, o fazendeiro do café e o imigrante, contribuíram com a extinção do estatuto colonial o que de alguma maneira com a formação de um Estado nacional independente. Novos padrões capitalistas resultaram na ruptura do antigo modelo colonial para um novo sistema de capitalismo comercial. Com a participação do agente o elemento burguês que surgiu desse novo cenário econômico substituindo grande parte da aristocracia agrária; todavia, uma parte dessa aristocracia sofreu algumas

mudanças

adaptativas

ao

novo

processo

sócio-

econômico, como exemplos, a grande lavoura de produção intensiva e extensiva, novas técnicas produtivas, a diversificação agrícola, o aporte de capitais externos, etc. E, comenta Fernandes que pela primeira vez emergia na cena histórica brasileira o verdadeiro palco do burguês, ou seja, num ambiente econômico de mercado que exigia situações e comportamentos compatíveis de ordem econômica, social e política com o espírito burguês e a concepção burguesa do mundo [1976:96]. Continuando, com a interpretação da revolução burguesa no Brasil esta é também, acima de tudo, uma interpretação sociológica [reveja a NR n. 4], por conta da substituição de papéis entre classes sociais, quando uma aristocracia agrária cedeu lugar e espaço para uma burguesia comercial. No nexo sócio-econômico da evolução do capitalismo no Brasil essa evolução se deu, entre outras áreas e setores, na diversificação agrícola monocultora do

51

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

café, com a criação e a consolidação dos mercados internos e com o surgimento de novos padrões de consumo social, pela transferência

cultural

das

unidades

econômicas

importadas

[Fernandes, 1976: 97]. O processo de modernização econômica estava ligado aos efeitos distintos, ou seja, ao controle externo sobre a vida econômica nacional e com isso se criou um pacto de lealdade e simpatia entre a pequena burguesia de comerciantes portugueses e proprietária de empresas importadoras e exportadoras de pequeno porte, especialmente, aquelas que participavam do alto comércio importador e de organizações de origem estrangeira. Todavia, essas organizações estrangeiras se relacionavam com o Brasil usando procedimentos econômicos liberais, eqüitativos e neutros, entretanto, sem uma gestão de estar lidando no contexto de uma relação matriz-filiais8. Por outro lado, a burguesia comerciante e a clientela que consumia os artigos importados e aquela burguesia regional dependiam dos negócios de exportação, ambos pertenciam aos estamentos senhoriais [Fernandes, 1976: 98]9. A ligação entre a burguesia nacional (nos seus diversos estamentos) e a aristocracia agrária com a burguesia empresarial estrangeira ocorria num clima de relacionamento de normalidade, pressupõe-se que um estado de liberalismo econômico regulava essas relações de comércio, com aparente vantagem comparativa

Para se entender essa relação econômica entre matriz-filiais, na forma de controle, transferência de capitais, difusão tecnológica, localização, apropriação do excedente produzido pelo trabalho, a mais-valia, os investimentos estrangeiros e o movimento de capitais associados às operações das empresas multinacionais etc. dentro de um paradigma próprio da ingerência hegemônica e econômica, o que não ocorria no Brasil, no cenário da revolução burguesa, até mesmo porque essa relação se materializa entre empresas transnacionais, geralmente da espécie jurídica das sociedades anônimas, e suas filiais; veja principalmente a obra de HYMER, Stephen. H. The International Operations of National Firms: A Study of Direct Foreign Investment. Cambridge, MIT Press, 1976. (Tese de doutorado, publicada postumamente). Esse autor faz a análise desse processo de relações entre matriz-filiais e aplica conceitos explicitamente da economia marxista. Também veja a interpretação dessa obra em COHEN, R.B. et.all. The Multinational Corporation: A Radical Approach. Papers by Stephen Herbert Hymer. Cambridge, University Press, 1979. 9 Em Max Weber (1864-1920) o conceito de estamentos é uma forma de estratificação social, com camadas mais fechadas que classes sociais, e mais abertas que castas; além de possuir menor mobilidade social. Geralmente caracteriza determinadas sociedades feudais (durante a Idade Média, período que compreende os séculos V-XV); todavia, esse grupo social não é propriamente um grupo homogêneo estratificado, porém possui poderes sobre determinados campos de atividades sociais e econômicas; in: [acesso em mar/2013]. 8

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

52

para o Brasil. É oportuno lembrar que esse liberalismo começou a declinar a partir do fim do século XIX, quando se aprofundou e se consolidou o sistema econômico do capitalismo financeiro no mundo como um todo. Dado esse estado da arte sócio-econômico a aristocracia agrária possuía mais vantagens, sob certos aspectos, com relação à burguesia de comerciantes e a nova burguesia agrária do café, porque aquela possuía o monopólio do poder político [Fernandes, 1976: 99]. Continua Florestan Fernandes explicando que a economia agrária patrimonial, mesmo como um setor de captação de um excedente econômico maior que aquele gerado pela burguesia do capital comercial, essa não obteve a eficiência econômica da burguesia

do

capital

comercial,

devido

ao

elevado

custo

econômico do status senhorial, o excesso de burocracia da dominação patrimonialista e a não inversão no seu quadro reprodutivo. O setor novo, como um setor da estrutura do capitalismo mercantil, onde ali ocorria uma acumulação estamental de capital, o estado heterônimo do sistema econômico global fazia com que esse se inserisse no sistema capitalista global e na dinâmica do capitalismo mercantil. Segundo o autor um setor novo (...) se conformava nos requisitos do capitalismo mercantil numa situação de mercado que combinava, nuclearmente, fatores heterônimos e autonômicos de integração e de diferenciação do sistema econômico global [Fernandes, 1976:101-102]. Pode-se entender que o perfil do fazendeiro do café não fazia parte da aristocracia rural, entretanto, era um estamento dentro daquela aristocracia, enquanto agente econômico, era forçado a operar com a riqueza fora do contexto econômico da grande lavoura; ou seja, cambiou o perfil de senhor rural patrimonialista pelo do grande proprietário [Fernandes, 1976:104]. Entretanto, com a revolução burguesa aquele personagem se identificou com os novos papéis e perfis – o de coronel e homem de

53

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

negócios -; como classe social assume uma aristocracia agrária, com novos e maiores poderes políticos e econômicos para reorganizar um Estado nacional independente, ideologicamente esse era o anseio dessa burguesia desde o fim do século XIX10. Segundo Fernandes [1976:106-108] o senhor rural não tomava consciência

nem

acolhia

as

considerações

e

as

pressões

puramente econômicas, decorrentes da dimensão burguesa de sua situação de interesses e dos mecanismos econômicos do mercado mundial. A imagem dessa aristocracia – o fazendeiro do café – pressupunha a heteronomia do senhor agrário e uma estrutura compatível com os interesses e os valores da aristocracia agrária. O homem de negócios, novo perfil que a aristocracia agrária assumiu e deu significado aos novos papéis econômicos no capitalismo comercial e financeiro no Brasil, como agentes são comerciantes, banqueiros, empresários do ramo imobiliário, dente os principais perfis. Afirma Fernandes [1976:109] esses fazendeiros eram, impropriamente falando, absentistas e lograva uma maior penetração na realidade econômica em virtude da participação de papéis especificamente capitalistas no setor urbano-comercial e financeiro.

Segundo KULA, Witold. Investigaciones históricas sobre la Historia de las empresas y renta nacional. Buenos Aires, Editor 904, 1977; o conceito de empresário é um organizador da atividade econômica e proprietário dos meios de produção [p. 4]. Em J. A. Schumpeter [1883-1950] um empreendedor, quando inovador, não necessariamente inventor. Para J. B. Say [1767-1832] um agente econômico em busca do lucro, pela aplicação do conhecimento em P&D na empresa; quase que se confunde com o empresário industrial, empreendedor, que cria produz e arrisca. Entretanto, para Luiz Carlos Bresser Pereira seu conceito de empresário complementa o conceito de Schumpeter e acrescenta a inovação e a acumulação de capital (...) ao considerar que a atividade do empresário capitalista é, além de inovar, a de integrar o desenvolvimento científico e tecnológico ao processo de produção, de lançar novos produtos no mercado, de partir em busca de novos mercados; e, ao mesmo tempo, de tomar as decisões finais sobre o processo de acumulação de capital, ou seja, onde, quando e quanto investir. Finalmente, para Fernando Henrique Cardoso [1964], unindo as interpretações de Schumpeter e Bresser Pereira, este autor inclui a ousadia, como uma conseqüência da fé, quando afirma que: toda criação é um ato de fé (grifo nosso), mesmo quando tenha a motiva-la a simples vontade de poder e riqueza. Entretanto, na sua obra CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964, o autor discute a relação entre o empresário industrial e o desenvolvimento econômico do Brasil, desde o final do século XIX, e enfatiza que o crescimento industrial brasileiro se deu em surtos descontínuos desde aquele período. Contesta PEREIRA, Luiz Carlos. “Empresários, suas origens e as interpretações do Brasil”. in: [acesso em mar/2013], com sua pesquisa quando apresenta a tese de que os empresários brasileiros se originaram de famílias imigrantes e não em famílias brasileiras ligadas ao café. Os empresários eram imigrantes que se dedicavam à importação. A sua discussão central é sobre as origens étnicas e sociais dos empresários; e não sobre as relações econômicas entre o café e o início da industrialização brasileira. 10

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

54

A evolução da fazenda de café no contexto da sociedade global foi o primeiro passo para a grande lavoura exportadora e, posteriormente, para a fazenda de café ideal, i.e., aquela autosuficiente economicamente, quando o fazendeiro passou a desempenhar novos papéis, tais como, a supervisão administrativa, a associação com intermediários, a geração de novos negócios consorciados ou não à cultura do café, ou fora do setor; e na última etapa levava o excedente econômico a financiar o crescimento horizontal

da

grande

lavoura

exportadora,

dentre

outras

destinações [Fernandes, 1976:110]11. O fazendeiro do café se transformou em agente econômico capitalista, quando se inseriu no marco histórico de 1890/1930 e somente passou a agir livremente como tal a partir de uma evolução na estrutura econômica e social que permitiu o surgimento de mercados internos, daí então o senhor agrário (ou fazendeiro de café) se projetou como essa espécie de agente gerando um novo processo de acumulação a partir dos interesses criados pela concentração do capital comercial e financeiro. Entretanto, afirma Fernandes [1976:112] quando o burguês emerge do senhor agrário, o fazendeiro de café já deixara de ser parcial ou preponderantemente, “homem da lavoura” ou produtor rural, e se convertera em puro agente, mais ou menos privilegiado, do capitalismo comercial e financeiro.

Comparando os cenários da revolução burguesa brasileira com os da revolução capitalista na Rússia, numa tentativa de aproximações interpretativas busca-se em LENIN, V. I. El desarrollo del capitalismo en Russia. Moscú, Editorial Progreso, 1979, (5ª ed.), alguns elementos conectivos, nesse trabalho o autor citado tem como objetivo geral explicar como se formaram os mercados internos para o capitalismo russo, deixando de lado inicialmente o mercado externo, num contexto teórico do início do século XX e levando-se em conta, exclusivamente, todos os aspectos econômicos desse processo nas províncias do interior da Rússia, da sua evolução capitalista na agricultura, na formação de uma agricultura mercantil-capitalista; entre as primeiras fases do capitalismo industrial, precisamente, e o surgimento da pequena indústria agrícola, como segunda fase. Posteriormente, o autor faz a análise do desenvolvimento da grande indústria mecanizada. Em resumo, o desenvolvimento do capitalismo russo se dá através da industrialização, a partir do início do século XX, quando a pequena produção mercantil manufatureira e agrícola, que se caracterizam pela técnica manual-artesanal nas empresas, pequenas fábricas, são absorvidas pela grande indústria mecanizada e automatizada. O papel histórico e progressivo do capitalismo russo pode, também, resumir-se em duas breves teses: no aumento da força produtiva do trabalho social e na sua socialização; noutra tese, nas distintas fases do desenvolvimento da economia nacional russa que não cabe aqui interpretá-las [p. 527-582]. Finalmente o autor chega a uma conclusão fatídica na sua análise do regime sócio-econômico e, conseqüentemente, da estrutura de classes na Rússia, naquele período: (...) partiendo de esta base económica, se comprende que la revolución em Rusia, es, enevitablemente, uma revolución burguesa [p. 15]. 11

55

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O fazendeiro de café quando se transferiu para as cidades, abandonando

o

estilo

de

vida

do

coronel

patriarcal12

e

patrimonialista, intensificou os traços da revolução burguesa diretamente na formação, consolidação e expansão da economia urbana, através de uma nova concentração e capitalização do capital comercial e financeiro [Fernandes, 1976: 118]. Entretanto, na opinião do autor, outra conexão da revolução burguesa no Brasil se deu naquele ambiente urbano, todavia com a concentração industrial do capital e o seu principal agente foi o herói imigrante [Fernandes, 1976:118:N.R.16]. A revolução burguesa extrapolou os interesses daquele homem de negócios, o fazendeiro do café, alcançou também uma nova dimensão econômica de interesse nacional e essa tendência se deu através de dois argumentos a seguir, cujo cenário é o fim do século XIX, primeiro pela formação e acumulação de capital do setor cafeeiro em atividades de exportação, especialmente, da grande lavoura mono exportadora; e em seguida, através da fusão do capital comercial com o capital financeiro, o que resultou aqui no Brasil, como um fenômeno diferente, ou seja, a criação de novos

Os ensaios de Oswald de Andrade (1890-1954) A crise da filosofia messiânica e A marchas das utopias representam o pensamento brasileiro no início do século XX tem como base a filosofia de Nietzsche. Contudo, o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) tem como objetivos gerais a valoração e o sentimento como crítica à origem das coisas sob o ponto de vista do valor da origem e a origem dos valores. Os hemisférios culturais que Oswald discute são dois o matriarcado, com a propriedade comum do solo e a condição mater dos filhos de direito materno, não se constituía uma classe social, isso ocorre na Idade Primitiva. Todavia, o primitivismo, sob o ponto de vista antropológico, poderia ser definido na superioridade do estilo de vida simples das sociedades pré-industriais, p.ex., conforme o estilo de vida das culturas africanas, pré-colombianas ou da Oceania. Outrossim, essa expressão somente passa a ser utilizada a partir do século XX no âmbito das artes de vanguarda e sua crítica. De alguma maneira o primitivismo brasileiro é um certo primitivismo do pintor surrealista André Breton (1896-1966). Também, uma aproximação ao marxismo, à psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939) e uma aplicação do pensamento filosófico de Nietzsche, assim o fez Oswald de Andrade para fundamentar o seu pensamento antropofágico, no início do século XX, indo até ao matriarcado de Pindorama. Nesse período, a propriedade privada era uma herança patriarcal linear, o que implicava na dominação de um grupo social, aquele que detinha a propriedade, e o papel do Estado era uma representação desse grupo. O segundo hemisfério é o patriarcado que se caracteriza pela posse da propriedade privada, nesse cenário o Estado é dominado por essa classe social através do poder político. Segundo Oswald de Andrade o patriarcalismo brasileiro é messiânico. O messianismo é uma crença divina: o envio de um ser divino libertador que libertará um povo oprimido. Na história do Brasil vários são os movimentos sociais fundados por líderes religiosos, inclusive com traços messiânicos desde os jesuítas; incluindo a burocracia da ordenação religiosa portuguesa; esses conteúdos lhes dão os caracteres de reacionário e conservador. Oswald de Andrade desprezava as elites brasileiras e como ideologia ele as identificava através do ódio de classe e o desprezo das elites pelo povo brasileiro, isso viria a ser uma das raízes da contracultura, mas esse é outro assunto e não será abordado aqui. Por fim, um texto que trata dos ensaios de Oswald de Andrade é o ensaio de PAIVA JR., Yago E. B. de. “Genealogia do matriarcado do Pindorama”. São Paulo, Revista Sociologia, ano iv, ed. 36, p. 54-59, ago/set 2011. 12

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

56

agentes monetários e financeiros, os bancos comerciais públicos e privados, o que se pôde denominar de capital bancário brasileiro13. Noutro aspecto da revolução burguesa no Brasil com o surgimento da classe social14 do fazendeiro de café, essa classe adotou uma nova mentalidade econômica, um novo estado de espírito mais racional no seu comportamento econômico, por exemplo, introduzindo uma nova forma de trabalho, o trabalho assalariado (em maioria do imigrante estrangeiro), todavia, novas técnicas em agronegócios e novos capitais (financeiro e físico), que resultaram em ganhos de escalas, custos reduzidos e mais produtividade no setor agrícola do café, especialmente, a partir do fim do século XIX, nas regiões brasileiras do Vale do Paraíba e do Sudeste. Continuando com a análise dos papéis dos agentes, com a criação desse novo setor dinâmico da economia ocorreram outras transformações, com relação ao agente, o senhor agrário, esse passou a ser um empresário capitalista, ou seja, através desse novo O sentido econômico do capital bancário é explicado por HILFERDING, H. O capital financeiro. São Paulo, Nova Cultural, 1985, (Os Economistas). Então para entendê-lo vamos ao crédito este é uma função alterada do dinheiro como meio de pagamento [p.85]. Já o capital mercantil (por se tratar, no caso, de transações entre capitalistas produtores) essa expressão também depende da expansão do processo de reprodução; então o capital produtivo é o conjunto de máquinas, matérias-primas, força de trabalho, etc. [p. 86]. Por outro lado, o capital monetário disponível é o capital necessário para as transações no processo de circulação e o crédito [p. 92] e quando este se encontra nas mãos dos capitalistas, se constitui na base da superestrutura como um fundo de compensação para saldar títulos ou um fundo de reserva em face de eventuais prejuízos [p.87]; logo o capital comercial é crédito de pagamento [p.94]; dai então o capital bancário é a transição dos capitais industrial e comercial, como fornecedor de empréstimos para o capitalista produtor, portanto, o princípio transitório da evolução do sistema bancário [p. 92]. O capital monetário que os bancos fornecem aos capitalistas industriais pode ser empregado na ampliação da produção de duas maneiras: pode haver necessidade de capital monetário para ser transformado em capital circulante ou então em capital fixo, com isso, os bancos depositam seu capital nas empresas capitalistas e então participam do destino dessas empresas [p.93]. 14 Para Émile Durkheim (1858-1917) uma classe social é uma representação coletiva e solidária de partes de uma sociedade, partes essas que ele a denominou de corpo social, que teria uma função, sem hierarquia (!?) entre si, acarretando uma sociedade harmônica e coesa. Para esse autor, os fatos sociais se apresentam de diferentes formas em diversos períodos históricos, ou são atos praticados culturalmente ou fenômenos persistentes no tempo; para ele isso justifica o que se passa na mutação social. Veja DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2012, (6a reimpressão), especialmente o “Capítulo 4: Regras relativas à constituição dos tipos sociais”. Segundo a visão marxista, não existe essa coesão harmônica, porque existe uma classe dominante que controla direta e indiretamente o Estado e outras classes (dominadas) por aquela; reproduzindo, assim inexoravelmente uma estrutura de classe social, que implica também e, conseqüentemente, em lutas de classes, todavia, a perpetuação da exploração social. Conforme o pensamento do marxista convicto LEVEBVRE, Henri. Marxismo. Porto Alegre, L&PM, 2010. 13

Para Max Weber (1864-1920) seu conceito de classe social está baseado no consumo social, em estruturas de mercado que definem um critério econômico de consumo social e a sua dominação por uma política de controle monopolista; de alguma forma, esse cenário permite a identificação de conflitos de classes e, como tal, esses conflitos são favoráveis ao rompimento de ordenações existentes na vida da sociedade.

57

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

papel a burguesia investiu o capital acumulado em outras atividades especulativas, por exemplo, no setor comercial, dai mudanças, também, ocorreram no padrão senhorial de vida incluindo o deslocamento do habitat nas fazendas de café para os centros urbanos. Com relação ao emprego da mão-de-obra, esta passou a ser livre e assalariada. Outras transformações se passaram concomitantemente com o desenvolvimento de sistemas de comunicação entre as zonas rurais e urbanas, com o surgimento de novas estradas e rodovias, o telégrafo, ferrovias de carga e pessoas, dentre outras espécies de comunicação [Fernandes, 1976: 120-121]. O capitalismo comercial e financeiro no Brasil naquele período se expandiu e intensificou novas formas de acumulação a partir da sua concentração e centralização. Na esfera da concentração se unificaram os capitais, nacionais e estrangeiros, de diferentes espécies, industrial, bancária e comercial. Assim, eram investidos quer em agronegócios, na manufatura ou fora dela e no setor de serviços. Contudo, na esfera da centralização essa se deu através da tomada de decisões por grupos burgueses emergentes, que detinham poderes na condição de acionistas ou cotistas das empresas emergentes. Com relação ao outro agente econômico, o imigrante, este também se inseriu nos setores monetários da economia; além daquele setor no qual o uso da sua força de trabalho assalariada tinha vindo suprir a locação do excesso de demanda sobre o serviço desse fator, e, é claro, que essa procura ocorreu dentro de um novo contexto seletivo de maior especialização na divisão internacional do trabalho. Entretanto, dentre as origens imigratórias, o autor compara o judeu imigrante ao judeu europeu, também, o faz com relação ao imigrante oriental chinês e japonês, suas descrições e interpretações coincidem com parte do pensamento (contraditório) de Werner Sombart (1863-1941). Por exemplo, para Sombart – que foi um anticapitalista liberal e antimarxista bolchevista – a modernização

58

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

da agricultura e a industrialização era fruto do espírito capitalista do sujeito econômico: o empresário empreendedor15. Porém, o êxito alcançado pela migração na América e no Brasil não significou para o imigrante uma segunda pátria ou como o autor denomina de pátria de adoção, fatores econômicos, emocionais, sociais e culturais atraíram os imigrantes em busca de acumular riqueza, especialmente, na forma monetária, o que os conduzia, geralmente, para setores monetários da economia. Todavia, o autor explica também que motivos psicosociais e de natureza

econômica

projetava

o

imigrante

num

contexto

econômico e social que consolida, substancialmente, com a ordem social escravocrata e senhorial [Fernandes, 1976: 122 e 128]. Os elementos que se inseriram no processo da acumulação de capital para o imigrante conforme o autor descreve foram disponibilizados pelos capitais comerciais e financeiros para os processos de importação e exportação, através dos agentes negociantes e/ou capitalistas. E, assim, formaram pequenos grupos (por parentesco ou por companheirismo conterrâneo), jamais indo de encontro ao código ético das camadas senhoriais da sociedade brasileira, o que lhe permitiu a venda da sua força de trabalho (livre), dentro de uma nova DIT, apenas caracteriza a diferente forma do trabalho escravo e pouco especializado de uma nova especialização do trabalho do imigrante, mas voltado para sua subsistência e uma eventual riqueza. Entretanto, outras formas de apropriação do trabalho do imigrante entre seus grupos foram através

da

cooperação

doméstica,

das

relações

de

companheirismo e do trabalho de menores, esse modelo permitiu, de alguma maneira, através dessas formas de trabalho e da

Uma das interpretações do pensamento do sociólogo e economista alemão Sombart está na tese de doutorado de Antonio Nogueira, cujo resumo foi divulgado in: [acesso em mar/2013], esse autor afirma que as publicações de Sombart de superioridade teutônica da missão alemã, em confrontação direta com o ethos capitalista, o cosmopolitanismo e o internacionalismo burguês, subentenda-se judaico (...), assim identifica e redefine o empresário empreendedor, pondo em evidência as formas do desenvolvimento histórico da empresa capitalista, ressaltando, sobretudo o trabalho artesanal como um meio de passagem para a manufatura, e a partir daí caracteriza a industrialização. Finalmente, Sombart atribui importância ao papel das formações urbanas (as cidades) e os seus mercados internos, tudo isso associado à sua interpretação sociológica como motivação econômica [p. 1138-1139, 1147]. 15

59

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mobilidade ocupacional à acumulação de capital [Fernandes, 1976: 129-130]. Contudo, os principais elementos que contribuíram com a acumulação de riquezas nas novas classes sociais emergentes e estrangeiras no país, conforme Fernandes foi o sucesso ao explorar as oportunidades econômicas abertas pela mobilidade horizontal e vertical, com tamanha versatilidade ocupacional ou econômica, então, o imigrante alargou o seu horizonte econômico [Fernandes, 1976: 130-131]; através do mercado interno, no curto prazo, na perspectiva

do

consumo

de

produtos

agropecuários

e

da

produção artesanal. No mesmo locus, todavia na perspectiva de longo prazo, o imigrante introduziu arranjos comerciais ampliando a comercialização de produtos agropecuários ou da produção industrial dentro de padrões europeus, ou seja, aproveitando o capital comercial e o capital financeiro, na forma do crédito para financiar a produção industrial. Sob o ponto de vista do autor este segundo conteúdo referido anteriormente permitiu surgir firmas comerciais, até chegar, progressivamente, aos ditos impérios industriais. Por outro lado, essa burguesia do fazendeiro – homem de negócios -, originada do imigrante, proporcionou uma nova mobilidade econômica que resultou na rápida concentração de capital comercial, a partir da acumulação agropecuária – a lavoura de subsistência, a criação do gado das espécies vacum e porcino -, e na produção artesanal [Fernandes, 1976: 132-134]. Para o autor, no contexto da nova mentalidade empresarial e empreendedora da burguesia brasileira, o agente imigrante, também, introduziu na sua mentalidade empresarial o raciocínio do cálculo econômico-financeiro e a noção da relação entre princípios, meios e fins, na intertemporalidade das ações financeiras, o que veio a conferir ao país um padrão capitalista de organização da personalidade, da economia e da sociedade no marco histórico referenciado [Fernandes, 1976:141].

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

60

3. CONCLUSÃO A revolução burguesa no Brasil não é uma evolução, como o que ocorreu em determinados paises europeus de forma lenta e gradual nas mutações naturais dentro de suas classes sociais, ou noutras economias dependentes e periféricas. Entretanto, o desenvolvimento histórico da revolução burguesa no Brasil ocorreu por alterações de ordem política e sociológica, o que implicou na reorganização da sociedade e da economia de forma mais rápida e acelerada, comparando-a com outras organizações sociais. Essa é a lógica de um sistema que caracteriza o modelo colonial brasileiro: um capitalismo dependente e, ao mesmo tempo, de forma contraditória, autonômico. Também, regido por um sistema de poder, de forma complementar, de um lado a exteriorização do poder político coercitivo, do outro lado, o poder econômicomercantilista, ambos exercido por uma elite da burguesia nacional, constituída de fazendeiros do café e imigrantes. Quando isso se passou a economia colonial brasileira se inseriu no mercado mundial, via exportação do café e como conseqüência provocou a criação de mercados urbanos internos via importação de bens de consumo e de bens de capital. Isto equivalia a dizer que o modelo colonial nacional-periférico, vigente entre o fim e o início dos séculos XIX-XX, no período quando ocorreu a revolução burguesa, estava bastante próximo da organização econômica das economias centrais. Os agentes dessa aristocracia agrária lançaram mão de recursos técnicos, financeiros, físicos, humanos e institucionais, para inserir a economia nacional no cenário econômico globalizado da época, como se fosse uma reintegração da economia cafeicultora sulista, comparando-a ao que se passara com a economia sucrocrata do Nordeste dos séculos anteriores. Entretanto, com a inserção da economia nacional na ordem econômica mundial vigente, o agente burguês com o seu comportamento, espírito e concepção burguesa do mundo fez

61

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

emergir no cenário brasileiro conteúdos comportamentais de ordem econômica, social, cultural e político. No estado da arte sócio-econômico do país, no período que se processou a revolução burguesa, verificou-se que determinados subestratos sociais, por exemplo, a burguesia agrária, com relação à burguesia de comerciantes, possuía mais vantagens que essa última, porque aquela detinha o monopólio do poder político. A apropriação do excedente gerado pelo novo setor dinâmico da economia nacional, principalmente na grande lavoura exportadora, ao mesmo tempo em que processava a fusão do capital comercial com o capital financeiro resultou no Brasil um fenômeno diferente do cenário mundial, o surgimento de novos agentes monetários e financeiros, os bancos comerciais públicos e privados, o que se pôde denominar de capital bancário nacional. Finalmente, as condições de uma economia nacional, periférica e dependente permitiram a mudanças da ordem econômica, ao mesmo tempo social e cultural, dado novos hábitos de consumo social com o surgimento de novos mercados internos nos centros urbanos, perpassando uma nova geopolítica urbana, impulsionada

pela

dinamicidade

da

economia

primário-

exportadora, enquanto tal núcleo vital se voltava para fora, esse mesmo núcleo dinâmico se especializava para tal competitividade econômica nas esferas da demanda social interna, e da oferta monocultora do café para exportação, quando, no mesmo momento, facilitava a criação e a modernização de mecanismo do capitalismo financeiro interno, em harmonia com o sistema do capitalismo financeiro internacional, que viriam em breve a favorecer uma nova etapa do desenvolvimento econômico brasileiro com a sua industrialização.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964. COHEN, R.B. et.all. The multinational corporation: A radical Approach papers by Stephen Herbert Hymer. Cambridge, University Press, 1979. COSTA, Glinzer S.C. da Silva. “A gestão pública brasileira, alguns elementos inovadores que perpassam desde o Brasil Colonial até o Brasil Republicano”. São Paulo, Revista de Economia Política e História Econômica, ano 08, n. 25, jun/2011, p. 72-86. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2012, (6a reimpressão). FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Rio de Janeiro, Vozes, 1997. __________. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976, (2a ed.), (Biblioteca de Ciências Sociais). FURTADO, Celso. Prefácio à nova Economia Política. São Paulo, Paz e Terra; 1976. __________. Formação econômica do Brasil.São Paulo, Editora Nacional, 1976, (14a ed.). HILFERDING, H. O capital financeiro. São Paulo, Nova Cultural, 1985, (Os Economistas). HYMER, Stephen. H. The international operations of national firms: A study of direct foreign investment. Cambridge, MIT Press, 1976, (Tese de doutorado, publicada postumamente). KULA, Witold. Investigaciones históricas sobre la historia de las empresas y renta nacional. Buenos Aires, Editor 904, 1977. LENIN, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia. Moscú, Editorial Progreso, 1979, (5ª ed.). LEVEBVRE, Henri. Marxismo. Porto Alegre, L&PM, 2010. NOGUEIRA, Antonio de Vasconcelos. “Wernes Sombart (1863-1941): Apontamentos bibliográficos”. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vol. XXXVIII, ed. 169, p. 1125-1151, 2004, (Resumo de tese de doutorado), in: , [acesso em mar/2013]. PAIVA JR., Yago E. B. de. “Genealogia do matriarcado do Pindorama”. São Paulo, Revista Sociologia, ano iv, ed. 36, p. 54-59, ago/set 2011. PEREIRA, Luiz Carlos B. “Empresários, suas origens e as interpretações do Brasil”. In: [acesso em mar/2013]. PRADO JR., Caio. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1986, (33a ed.). RIBEIRO, Darcy. Gentidades. Porto Alegre, L&PM, 2011. __________. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.

63

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Desregulamentação, Desindustrialização e Reconcentração de Renda na Crise dos EUA1 Robério Paulino2

Resumo A crise econômico-financeira global aberta em 2008 parece prenunciar o início do fim da hegemonia neoliberal sobre o pensamento econômico, mesmo estando claro que esta última não está exaurida. A grave recessão atual gera destruição de riqueza e muito sofrimento humano, mas também abre a oportunidade de revalorização dos Estados nacionais para o desenvolvimento econômico e social. Este trabalho busca aprofundar o estudo das causas desta crise, apontando aspectos ainda pouco aprofundados nos estudos disponíveis, como a desindustrialização e a reconcentração de renda nos EUA, e, ao final, sugere pontos de discussão para uma Nova Agenda Nacional de Desenvolvimento no Brasil. Palavras-chave: Crise global, neoliberalismo, Estado de Bem-Estar Social Abstract: The global economic-financial crisis opened in 2008 seems to foreshadow the beginning of the end of the neoliberal hegemony over the economic thinking, even though it is clear that the latter is not exhausted. The severe current recession causes destruction of wealth and a lot of human suffering, but it also opens up the opportunity for revaluation of the Nation States towards the economic and social development. This paper aims to deepen the study of the causes of this crisis, pointing out aspects yet little developed in the available studies, such as deindustrialization and income reconcentration in the US, and, at the end, it suggests topics of discussion for a New National Development Agenda in Brazil. Keywords: Global crisis, neoliberalism, Welfare State.

Texto apresentado em 10/10/2013 e aprovado em 10/11/2013. Economista e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, Professor Adjunto do Departamento de Políticas Públicas – DPP e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais – PPEUR da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em Natal. 1 2

64

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

1 INTRODUÇÃO Reorientar a agenda do país, para aqueles que o consideram necessário, exige extrair as lições, ainda que iniciais, da crise global que se abateu sobre o mundo desde 2008. Enganam-se os que avaliam que o pensamento político e econômico já elucidou todas as causas da grande recessão em curso. O mundo assistiu nas últimas três décadas o retorno e a hegemonia do liberalismo radical, que operou profundas alterações no capitalismo regulado emergido da Segunda Guerra Mundial. O resultado da desregulamentação, da remoção dos poucos freios exercidos sobre os mercados pelos Estados nacionais naquele período foi uma nova e imensa liberalização para o trânsito de capitais, empresas e mercadorias, um salto na mundialização

do

capital

(CHESNAIS,

2005).

Ao

mesmo

tempo,

o

neoliberalismo implicou em um severo retrocesso civilizatório (LAURELL, 2002), em um duro ataque às conquistas do Estado de Bem-estar Social construído em diferentes países, com a volta da elevação da desigualdade entre as classes sociais, mesmo dentro dos Estados Unidos, como se buscará mostrar em números neste trabalho. O abalo econômico-financeiro global eclodido em 2008 e ainda não encerrado é, sem dúvida, uma crise cíclica estrutural do capitalismo contemporâneo, mas ao mesmo tempo uma consequência da aplicação das políticas do liberalismo radical pós 1980, bem como a comprovação da falência dos seus argumentos. A aplicação de duras medidas de austeridade fiscal em países da União Europeia desde 2010 revela, contudo, que o domínio da ortodoxia não se exauriu. Passado o susto dos liberais, suas políticas têm retornado com força. Mas, no plano estritamente ideológico, a crise atual e o recurso à bóia de salvamento estatal por parte dos mercados em pânico desmontaram, mais uma vez, como na Grande Depressão iniciada em 1929, os pilares do arcabouço teórico neoclássico e podem estar abrindo um novo período de revalorização do Estado para o desenvolvimento econômico e social. A defesa da presença do Estado na economia retorna à pauta, ainda que num primeiro momento apenas no sentido de socorro ao capital, enquanto que, contraditoriamente, os mesmos que criaram esta crise vêm conseguindo mais uma vez atacar as conquistas sociais em vários países. No

65

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

entanto, de alguma forma, o pêndulo do pensamento político-econômico começou a se mover. O trabalho de seguir precisando as razões da grave recessão atual, especialmente nos Estados Unidos, não é um exercício sem sentido e continuará por muitos anos: aprender com o passado e com o presente é uma obrigação para aqueles preocupados com um futuro melhor para a espécie humana e com a vida no planeta. Extrair desse fenômeno todas as suas lições pode nos servir de guia para reorientar a agenda política, econômica e social no Brasil e demais países. É muito difícil pensar seriamente em qualquer novo projeto nacional de desenvolvimento sem que o país se afaste de vez da trilha neoliberal em que ingressou na década de 1990 e da qual não se afastou muito desde então, mesmo nos governo Lula e Dilma Rousseff. É pura ficção afirmar que hoje o Brasil aplica um modelo desenvolvimentista, contrapondo-o ao receituário neoliberal, enquanto a taxa de investimento segue abaixo de 20% do PIB e toda a economia continua a ser submetida à lógica de compressão dos gastos, objetivando elevar a taxa de superávit primário para pagamento da dívida pública, com os interesses do capital financeiro sendo colocados acima das necessidades do país. Além de analisar sinteticamente o cenário global e nacional, este trabalho busca ao final apontar algumas poucas linhas para a construção de uma Nova Agenda Nacional de Desenvolvimento, que coloque em primeiro plano o progresso econômico, tecnológico e especialmente humano e cultural do país. 2 ALGUMAS PRIMEIRAS LIÇÕES ACERCA DAS CAUSAS DA CRISE GLOBAL INICIADA EM 2008 A Grande Recessão iniciada em 2008 foi detonada pela exuberância especulativa dos mercados sem controle, pela alavancagem sem limites dos rentistas, pelo acúmulo de dívidas impagáveis e pelo endividamento exagerado das instituições financeiras, das empresas e das famílias norteamericanas. Muitos sabem agora o que significa o “Momento Minsky” – o ponto no qual um período de alta febre financeira se transforma em pânico perante o abismo. Segundo Hyman Minsky (1982), um longo período de

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

66

crescimento acelerado, inflação reduzida, taxas de juros baixas e estabilidade macroeconômica estimulam a complacência e uma maior disposição de assumir risco por parte dos agentes que concedem crédito. A estabilidade leva à instabilidade, à crise. No entanto, mesmo os mais brilhantes discípulos de John Maynard Keynes, como Minsky, para quem um sistema de crédito não regulado seria inerentemente instável e desestabilizador, não conseguem explicar com sua caixa de ferramentas teóricas as crises que assombram a economia capitalista sem recorrer a Marx. Seria enganoso pensar que as razões para tal abalo sísmico da economia global se resumam a exageros ou falhas de regulação dos mercados, falta de rigor na concessão de créditos ou nas deficiências morais dos atores. As causas da crise atual são mais profundas: residem no núcleo mesmo do sistema, sendo a especulação e a financeirização do organismo econômico apenas alguns dos fatores explicativos. É isso que vem tornando a depressão atual mais longa que o esperado e a recuperação dos índices de produção anteriores à crise mais difíceis. Decorre disto também que, para o capital, a saída desta recessão vem impondo não apenas um pouco mais de regulação, mas duros ajustes estruturais na economia dos países. Abaixo se tenta elencar alguns dos fatores que, na opinião do autor, estão na base do abalo atual; umas já bem debatidas, outras, como a desindustrialização e a reconcentração de renda nos EUA, ainda pouco compreendidas. 2.1 Crise estrutural do capitalismo e crise do neoliberalismo Muitos analistas se dão ao trabalho de discutir se essa seria uma crise do capitalismo ou apenas do neoliberalismo, uma discussão com pouco sentido. Ela é ao mesmo tempo as duas coisas. O abalo atual não é apenas mais um espasmo episódico, fruto do pouco controle sobre Wall Street. É a mais grave crise do capitalismo contemporâneo desde a Grande Depressão. Trata-se de uma crise cíclica e estrutural do capitalismo mundializado. Para Marx (1996), as crises cíclicas do capital são tipicamente crises de superprodução ou de subconsumo, decorrentes de potencial produtivo em excesso não absorvido pela demanda. Apesar da elevação do consumo nos EUA nos anos

67

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

imediatamente anteriores a 2008, havia um excedente de produção no mundo, especialmente na China, no Japão e na Alemanha, fator que sempre contribui para precipitar as grandes recessões. Toda crise obriga o sistema a se ajustar, destruindo a capacidade produtiva sobrante e riqueza acumulada, como se viu também desta vez. O mercado norte-americano vinha funcionando como numa espécie de esponja para esse excesso de oferta, através do endividamento excessivo das famílias, que consumiam muito além de suas possibilidades. Mesmo crescendo, embalada pelo crédito fácil, a demanda não acompanhava o ritmo de elevação da oferta mundial. Em algum momento, esse mecanismo se esgotaria, até por outras razões, como a reconcentração da renda nos EUA, fenômeno que tem sido pouco analisado nos estudos disponíveis sobre a crise atual e abordado neste trabalho. Já não será possível aos EUA continuar com déficits comerciais crescentes com o exterior, que ficaram insustentáveis, e porque grande parte das famílias trata hoje de pagar dívidas, ajustando o consumo às suas possibilidades reais. É isto que está na base da atual guerra cambial entre as grandes potências econômicas. Mas

além

de

uma

crise

cíclica

e

estrutural

do

capitalismo,

evidentemente essa também é uma crise do neoliberalismo. Desde a Grande Depressão até meados da década de 1970, o liberalismo clássico foi afastado da cena e as ideias keynesianas, de maior intervenção e regulação estatal, dominaram o ideário político-econômico. Com exceção dos grupos socialistas revolucionários e dos setores capitalistas mais a direita, todos no campo do capital durante aquele período se punham de acordo quanto à necessidade de o Estado estar presente em amplos setores da atividade econômica. Fosse diretamente como produtor e provedor – do transporte público à geração e distribuição de energia, passando pela siderurgia –, fosse como regulador dos excessos de irracionalidade do capital, especialmente pondo algum cabresto no setor financeiro, que havia disparado a crise de 1929. A presença do Estado como indutor da atividade econômica, agente de ampliação dos mercados através da distribuição de renda às famílias e regulador da atividade econômica, foi sem dúvida um fator essencial que esteve na base da recuperação do pós-guerra e da fenomenal expansão dos “Trinta Anos Gloriosos do Capitalismo” que vão de 1945 a 1973-75.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

68

Entretanto, como se veria mais adiante no tempo e bem mostrou Perry Anderson (1995), o liberalismo não estava definitivamente derrotado. Apenas esperava a chance de um retorno, o que se deu com a crise do modelo keynesiano durante os anos 1970. Não é objetivo deste trabalho analisar o que foi o neoliberalismo em si, pois o assunto é por demais esclarecido e debatido. Apenas devemos ressaltar que a transformação da economia mundial em um grande cassino e a farra financeiro-especulativa que detonou a crise de 2008 nos EUA só foram possíveis pela desregulamentação sobre o capital, especialmente o financeiro, agora novamente livres da tutela do Estado regulador, enfim liberados daquilo que Hayek (1990) chamou de “servidão”. Neste sentido, a crise de 2008 é categoricamente uma crise do neoliberalismo em tudo que ele significa. Como vêm percebendo mesmo analistas pouco críticos do capitalismo, como Justin Fox (2011), o mito dos mercados racionais e eficientes despencou. 2.2 Financeirização e riqueza fictícia Como na quebra da Bolsa de Nova Iorque em outubro de 1929, o estopim da crise atual foi também o estouro de uma bolha financeira criada pela febre especulativa e pela grande valorização artificial dos papéis negociados em bolsas, bem acima do crescimento da economia real. Nos EUA, o valor das ações cresceu quatro vezes mais que o PIB entre 1980 e 2008. O crescimento de um sistema bancário paralelo, os “bancos não-bancos”, livres de regulamentação para criar “coisas interessantes e perigosas” (KRUGMAN, 2009), e a globalização dos mercados financeiros, com a liberdade total para o capital especulativo se deslocar entre as diversas praças mundiais, transformaram a economia global e dos EUA em uma grande Las Vegas. É a isso que os economistas neoclássicos chamam em seus manuais de “comportamento racional”. Os bancos e um sistema financeiro e de pagamentos nacional ágil e confiável têm um papel importante em qualquer tipo de economia, capitalista ou socialista. É por meio deles, dos bancos, da moeda, dos cheques ou, hoje, dos cartões de crédito magnéticos, que a sociedade faz seus pagamentos, suas transações econômicas. E quanto mais eficiente este sistema em um país, mais dinamicamente funciona o organismo econômico. É também através do sistema bancário que se centralizam os tributos e a poupança coletiva, ou

69

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

seja, parte do excedente social que deveria se transformar em investimentos comuns a toda sociedade. Mas não é bem isso que se dá no capitalismo contemporâneo: bancos cumprindo primeiramente uma função social. Pelo contrário, o que ocorre hoje é uma perversa financeirização da atividade econômica, com o sistema financeiro numa busca incessante de lucros rápidos através da especulação, concentrando renda e riqueza através da velha e conhecida agiotagem, das altas taxas de juros, de apostas em títulos e nos atrativos papéis das dívidas públicas dos países. Como se pode observar também no Brasil, grande parte da arrecadação estatal dos tributos, que deveria se transformar em inversões sociais necessárias, é repassada diretamente aos capitais rentistas, numa relação inversamente proporcional à pressão contrária das lutas sociais e da opinião pública. Para valorizar-se, segundo Marx (1996), normalmente o capital precisa abandonar sua forma preferencial de dinheiro, passar pela produção, organizando o trabalho, transformando-se em mercadorias que possam ser vendidas, para só depois ressurgir ampliado na forma original de moeda, fechando o circuito, que Marx denominou de D-M-D‟. Mas já no século XIX, em O Capital, Marx (1996) apontava que o capital buscava alternativas de valorização, fugindo das agruras e riscos da produção. Para ele, ganhariam por isso peso crescente as formas de acumulação nas quais o capital pudesse crescer fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro diretamente, sem nada produzir, forma que ele denominou D-D‟. Segundo Marx, essa via rápida de multiplicar o capital poderia gerar grandes fortunas, mas tornava todo o edifício mais instável, potencializando as crises. Foi isso que se viu em essência no século XX, especialmente nas últimas quatro décadas, e que também está na base da crise atual. Por esse mecanismo, grande parcela da riqueza criada é puramente fictícia. O valor dos papéis e das empresas avaliados pelas agências de classificação e risco é em grande parcela potencial, virtual, não tem correspondência com os ativos reais das empresas. Observe-se a Figura 1 abaixo, capturada diretamente do site mundial do Banco JP Morgan, em 22 de janeiro de 2009, com os valores de mercado estimados para alguns grandes bancos, antes e logo depois da explosão da crise em 2008. As bolas maiores, externas, representam os valores avaliados de mercado dos bancos

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

70

no segundo semestre de 2007, antes da crise. As bolas menores, internas, as avaliações destes mesmos bancos após as turbulências do segundo semestre de 2008. Tome-se o exemplo do Citigroup, a bola maior da figura. Ele estava avaliado em US$ 255 bilhões antes da crise. Seu valor teria despencado para US$ 19 bilhões no início de 2009. Para onde teria ido toda essa “riqueza” perdida? Para lugar algum; simplesmente a maior parte dela não existia, era fruto de valorização exagerada dos ativos. Como era de se esperar, passado o surto de pânico, as estimativas voltaram a subir já para o segundo semestre de 2009. Devem-se tomar com muita cautela todas essas avaliações das agências da classificação, pois elas expressam a frequente embriaguês dos mercados, portanto, não têm muita confiabilidade ou precisão. Usamo-las aqui apenas no sentido de ilustrar o processo de valorização artificial dos ativos e de destruição de riqueza fictícia. As agências de classificação de empresas e países e de avaliação de risco estão muito desmoralizadas pela crise, porque foram absolutamente incapazes de enxergar os perigos de tamanho planetário para o sistema capitalista.

Figura 1 – Valores de mercado estimados de alguns bancos, antes e depois do início da crise de 2008 Fonte: Banco JP Morgan (2009). Diagrama montado pelo banco com dados divulgados pela Agência Bloomberg em 20 jan. 2009.

71

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Diversos relatórios de bancos e agências de classificação, do início do ano de 2009, davam conta, alarmados, de que a crise havia “queimado” trilhões de dólares das empresas e famílias norte-americanas e do resto do mundo. O problema é que esse fenômeno de destruição de riqueza fictícia não afeta apenas o lado monetário da economia, mas cria desemprego, diminui o PIB, destrói, assim, riqueza real. Como o crescente excesso de oferta não é absorvido, ele deverá ser eliminado, gerando falências, desemprego, corrosão das poupanças das famílias e muito sofrimento humano. O desemprego deu imediatamente um salto em muitos países. De acordo com o Departamento de Estatísticas do Trabalho dos EUA (Bureau of Labor Statistics – BLS), o desemprego no país saltou de 5,0% da força de trabalho em janeiro de 2008 para 9,7% em janeiro de 2010. Neste último ano, 15 milhões de norteamericanos estavam desempregados, dentre os quais 7 milhões perderam seu posto de trabalho depois de 2008 (BLS, 2011). Outras avaliações, apresentadas adiante, acusam o governo norte-americano de manipular a taxa de desemprego, que seria bem maior. Milhões tiveram a vida em parte arrasada pela irresponsabilidade criminosa dos especuladores, ditos “racionais”, e hoje elegantemente chamados de “investidores internacionais”. Mas mesmo após a imensa comoção humana que essa crise vem gerando, executivos de bancos e corretoras continuam a atribuir para si mesmos poupudos prêmios. 2.3 Desindustrialização e menos empregos nos EUA Outro fator explicativo para que a crise tenha se iniciado pelos EUA, que pouco aparece nas análises disponíveis no Brasil, é o profundo processo de desindustrialização vivido pelos EUA nas últimas décadas, como consequência da ideologia do livre comércio, da importação de produtos mais baratos que os produzidos no país, da desregulamentação que permitiu a terceirização da produção de componentes no exterior ou diretamente da transferência de milhares de plantas para outras regiões, especialmente para o México e Ásia. Fração considerável dos produtos vendidos nos EUA é hoje manufaturada em

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

72

outros países e reexportada ao país. No setor automotivo, uma proporção crescente dos carros e autopeças vem de fora. No setor de tecnologia, que inclui notebooks, monitores e televisores de LCD e plasma, celulares, Ipods, tablets, quase tudo é importado. Mesmo a indústria aeronáutica importa grande proporção dos componentes que usa. Grandes empresas mantiveram no país apenas seus setores de pesquisa e desenvolvimento, assegurando o controle tecnológico. Como revelou Edward Luttwak (2001), sob a égide do turbo capitalismo neoliberal, o país apostou apenas nas empresas de alta tecnologia, deixando as indústrias de média ou baixa tecnologia quebrarem. Do ponto de vista da redução de custos e da elevação dos lucros, a produção na Ásia ou no México, por exemplo, reenviada aos EUA, tem sido a galinha dos ovos de ouro para as empresas estadunidenses, já que pode ser feita com de mão de obra muitas vezes mais barata que a do país. Mas essa opção de jogar todas as fichas num único cavalo teve como contrapartida a crescente desindustrialização do país e a elevação do desemprego. Milhões de postos de trabalho desapareceram na grande e tradicional indústria construída sob o fordismo pelo processo de reestruturação produtiva ou foram transferidos para o exterior. Desde 1997, quase 6 milhões de vagas foram perdidas no setor industrial (HAGERTY, 2011), que passa por um longo declínio. Os “Velhos Titãs” da indústria americana, como GE, ITT, RCA, IBM, Chrysler, Ford, GM, vêm perdendo mercado dentro do próprio país para empresas de outras nacionalidades, retrocederam no cenário mundial, se associaram a empresas estrangeiras ou simplesmente desapareceram. A quebra da GM em 2010, acossada pela competição dos asiáticos, é apenas um sintoma desse fenômeno. No lugar da velha indústria, crescem grandes redes de varejo, como Wal-Mart, Sears, Mcdonalds e Bobs. Os empregos “para a vida inteira”, dos operários da tradicional fábrica fordista, com salários relativamente altos e considerável estabilidade, são substituídos aos milhões por novos postos de vendedores de lojas, alimentadores de prateleiras de supermercados ou entregadores de sanduíches, que têm salários muito menores e grande rotatividade (SENNETT, 1999). Estas novas empresas não oferecem mais os simples, mas bem remunerados empregos da indústria de antes. No varejo e nas redes de fast-food de larga escala, a maioria trabalha por salários mínimos;

73

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

pouquíssimos são bem pagos, já que os escritórios das lojas e empresas são bem enxutos (LUTTWAK, 2001). A terceirização de muitas funções antes integradas às empresas completa o quadro de precarização do mercado de trabalho. Até 1995, antes de também promover um enxugamento de quadros, o setor de tecnologia e informática parecia ser a nova coqueluche de empregabilidade da globalização. Mas apesar de ofertar excelentes empregos de alta especialização, em suas maiores empresas-mãe não chegava a contratar sequer um décimo do que fazia a indústria tradicional, como se pode ver e comparar pela Tabela 1.

Tabela 1 - Os velhos e os novos Titãs: rol de empregados em 1995 Antigas empresas

Grande Varejo

Setor de Tecnologia

General Motors

721.000

Wal-Mart

434.000

Intel

32.600

Ford

325.000

Sears

403.000

Oracle

19.000

Boeing

143.200

K-mart

358.000

Microsoft

15.000

Kodak

132.600

McDonald‟s

177.000

Sun Microsystems

13.300

Fonte: E. LUTTWAK, 2001, p. 110.

Evidentemente, o setor de tecnologia e comunicações tem gerado muitos empregos indiretos para técnicos, programadores, instaladores etc., mas em geral como autônomos ou muito precários, como também acontece no Brasil, já que a maior parte da produção do setor de tecnologia foi transferida para a Ásia. Para que se tenha um parâmetro de comparação com os números da tabela acima, enquanto desaparecem milhares de empregos nos EUA, somente a Foxconn Technology, indústria de placas-mãe de computadores, telas de LCD para televisores, Ipads e outros componentes eletrônicos, que produz para grandes marcas norte-americanas, como Dell, Hewlett-Packard e Apple, empregava em torno de 900.000 trabalhadores em suas plantas na Ásia em 2010, dos quais 400.000 na China. Esta empresa, que está se instalando no

74

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Brasil a convite do governo Lula, ficou mundialmente conhecida nos últimos anos por seus baixos salários e pela severa opressão interna, o que levou a uma dezena de suicídios dentro das suas fábricas em 2010. Comparada à fumarenta Shenzhen, cidade onde está sediada a Foxconn na China, as fábricas da velha Manchester industrial dos séculos XVIII e XIX eram o paraíso, quando de trata de opressão da força de trabalho. Este é o tão celebrado novo mundo da globalização neoliberal. Com a reestruturação das empresas ou seu fechamento e transferência para o exterior, muitas cidades nos EUA, que por muito tempo viveram em torno de fábricas que empregaram várias gerações de trabalhadores, estão hoje completamente desestruturadas. Em muitas cidades, como Buffalo e St. Louis, por exemplo, encontram-se quarteirões e mais quarteirões de casas abandonadas, fábricas desertas e prédios de escritórios vazios com placas de “aluga-se”. Muitos dos novos formados em universidades norte-americanas têm sido forçados a aceitarem empregos de garçom em bares ou vendedores em lojas e retornaram a morar com os pais. Todo esse processo vem gerando profundas transformações no tecido social norte-americano, que ajudam a explicar a eleição de Barack Obama. As estatísticas oficiais apontaram em 9,5% a taxa média de desemprego em 2010, mas muitos analistas independentes afirmam que esta taxa é irreal, especialmente

depurada

para

não

contabilizar

a

maior

parte

dos

empregados apenas temporaria ou parcialmente, os trabalhadores part-time. John Williams (2011), um especialista em estatística, que calcula o desemprego de forma alternativa e mais rigorosa, apontou taxas de até 22% de desemprego em 2010. Mesmo números internos do governo, que incluem o subemprego part time, chegam a 17%. Os EUA, considerado desde a década de 1960 um país de classe média, vê a grande massa de sua população empobrecer, para o deleite de alguns poucos milhões de super-ricos. Tal fenômeno revela – ao contrário do que se poderia imaginar, ou seja, que a aplicação do neoliberalismo teria sido menos intensa dentro dos EUA – que o capital não tem pátria, que o mercado liberalizado não tem outros valores que a maximização do lucro, ignorando os mais básicos princípios de bemestar das sociedades e mesmo de defesa do país.

75

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O risco de desindustrialização é um alerta que deve servir ao Brasil, já que a concorrência dos produtos importados no Brasil, especialmente chineses, também pode levar a um retrocesso industrial no país. Como argumentou Stiglitz (2003), o resultado da abertura inocente dos mercados em muitos países pode apenas fazer atividades menos produtivas passarem à produtividade zero, ou seja, fecharem, elevando o desemprego, sem que novos postos de trabalho sejam criados. A Argentina acreditou no conto de fadas das vantagens do livre mercado e hoje precisa esforçar-se pela reindustrialização do país. A globalização, na verdade, só trouxe vantagens para pouquíssimas nações ou para as classes ricas dentro dos países. No caso dos EUA, ainda que o país continue a ser a maior potência econômica e militar do planeta e tenha aumentado seu número de bilionários, lentamente o país vem se desindustrializando e perdendo espaço na economia global, num processo semelhante ao que se passou com a Inglaterra após o surgimento de novas potências industriais na segunda metade do século XIX. 2.4 De volta para o passado: reconcentração de renda O que explica em parte a ira da corrente neoliberal não só contra as revoluções socialistas do século XX e suas conquistas sociais, mas também contra o próprio Estado Bem-Feitor de inspiração keynesiana, é que este, através das políticas públicas, dos mecanismos de redistribuição da renda às famílias, terminou por reduzir a parcela da renda nacional que ficava com as classes capitalistas. A construção do Welfare State em muitos países não ocorreu como uma concessão voluntária do capitalismo, mas, segundo Vicente Navarro (2002), foi um passo atrás forçado, frente à pressão das classes trabalhadoras, especialmente na Europa. Foi também consequência da difícil e arriscada situação em que se encontrava o capitalismo para sua própria sobrevivência depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, do medo que as classes ricas sentiam das revoluções sociais dos pobres e da ameaça soviética, no contexto da Guerra Fria, como sugeriu Hobsbawm (1994). Ainda de acordo com Navarro (2002), especialmente na década de 1960, as classes trabalhadoras passaram a pressionar mais e mais os Estados

76

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

para atender às suas reivindicações, principalmente no que tange a melhores condições de trabalho e de vida, e a questionar mesmo o poder da classe capitalista. O Estado de Bem-Estar, significativamente ampliado naquela década de intensa polarização ideológica, foi um grande progresso social, mas também uma política de contenção compulsória contra o progresso das ideias socialistas, um pacto social para a incorporação das classes trabalhadoras

ocidentais

na

democracia

representativa

capitalista,

afastando-a das alternativas mais radicais enquanto era tempo. Mas para o capitalismo mundial, como se veria depois, aquilo foi apenas um recuo temporário e involuntário. Como se pode observar pelo Gráfico 1, com o advento forçado do Welfare State, nos EUA as classes ricas perderam participação na apropriação da renda nacional. Se, antes de 1929, os 1% mais ricos do país chegavam a ficar com até 19% da renda nacional, depois da Segunda Guerra Mundial, com a construção dos sistemas de proteção social, sua parcela caiu para

Fatia da renda em percentagem

algo em torno de 8% (REICH, 2008). Assim também ocorreu na Europa.

1% Superior

0,1% Superior

0,01% Superior

Gráfico 1 – Fatia da renda nacional dos EUA apropriada pelas classes mais ricas. Fonte: T. Piketti e E. Saez, versão atualizada de “Income Inequality in the United States, 1913-1998”. Quarterly Journal of Economics 113. n. 1 (fevereiro de 2003), com quadros e figuras atualizados até 2005, apud R. REICH, 2008, p. 109.

77

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O neoliberalismo foi na verdade uma reação do capitalismo mundial contra essa desconcentração da renda operada forçadamente pelo Estado intervencionista, que taxava progressivamente mais os ricos e impunha limites à taxa de exploração, à liberdade para os negócios privados. Para os liberais, foi um “caminho da servidão” para o capital, para lembrar novamente a expressão de Hayek (1990), considerado um dos fundadores daquela corrente. Para ele e seus seguidores, como Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises e Michael Polanyi, por exemplo, a intervenção anticíclica com políticas macroeconômicas e a redistribuição de renda às famílias deformavam absurdamente o curso natural da acumulação privada e do livre mercado. Como essa redistribuição só podia ser cumprida através de mecanismos estatais, já que o mercado é naturalmente concentrador de renda, explica-se o ódio visceral do neoliberalismo contra o socialismo e contra o Estado capitalista regulador e provedor emergido do após-guerra, acusado de agigantado, ineficiente, gerador de déficit público etc. Os ultraliberais, contudo, não desperdiçariam a chance de um retorno à situação de antes de 1929. A crise do pacto keynesiano na década de 1970, com o esgotamento da “era de ouro” do capitalismo, foi a chance que esperavam de engrenar marcha a ré. A onda ideológica privatista e monetarista iniciada com Thatcher (Inglaterra, 1979), Reagan (Estados Unidos, 1980), Kohl (Alemanha, 1982), Schlutter (Dinamarca, 1983), e que já havia chegado com força à América Latina com Pinochet (Chile, 1975), correspondia na verdade a uma necessidade de toda a classe capitalista mundial de retomar suas margens de lucro e voltar a elevar a parcela apropriada da riqueza produzida nos países, o que implicava atacar o Estado em sua feição social, redistributiva, reduzindo-o ao mínimo. Quase todos os governos eleitos na Europa Ocidental durante a década de 1980 tentaram aplicar programas segundo as orientações neoliberais (ANDERSON, 1995). O colapso político e econômico da União Soviética na segunda metade dos anos 1990, identificada como expressão maior de país com Estado forte, planejamento centralizado e serviços sociais universalizados, acelerou as reformas neoliberais. Por mais que os ventos de revolução há muito tivessem deixado de soprar desde Moscou, até ali o

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

78

capital sentia na existência em si da URSS uma ameaça. Mas agora já não tinha a quem fazer frente, com quem comparar-se, por quem se sentir ameaçado. Estava livre o caminho para acelerar o ataque às conquistas sociais no Ocidente, o que atesta a tese de que o Welfare foi uma concessão involuntária do capital, fruto da imensa pressão social existente no mundo no pós-guerra. O neoliberalismo indiscutivelmente obteve um êxito fenomenal quanto aos seus objetivos, como pode ser comprovado pelo Gráfico 1. Com todas as políticas de governo contra o já epidérmico sistema de proteção social nos EUA, com a redução de impostos sobre os ricos, a precarização das relações de trabalho, a transferência de empresas ou da produção para fora do país, a terceirização, a elevação do desemprego e o decorrente rebaixamento dos salários, a concentração de renda no país voltou a aumentar para patamares primitivos, similares aos do final do século XIX. Se, em 1981, os 1% mais ricos do país ficavam com algo em torno de 8% da renda nacional, em 2007, esta fatia voltou a se aproximar de 20%. Já a parcela apropriada pelos 0,1% superiores mais que triplicou desde 1980, para 7%. Isso supera mesmo países de renda tradicionalmente concentrada, como o Brasil, onde, nas últimas duas décadas, os 1% da ponta da pirâmide de renda se apropriaram de algo entre 13% e 14% da renda nacional. Esses números podem ser ainda maiores e dão uma noção de quem está suportando a dor da crise nos EUA:

[...] a distribuição, cada vez mais enviesada, do rendimento dá uma indicação clara quanto a quem deve ser: cerca de um quarto de todos os rendimentos nos Estados Unidos agora vai para 1%, enquanto para a maioria dos norteamericanos o rendimento hoje é menor do que era há uma dúzia de anos. (STIGLITZ, 2011, p. 2, grifo nosso)

Stiglitz (2011) avalia ainda que com a crise, até o início de 2011, 10% das famílias

do

país



teriam

perdido

suas

casas

com

as

hipotecas.

79

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Evidentemente, para o mecanismo econômico, a reconcentração de renda fez com que o ritmo de crescimento da demanda ficasse por baixo do crescimento da oferta interna e externa, sendo, portanto, outro fator explicativo para a crise de 2008. A produção massiva não pode subsistir sem consumo massivo, como bem mostrou Michael Harrington (1989), um dos principais estudiosos das estratégias de Ford nos Estados Unidos. Este elemento de saturação dos mercados por excesso de oferta também havia estado na base da Grande Depressão (HEILBRONER, 1987), o que levou Keynes a incorporar em sua teoria instrumentos para incrementar antes de tudo a demanda efetiva nos países. Para um economista político ou um cientista social, as linhas do Gráfico 1 sintetizam toda a história da luta social no século passado pela apropriação do produto nacional pelas distintas classes em conflito. Em termos de lucratividade, o neoliberalismo foi excepcionalmente bom para as classes ricas. Porém, se o parâmetro for o aspecto social, esta ideologia, que visava reformar o capitalismo para fazê-lo voltar ao primitivismo social do capitalismo liberal sem freios do século XIX, foi sem dúvida, como mostrou Laurel (2002), um grande retrocesso civilizatório. Felizmente, em certos países europeus, mesmo nas últimas três décadas de neoliberalismo, a concentração de renda não se elevou ou até caiu. A média da parcela apropriada pelo 1% mais ricos na França e na Suíça em 2010, por exemplo, foi de 8% da renda nacional. Na década de 1960, estes ultra ricos nestes dois países abocanhavam 10% e 12% do bolo nacional, respectivamente (POCHMANN, 2007). Além disso, em outras partes do mundo e especialmente na Europa, apesar de toda ofensiva neoliberal contra o Estado provedor, pela maior resistência dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais, os gastos com os sistemas de proteção social não foram tão ceifados como nos EUA (ZIMMERMANN e ALVES, 2009). Em alguns países, apesar do esforço neoliberal para reduzi-los, chegaram mesmo a subir, o que se pode comprovar pela Tabela 2.

80

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 2 – Gastos com proteção social em países europeus, em % do PIB Países/ano

1970

1980

1983

1989

1994

2000

2003

França

18,9

25,4

28,3

28

30,2

29,5

30,9

Alemanha

21,5

28,7

28,8

27,3

27,7

29,3

30,2

Dinamarca

19,6

28,7

30,1

29,6

32,5

28,9

30,9

Itália

14,4

19,4

22,9

23,2

26

25,2

26,4

Países Baixos

19,6

30,4

33,8

30,2

31,7

27,4

28,1

Reino Unido

14,3

21,5

23,9

20,6

28,6

27

26,7

Fonte: MURAD (1993) e EUROSTAT, apud ZIMMERMANN e ALVES (2009, p. 230). 2.5 Fim da onda neoliberal? Para Bresser Pereira (2008), chegou ao fim, com a crise atual, a onda ideológica neoliberal. Isto deve ser relativizado e verificado. Por um lado, a grande comoção econômico-financeira na qual o mundo mergulhou em 2008 com certeza quita – como já havia acontecido na Grande Depressão iniciada em 1929 – toda legitimidade aos principais argumentos liberais. Esta nova depressão veio demonstrar mais uma vez que o capital deixado livre, sem controle, é irracional, caótico, e cego em termos humanos. No auge do terremoto de 2008, em pânico diante do precipício, os mesmos apologistas do mercado e candidatos a coveiros do Estado – de repente, todos ironicamente transformados em keynesianos – recorreram exatamente à bóia da salvação estatal. Fora dos EUA, as reformas e a macroeconomia neoliberal claramente fracassaram em promover o desenvolvimento econômico dos países que as abraçaram, como foi o caso de muitos países da América Latina que seguiram a agenda do Consenso de Washington (WILLIAMSON, 1990). Estes países, inclusive o Brasil, tiveram crescimento econômico pífio durante as décadas de 1980 e 1990, sem reduzir em nada seus problemas sociais. Muitos, como a Argentina, se desindustrializaram. O único aspecto que se poderia alegar como resultado positivo dessas orientações é a estabilização monetária, mas isso não foi fruto necessariamente da ortodoxia neoclássica, mas sim a imposição de uma necessidade. No entanto, após a crise de 2008/2009,

81

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

sequer o argumento da estabilidade e do equilíbrio – parcial ou geral – dos mercados os liberais podem ainda sustentar. Depois de 2008, em termos estritamente ideológicos, pode-se com certeza afirmar que a autoridade dos ortodoxos no debate econômico, especialmente no que tange à relação do Estado com a economia e com a sociedade, está bastante abalada. Mas isso não implica que eles perderam o leme da política econômica na maioria dos países. Pelo que se pôde observar nas crises das economias de muitos países da União Européia durante 2010, como Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, França etc., constata-se o contrário: eles ainda estão muito bem alojados nos governos, nos bancos centrais, nas universidades e nas escolas de Economia. Os mesmos governos que premiaram com trilhões de dólares dos cofres públicos os bancos e especuladores que criaram ou alimentaram a farra financeira que detonou a crise de 2008, arruinando a vida de milhões e gerando imensos déficits públicos, aplicam agora, em nome da austeridade, as mesmas amargas políticas de cortes em benefícios sociais, empregos e salários. Ou seja, a mesma prescrição neoliberal de antes. As vítimas da irresponsável orgia financeira de uns poucos ricos e novos ricos são obrigadas a pagar ainda mais. Os imensos protestos sociais vistos na Europa desde 2010 são decorrentes da revolta contra a imoralidade desta opção. As políticas recentes desses governos indicam que ainda não há um esgotamento do neoliberalismo como sugere Bresser Pereira, que a força desta corrente não está exaurida, que o recurso à intervenção do Estado até aqui foi exclusivamente para salvar o capital. Não há, por enquanto, até 2013, uma nova virada do capitalismo global em direção a uma segunda onda de keynesianismo, como na década de 1930. Não ocorre hoje em nenhum país algo sequer parecido ao New Deal de Roosevelt nos anos 1930. E tampouco os movimentos socialistas sob a bandeira do marxismo, ainda muito fragmentados, voltaram a acumular até aqui forças suficientes para apresentar uma alternativa global ao capitalismo, como depois de 1945. A explicação do não afastamento do neoliberalismo até o momento, apesar da gravidade da crise atual, é também que, pela ação rápida e coordenada dos governos, ela não teve a mesma intensidade da Grande Depressão iniciada em 1929. Novos repiques da crise atual poderão alterar a situação.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

82

Nem sempre, no entanto, as saídas das crises caminham num sentido positivo, como bem o demonstrou a década de 1930 com o surgimento do nazismo e o mergulho na Segunda Grande Guerra, com o custo humano de mais de 72 milhões de mortos. Para que não venha um novo e maior desastre civilizatório, por ninguém desejado, afastar o neoliberalismo – e dessa vez talvez definitivamente – da condução dos assuntos humanos, ao mesmo tempo em que se constrói uma nova alternativa ao capitalismo, através das lutas sociais e do debate sem tréguas, é uma tarefa pendente e urgente daqueles que ainda pensam no progresso social. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CRISE COMO OPORTUNIDADE DE CONSTRUIR UMA NOVA AGENDA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO Quando apenas se pronunciava a crise mundial em andamento, Cano (2007, v. 1, p. 59-69) perguntava: Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento? Desde o início da crise até hoje, os Estados têm agido apenas na direção de socorrer o capital. Mas os tempos mudaram. Mesmo lentamente, o pêndulo do pensamento econômico começa a se mover e a resposta à pergunta de Cano pode ser sim. A crise atual vem abrindo espaço também para uma rediscussão do papel do Estado na indução do desenvolvimento econômico e social, para uma reorientação de agenda, para as sociedades se oporem aos ajustes fiscais e exigirem a manutenção e, num segundo momento, a ampliação mesmo das políticas sociais. O Estado começa a ser visto novamente não apenas como problema, mas como solução (EVANS, 1993). Não é outro o sentido da aprovação da reforma no sistema nacional de saúde pública por Barack Obama nos EUA, ainda que muito limitada. As imensas mobilizações sociais de jovens desempregados, “indignados”, na Espanha e em toda a Europa desde 2010 ocorrem contra a redução das políticas sociais de Estado e pela falta de empregos. Lentamente esses movimentos começam a apontar para os verdadeiros responsáveis pelo desastre atual. O movimento Ocupe Wall Street em Nova Iorque, neste segundo semestre de 2011, com repercussões em centenas de cidades pelo mundo, denuncia a ganância irresponsável dos

83

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

bancos e especuladores. As revoluções democráticas no mundo árabe desde 2011 também são parte desse amplo processo de rejeição a um capitalismo sem freios. Parcela da população do planeta está acordando e se pondo em movimento contra os efeitos da crise e contra um capitalismo voraz, desacorrentado, bestializado. No Brasil, a propaganda do Partido dos Trabalhadores – PT - não para de divulgar os avanços sociais do governo Lula, apoiada no fato de que, nos últimos oito anos, existiram alguns pequenos avanços em relação ao governo de FHC e do PSDB. Divulga-se à exaustão o fato de que mais de 30 milhões de brasileiros tenham deixado a miséria extrema e que o país tenha praticamente universalizado a educação básica. Programas de transferência de renda, como o Bolsa-Família, que beneficiava 12,7 milhões de famílias em 2011, foram centralizados e ampliados. Entretanto, números como esses não deveriam obscurecer a visão da inteligência crítica de esquerda no país. Ainda são gritantes os indicadores de atraso social, econômico, tecnológico, cultural e político a superar no Brasil. Mesmo integrantes dos governos do PT nos últimos anos,

reconhecem

que,

apesar

daqueles

pequenos

avanços,

“A

desigualdade no Brasil continua coisa de sociedade feudal” (POCHMANN, 2010, p.12). O fato é que, como procurou demonstrar Cano (2010), o governo Lula não rompeu com os pilares centrais da política macroeconômica neoliberal anterior, como o elevado superávit primário para pagar a dívida pública, do que decorre austeridade fiscal; alta taxa de juros para atrair e remunerar o capital

financeiro;

controle

da

inflação

pela

elevação

dos

juros e

represamento da demanda e não pelo aumento da produção; câmbio flutuante e relativa liberalização comercial; ampliação da política social de forma apenas residual, sem tocar nas reformas estruturais cruciais que o país precisa fazer. Os pequenos progressos apresentados ocorreram num marco global de continuidade, onde o essencial do modelo neoliberal anterior não foi alterado. De acordo com dados do próprio Banco Central do Brasil, em 2011, o país desembolsou aproximadamente R$ 230 bilhões com o pagamento de juros da dívida pública, o que equivale ao custo de mais de 10 programas Bolsa-Família. Se por um lado esse barato programa social custa ao país

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

84

anualmente algo em torno de 0,5% do PIB, o custo da dívida pública drenou entre 5% e 8% do PIB para o setor financeiro nos últimos anos. Em 2012, os recursos destinados ao seu pagamento consumiram mais de 45% do Orçamento Geral da União, o que pode ser facilmente comprovado nos portais oficiais. Ou seja, enquanto se tenta reduzir a desigualdade por um lado, a dívida pública segue concentrando renda e riqueza por outro. E os interesses dos bancos foram tratados nos últimos governos, inclusive nos de Lula e Dilma Rousseff, como um tabu sagrado, intocável. Como a dívida pública em grande medida está indexada à taxa básica de juros, cada ponto a mais nesta taxa desvia bilhões de reais dos assalariados para as mãos de 20 mil famílias no Brasil, muito mais do que o que retorna à sociedade com alguns baratos programas sociais. Ninguém contesta, nem mesmo o governo, que a Reforma Agrária quase nada avançou. Apesar dos poucos novos assentamentos, continua em andamento o processo de concentração fundiária no país. De acordo com o Censo Agropecuário do IBGE de 2006, divulgado em 2009, o índice de Gini de concentração fundiária saltou de 0,843 em 1998 para 0,854 em 2006. Segundo reportagem publicada pela revista Carta Capital, número 657, de 3 de agosto de 2011, de acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), os créditos para assentamentos despencaram de 958 milhões de reais em 2009 para apenas 30 milhões de reais nos primeiros sete meses de 2011, um acumulado muito abaixo da média dos anos FHC,

o que indica a quase

paralisação da Reforma Agrária no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff. É consenso que a maior aposta do governo Lula – o que se repete no governo Dilma –, em volume de investimentos, é no grande agronegócio exportador, como o etanol e a soja. A estrutura tributária brasileira continua extremamente perversa e concentradora de renda e riqueza. Além do aumento da carga de impostos nas últimas décadas, hoje em torno de 35% do PIB, a sua incidência centralmente sobre os produtos penaliza principalmente os pobres. E grande parcela da arrecadação não retorna sob a forma de serviços à população, mas é transferida para uns poucos milhares de famílias ricas através do mecanismo da dívida pública, que reconcentra a renda em proporção muito maior do que as transferências às famílias através dos programas sociais.

85

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Outra questão preocupante é o atraso tecnológico que o país vem acumulando, com o risco de desindustrialização. É verdade que existem avanços setoriais, como na indústria naval e na área do petróleo. Mas, em termos gerais, ao contrário dos países asiáticos, o Brasil tem ficado para trás no domínio de tecnologias de ponta (SCHWARTZ, 2006), especialmente na área de informática e de comunicações, apenas montando computadores e celulares, importando praticamente todos os componentes essenciais, dos quais não domina a tecnologia de fabricação. Isso vem gerando uma elevação no déficit do balanço comercial de produtos de alta tecnologia, o que já está obrigando o governo de Dilma Rousseff refrear as importações e conter o ritmo a economia. Vem caindo o peso dos produtos industrializados na pauta de exportações, enquanto dispara a porcentagem de produtos primários remetidos, um risco de volta ao passado. São questões estratégicas ofuscadas pela propaganda do governo, que entorpece a visão coletiva para pensar os grandes desafios que tem o país. Construir uma nova Agenda Nacional de Desenvolvimento, como sugeriu Cano (2010), exige uma ruptura real e definitiva com o modelo neoliberal, que coloque em pauta uma verificação e a rediscussão das formas de pagamento da dívida pública; uma significativa redução da taxa real de juros; uma reforma tributária que estabeleça imposto fortemente progressivo de acordo com a renda e a riqueza dos contribuintes, como ocorre nos países europeus; a elevação da taxa de investimento produtivo para um mínimo de 25%; a reavaliação da política cambial, de forma a proteger as empresas e os empregos dos trabalhadores do país; uma elevação significativa dos investimentos em educação, ciência e tecnologia; maior atenção básica à saúde, habitação etc. Além disso, uma Reforma Agrária verdadeira, que não destrua mais o meio ambiente, como faz o agronegócio. Estes seriam apenas alguns pontos de partida de uma agenda de pontos de discussão e ação para uma mudança real no país. Evidentemente, essa virada não se dará de forma automática, apenas pelo impacto da crise global, sem pressão social nos países, pois os poderosos interesses das empresas financeiras, industriais, agrícolas ou mineradoras, bem como a ideologia e a mão do neoliberalismo, seguem bem presentes nos governos, inclusive no Brasil, opondo-se às mudanças. O contingenciamento

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

86

de aproximadamente R$ 50 bilhões do orçamento federal de 2011 pelo governo de Dilma Rousseff, como o clamor de quase toda classe a capitalista e de sua mídia por mais cortes nos gastos e nos investimentos públicos, são uma constatação do que se diz acima e indicam o rumo escolhido pelo novo governo. Depois do “desvio” muito fracamente keynesiano dos últimos dois anos do governo Lula, forçado pela crise global, a orientação do novo governo parece agora retornar à “normalidade” ortodoxa dos primeiros anos do governo anterior, continuada por Guido Mantega. A consequência disso é a manutenção de um quadro secular pouco alterado de desigualdade e concentração de riqueza e renda, sem tocar nos grandes interesses do grande capital e modificando apenas tópica e lentamente a questão social. Disto decorre que a construção de uma nova e ousada agenda nacional, positiva, centrada no desenvolvimento econômico e humano sustentável, dependerá do debate franco, honesto, e, antes de tudo, de uma maior mobilização social, da intensidade da reação das sociedades aos novos planos de ajuste fiscal aplicados pelos governos e organismos que criaram a grande recessão iniciada em 2008. A onda de mobilizações observada atualmente na Europa e agora nos EUA não tardará a chegar ao Brasil, sendo talvez o impulso que o país precisa para iniciar uma mudança real da agenda.

87

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 09-23. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Fim da onda neoliberal. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 abr. 2008, Caderno Dinheiro, p. B2. BLS (Bureau of Labor Statistics). Labor Force Statistics from the Current Population Survey. Washington: BLS, 2011. Disponível em: http://data.bls.gov/cgi-bin/surveymost. Acesso em: 14 nov. 2011. CANO, Wilson. Brasil: é possível uma reconstrução do Estado para o desenvolvimento? Revista do Serviço Público de 1937 a 2007. Brasília: ENAP, Edição Especial. v. 1, p. 59-69, 2007. __________. Uma Agenda Nacional para o Desenvolvimento. Texto para Discussão 183. Instituto de Economia da UNICAMP, 2011. Disponível em: www.eco.unicamp.br/publicacoes. Acesso em: 10 fev. 2011. CHESNAIS, Francois. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configurações e conseqüências. São Paulo: Boitempo, 2005. EVANS, Peter. O Estado como problema e como solução. Lua Nova. São Paulo: CEDEC, n. 28/29, p. 107-156, 1993. EXTREMA-UNÇÃO. Reforma Agrária. Carta Capital, São Paulo, n. 657, p. 22, 3 ago. 2011. FOX, Justin. O Mito Dos Mercados Racionais - Uma História de Risco, Recompensa e Decepção em Wall Street. São Paulo: Best Business, 2011. HAGERTY, James. Indústria dos EUA começa a reverter seu longo declínio. Valor Econômico, São Paulo, 20 jan. 2011. HARRINGTON, Michael. Socialism Past and Future. Nova Iorque: Plume, 1989. HEILBRONER, Robert. A Formação da Sociedade Econômica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogans, 1987. HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. HOBSBAWM, Eric. J. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. IBGE. Censo Agropecuário de 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.

JPMORGAN, Banco. Diagrama divulgado no site mundial do banco em 22 jan. 2009, com dados fornecidos pela Agência Bloomberg, de 20 jan. 2009. Disponível em: http://www.jpmorgan.com. Acesso em: 22 jan. 2009. KRUGMAN, Paul. A Crise de 2008 e a Economia da Depressão. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2009.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

88

LAURELL, Ana. Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: LAURELL, Ana Cristina (Org.). Estado e políticas sociais no neoliberalismo. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002, p.151-178. LUTTWAK, Edward. Turbocapitalismo. São Paulo: Nova Alexandria, 2001. MARX, Karl. O Capital. Coleção Os economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. MINSKY , Hyman. Can “it” happen again? Essays on instability and finance. New York: M. E. Sharpe, 1982. NAVARRO, Vicente. Produção e Estado do Bem-Estar: o contexto das reformas. In: LAURELL, Ana Cristina (Org.). Estado e políticas sociais no neoliberalismo. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 91-124. PIKETTY, Thomas e SAEZ, Emmanuel. Income Inequality in the United States, 1913-1998, Quarterly. Journal of Economics, Nova Iorque, 118, p. 1-39, 2003. POCHMANN, Márcio. A escolha dos países ricos e a desigualdade. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno MAIS, p. 4, 28 out. 2007. ___________. Caros Amigos, São Paulo, nº 161, p. 12, entrevista, ago. 2010. REICH, Robert. Supercapitalismo: como o capitalismo tem transformado os negócios, a democracia e o cotidiano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. SCHWARTZ, Gilson. Projeto nacional separa Índia e China do Brasil. Folha de São Paul. São Paulo: 30 jul. 2006, Caderno Especial – A corrida dos emergentes, p.2. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999. STIGLITZ, Joseph. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura, 2003. _________. Resoluções do Ano Novo para a Recuperação. Artigo publicado em www.slate.com, em 03 jan. 2011. Acesso em: 06 mar. 2011. WILLIAMS, John. Shadow Government Statistics. Disponível em: www.shadowstats.com. Acesso em: 01 out. 2011. WILLIAMSON, John (ed.). Latin American Adjustment: How much has happened? Washington: Institute for International Economics, 1990. ZIMMERMANN, C. R. e ALVES J. C. L. O mito do declínio do Welfare State. Revista Emancipação, Ponta Grossa, 9 (2): 225-232, 2009. Disponível em http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/issue/view/111/showToc. Acesso em: 01 out. 2011.

.

89

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Apontamentos para uma História Econômica da Cidade de Diamantina1 Alessandro Borsagli2 Fernanda Guerra Lima Medeiros Borsagli3 RESUMO Sendo a economia um dos principais fatores para o desenvolvimento e o povoamento de uma região, então se uma região apresenta uma economia estável, propiciada pela exploração de recursos naturais, ou mesmo como entreposto comercial, ela se torna atrativa para a migração ocorrendo então um aumento populacional e urbano. Esse é o caso de Diamantina, já que nessa cidade, seu crescimento urbano está estritamente ligado ao crescimento econômico. No período colonial houve um maior controle populacional na cidade de Diamantina por parte da Coroa, então detentora exclusiva da exploração dos diamantes no Distrito Diamantino. No final do Século XIX ocorre um fluxo migratório para a cidade, em decorrência do crescimento econômico proporcionado pela acumulação de capital oriundo da decadente exploração de diamantes. Nas primeiras décadas do Século XX a cidade sofre uma estagnação econômica e urbana chegando a decrescer a partir dos anos 1950 em decorrência da decadência econômica. Nas ultimas décadas a economia vem crescendo novamente, juntamente com a malha urbana da cidade. Palavras chave: Crescimento econômico, crescimento urbano, diamantes.

ABSTRACT The economy is a major factor for the development and population of a region. If the region has a stable economy, caused by the exploitation of natural resources or even as a trading makes it attractive for migration occurring then a population increase and urban development. In Diamantina town, urban growth is closely linked to economic growth. During the colonial period there was a higher population control in the city of Diamantina by the Portuguese Crown, then sole owner of the exploitation of diamonds in the Diamond District. In the late nineteenth century is a migration to the city, due to the economic growth provided by the accumulation of capital from the decadent diamond exploration. In the first decades of the twentieth century the city suffered an economic stagnation and declining urban coming from the year 1950 due to economic decline. In recent decades the economy is growing again, along with the city network. Keywords: Economic growth, urban growth, diamonds.

Artigo apresentado em 10/04/2013 e aprovado em 11/06/2013. Bacharel em Geografia – PUC – MG. 3 Graduanda em Engenharia de Materiais – CEFET – MG. 1 2

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

90

INTRODUÇÃO A Restauração da Independência de Portugal em 1640 encerrou com a dominação espanhola sobre o Reino que durou sessenta anos. Portugal saiu da União Ibérica economicamente arrasado.

A

economia

açucareira,

alicerce

da

economia

portuguesa estava desorganizada e grande parte dos entrepostos comerciais de Portugal no Oriente haviam sido perdidos para outras nações que emergiam como potencias nesse período. Para manter as suas colônias, responsáveis pela base de sua economia, Portugal se viu obrigado a se aliar a uma das potencias emergentes no período e em 1642 é fechado o primeiro acordo entre Portugal e Inglaterra. Nas décadas seguintes o mercado do açúcar produzido nas colônias de Portugal ainda não havia conseguido se organizar, principalmente pela baixa dos preços no mercado europeu causada pelo açúcar das Antilhas Francesas e Holandesas. Junto com a decadência das colônias vinha a decadência da Metrópole. O iminente colapso econômico que se projetava forçou o Reino a encontrar uma solução para o déficit da balança comercial portuguesa. A solução encontrada pelo reino foi o investimento em expedições pelo interior do Brasil em busca do tão sonhado metal precioso, cuja existência já se conhecia através de relatos fragmentados de alguns exploradores e caçadores de índios provenientes de São Paulo. Foi necessário quase um quarto de século para a descoberta de ouro em parte do território que hoje pertence ao estado de Minas Gerais. A descoberta de ouro no interior do Brasil no final do Século XVII reacendeu a economia portuguesa, em franca decadência, conforme dito anteriormente desde meados do Século XVII devido à concorrência dos produtos oriundos das colônias inglesas, holandesas e francesas nas Américas. Isso levou a um imediato deslocamento de grandes contingentes populacionais para a região das Minas. Uma conseqüência desse deslocamento foi o surgimento de numerosos núcleos urbanos nas imediações das

91

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

áreas de mineração. Ao longo dos anos, alguns desses núcleos, estrategicamente situados em áreas onde a Coroa pudesse manter controle, foram crescendo e se fortalecendo economicamente sendo que alguns deles foram elevados à condição de Vila. Na região do Serro Frio apareceram inúmeros núcleos mineradores que com o tempo se tornaram arraiais, como por exemplo, o Arraial do Tejuco, atual Diamantina. Desde a sua fundação, a cidade de Diamantina sempre desempenhou um papel central na região do Alto Jequitinhonha. A descoberta de diamantes na região do Arraial do Tejuco, fez com que a Coroa desempenhasse um maior controle da região, uma vez que um grande contingente populacional se deslocou para a região atrás das riquezas provindas do garimpo. O comércio do arraial, desde os tempos coloniais sempre foi forte e abastecia todo o norte mineiro. O arraial adquiriu formas bem distintas em relação aos demais centros urbanos da capitania de Minas Gerais surgidos no mesmo período, tanto na sua organização social, como na organização econômica e política4. Durante sua história, a cidade de Diamantina passou por alguns

períodos

de

prosperidade

econômica,

com

forte

desenvolvimento do comércio, extração e lapidação de minerais preciosos, períodos de estagnação econômica e até crises. As marcas destes diferentes períodos econômicos de Diamantina estão refletidas no traçado urbano e nas características das edificações. Para se que possa compreender melhor estes períodos econômicos eles foram divididos em quatro períodos, porem ligados entre si, ainda lembrando que o crescimento econômico está estritamente ligado ao crescimento urbano. 1º Período: Da fundação do Arraial do Tejuco até o término do período dos Contratadores no final de 1771.

4

Fundação João Pinheiro, vol. 9, n° 7, p. 466, jul. 1979.

92

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O Arraial do Tejuco, atual Diamantina, surgiu como os outros núcleos urbanos do seu tempo em decorrência da existência e posterior

exploração

aurífera.

Estes arraiais que foram proliferando ao ritmo das descobertas de novos veios nos regatos e grupiaras espalhavam-se por áreas contíguas e por conta disso foram compondo uma rede urbana “ao longo dos caminhos e estradas nas encruzilhadas ou nas travessias de cursos d‟água, a margem dos locais onde o ouro e o diamante eram encontrados” (SILVA TELLES, 1978, p.46). Normalmente os arraiais, que se assentavam ao redor de capelas, orientavam-se pelos caminhos, configuração que se observa nos primeiros núcleos de

povoamento,

como

lemos

nas

palavras

de

Silvio

de

Vasconcellos: (...) suas ruas são sempre antigas estradas. Por isso mesmo, foram a princípio chamadas de rua da Praça, da Matriz, da Câmara, etc. Não porque nelas se localizassem estas edificações, mas porque a elas conduziam. Por isso mesmo ainda hoje os habitantes da zona rural tratam a cidade como „a rua‟, no singular, como uma reminiscência do trecho único da estrada onde se construíram estabelecimentos comerciais. „Vou à rua fazer compras‟, dizem. E, realmente, à rua quase só vão com essa finalidade (VASCONCELLOS, 1959)

Inicialmente o núcleo primitivo do Tejuco assentou-se na vertente do Córrego São Francisco onde se localizam as ruas de Santa Catarina e do Burgalhau. A ocupação se deu nesse local por estar próximas às lavras auríferas e pelo fato de que a estrada de acesso a Vila do Príncipe e a Vila Rica, então capital da Província, cortar o arraial. É por ela que chegavam os víveres necessários para a sobrevivência da população do arraial. As cidades mineiras do Século XVIII surgiram todas pelos caminhos abertos pelos primeiros exploradores. Os caminhos que interligavam os arraiais e que posteriormente transformaram-se em estradas anteciparam a institucionalização do espaço destes arraiais devido ao comércio e as rotas de abastecimento, caracterizando-os não mais apenas

93

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

como um “espaço de produção”, mas sim como “espaço de reprodução”, já que a ordenação e normatização urbana são sinais de que isso se define. A declaração da descoberta dos diamantes em 1729 fez com que um grande número de pessoas se deslocasse para o arraial. Um comerciante, Francisco da Cruz morador da Vila de Sabará relatou que a Vila estava ficando deserta, pois todos corriam para a região diamantina5. A chegada de tamanha população fez com que o arraial se expandisse para além do núcleo inicial. Ele foi crescendo em direção do Morro de Santo Antonio e o centro do arraial foi então deslocado para uma área menos tortuosa, no qual hoje se localiza a Praça da Matriz, atual centro de Diamantina. O arraial cresceu tanto em tão pouco tempo que o Governador da Capitania, Dom Lourenço de Almeida, reconheceu que a população do arraial já ultrapassara em muito a da Vila do Príncipe, embora esta fosse a “cabeça” da comarca. A influência do Tejuco já se espalhara por todo o norte de Minas. A economia do arraial sofreu um grande impulso com a descoberta e com o grande número de pessoas que se deslocaram para lá. Apareceram negociantes, comerciantes e tantas outras funções que a Coroa então percebeu que era necessário um maior controle sobre a região evitando assim prejuízos ao Erário Real. Em 1731 foi enviado ao Governador um decreto impedindo a exploração dos diamantes em todos os rios que os tivessem, decretando então o monopólio real sobre as gemas. A Metrópole queria ter maior lucro com as jazidas, já que só se cobrava apenas o imposto da Captação. Mas o decreto não foi posto em prática e o comércio do diamante voltou a ser franqueado em toda a região e o arraial do Tejuco, centro do comércio do diamante, continuava recebendo mais pessoas vindas das minas e até mesmo de Portugal. A Coroa, percebendo a necessidade de uma administração especial na região resolve criar no inicio de 1734 a Intendência dos 5

FURTADO, Chica da Silva, 2003, p.29.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

94

Diamantes. Nesse mesmo ano foi publicado um decreto que proibia toda e qualquer exploração dos diamantes na Demarcação. O fluxo de diamantes foi tão grande que o seu preço despencou na Europa, causando grandes prejuízos para a Coroa. Até 1734 os limites do Distrito ainda não se encontravam bem definidos, os decretos proibindo a mineração faziam apenas menção aos rios e ribeirões proibidos. Foi então feita uma delimitação mais precisa dos limites do Distrito em 1739, com cerca de oito postos fiscais que controlavam a entrada e saída do distrito (Figura 01). Também em 1739 foi estabelecido o sistema de exploração das lavras diamantinas por contrato, levando então a população residente no Distrito a procurar novas formas de sobrevivência.

Figura 01: Mapa do Distrito Diamantino onde se vê no centro da imagem o arraial do Tejuco, ponto de convergência de toda a região. Fonte: Arquivo Público Mineiro. Com o maior rigor por parte da Coroa o arraial, centro de convergência do comércio do Distrito e de fora dele, passou a ter mais controle sobre o que era aí comercializado. Era de extrema importância para a metrópole o controle, pois o contrabando era

95

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

extremamente forte e servia como base econômica de inúmeras famílias do Tejuco e em muitos casos, os contrabandistas eram acobertados pela própria Intendência6. Segundo cálculo de Eschwege7, no inicio do século XIX o volume do contrabando era igual ao da produção. Daí se pode concluir a importância do contrabando para a economia do Tejuco no período colonial. Segundo Felício dos Santos, foi no período dos Contratadores que o Tejuco aumentou consideravelmente sua população e o comércio se desenvolveu, mesmo com as leis e bandos em vigor, que procuravam controlar e até mesmo extingui-lo8. Uma das características da economia do Arraial no período colonial eram os rearranjos da população em torno das leis e decretos que vinham da metrópole, restringindo ou mudando a forma de exploração e ocupação do território. A Metrópole poderia e realmente tinha a intenção de inibir o máximo possível a acumulação gerada pelo comércio no Distrito, mas a população sempre encontrava uma saída para a sobrevivência estabelecendo redes de contrabando de diamantes, que a Coroa não conseguia desarticular, posteriormente

alugando escravos para

a

Real

para os Contratadores e,

Extração,

como

também

se

empregando na Administração, como se verá adiante. Mas, se por um lado a Coroa tentava controlar o Distrito para evitar a acumulação de Capital, por outro essa acumulação favorecia o Mercantilismo entre Colônia-Metrópole com a compra de produtos vindos de Portugal por alguns moradores mais abastados do Arraial que acumulavam fortunas devido ao contrabando de diamantes. O Mercantilismo era à base da economia brasileira no período colonial sob qual Portugal detinha os monopólios do comercio sobre os produtos enviados para a colônia. Esse monopólio perdurou até 1808 com a vinda de D.João VI para cá. E aquele era na verdade, a transferência da riqueza da colônia para a metrópole, sendo que no caso de Diamantina o enviado eram os diamantes, pequenas FURTADO, Livro da Capa Verde, 1996, p.65. ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, 1974, vol.2, p.89. 8 SANTOS, Memórias do Distrito Diamantino, 1976, p.119. 6 7

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

96

quantidade de ouro e pedras preciosas, tudo severamente controlado pela Coroa. O destino desses minerais na época já foi bastante estudado por diversos autores: o ouro foi em grande parte para a Inglaterra e serviu para financiar a Revolução Industrial, ao mesmo tempo em que o metal também ajudaria a fortalecer a economia da Ilha, em um comércio quase unilateral com Portugal, que trocava o ouro por manufaturas e artigos de luxo. Já o diamante,

monopólio

régio

era

a

produção

praticamente

empenhada aos banqueiros e negociantes holandeses. Com a dificuldade de combater os descaminhos do diamante, em 1771 o Marques de Pombal criou o monopólio real dos diamantes extinguindo o sistema de exploração por contrato e criando a Real Extração dos Diamantes. 2º Período: De 1772, quando a Real Extração assume o controle pela extração no Distrito até por volta de 1832 quando os rios diamantíferos foram franqueados para quem os quisesse explorar. A população do Distrito em 1772 soube se reorganizar em torno do novo sistema de exploração dos diamantes e passou a tirar daí o seu sustento. A classe média do Tejuco, por exemplo, passou a compor a guarda responsável pelo patrulhamento do distrito. A classe dominante, composta de portugueses e descendentes, passou a ocupar os cargos da Real Extração. Os escravos, que antes trabalhavam para os contratadores, foram alugados para a real Extração, que pagava aos seus senhores diárias pelo serviço (Figura 02). Mesmo com essa mudança na exploração dos diamantes continuaram tendo importância as outras atividades (comércio, agricultura e pecuária), atividades que eram exercidas dentro e fora da demarcação e que tinham participação de alguns cidadãos do arraial.

97

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Figura 02: Serviço de extração de diamantes no Rio Jequitinhonha em 1803. Fonte: Arquivo Público Mineiro Uma grande parcela da população tinha escravos alugados para a Real Extração e muitos deles viviam do aluguel pago pela Junta. Quando a Coroa pensou em revogar o monopólio dos diamantes em 1803, a população que vivia desse aluguel ficou temerosa de perder essa importante fonte de renda e para evitar um colapso da economia local foi necessário que a Coroa desistisse por um tempo dessa medida. Uma revogação do monopólio prejudicaria consideravelmente a população do arraial que já tinha consolidada a sua economia na Real Extração e a coroa suprimindo o monopólio certamente levaria o arraial e região à ruína. Saint-Hilaire observou, em 1818 o modo usado pelos habitantes do Tejuco para empregar seu capital:

A compra de escravos é também para grande numero dos habitantes de Tijuco [sic],um meio fácil de valorizar seus capitais;eles alugam à administração dos diamantes os escravos de que se tornam proprietários,e por esse meio retiram de seu capital juros de cerca de 16%. (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 19)

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

98

O comércio nesse período era intenso e supria a região com diversos artigos, geralmente importados de Portugal e da Inglaterra além dos cereais e grãos produzidos nas terras próximas do Distrito. John Mawe observou em 1808 que as altas somas pagas pela Real Extração: (...) movimentam grande comercio. As lojas estão abarrotadas de mercadorias de fabricas inglesas,assim como presuntos,queijo, manteiga, cerveja e outros produtos de consumo. Animais carregados deles chegam muitas vezes da Bahia e do Rio de Janeiro9 (MAWE,1974, p. 158)

Saint-Hilaire registrou em seu diário que: As lojas dessa aldeia são providas de toda sorte de panos; nelas se encontram também chapéus, comestíveis, quinquilharia, louças, vidros e mesmo grande quantidade de artigos de luxo, que causam admiração sejam procurados a uma tão grande distancia do litoral (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 33)

A partir de 1822, após a declaração de independência do Brasil vários rios diamantíferos foram franqueados para quem os quisesse explorar por sua conta. A Real Extração estava em franco declínio e impossibilitada de honrar os pagamentos em relação ao aluguel dos escravos. Em 1832 o governo Imperial resolve extinguir a Real Extração não acertando os alugueis dos escravos nem honrando dividas anteriores. Seus proprietários passaram então a empregá-los na exploração dos rios franqueados mantendo-se em parte o equilíbrio da economia da agora Vila Diamantina, criada em 1831. Na década de 1840, uma população estimada em cerca de 150 mil habitantes vivia direta ou indiretamente da exploração de diamantes na região de Diamantina. George Gardner, ao visitar a cidade de Diamantina em 1840 registra em seu diário que:

9

MAWE, Viagens ao Interior do Brasil, 1974, p.158.

99

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Muitas das lojas são bem iguais no aspecto às do Rio de Janeiro e sortidas mais ou menos dos mesmos artigos e a diferença de preço raramente excede de vinte por cento10 (GARDNER,1975, p. 208)

Segundo Fernandes e Conceição (2003):

as décadas de 1840 e 1850 foram testemunhas de um rápido crescimento demográfico e de uma significativa acumulação capitalista. Aos antigos mineradores e proprietários de escravos somaramse novos comerciantes de diamantes, atacadistas, fazendeiros, assim como garimpeiros ricos, frutos da descoberta de novas jazidas. Espelhando essa recente expansão econômica houve uma aceleração do crescimento da malha urbana de Diamantina (FERNANDES & CONCEIÇÃO,2003, p. 44)

3º Período: Da queda dos preços do diamante na década de 1860 até a modernização dos serviços de transporte, por volta de 1960.

Ao contrario do que ocorreu na região das minas, onde a decadência da exploração se revelou no final do século XVIII, na região de Diamantina essa só se consolidou mesmo a partir da década de 1860, com a descoberta de diamantes na África do Sul. O

comércio

dos

diamantes

entra

então

em

decadência,

provocando queda significativa no preço das gemas brasileiras e falência de vários negociantes de Diamantina. A elite local procurou outra forma de aplicar o capital acumulado voltando-se para o comércio com as outras regiões do estado e para a implantação de indústrias têxteis, como solução para a onda de quebras que estava ocorrendo na cidade. As elites locais, encabeçadas pelo bispo da recém criada diocese de Diamantina, enviaram uma representação à Câmara Municipal, distribuída posteriormente em todos os municípios do Norte, na qual ponderam:

10

GARDNER, Viagem ao Interior do Brasil, 1974, p.208.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

100

Não ignorais quais têm sido as conseqüências da atual crise: o comércio completamente paralisado, os mineiros arruinados, um quase estado geral de falências; e o que ainda é mais horrível, a miséria, a fome de milhares de trabalhadores que não têm em que se ocupar e com que sustentar suas famílias, porque vós o sabeis, nem todos possuem terras para cultivar. Uma fábrica de tecido neste município daria emprego a muitos braços e animaria a cultura de um gênero em completo abandono. E não seria esta a sua principal vantagem. Outras fábricas pode se estabeleceriam quando capitais hoje desanimados vissem um emprego lucrativo, certo e não precário de um comércio e mineração quase extinta (SOUZA, 1993).

As elites locais resolveram expandir seus investimentos para alem da indústria têxtil já citada, para o comercio e prestação de serviços. É nessa época que Diamantina se torna entreposto comercial entre a região leste colonizada há pouco tempo, que então escoava suas mercadorias, até o porto de Santo Hipólito no Vale do Rio das Velhas. Data também dessa época, uma tentativa de maior valorização dos diamantes no mercado internacional, com a criação das casas de lapidação. O isolamento da região proporcionou um fortalecimento do mercado regional protegido da concorrência externa. Diamantina tornou-se então, até as primeiras décadas do século XX, um dos mais importantes centros de comércio e indústria de Minas Gerais expandindo sua influencia por todo o norte mineiro (Figura 03). O período mercantilista já havia acabado, porém ainda havia uma maciça presença de produtos estrangeiros na cidade, não portugueses, mas na maioria ingleses. E como em outras partes do estado o capital estrangeiro fazia-se presente também em Diamantina.

101

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Figura 03: Rua Direita, uma das principais ruas comercias de Diamantina em 1868. Fonte: Arquivo Público Mineiro Segundo Martins, a cidade distribuía para todo o norte de Minas:

(...) tecidos, objetos de luxo, ferragens, louças, fumo, sal, querosene, cerveja, vinho, máquinas de costura, etc. Recebia produtos agrícolas, carne seca e toucinho, aguardente e rapadura, utensílios e ferramentas de ferro, algodão, etc (MARTINS, 2003, p. 287)

Não se deve esquecer também que foi no inicio do Século XX que se inicia a construção do ramal ferroviário devido à pressão local pela necessidade de um melhor escoamento de mercadorias. Inaugurado em 1914 o ramal inaugurou uma nova fase de comunicação de Diamantina com os centros mais importantes do Estado e também do escoamento das mercadorias de todo o norte de Minas e Alto Jequitinhonha. Os caminhos tiveram grande importância para o desenvolvimento de Diamantina, pois eles foram fatores determinantes para as ligações entre Diamantina e outras regiões do Estado. No inicio do século XX, o grande comércio local fazia negócios com os comerciantes do Rio de Janeiro e Belo Horizonte e comprava ouro e diamantes para depois revendê-los. As grandes

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

102

casas comerciais de Diamantina estavam presentes em toda a região, fazendo diversas transações comerciais com os pequenos e médios

estabelecimentos

existentes.

O

mercado

municipal

administrado pela Intendência detinha o monopólio do comercio no abastecimento e era para aí que se dirigiam os tropeiros ao chegar à cidade, expondo suas mercadorias para a população ter o acesso antes dos comerciantes locais. A cidade de Diamantina, em 1925 era uma das dez maiores cidades em numero de estabelecimentos comerciais, ficando atrás apenas das cidades ligadas à economia mineira da Republica Velha. Por volta dos anos 1930 a região do Alto Jequitinhonha, da qual Diamantina faz parte, começou a sofrer uma estagnação econômica deflagrada por vários fatores como a constante emigração para as regiões mais ao sul, que se industrializavam em um ritmo acelerado e necessitavam cada vez mais de mão de obra. A concorrência com os produtos de outras áreas industriais que antes quase não existiam passou a ser cada vez mais crescente, em virtude da falta de investimentos nas indústrias da região que se tornaram obsoletas. A abertura de estradas de rodagem diminuiu o tempo de chegada de mercadorias de fora aos centros de comércio, o que levou a partir de Década de 50 a extinção do oficio de Tropeiro, que constituía desde os tempos coloniais a principal forma de comércio da cidade de Diamantina com as cidades do norte. As estradas ainda foram responsáveis pela perda da liderança que Diamantina tinha no norte do estado, pois, as principais rodovias foram abertas a leste da cidade, ligando diretamente os eixos Rio - São Paulo à região leste de Minas Gerais e Bahia, fazendo com que o fornecimento de mercadorias não passasse mais por Diamantina como era feito anteriormente. 4º Período: Da decadência da indústria têxtil e da mineração a partir de 1960 até a recuperação nos dias atuais.

103

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

No inicio dos anos 1960, Montes Claros começa a se despontar como força polarizadora da região norte de Minas Gerais com a pecuária e a industrialização que se acentuou nos últimos anos, tirando a influencia regional que Diamantina exercia no norte desde o Século XVIII. A cidade passa a ter sua economia baseada no garimpo, que ainda persistia na região, na agricultura e no pequeno comércio, que tinha influência em uma região bem menor do que fora antes. A população migrava para os grandes centros urbanos a procura de melhores oportunidades. A decadência econômica também atingiu a cidade do Serro que passou a ter sua economia fortemente influenciada por Diamantina. O garimpo começou a entrar em decadência no final da década de 80 afetando diretamente a economia da região de Diamantina. preocupações

Nesse

período

ambientais

da

também forma

surgem como

às

primeiras

estavam

sendo

explorados os recursos naturais existentes na Serra do Espinhaço, onde se encontra Diamantina. A população local e os políticos abriram discussões para se buscar uma nova forma de reaquecer a economia diamantinense e assim recuperar a liderança exercida em tempos anteriores. A cidade de Diamantina, já quase tricentenária, começou a voltar seus olhos para o turismo. Pousadas iam surgindo e os casarões centenários passaram a ser reformados com mais zelo, conservando suas características originais. O centro histórico já era tombado pelo IPHAN desde 1938 e as autoridades, tendo Ouro Preto como exemplo queriam ir mais fundo. Diamantina era no período colonial o mais importante núcleo urbano de Minas Gerais depois de Ouro Preto11 e, como essa cidade, ainda mantinha quase todas suas características originais intactas. Os Casarões mais opulentos, idênticos aos da metrópole, estavam lá ainda como há mais de 200 anos, testemunhas da ascensão e queda da exploração diamantífera. No ano de 1993, Diamantina apresentou pela primeira vez interesse em se tornar Patrimônio Histórico da Humanidade, um fator 11

SAINT-HILAIRE, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, 1974, p.141.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

104

chave para o fortalecimento do turismo na região, porém a UNESCO recusou a sua candidatura. Em 1997 Diamantina se candidatou pela segunda vez na UNESCO para se tornar Patrimônio Histórico da Humanidade. Finalmente o titulo de Patrimônio Histórico da Humanidade veio em Dezembro de 1999 aumentando o fluxo turístico em todo o município e região, da qual Diamantina se tornou o pólo central para acomodação e partida dos turistas (Figura 04).

Figura 04: O Mercado dos Tropeiros à esquerda recebia grande parte dos produtos oriundos do norte de Minas. A direita uma parte do centro comercial de Diamantina. Fonte: Foto dos Autores (2009).

Atualmente, além do turismo a cidade se firmou novamente como pólo regional pelos inúmeros serviços prestados à população das cidades vizinhas e a própria cidade. A presença de Universidades e alguns serviços-chave provam isso. A proibição definitiva do garimpo em 2002 levou ao deslocamento de inúmeras pessoas da região, que sem serviço, se fixaram na periferia da cidade em busca de melhores condições. Considerações Finais Em comparação com os períodos anteriores, Diamantina atualmente perdeu a sua influência em parte das regiões norte e nordeste de Minas Gerais, porém continua exercendo grande

105

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

influência econômica nos municípios vizinhos e no Serro, principal cidade da região depois de Diamantina. Atualmente, a população das cidades vizinhas vêm buscar alguns serviços existentes apenas em Diamantina como Universidades, aeroporto, serviços públicos e especialidades médicas, além do comércio que atende grande parte do Alto Jequitinhonha. O diamante, força motriz da economia diamantinense por mais de duzentos anos, atualmente tem uma pequena

representatividade

econômica

na

região,

sendo

explorado por pequenas companhias e por garimpos, na maioria ilegais. Diamantina tem se destacado no cenário mineiro pelo fato de ser considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO devido ao seu rico acervo histórico e arquitetônico. O título, recebido há quase dez anos serve atualmente como propaganda para atrair turistas para a cidade e região. O desenvolvimento dos meios de comunicação e principalmente de transporte a partir dos anos 50 com a abertura de novas rodovias, ligando as áreas mais ao norte diretamente com a região central do estado, abalaram um pouco a posição de centralidade econômica que se encontrava Diamantina. Quando se iniciou a busca de novas formas de reaquecer a economia diamantinense a partir dos anos 80 o turismo foi uma das formas encontradas para vencer a decadência econômica.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

106

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONCEIÇÃO, Wander. & FERNANDES, Antonio Carlos. La Mezza Notte. Diamantina: UFVJM editora, 2ª edição, 2007 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Editora Fundo de Cultura, 3ª edição 1961. FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FURTADO, Júnia Ferreira. O Livro da Capa Verde, o Regimento Diamantino de 1771 e a Vida no Distrito Diamantino no Período da Real Extração. Editora Annablume; 1ª edição 1996. GARDNER, G.; Viagem ao Interior do Brasil. São Paulo:Editora Itatiaia, 1975. MARTINS, Marcos Lobato. As variáveis ambientais, as estradas regionais e o fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930. Revista Brasileira de História. São Paulo. v. 26, n.51, p. 141-169. 2006. MAWE, J.; Viagens ao Interior do Brasil. São Paulo: Editora Itatiaia, 1974. SAINT-HILAIRE, A.; Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. São Paulo: Editora Itatiaia, 1974. SANTOS, J.F.; Memórias do Distrito Diamantino. São Paulo: Editora Itatiaia 4ª edição, 1976. SILVA TELLES, Augusto Carlos da. A ocupação do território e a trama urbana. Revista Barroco, Belo Horizonte, v. 10, 1978/79. SOUZA, José Moreira de. Cidade: momentos e processos. Serro e Diamantina na formação do Norte Mineiro no século XIX . São Paulo: Marco Zero,1993. VASCONCELLOS, Silvio de. A Arquitetura Colonial Mineira. In: Primeiro Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1957.

107

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A Soberania Econômica Nacional e a Economia Institucional Européia1 Gustavo Granado2

RESUMO Compreender a soberania econômica nacional é uma tarefa árdua, mas que pode ser concretizada com a ajuda da teoria das instituições. Assim, quando compreendemos corretamente o que são instituições, conforme propõe Douglass North (1990), e conceitos decorrentes da economia institucional tais como estrutura de governança e a dimensão constitutiva das instituições, fica mais claro o contexto político-economico em que a regulação bancária da União Europeia se dá, permitindo mesmo um melhor entendimento da ideia de soberania nacional. Palavras-Chave: Soberania, Instituições, Institucionalismo, União Europeia. ABSTRACT Understanding the national economic sovereignty is a hard task, but it can be done with the help of the institutional theory. With an accurate comprehension of the institutions concept, as it is proposed by Douglass North (1990), and other concepts derived from the institutional theory as governance strutcture and the economic dimension of institutions, it turns more clear the political and economic context in which the financial regulation of European Union happens, therefore leading to a better understanding of the national sovereignty concept. Keywords: Sovereignty, Institutions, Institutionalism, European Union.

1 2

Artigo apresentado em 10/08/2013. Aprovado em 10/10/2013. Doutorando IE – UFRJ. Mestre em Ciência Política – UFRJ.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

108

INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é demonstrar, a partir de uma perspectiva mais específica da economia institucional, como a soberania econômica nacional se desenvolve dentro do contexto das instituições e organizações que promovem a regulação bancária na União Européia.

Para desenvolver este estudo, a pesquisa parte da teoria das instituições na perspectiva apresentada por North (1990:p.3) de instituições como regras do jogo cujas mudanças dão forma aos aspectos que envolvem a sociedade ao longo do tempo. Com base nesta concepção, este capítulo pretende estudar as normas que definem as relações político-econômicas dentro da União Européia, como os seus tratados fundacionais e as normas de competência do Banco Central Europeu e dos Bancos Centrais Nacionais.

Ao aprofundar o estudo destas normas, entende-se que será possível então compreender a sistemática sob a qual funciona a União Européia e as regras que definem como o seu jogo político econômico é jogado. Ainda seguindo a perspectiva institucional apresentada por North, outro ponto importante que cabe aqui ressaltar é que o autor traça a distinção entre instituições e organizações (1990:p.4).

Desta feita, uma vez que as instituições são as regras do jogo, as organizações são os jogadores que devem seguir tais regras em suas respectivas relações de interação. Assim, enquanto as instituições podem ser concebidas como os tratados e normas de competências, as organizações, para efeito deste estudo, são o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais, que devem

109

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

seguir tais normas nas suas relações entre si.

Com a noção de instituições e organizações assim definida, é possível então contextualizar as relações políticoeconômicas dentro da União Européia. Para isso, será analisada a teoria de estruturas de governança de Williamson (1996:105) para compreender a governança, e por conseqüência, ter uma noção mais concreta sobre as relações de regulação bancária e da soberania econômica nacional na União Européia.

Trazendo esta compreensão para o objetivo deste capítulo, se intenciona identificar que o modelo de governança econômica

na

União

Européia

é

mais

adequado,

suas

características e atribuições. Desta forma, uma vez detectado o modelo de estrutura de governança, cabe então analisar as ferramentas

de

governança

econômica

utilizada

pelas

organizações. Neste contexto, diante da relação entre o Banco Central europeu e os Bancos Centrais nacionais, este capítulo pretende demonstrar que a principal ferramenta de governança econômica utilizada é a regulação das ações político-econômicas.

O primeiro objetivo, portanto, é o estudo das instituições para então promover o estudo das organizações que estão envolvidas nesta instituição. Com este aspecto, será analisada a perspectiva da dimensão constitutiva das instituições de Chang & Evans (2005:p.99). Segundo os autores, as visões funcionalista e instrumentalista sobre as instituições, muito embora válidas e que não podem ser descartadas, não são suficientes para explicar corretamente o papel das instituições na sociedade moderna. É preciso conceber o caráter constitutivo das instituições. As instituições desempenham este papel constitutivo moldando as formas com que grupos e indivíduos definem suas preferências e

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

estabelecem

suas

relações.

Chang

&

Evans

110

(2005:p.100)

argumentam ainda que os indivíduos, enquanto permanecem sob as condições impostas pelas instituições, passam a incorporar valores que influenciam suas relações e isso resulta em uma mudança de paradigma de determinados comportamentos, sendo que o mesmo raciocínio se aplica aos agentes econômicos. Trazendo estes argumentos para o objetivo deste capítulo, o estudo das normas e competências como instituição e do Banco Central Europeu e Bancos Centrais Nacionais como organizações vai proporcionar uma visão da instituição em sua dimensão constitutiva, uma vez que estas relações moldam e constituem uma nova forma de compreender a soberania econômica, particularmente no contexto da União Européia.

Desta

forma,

após

o

estudo

das

instituições

e

organizações e da análise da estrutura de governança da União Européia sob uma perspectiva constitutiva de suas instituições, poderá ser delineado com maior precisão o grau de interação entre o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais nacionais, para então poder compreender como funciona a soberania econômica nacional neste contexto institucional.

2 O Institucionalismo de Douglass North Douglass North apresenta uma interessante visão sobre as instituições, com um conceito muito preciso e bastante útil para o objetivo deste capítulo. Segundo North (1990:p.3), as instituições devem ser definidas da seguinte maneira: Institutions are the rules of the game in a society or, more formally, are the humanly devised constrains that shape human interaction. In consequence they structure incentives in human exchange, whether political, social or economic. Institutional change shapes the way

111

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

societies evolve through time and hence is the key to understanding historical change.

Esta passagem apresenta aspecto de extrema relevância, que merecem uma análise mais profunda. Primeiro, a conceituação de instituição como “regras do jogo” em uma sociedade, ou ainda como restrições que moldam a interação humana. Partindo então desta definição e a trazendo para a realidade dos cotidianos das relações internacionais, e, em especial, das relações econômicas internacionais dentro da União Européia, pode-se chegar então a conclusão que as instituições seriam as normas oriundas dos tratados entre as nações integrantes da União Européias, normas estas que determinam como cada membro deve se comportar, impondo limites na sua atuação. Seguindo este raciocínio, outro fator importante e que requer uma análise minuciosa é a questão de que as mudanças ocorridas nas instituições de uma sociedade ao longo do tempo acabam por moldar a evolução desta sociedade, sendo assim, o aspecto chave para compreender mudanças históricas. Aqui, sem dúvida, há um elemento de intensa importância para a soberania econômica. Com efeito, as instituições européias hodiernas não são as mesmas instituições do passado, passaram por mudanças ao longo do tempo, e a mudança destas instituições levou a outras mudanças históricas, dentre elas, a mudança de como compreender corretamente a soberania econômica nacional. Portanto, se compreendermos corretamente como se passou a mudança nas instituições da União Européia, seremos capazes de compreender, em termos atuais, como se desenvolve a soberania econômica nacional dentro da União Européia. Por outro lado, North (1990:p.4), além de definir com precisão a noção de instituições, também se mostrou preocupado em distigui-las de um outro conceito, segundo ele, não se pode

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

112

confundir. Trata-se do conceito de organizações, proposto da seguinte forma: A crucial distinction in this study is made between institutions and organizations. Like institutions , organizations provide a structure of human interaction. Indeed when examine the costs that arise as a consequence of the institutional framework we see they are a result not only of that framework, but also of the organizations that have developed of that framework. Conceptually, what must be clearly differentiated are the rules from the players. The purpose of the rules is to define the way the game is played. But the objective of the team within that set of rules is to win the game – by a combination of skills, strategy and coordination; by fair means and sometimes by foul means. Modeling the strategies and the skills of the team as it develops is a separated process form modeling the creation, evolution and the consequences of the rules.

Desta feita, Segundo o entendimento de North, o conceito de instituições não deve ser confundido com o conceito de organizações. Enquanto as organizações são compreendidas como sendo

as

“regras

do

jogo”,

as

organizações

devem

ser

compreendidas como sendo os “jogadores”, que estão submetidos àquelas regras. Com efeito, empreendendo tal raciocínio para a realidade das relações econômicas internacionais na União Européia, pode se afirmar que as organizações seriam o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais dos estados membros. Estas organizações estariam submetidas as “regras do jogo”, ou seja, das instituições, que seriam as normas dos tratados internacionais, que, dentre outros aspectos, determinam o âmbito de competência de cada um, determinando como cada qual deve se agir e impondo limites na conduta dos “jogadores”. Ainda segundo North (1990:p.6), cabe destacar e analisar a função primária das instituições. Neste sentido, The major role of institutions in a society is to reduce uncertainty by establishing a stable (but not necessarily efficient) structure to human interaction.

113

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Portanto, pode-se entender, a partir deste ponto de vista, que a função primária das instituições é reduzir as incertezas, estabelecendo uma estrutura estável para as relações humanas. Desta feita, trazendo esta visão para o objeto desta tese, tem se que as instituições, em sendo estas as regras do jogo, são os ordenamentos

legais,

cujo

objetivo

é

estabelecer

uma

previsibilidade de conduta por parte dos agentes envolvidos, reduzindo assim o grau de incerteza das relações. Com efeito, as relações entre o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais, dos estados membros da União Européia, são interações político-econômicas que se desenvolvem através de uma série de regulamentações previstas em normativos, sejam estes tratados, resoluções, decretos, ou qualquer outra forma de legislação que estabelece como as relações devem ser feitas e, principalmente, determinando como cada um destes agentes devem agir, proporcionando uma previsibilidade de conduta dos mesmos, reduzindo assim a incerteza das interações, trazendo uma estabilidade para estas relações. Trata-se então de uma estrutura normativa que proporciona uma interação político-econômica estável. Outra questão que North argumenta, porém não enfrenta, é o fato de que esta estabilidade trazida pelas instituições não necessariamente

apresenta

uma

estrutura

eficiente

para

a

interação entre os agentes político-econômicos. Muito embora as regras do jogo, ou seja, as instituições, sejam suficientes para dar uma estabilidade nas relações entre os agentes, a performance econômica não necessariamente será a mais eficiente. Quando um estado membro decide pelo seu ingresso na união econômico monetária da União Européia, está decisão é uma decisão político-estratégica deste estado, que entende que,

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

114

ao ingressar no bloco econômico, a sua performance econômica será mais eficiente que se permanecer apenas no âmbito nacional. Em

suma,

o

estado

opta

pelo

ordenamento

institucional

supranacional por compreender que este é mais eficiente que o ordenamento institucional nacional, tanto no que se refere ao incremento de sua economia, quanto na proteção que sua economia

obterá

frente

a

eventuais

crises

do

capitalismo

globalizado.

2.1. As regras do Jogo: Os Tratados Europeus As políticas econômica e monetária estão disciplinadas no título VIII do Tratado consolidado que dispõe sobre o funcionamento da União Européia. Já nas disposições gerais do art. 119 do referido Tratado é possível perceber uma interessante concepção acerca dos instrumentos e formas com que a política econômica européia deve ser conduzida, quando o próprio dispositivo legal determina que a política econômica da União Européia é baseada por uma estreita coordenação das políticas econômicas dos estadosmembros. Isto significa que as política econômicas nacionais devem ser conduzidas de tal forma que os objetivos comuns, estabelecidos pelo tratado em questão, possam ser concretamente alcançados. Esta coordenação de políticas econômicas nacionais seria então uma grande cooperação entre os estados-membros, cada qual com a sua incumbência de conduzir suas respectivas economias nacionais para produzir um resultado coletivo em que todos acabariam por beneficiados e, desta forma, os estadosmembros teriam um comportamento previsível e, portanto, com um comportamento econômico único. Como visto no capítulo anterior, a cooperação é o conceito chave para o pensamento liberal das relações internacionais.

115

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Portanto, analisando as instituições européias, ou seja, suas regras do jogo político-econômico, é possível estabelecer que as instituições estimulam as relações internacionais européias de forma com que seus estados membros cooperem entre si para que um resultado comum seja alcançado, sendo, em tese, uma instituição cujo aspecto liberal predomina, em oposição ao aspecto de conflito do pensamento realista. Esta questão fica ainda mais clara quando do art. 120, do mesmo tratado, que determina que os estados-membros deverão conduzir suas políticas econômicas no sentido de contribuir para a realização dos objetivos da União. Chega a ser inequívoco o caráter de cooperação proposto pela instituição. Com efeito, os estados-membros devem agir de forma que os objetivos do bloco supranacional sejam alcançados, ou seja, devem cooperar para que os objetivos comuns sejam efetivamente atingidos. Tal raciocínio fica cristalizado quando do art. 121 do referido tratado. Com efeito, este normativo impõe que todo estadomembro deve colocar suas respectivas políticas econômicas nacionais como fator de interesse comum. Muito embora seja uma política econômica de cunho nacional, os interesses sobre esta política econômica ultrapassam as fronteiras geográficas nacionais, e passam a formatar um grupo de interesse mútuo entre todos os membros, no qual o que até então era algo de natureza nacional, passa e consubstanciar uma natureza supranacional. Questão interessante a ser observada diz respeito então a possibilidade de um estado-membro não cumprir com tais determinações e não conduzir sua economia nacional de acordo com os interesses comuns e com as orientações gerais sobre política econômica a que todos os estados-membros estão vinculados. Com efeito, no que afeta tal assunto, a instituição ora sob análise não se mostrou digna de lacunas, ao revés, disciplinou

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

116

especificamente procedimentos que devem ser seguidos nestes casos e que geram efeitos diretos na questão da soberania econômica nacional. Desta feita, de acordo com o prescrito no dispositivo normativo 126 descreve que o comportamento econômico dos estados membros são objetos de constante de observação por parte de organizações supranacionais, cujo dever é constatar se algum estado-membro está com um desvio comportamental na condução de sua política econômica nacional, sobretudo quanto ao fator orçamentário.

Tais procedimentos iniciam-se em termos

mais burocráticos, em formas de relatórios e pareceres nos quais devem conter recomendações para que o estado-membro conduza sua política econômica de forma correta. O que torna a questão ainda mais interessante é a situação de que o estadomembro

nesta

recomendações,

posição, persiste

mesmo e

se

após

portar

ter

recebido

as

economicamente

em

desacordo com o determinado pelas instituições vigentes. Neste caso, há previsão clara e específica para a imposição de sanções no sentido de que o próprio de estado-membro acabe sendo pressionado a alterar seu comportamento econômico. Tais sanções incluem a previsão da divulgação pública de dados econômicos nacionais, como o índice de défice excessivo, suspensão

de

políticas

de

empréstimos

para

investimentos,

podendo, inclusive, haver aplicação de multas. Diante de todas estas possibilidades, verifica-se que a soberania econômica nacional, especificamente neste contexto, não impõe impedimentos para que acabe se sujeitando a imposições e sanções externas. Mesmo em um ambiente de cooperação, como visto, é possível que haja previsão de sanções para que os objetivos comuns sejam efetivamente alcançados. Tal situação, do ponto de vista do pensamento realista, interpretaria

117

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

como sendo um conflito entre políticas econômicas distintas, conflito este que seria previsto e promovido por instituições internacionais, o que demonstraria, do ponto de vista realista, que as instituições internacionais não são eficientes para evitar ou dirimir conflitos internacionais.

2.2 Os jogadores: O BCE e os BCN‟s O protocolo dezoito do Tratado Consolidado que dispõe sobre o funcionamento da União Européia regulamenta a criação e instituição prevista pelo art. 8º do mesmo tratado do sistema europeu de bancos centrais – SEBC. Trata-se de um sistema no qual estão congregados o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais dos estados membros, cujo objetivo principal é a estabilidade de preços, além do apoio as políticas econômicas gerais da comunidade européia com o intuito de incentivar uma repartição eficaz dos recursos. Analisaremos inicialmente estas características. Do ponto de vista da teoria realista das relações internacionais, vista no primeiro capítulo desta tese, este sistema estaria fadado a gerar conflitos entre as nações já que, ao buscar a estabilidade dos preços, interferiria na relação entre oferta e demanda,

bem

como

o

apoio

previsto

para

as

políticas

econômicas gerais da comunidade seria compreendido com uma forma de interferência nas questões econômicas nacionais e o que se pretende por repartição eficaz dos recursos, tal qual previsto pelo tratado, não necessariamente significaria uma repartição igualitária destes recursos, mas sim, uma repartição em que se permitiria que nações com poderes econômicos mais fortes ficassem com a maior parte dos recursos, em detrimento de nações economicamente

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

118

mais frágeis, o que levaria a um estado de permanente tensão nas relações econômicas entre tais nações. Por outro lado, a teoria liberal das relações internacionais, tal

qual

analisada no segundo capítulo desta tese, pode

compreender estas características de forma que se consagre uma cooperação para o desenvolvimento econômico continuo das nações envolvidas. Segundo a visão liberal, o sistema encarregado de manter a estabilidade dos preços é um mecanismo com que as economias nacionais se apoiarão para que o seu desenvolvimento econômico seja feito de forma a atender as suas necessidades econômicas de maneira mais eficiente, inclusive no que se refere à repartição eficaz dos recursos pois estes seriam repartidos de acordos

com as

necessidades

de

cada

nação,

que

não

necessariamente são semelhantes, em um verdadeiro processo de cooperação econômica para o desenvolvimento. Delineando as características do sistema europeu de bancos centrais, Haan, Sylvester e Eijffinger (2005:45) apontam: The ESCB is governed by the decision-making bodies of ECB: the Governing Council, the Executive board, and the General Council. The Governing Council of the ECB is the most important decision-making body of the ECB. It consists of the Executive Board of the ECB and Governors of the national central banks of the countries in the euro area. The Governing Council is responsible for formulating monetary policy, including decisions about intermediate objectives and interest rates.

Como visto, o sistema europeu de bancos centrais interfere em questões relevantes das economias nacionais, não apenas

em

seus

objetivos

intermediários,

mas

também

na

condução de suas respectivas políticas econômicas nacionais, com o intuito de estabelecer compromissos para o desenvolvimento comum.

119

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Eijffinger (2002) apresenta interessante estudo no qual detalha

de

maneira

bastante

aprofundada

a

questão

da

transparência da atuação do banco central europeu com relação ao mesmo parâmetro de outros bancos centrais nacionais pelo mundo. Tal estudo gerou a criação de um índice para medir o grau de transparência dos bancos centrais estudados, considerando uma série de variáveis, as pode-se destacar, dentre outras, a capacidade de cada um em divulgar dados macroeconômicos; abertura

dos

objetivos

das

políticas

econômicas

adotadas;

existência de quantificação dos objetivos primários, etc. Segundo o indicador, que varia em uma pontuação de zero a quinze, o banco central europeu consegue obter dez pontos no índice Eijffinger, o que significa que pode ser considerado uma organização de razoável transparência, porém ainda existe um caminho a ser percorrido para que a transparência possa ser considerada ideal. Esta conclusão também aparece em outro estudo sobre a transparência do Banco Central Europeu, este feito por Amtenbrink (2002). De pronto, cabe ressaltar que são estudos feitos na mesma época, através de indicadores diferentes, mas que chegam a mesma conclusão. Amtenbrink faz a sua análise baseado em quatorze variáveis, divididas em três grupos: objetivos; estratégias e comunicação. Cada grupo aborda uma série de questões que podem levar a organização em questão a somar no máximo vinte pontos. Entretanto, o Banco Central Europeu obtém dezesseis pontos, alcançando uma marca de oitenta por cento no índice de transparência, o que significa que é uma organização consideravelmente transparente, mas que pode aprimorar ainda nesta questão. Avançando na questão da transparência, cabe então analisar como é a accountability do Banco Central Europeu. Haan, Sylvester e Eijffinger (2005: 89):

120

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

In our view the concept of central bank accountability has three main features: 1. Decisions about the explicit definition and ranking of objectives of monetary policy; 2. Disclosure of actual monetary policy and 3. Who bears final responsibility with respect to monetary policy.

No caso específico do Banco Central Europeu é possível afirmar que seus objetivos estão claramente definidos, até pelo fato de

estarem

expressamente

previstos

nos

tratados

europeus,

notadamente no tratado que dispõem sobre o funcionamento da União Européia. Em razão dos objetivos estarem previstos em um texto legal, sendo então uma regra a ser seguida, ou seja, uma instituição no sentido proposto por North (1990), a estabilidade dos preços, bem como o apoio às políticas econômicas gerais da comunidade européia e a repartição eficaz de recursos, aliados aos princípios do livre mercado são uma definição explícita e com uma clara exposição dos objetivos da política monetária da União Européia, que é conduzida pelo Banco Central Europeu, com o apoio dos Bancos Centrais Nacionais. No que tange ao segundo requisito proposto para avaliar o grau de accountability do Banco Central Europeu, é preciso avaliar a forma com que as ações adotadas por esta organização são apresentadas bem como as intenções futuras na condução das políticas econômicas. Retornando ao protocolo dezoito do tratado consolidado que dispõem sobre o funcionamento da União Européia, tem-se que o Banco Central Europeu é impelido a publicar trimestralmente relatórios de suas atividades, bem como fornece

informa

em tais

relatórios qual

direção a

política

econômica deve seguir, dando conhecimento a seus pares, a saber, os bancos centrais nacionais da sua atuação e de qual caminho deve ser trilhado pelas economias nacionais de forma que o desenvolvimento econômico seja o mais eficaz para todos.

121

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Por envolvendo

fim, a

o

derradeiro

responsabilidade

requisito pela

trata

condução

da da

questão política

monetária. Para este requisito, Haan, Sylvester e Eijffinger (2005: 142) afirmam que é preciso considerar três questões: Concerning the final responsibility for monetary policy, we think that three issues are crucial: the ECB‟s relationship with the European Parliament, the introduction of an override mechanism and a dismissal procedure for the European Central Bank‟s governor.

Considerando então estes três fatores, tem se que o Banco Central Europeu é regido pelo princípio da independência, não havendo, portanto, subordinação ou ingerência na condução da política econômica. Desta feita, a relação entre o Banco Central Europeu e o Parlamento Europeu é uma relação entre duas organizações, na qual se respeitam as instituições envolvidas nestas relações. Seguindo esta linha de raciocínio, fica difícil também existir um mecanismo de substituição para as políticas do banco central, pois, uma vez que os governos não podem interferir nas políticas econômicas não há como promover uma substituição nas ações do Banco Central sem que sua independência seja afetada. Sobre a independência do Banco Central Europeu, Roberts (2010:p.58) afirma que: The European Central Bank (ECB), established by the 1992 Treaty on European Union, is a prominent example of the commitment to bank independence. It is explicitly forbidden from taking instructions from the European Council, which represents member states, and from the popularly elected European Parliament. The president and other members of the ECB‟s executive board are appointed for eight-year terms, and can be removed only if a court determines that they are guilty of serious misconduct. The ECB president must be an individual recognized for professional banking experience. The treaty stipulates that deliberations within the ECB on monetary policy are confidential.

A independência do Baco Central Europeu nos leva a análise do último fator, qual seja, a existência de um procedimento para

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

122

afastamento do dirigente do Banco Central Europeu. Com efeito, trata-se de uma questão delicada pois se o banco central é uma organização independente, deve restar livre de influencias ou ingerências políticas, para conduzir tecnicamente as políticas econômicas. Contudo, por outro lado, há de se salvaguardar a integridade da política para o desenvolvimento econômico no sentido de que o banco central seja uma organização imune aos governos nacionais de forma que estes sejam meros reféns de suas ações. Para que isso seja feito de forma que não afete a independência do Banco Central e, ao mesmo tempo, não permita que os governos nacionais fiquem inteiramente desguarnecidos, deve haver um procedimento transparente, calcando em premissas objetivas e técnicas, não políticas, para que seja possível avaliar se o dirigente do Banco Central, no exercício de sua função, não está tecnicamente

atuando

de

acordo

com

as

diretrizes

do

desenvolvimento comum, procedimento este então que permitiria o afastamento do dirigente com o objetivo de corrigir eventuais falhas técnicas na condução da política econômica e assim promover o desenvolvimento econômico da forma mais eficaz possível. No que se refere aos bancos centrais nacionais, o próprio relatório emitido em 2008 pelo Banco Central Europeu, como parte integrante do Sistema Europeu de Bancos Centrais afirma que: Os bancos centrais nacionais do Eurosistema são dotados de personalidade jurídica (ao abrigo da lei do respectivo país) distinta da do BCE. Simultaneamente, são parte integrante do Eurosistema, que é responsável pela estabilidade de preços na área do euro, e, como tal, desempenham as suas atribuições no âmbito do Eurosistema em consonância com as orientações e instruções do BCE. Os BCN participam na condução da política monetária única da área do euro. Realizam operações de política monetária, destinadas, por exemplo, a fornecer moeda do banco central às instituições de crédito, e asseguram a liquidação de pagamentos escriturais domésticos e transfronteiras. Além disso, conduzem operações de gestão de reservas externas por conta própria ou como agentes do BCE. Os BCN são também, em grande medida, responsáveis pela recolha de dados estatísticos nacionais e pela emissão e processamento de notas de euro nos

123

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

respectivos países. Desempenham igualmente funções fora do âmbito dos Estatutos do SEBC, salvo se o Conselho do BCE considerar que essas funções são incompatíveis com os objectivos e atribuições do Eurosistema. Ao abrigo da legislação nacional, os BCN podem assumir outras funções não relacionadas com política monetária. Por exemplo, alguns BCN estão envolvidos na supervisão prudencial e/ou actuam como o principal banqueiro dos respectivos governos.

Como se pode denotar, a atuação dos bancos centrais nacionais está intimamente vinculada as diretrizes propostas pelo Banco Central Europeu, não havendo muito espaço de atuação para as organizações nacionais se portarem de acordo com os seus interesses próprios, já que a imposição do interesse coletivo trazida pelo Banco Central Europeu limita a atuação de seus pares nacionais. Desta feita, a soberania econômica nacional, diante desta relação entre a atuação do Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais deve ser então compreendida como potencialmente conflituosa, já que haveria um choque de interesses na condução da política econômica? Ou, por outro lado, a soberania econômica nacionais deve ser compreendida em tal relação como uma forma de cooperação entre as organizações para que as mesmas, em consonância, possam conduzir as políticas econômicas rumo ao desenvolvimento? Uma ou outra visão perpassa necessariamente pela abordagem que se adota para as relações econômicas internacionais, sendo que para a primeira visão a teoria realista tem amparo e para a segunda visão o amparo estaria na teoria liberal. Uma vez então que foram analisadas tanto as instituições como as organizações – regras do jogo e jogadores – cabe então analisar em qual modelo de estrutura de governança esta relação se

desenvolve,

de

modo

a

avançar

um

pouco

mais

na

compreensão da soberania econômica nacional no contexto europeu.

124

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

3 As Estruturas de Governança de Oliver Williamson Uma vez analisado e compreendido o fator relativo à análise das instituições e organizações envolvidas nas relações econômicas internacionais na União Européia, cabe então agora avançar para compreender em qual contexto político-econômico tais instituições e organizações estão inseridas. Williamson (1996:p.105) apresenta sua análise sobre as estruturas de governança na qual propõe uma classificação em que tais estruturas são colocadas em três diferentes espécies, segundo a análise de algumas ferramentas e, dentre elas, está a capacidade de adaptação as mudanças, razão pela qual o estudo destas estruturas de governança torna-se fundamental para o desenvolvimento da presente tese, uma vez que a mudança da concepção

das

relações

econômicas

internacionais,

principalmente no âmbito da União Européia, apresenta uma forte mudança

na

forma

com

que

são

desenvolvidas,

influindo

diretamente na concepção da soberania econômica nacional e a capacidade de seus membros em se adaptarem a esta nova concepção das relações econômicas internacionais. Uma vez analisadas todas as formas de estruturas de governança propostas, será possível identificar a partir de suas características individuais, quais delas é aplicável às relações econômicas internacionais na União Européia e então poder melhor compreender em qual contexto se desenvolve atualmente a soberania econômica nacional. Como

dito,

Williamson

(1996:p.105)

apresenta

três

espécies diferentes de estruturas de governança, quais sejam as estruturas de mercado, hierárquica e híbrida. Para estabelecer a diferença entre cada uma destas espécies, Williamson utiliza alguns

125

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

atributos, que são divididos em atributos instrumentais e atributos de performance. Dentre os instrumentais há a intensidade de incentivos e a presença de controles administrativos. Já dentre os atributos de performance é considerado a forma de adaptação às mudanças, elemento fundamental para desenvolver o objeto desta tese, e a existência de regras contratuais. Com efeito, cada uma destas formas de estruturas de governança apresentará diferentes características que variam na apenas na presença ou não de um determinado atributo, mas também na magnitude, ou na capacidade, maior ou menor, de um determinado atributo influenciar nas relações econômicas. Segundo Williamson (1996:p.103): “markets are a „marvel‟ in adaptation (A) respects. Given a disturbance for which process serve as sufficient statistics, individual buyers and suppliers can reposition autonomously. Appropriating, as they do, individual streams of net receipts, each party has a strong incentive to reduce cost and adapt efficiently. (…) Matters get more complicated when bilateral dependency intrudes. As discussed above, bilateral dependency introduces an opportunity to realize gains through hierarchy. As compared with the market, the use of formal organization to orchestrate coordinated adaptation to unanticipated disturbances enjoys adaptive advantages as the condition of bilateral dependency progressively builds up.”

É, portanto, possível extrair de tal passagem que, na visão do citado autor, umas das diferenças que podem ser estabelecidas no que se refere as estruturas de governança de mercado e hierárquica é justamente com relação a capacidade ou forma de adaptação as mudanças. Segundo o autor, as estruturas de governança do modo de mercado possuem uma capacidade de mudança que ele denomina do “tipo A”, qual seja, uma capacidade de adaptação autônoma as novas circunstancias do mercado, devido a existência de fortes incentivos segundo os quais os agentes econômicos envolvidos alteram seu comportamento de modo a obter maior eficiência em suas relações econômicas.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

126

Diferentemente, as estruturas de governança do modo hierárquico são caracterizadas pela presença de uma dependência bilateral no que se refere a sua capacidade de adaptação frente às mudanças. Neste último caso as adaptações, denominada “Tipo C”, segundo o autor, seriam advindas de organizações, tal qual visto por North, que coordenam as ações de adaptação de forma que os agentes econômicos envolvidos desfrutem de vantagens mútuas. Uma vez postas tais características, é possível então fazer uma análise destas formas de estruturas de governança com relação aos pensamentos realista e liberal nas relações econômicas internacionais vistos nos capítulos anteriores. Com efeito, no que concerne a estrutura de governança do tipo de mercado, não existem controles administrativos e as adaptações às mudanças são feitas individualmente, através dos incentivos advindos das forças de mercado que influenciam os agentes econômicos. Aqui temos então um comportamento individual das forças econômicas, no sentido de que cada uma destas forças busca a melhor performance econômica para si, não importando se esta conduta pode afetar negativamente a economia de outros agentes econômicos, desde que a sua performance econômica tenha maior eficiência. Neste ambiente, no qual cada agente econômico procura implementar sua força econômica individualmente, sem a existência de controles administrativos, é muito propício para a geração de conflitos entre as forças econômicas que buscam cada qual sua maior eficiência. Esta estrutura de governança de mercado guarda então maior relação de compatibilidade com o pensamento

realista,

caracterizado

pela

presença

do

comportamento individualista e da geração de conflitos nas relações com outros atores. Por outro lado, a estrutura de governança do modo hierárquico conta com a existência de controles administrativos e organizações que fazem a gestão das condutas de seus atores econômicos para que se adaptem a eventuais mudanças de forma que a performance econômica a ser

127

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

considerada não é a performance individual de cada ator, mas a performance coletiva destes. Portanto, é então possível dizer que este modo hierárquico guarda maior relação de compatibilidade com o pensamento liberal das relações econômicas internacionais. Com efeito, como visto nos capítulos anteriores, o pensamento liberal preza não pelo conflito entre os agentes econômicos, mas pela cooperação entre eles, cooperação esta coordenada pela existência de organizações (no sentido proposto por North) internacionais, no qual a performance coletiva é o foco das ações. Ao lado dos modos de mercado e hierárquico, Williamson (1996:p.105) apresenta uma terceira forma de estrutura de governança que o autor nomeia de híbrida. Como o próprio nome sugere,

tal

estrutura

de

governança

não

apresenta

fortes

características para ser classificada como hierárquica ou de mercado, ao revés, apresenta pequenos traços característicos dos outros dois modos de forma que tenha características próprias que não se enquadram como de mercado ou hierárquica, criando assim uma forma de estrutura de governança autônoma. Desta feita, uma vez analisada as formas de estrutura de governança e suas respectivas características, bem como a sua aproximação com os pensamentos realista e liberal, cabe então tecer análise sobre qual forma de estrutura de governança melhor se adapta ao contexto político-econômico exercido na União Européia. Como visto anteriormente, a União Européia possui instituições e organizações com as quais desenvolve o seu funcionamento. Cabe então aferir neste contexto, partindo das variáveis apresentadas por Williamson, quais sejam a existência ou não de controles administrativos e qual forma utilizada para promover

adaptações

a

eventuais

mudanças

para

então

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

128

estabelecer com precisão se estamos diante de uma estrutura de governança de modo de mercado, hierárquico ou híbrido. Com efeito, dentro das instituições (regras do jogo) analisadas, é possível observar a existência de mecanismos segundo os quais as condutas econômicas dos estados-membros da União Européia são acompanhadas, devendo estes se portar de acordo com as diretrizes econômicas estabelecidas, de modo que, uma vez identificado que um determinado estado membro não está se portando adequadamente, há a previsão de deflagração de procedimento no qual se pretende impor ao estado-membro que obedeça as diretrizes de política econômica estabelecidas pelas instituições supranacionais. É exatamente o que está previsto no art. 126 do Tratado consolidado que dispõe sobre o funcionamento da União Européia. Especificamente no item 11 do referido dispositivo normativo, há a previsão se sanções e mecanismos de imposição dos quais destacase a possibilidade de suspensão de políticas de empréstimos por parte do Banco Central do Europeu para com os estados-membros e até mesmo a possibilidade de aplicação de multas até que o estado-membro corrija a sua política econômica nacional no sentido de obedecer as diretrizes estabelecidas pelo bloco supranacional. Desta feita, é possível então afirmar que tal dispositivo consubstancia mecanismos de controle administrativo do comportamento de condução das políticas econômicas nacionais de seus estados membros. Por outro lado, o art. 134 do referido tratado institui as organizações que vão atuar no âmbito da União Européia, dentre eles a instituição de um Comitê Econômico e Financeiro, cujo objetivo é promover a coordenação das políticas econômicas dos Estados-Membros, na medida do necessário ao funcionamento do mercado interno. Com efeito, trata-se de uma organização cujo

129

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

propósito é exercer a cooperação entre os estados membros, no sentido de que todos adotem políticas econômicas nacionais baseadas nos mesmos princípios, e tal coordenação pode sobressair, mormente no que se refere à necessidade de se adaptar a eventuais mudanças, os estados-membros não podem agir individualmente, ao revés, devem agir segundo a coordenação das organizações internacionais, já que, uma vez inerente a um único bloco supranacional, o comportamento econômico de um estadomembro influencia diretamente no comportamento econômico de outro estado-membro, havendo então uma dependência mútua para que ambos conduzam suas respectivas adaptações de modo a privilegiar o ambiente coletivo, cooperando uns com os outros. De acordo então com a classificação de Williamson, pode se afirma que tal tipo de adaptação às mudanças é do “Tipo C”, ou seja, a forma de adaptação as mudanças que enseja dependência mútua, com foco na performance coletiva. Portanto, uma vez que se pode constatar a existência de controles administrativos e forma de adaptação do Tipo “C”, expressamente previstas pelas “regras do jogo”, é possível então compreender que a União Européia é uma estrutura de governança do modo hierárquico.

4 Chang & Evans e a dimensão constitutiva das instituições Nos tópicos anteriores apresentou-se a concepção de instituições e organizações como regras do jogo e jogadores e qual a estrutura de governança estes elementos estão incluídos. Portanto, uma vez estabelecidos tais parâmetros, cabe agora analisar como estas instituições afetam a soberania econômica nacional.

130

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Para iniciar tal análise, parte-se da seguinte afirmação de Chang & Evans (2005:p.100): “focusing attention instead on institutions as devices which enable the achievement of goals requiring supraindividual coordination and, even more important, which are constitutive of the interests and worldviews of economic actors.

Segundo tal raciocínio, os atures sustentam que as instituições são instrumentos que permitem que objetivos que necessitam de coordenação supranacional sejam alcançados e constitui os interesses e a concepção de relações internacionais de atores econômicos. Há, portanto, dois fatores que inicialmente devem ser analisados. Primeiro, a idéia de que as instituições permitem que necessidades

que

exijam

coordenação

supranacional

sejam

alcançadas guarda uma relação de compatibilidade grande com as características do pensamento liberal das relações econômicas internacionais. Como visto no segundo capítulo desta tese, as instituições internacionais desempenham um papel fundamental para a cooperação entre as nações, permitindo que necessidades comuns sejam satisfeitas com maior eficiência. Desta feita, é possível depreender então que tal raciocínio considera uma visão liberal das instituições nas relações econômicas internacionais. Segundo, tem-se a idéia de que as instituições são elementos que dispõem de uma dimensão constitutiva, ou seja, as instituições constroem os interesses coletivos e proporciona uma nova visão das relações econômicas. Partindo então desta premissa e buscando inseri-la no contexto ora objeto desta tese, seria possível estabelecer que as instituições, ou seja, os tratados, e as organizações, quais sejam o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais

Nacionais,

constituíram

uma

nova

concepção

de

soberania econômica nacional. Com efeito, tal percepção fica ainda mais factível a partir da seguinte afirmação:

131

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Obviously, our simultaneous emphasis on the constitutive role of institutions and on a culturalist perspective on a institutional formation suggests a perspective in which institutions and economic actors are mutually constitutive. (Chang & Evans, 2005:p.100)

Interessante aqui é o fato de que os autores colocam as instituições e os atores econômicos em uma relação constitutiva mútua, ou seja, há uma interdependência entre eles de forma que um influencia nas características do outros. Tal fato é interessante uma vez que corrobora a conclusão obtida no tópico anterior, quando se compreendeu que a União Européia é uma estrutura de governança do modo hierárquico, pois, como visto, trata-se de uma dependência mútua para adaptação as eventuais mudanças e tal característica encontra amparo nesta passagem no sentido de que as instituições e os atores econômicos, sendo estes os estados membros, se constituem mutuamente. Com efeito, as instituições são estabelecidas pelos estados membros, que por sua vez estão vinculados a tais instituições. Seguindo tal raciocínio, os autores passam então a analisar a questão do surgimento de instituições de nível global e suas implicações para as instituições em diferentes níveis, inclusive no que se refere às instituições de nível nacional. Segundo Chang e Evans (2005:p.120): Global institutional building has implications for institutions at others levels, including the developmental state. Global institutional both embody and reshape global norms and world views, which in turn are incorporated into the world views of actors at the national level. Global institutional are also a constraining and enabling context for institutions at the national level, making it harder to maintain some institutions and easier for others to emerge. At the same time, the relationship between global institutions and nations stares is anything but oneway. Global governance institutions depend fundamentally on the capacities of nation states to execute their goals, even while they may enhance the capacities of nation states in certain areas by providing political clout and technical assistance. Looking at the

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

132

global institutions is a powerful reminder that institutional change is a multi-level process.

Em tal passagem, alguns aspectos mostram-se muito relevantes e merecem uma análise mais apurada. Inicialmente, sustentam os autores que a construção de instituições de nível global incorporam e reformulam as normas globais e as visões de mundo, que por sua vez, são incorporadas as visões de mundo de agentes ao nível nacional. Neste ponto, podese então depreender que o surgimento de uma integração global da economia proporcionou que novas instituições surgissem e assim novas normas surgiram, reformulando o contexto internacional, com novas concepções, que passaram a ser adotadas nacionalmente. Com tal raciocínio, poder-se-ia então deduzir que, o surgimento das instituições de nível global reformulou as então vigentes visões de mundo, tais como a concepção da soberania econômica nacional, de tal forma que o novo contexto das relações econômicas internacional fez com que os próprios estados-nação reformulassem a sua visão de soberania econômica nacional, para que fossem aptos a desenvolver suas atividades econômicas neste novo contexto global. Outro aspecto que merece uma melhor reflexão reside no argumento sustentado pelos autores que a relação entre as instituições e os estados-nação é uma relação de mão-dupla, pois aquelas dependem da capacidades destes em alcançar os objetivos. Neste ponto, os autores trazem uma importante noção de que as instituições internacionais, mesmo as de nível global, não são fatores poderosos ou mágicos que vão tornar o desenvolvimento econômico por si só, é preciso haver uma harmonia entre os objetivos propostos pelas instituições a o poder de ação dos estados em desenvolver suas atividades econômicas de tal forma que tais objetivos possam ser, efetivamente, alcançados. Trata-se, portanto, de uma verdadeira relação de interdependência entre instituições globais e estados para que objetivos comuns sejam obtidos e o

133

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

resultado partilhado por todos os agentes econômicos envolvidos. Para isso, é possível mesmo que as instituições globais promovam maior influência política ou até dê assistência para que os estados desenvolvam suas ações de acordo com os parâmetros préestabelecidos. Tal perspectiva reflete exatamente as características primordiais do pensamento liberal, no que concerne as relações econômicas internacionais, tal qual visto e analisado no segundo capítulo da presente tese. Em uma análise mais recente, Chang (2010) apresenta e analisa uma intrigante questão, que, ao final, terá muita relevância para o estudo da concepção da soberania econômica nacional. Segundo o autor, muito se discute na literatura acadêmica sobre os efeitos

que

as

instituições

provocam

no

desenvolvimento

econômico, no sentido de que com instituições fortes mais eficiente será o seu desenvolvimento econômico. Contudo, o autor levanta uma questão de que tal análise, ainda que não equivocada, é insuficiente, já que se deve considerar também o sentido reverso desta relação, ou seja, o impacto que o desenvolvimento econômico tem sobre as instituições, especialmente no que se refere às mudanças ocorridas nas instituições como conseqüências lógicas do desenvolvimento econômico. Tal questão reflete-se diretamente na concepção da soberania econômica nacional, visto que, conforme se procura demonstrar ao longo da presente tese, as relações econômicas internacionais hodiernas possuem características distintas das que possuem

em

tempos

idos,

portanto,

é

possível

que

o

desenvolvimento econômico tenha influenciado uma reformulação das instituições, com o surgimento de instituições supranacionais e globais e, diante de tais perspectivas, a concepção de soberania econômica nacional seja agora diferente do que era outrora.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

134

Portanto, a questão levantada por Chang, posta em outros termos, pode ser refletida sobre o seguinte aspecto: as instituições proporcionam um melhor desenvolvimento econômico e, por conseqüência, levaram a uma necessidade de se repensar a concepção de soberania econômica nacional, ou, no sentido inverso, o desenvolvimento econômico levou a novas e mais eficientes instituições, que por sua vez influenciaram na concepção da soberania econômica nacional? Para buscar resposta para esta questão, primeiro se analisará os termos e argumentos propostos por Chang e sua própria questão, para então realizar uma reflexão mais concreta sob o ponto de vista da soberania econômica nacional. Segundo Chang (2010:p.4), existem três argumentos que suportam a idéia de que o desenvolvimento econômico eficiente promove o aperfeiçoamento das instituições, quais sejam: Economic development changes institutions through a number of channels. First, increased wealth due to growth may create higher demands for higher-quality institutions (e.g., demands for political institutions with greater transparency and accountability). Second, greater wealth also makes better institutions more affordable. Institutions are costly to establish and run, and the higher their quality the more „expensive‟ they become (see below). Third, economic development creates new agents of change, demanding new institutions.

Inicialmente, Chang argumenta que o aumento da riqueza em função do desenvolvimento econômico tem por conseqüência um aumento expressivo da necessidade de se criar instituições com maior qualidade, que envolvam, no exemplo citado pelo autor, maior transparência e responsabilidade no desenvolvimento de suas funções. De acordo com este argumento, o desenvolvimento econômico proporciona um maior poder de ação por parte dos cidadãos inerentes a uma determinada economia, no sentido de que, com maiores recursos, maior a sua

135

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

necessidade de ter para si instituições mais eficientes, com maior poder de controle do comando da economia, para que o desenvolvimento alcançado não se perca e continue progredindo. Trazendo então tal argumento para a questão da soberania econômica nacional, é possível então analisar tal situação partindo-se do ponto de vista que tal necessidade para instituições

mais

eficientes

no

controle

do

desenvolvimento

econômico não sejam apenas instituições nacionais, mas sim, o surgimento de instituições supranacionais que, por sua natureza, teriam maior poder de controle e assim poderiam exercer suas funções com mais transparência e responsabilidade. Diante de tal quadro, teríamos então instituições de natureza supranacional, com poder de controle e supervisão do desenvolvimento econômico nacional, situação esta em que o conceito de soberania econômica nacional tradicional não mais seria suficiente para refletir tais relações econômicas internacionais, havendo então a necessidade de se refletir para então buscar compreender corretamente a soberania econômica nacional dentro deste novel contexto. Portanto, com este argumento, seria então possível compreender que existe uma relação de compatibilidade lógica entre o regular desenvolvimento econômico e o aperfeiçoamento das instituições, que, por conseqüência, levaram à necessidade de se repensar a compreensão da soberania econômica nacional. Como

se

verá

mais

adiante,

esta

relação

de

compatibilidade lógica não se apresenta viável unicamente para o primeiro argumento trazido por Chang, mas também se apresenta consistente com os dois próximos argumentos analisados pelo autor, e que serão abordados sob o ponto de vista da soberania econômica nacional a seguir.

136

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O segundo argumento trazido por Chang (2010) para dar suporte

ao

seu

pensamento

de

que

é

possível

que

o

desenvolvimento econômico gere melhores instituições, e não no sentido inverso desta relação, reside no fato de que melhores e mais eficazes instituições tem um custo alto para serem criadas e se desenvolverem em suas funções, ou seja, é preciso que haja uma capacidade de arcar com maiores custos para que então seja possível se obter melhores instituições. Tal capacidade de suportar maior custo advém exatamente, na visão de Chang (2010), do desenvolvimento econômico, seguindo o raciocínio de que quão mais a sua economia se desenvolve maior se torna o seu poder econômico e, portanto, maior será a sua capacidade de arcar com custos maiores. Uma vez que a economia nacional tenha esta maior capacidade de arcar com maiores custos, é possível então que haja uma necessidade de se estabelecer instituições com mais qualidade e eficiência, uma vez que seria então possível arcar com o custo de tal decisão. Seguindo

então

este

argumento,

a

relação

entre

desenvolvimento econômico e instituições seguiria este sentido e não o sentido reverso. Trazendo então este argumento para a questão da soberania econômica nacional, seria então possível argumentar que o desenvolvimento econômico, em função do maior poder de absorção de custo, provoque a criação e o desenvolvimento de melhores instituições e, por conseguinte, a repensar a noção da soberania

econômica

nacional?

Utilizando-se

dos

elementos

contidos nos argumentos, a conclusão a que se chega para tal indagação é positiva. Como visto no argumento anterior, as instituições que advém

do

desenvolvimento

econômico

não

seriam

137

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

necessariamente

instituições

nacionais,

mas,

sim,

instituições

supranacionais. Com efeito, em função da própria natureza de tais instituições, os custos com os quais se tem de arcar com a criação e desenvolvimento de instituições nacionais são menores do que os custos com os quais se tem de arcar com a criação e o desenvolvimento

das

instituições

supranacionais.

Instituições

supranacionais implicam em maior custo do que instituições nacionais. Portanto, com maior poder econômico, é possível que se estabeleça novas instituições, e quem tais instituições sejam supranacionais e, por fim, provoquem a necessidade de se repensar a noção de soberania econômica nacional. Seguindo então a análise dos argumentos trazidos por Chang (2010), por fim, o autor salienta o fato de que o desenvolvimento econômico faz surgir novos atores da mudança, que por sua vez, necessidade de novas instituições. Para sustentar tal argumento, o autor ressalta algumas evidencias históricas que, em sua visão, realçam esta relação entre desenvolvimento econômico e novas instituições. Como exemplo, Chang (2010) cita a revolução industrial, que deu origem a novos atores, como os bancos, que se impuseram diante dos proprietários de terras e estabeleceram novas instituições. Ainda para exemplificar, o autor cita o surgimento da classe operária e seu poder de ação, que fizeram surgir novas legislações laborativas protetivas. Portanto, é possível, na visão de Chang (2010) que o desenvolvimento econômico faça surgir novos atores na economia, que por sua vez farão com que se estabeleçam novas instituições. Trazendo então esta análise para o campo da soberania econômica nacional, é possível chegar à conclusão de que o desenvolvimento econômico possa fazer surgir novas instituições ao ponto de se tornar necessário repensar a soberania econômica nacional? Como visto nos dois primeiros argumentos, a resposta se

138

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mostrou positiva, e assim também se apresentará neste terceiro argumento. Com efeito, as

relações

econômicas internacionais

hodiernas não se travam mais como se passava em tempos idos. O desenvolvimento econômico trouxe novos atores econômicos internacionais que atualmente passaram a fazer parte deste contexto.

Empresas

multinacionais,

Organizações

Não

Governamentais, dentre outros, são novos atores que atuam diretamente nas relações econômicas internacionais, ao lado dos tradicionais atores, quais sejam, os estados nacionais. Corroborando este entendimento: O principal processo atuando na reconfiguração das relações internacionais, a transnacionalização, provoca o aparecimento simultâneo de novos atores – juntamente com os já existentes – se organizam. (...) São também novas entidades paraestatais de poder (...). São, ainda, as organizações “não governamentais” multinacionais, empresariais ou não. (Albuquerque: 2005, p.83)

A existência, portanto, de novos atores nas relações econômicas internacionais é então um fato inegável, mas o que torna tal passagem interessante é o fato de que o surgimento de novos atores neste processo não elimina os atores antigos, ao revés, estes

novos

atores

se

somam

neste

processo

e

passam,

conjuntamente com os atores originários, a formar um contexto no qual se desenvolverá as relações econômicas internacionais. Isto significa que os estados nacionais permanecem como importantes

atores

das

relações

econômicas

internacionais,

contudo, não são os únicos atores envolvidos neste processo, pois, atualmente, como visto, existem novos atores que ocupam, cada vez mais, espaço nestas interações econômicas e cabe aos estados se adaptarem a este novo contexto.

139

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

E é exatamente neste ponto que a questão da soberania econômica nacional se apresenta. Essa adaptação, pela qual o estado nacional deve passar para que se insira neste novo contexto, perpassa necessariamente pela revisão da compreensão de sua soberania econômica. Com efeito, quando os estados nacionais, quando únicos atores inerentes ao processo de relações econômicas

internacionais,

permitem

entender

a

soberania

econômica nacional de tal forma que a presença de novos atores, sobre tudo atores não estatais, agora também inerentes a tal processo, não possui a capacidade de apresentar com precisão as características agora apresentadas pelo novo quadro no qual se estabelece as relações econômicas internacionais. E isso se dá em função de que, a presença destes novos atores, como Chang (2010) sustenta, demandará o surgimento de novas instituições, novas regras do jogo, para que a participação de tais atores seja feita de forma clara e precisa, cada qual com a sua respectiva função dentro do sistema econômico internacional. Com estas novas regras do jogo (instituições), advindas em função do desenvolvimento econômico, que gerou novos atores neste processo, o papel de cada ator será redefinido e o estado nacional então deverá se adaptar a este novo quadro e a soberania econômica nacional passará por uma nova compreensão. O último argumento trazido então por Chang (2010) para sustentar o raciocínio de que o desenvolvimento econômico provoca o surgimento de novas e mais eficazes instituições, e não o revés, pode ser utilizado também, de forma positiva tal qual os outros

dois

argumentos

analisados

anteriormente,

para

se

estabelecer que o desenvolvimento econômico não apenas gera o surgimento de novas e mais eficazes instituições, como também estas vão proporcionar a necessidade de revisão da compreensão da soberania econômica nacional.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

140

Superada então esta questão, cabe agora refletir sobre um último aspecto abordado por Chang (2010). Com efeito, é preciso analisar com certa cautela a questão referente a mudanças das instituições. Ao propor o raciocínio de que o desenvolvimento econômico proporciona o surgimento de mudanças nas instituições, que passam a ser mais eficientes, muito embora os argumentos apresentados sejam compatíveis com esta realidade, a mutabilidade das instituições não é algo pacífico, havendo entendimento no sentido de que: They think that institutions are determined by immutable things such as climate and culture, so they cannot be changed, except through some epoch-making external shocks. (Chang, 2010)

Trata-se, em verdade, de duas correntes de pensamento, apresentadas por Chang, nas quais se tem o voluntarismo, que entende pela mudança das instituições e o fatalismo, que entende pela impossibilidade de mudança das instituições. Neste sentido: On the one hand, we have the extreme voluntarism of the GSI school, which believes that institutions can be changed very easily if there is a political will. On the other hand, we have the extreme fatalism of the climateculture school, which believes that institutional patterns are deeply influenced by immutable (or at least near immutable) factors, such as climate and culture, and therefore that there is nothing much we can do about it.

A idéia que reside por trás do fatalismo se consubstancia no fato de que as instituições, uma vez criadas, devem permanecer em suas funções ao longo do tempo, ou seja, a durabilidade, permanência, estabilidade das funções inerentes as instituições são as suas principais características, sendo, inclusive, as instituições, um instrumento alusivo à coordenação das relações em sociedade, pois traz previsibilidade nas relações sociais.

141

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Desta forma, pode-se então compreender que, do ponto de vista do fatalismo, a função das instituições é contribuir para a manutenção do status quo, impedindo que haja mudanças nas relações político-econômicas. Portanto, é possível traçar uma relação de compatibilidade entre a visão fatalista e a teoria realista das relações internacionais. É fato que a manutenção das instituições na forma em que são implementadas faz com que a sociedade a qual tais instituições são inerentes se posicione diante de eventuais intervenções externas que pretendam mudanças institucionais para facilitar a influência, seja econômica ou política, de uma nação sobre outra. É possível depreender que a visão fatalista sustenta que a manutenção das instituições diminui a vulnerabilidade externa de uma nação e assim proteja os interesses nacionais. Como visto no primeiro capítulo desta tese, a teoria realista das relações internacionais tem como uma de suas características

a

manutenção

do

status

quo

das

relações

internacionais, dentre elas as relações econômicas internacionais. Com cada nação promovendo a manutenção de suas instituições, protegendo seus interesses nacionais, torna-se então inevitável, de acordo com a visão realista, o surgimento de conflitos nos quais cada nação busca impor seus interesses sobre interesses externos. Para então contornar estes conflitos, as nações buscam manter o sistema de relações internacionais em seu status quo, ou seja, que as

regras

do

jogo

se

mantenham

sem

modificações,

permanecendo cada nação com a sua função dentro do sistema global, de forma que possam proteger seus interesses nacionais, se resguardando de intervenções externas. Ainda que se considere a questão do ponto de vista do realismo ofensivo, que ao contrário do realismo clássico entende que as nações buscam a ruptura do status

quo,

para

obter

maior

poder

dentro

das

relações

internacionais (como visto no primeiro capítulo desta tese), a compatibilidade entre o fatalismo trazido por Chang (2010) e a

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

142

teoria realista se mantém, uma vez que mesmo que se busque manter as regras nas quais estas relações se desenvolvem, as nações sempre buscam utilizar estas regras de forma que mais lhes aproveitem em seus interesses, gerando conflitos entre as nações. Portanto, se o desenvolvimento econômico leva ao surgimento de boas instituições, como propõe Chang (2010), e estas instituições são criadas para se manter fiéis aos seus propósitos, sem que haja previsibilidade de mudanças significativas, tem-se que, com o desenvolvimento econômico, o poder político advindo deste desenvolvimento nas relações internacionais também aumenta, gerando assim atores com maior força na proteção de seus interesses nas relações internacionais, o que levaria ao conflito, característica maior destas relações. Em adendo, pode-se ainda buscar um paralelo com a classificação dos tipos de institucionalismo trazida por Vivien Schimdt (2008). Segundo Schimdt (2008), o institucionalismo histórico é baseado na questão de existência de path dependence, as instituições acabam seguindo um modelo exibido ao longo do curso do desenvolvimento e este modelo se perpetua ao longo do tempo, permanecendo com suas características próprias, não havendo mudanças nas instituições. Contudo, se por um lado o fatalismo encontra amparo na teoria realista das relações internacionais, pode-se dizer também que é verdadeira a conclusão de que o voluntarismo é compatível com as características da teoria liberal. Com efeito, o voluntarismo tal qual explicado por Chang (2010)

reside

no

fato

que

as

instituições

são

criadas

e

implementadas não com uma proposta de durabilidade ou previsibilidade, mas sim, com possibilidade de que altere tais instituições, para que melhores resultados possam ser alcançados.

143

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Deste ponto de vista, as instituições estão sujeitas às novas dinâmicas das relações sociais e econômicas e estas novas condições podem conduzir a uma mudança institucional. Esse

cenário

nos

leva

a

crer

que

as

mudanças

institucionais devem ser fácies de se implementar justamente para que as nações possam cooperar entre si, fazendo que suas necessidades econômicas sejam satisfeitas de forma mais eficiente e

o

desenvolvimento

econômico

pode,

inclusive,

levar

ao

surgimento de instituições cujo âmbito de atuação ultrapasse as fronteiras nacionais, propondo regras do jogo, no sentido proposto por North, para economias nacionais que se relacionam em uma arena internacional. Com todas estas características, principalmente o fato de se compreender

o

desenvolvimento

da

economia

através

da

cooperação entre nações e não do conflito entre elas, é possível então entender que a relação entre o voluntarismo o qual Chang (2010) argumenta é compatível com os pressupostos da teoria liberal das relações internacionais, cuja principal característica está no fato de que a cooperação entre as nações lava ao desenvolvimento econômico. Fazendo então o mesmo paralelo feito anteriormente com o fatalismo, o voluntarismo também pode ser comparado com o institucionalismo discursivo proposto por Schimdt (2008). Com o efeito, segundo o institucionalismo discursivo considera o estado em termos de idéias e discursos os quais os atores políticos utilizam para explicar e legitimar a ação política no contexto institucional, de acordo com a lógica da comunicação. Surge para explicar as mudanças dentro do estado e no estado, de forma que uma abordagem estática não consegue explicar. As instituições são constituídas e moldadas pelas idéias e discursos dos atores políticos. Discursos e idéias são fundamentais para mudar e constituir novas instituições e são de natureza imprevisível e

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

144

indetermináveis, independem de fatores estruturais e podem representar um rompimento com a path dependence. Desta forma, pode-se então concluir que a análise proposta por Chang (2010) entre voluntarismo e fatalismo para entender as mudanças institucionais é, no fundo, analisar o desenvolvimento econômico a partir das premissas estabelecidas pelas teorias realista e liberal das relações internacionais, permeando seus argumentos entre o conflito ou a cooperação que caracterizam as relações econômicas internacionais.

145

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas Chang, Ha Joon & Evans, Peter. The Role of Institutions in Economic Change, 1999 Chang, Ha Joon. Institutions and economic development: theory, policy and history. 2010 De Haan, Jakob & Eijffinger Sylvester. The European Central Bank: credibility, transparency, and centralization. 2005 De Haan, Jakob and Fabian Amtenbrink, “A Non-Transparent European Central Bank: Who is to Blame?” 2002 Eijffinger, Sylvester C., & Geraats, Petra M. How Transparent are Central Banks? CEPR Discussion Paper 3188. 2002 North, Douglass. Institutions, Institutional change and economic performance, Cambridge University Press 1990 North, Douglass. Institutions. The Journal of Economic Perspectives, Vol 5/01 1991 Roberts, Alaisder. The Rise and Fall of Discipline: Economic Globalization, Administrative Reform, and the Financial Crisis. Public Administration Review. 2010. Vivien Schimdt. Institutionalism, 2008 Williamson, Oliver. The Institutions of Governance. The American Economic Review, vol 88/02 1996

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

146

Abordagem Acerca do Aporte Listiano para a Formação do Pensamento de Raúl Prebisch1 Otávio Erbereli Júnior2 Resumo A literatura econômica, quando aborda as origens do pensamento cepalino, geralmente o vincula ao pensamento keynesiano. Neste artigo, procuramos demonstrar que o pensamento cepalino, especificamente nas formulações de seu principal pensador, o economista argentino Raúl Prebisch, pode também ter suas origens no pensamento do economista alemão do século XIX, Friedrich List. Palavras-chave: Friedrich List; Raúl Prebisch; História Econômica; História do Pensamento Econômico. Abstract The economic literature, when discussing the origins of ECLAC´s thought, usually binds to Keynesianism. In this paper, we have demonstrated that ECLAC´s thought, specifically in the formulations of its main thinker, the Argentine economist Raúl Prebisch, can also have its origins in the thinking of the XIX´s German economist, Friedrich List. Keywords: Friedrich List; Raúl Prebisch; Economic History; History of Economic Thought.

Artigo apresentado em 15 de outubro de 2013 e aprovado em 20 de dezembro de 2013. Economista pela Unesp, especialista em História Econômica (Universidade Estadual de Maringá), mestrando em História e Sociedade (Unesp – Assis) e bolsista do CNPq. 1 2

147

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Introdução Quando a literatura econômica trata das origens do pensamento econômico da CEPAL3, é comum encontrarmos referência ao pensamento keynesiano como principal escola que teria influenciado os economistas cepalinos, o que não seria diferente no caso do economista argentino e primeiro secretário daquela instituição, Raúl Prebisch (1901-1986). Isso ocorre devido ao fato de que algumas políticas recomendadas pela CEPAL também podem ser derivadas da principal obra do economista inglês John Maynard Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, publicada em 1936, “como intervencionismo, defesa de políticas de crescimento acelerado dos investimentos e do produto, crítica à lei de Say, ênfase à demanda efetiva interna e rejeição às teorias ortodoxas e do comércio internacional.” (FONSECA, 2000, 334). Também merece destaque neste caso, o fato de que Prebisch publicou em 1947, o primeiro manual de economia na América Latina destinado a divulgar as ideias de Keynes contidas em sua Teoria Geral sob o título de Introdução a Keynes. Contudo, Pedro Cezar Dutra Fonseca (2000) contesta este lugar comum e busca outras origens para o pensamento cepalino como um todo. Para ele as principais ideias que se tornariam célebres no âmbito daquela instituição poderiam ser encontradas de forma germinal em algumas correntes de pensamento européias e que teriam sido assimiladas pelos críticos da ortodoxia liberal. Seriam elas: o “liberalismo de exceção”, o positivismo e as ideias do economista alemão Georg Friedrich List (1789-1846). O que nos causa mossa é que “a despeito da semelhança entre as teses da Cepal e as de List, este autor é pouco citado pelos economistas vinculados àquela instituição.” (FONSECA, 2000, p. 352). Destarte o fato de que realmente o pensamento de List é pouco estudado por economistas nos cursos de economia política Comissão Econômica para América Latina e Caribe. Órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), criado em 1948 à fim de pensar políticas para o desenvolvimento da região. 3

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

dos

diversos

cursos

de

graduação

em

148 Ciências

Econômicas/Economia do país, a tradução do livro Kicking away the ladder: development strategy in historical perspective do economista sul-coreano e professor da Universidade de Cambridge na Inglaterra, Ha-Joon Chang, em 2004 sob o título de Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica parece ter reabilitado a perspectiva de análise de List e tê-lo feito mais conhecido entre os brasileiros, pois “em termos metodológicos, ele [Chang] se diz inspirado em Friedrich List e na abordagem da Escola Histórica Alemã.” (PESSALI, 2004, p. 190). No primeiro capítulo de seu livro, Chang dedica toda uma parte metodológica ao primeiro livro da obra de List que trata exatamente da história do desenvolvimento econômico de várias regiões da Europa. “Por ora, eu queria chamar a atenção do leitor para a metodologia de List, ou seja, para a sua análise histórica da economia.” (CHANG, 2004, p. 18). Logo em seguida faz questão de deixar claro o intento de seu livro, bem como sua escolha metodológica. “(...) um dos objetivos do presente trabalho é reafirmar a utilidade de tal abordagem (...).” (idem, p. 22). O título do livro – “chutando a escada” – é uma referência a uma expressão do próprio List e defende a tese geral de que os países ricos alcançaram seu desenvolvimento através de políticas que hoje não indicam aos países em desenvolvimento, ou seja, recomendam aos países em desenvolvimento políticas que não adotaram a fim de que outros países não trilhem o mesmo caminho que eles. Como veremos na seção seguinte do presente artigo, algo de semelhante ocorria à época de List, onde a Inglaterra, a nação mais desenvolvida, recomendava políticas econômicas diferentes daquelas que a haviam conduzido àquele patamar de riqueza, devendo os outros países, como a Alemanha de List, seguir outras políticas econômicas. Tendo estas questões como pano de fundo, nosso intento neste artigo não será demonstrar as influências do economista alemão List sobre o pensamento de Raúl Prebisch através da busca

149

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

de referências em textos de Prebisch aos trabalhos de List, mas sim, em uma leitura comparativa, perceber como o pensamento de ambos podem ser complementares. Para tanto, nossas fontes serão: a principal obra de List Sistema Nacional de Economia Política, publicada

em

1841

e

três

escritos

de

Raúl

Prebisch:

O

desenvolvimento da América Latina e seus principais problemas, publicado originalmente em 1949 e que se popularizou como “Manifesto da América Latina”; Estudo econômico da América Latina de 1949, que, apesar de ser um documento cuja autoria é atribuía à CEPAL, utilizaremo-nos de trechos cuja autoria é reconhecidamente de Prebisch; e Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico, publicado originalmente em 1952, como documento da CEPAL. Privilegiamos estes textos de Prebisch, dentro da grande gama de publicações do autor que se inicia em 1944 e se estende até sua morte em 1986, inspirados em seu texto Cinco etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo de 1983, onde o próprio Prebisch divide seu pensamento em cinco grandes grupos. Seus textos escritos entre sua entrada na CEPAL em 1949 até fins da década

de

1950

são

fundamentais

para

nós,

pois

neles

encontramos as principais formulações de Prebisch quanto ao desenvolvimento da América Latina, a Deterioração dos Termos de Troca/Intercâmbio e o sistema centro-periferia. Na primeira seção do artigo, exporemos as principais diretrizes e fundamentos do pensamento de List presentes em seu texto Sistema Nacional de Economia Política, buscando inseri-las em um contexto histórico mais amplo, bem como suas origens no pensamento filosófico alemão. Na segunda seção, exporemos o pensamento de Prebisch presente em seus três textos, bem como os principais conceitos e questões metodológicas desenvolvidas. Na terceira seção, procuraremos demonstrar como as ideias de List e Prebisch são complementares, longe de serem contrapostas. Por fim, teceremos algumas reflexões em nível de conclusão. List e seu Sistema Nacional de Economia Política

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

150

Antes de adentrarmos propriamente nesta obra de List, convém historicizá-la, ou seja, colocá-la em perspectiva com seu contexto e possibilidades de produção. Quanto ao contexto, List escreve em uma Alemanha fragmentada, dividida em ducados, principados, cidades-livres, estados-livres dos mais variados portes, como a Áustria, Prússia, Saxônia, Bavária e Wüttemberg. A partir desta perspectiva List olhava para a Grã-Bretanha, com a Inglaterra já unificada e em avançado estágio de desenvolvimento desde a Primeira Revolução Industrial. Portanto, List viveu entre a Primeira e a Segunda Revolução Industrial, um período em que as manufaturas ascendiam crescentemente em importância para o desenvolvimento nacional e para a vida cotidiana. Foi uma época de nacionalismo e ascensão de grandes potências, onde a Inglaterra se destacava como nação mais desenvolvida e líder no sistema internacional. (PADULA, 2007, p. 162).

Somado a este contexto, a experiência existencial de List também lhe proporcionará contato com pessoas que contribuirão muito para a formação de seu pensamento. Quando reeleito deputado para a Assembléia de Wüttemberg, em 1820, iniciou uma campanha tão firme e intensa em defesa da indústria e da moralização administrativa, que em menos de um mês custoulhe a invasão de sua casa, a destruição de seus panfletos e um processo por sedição, que o fez perder o mandato e ser condenado à prisão por dez meses e o pagamento dos custos judiciários. (BUARQUE, 1983, p. X).

Neste excerto, trecho do prefácio de Cristovam Buarque para a edição brasileira de sua grande obra, notamos que List, além de grande pensador econômico, também foi homem bastante pragmático, o que o coloca ao lado de outros grandes e raros nomes do pensamento econômico, que também foram grandes homens de ação como Karl Marx e John Maynard Keynes. Após cumprir sua sentença, List parte para os EUA, onde formulará boa parte de seu pensamento e terá contato com nomes que o influenciarão por toda vida. Dentre eles cabe-nos destacar o

151

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

espanhol Antonio Serra, James Steuart e principalmente Alexander Hamilton – primeiro secretário do Tesouro dos EUA à época. No Relatório sobre as manufaturas de 1791, encontramos o argumento de proteção a indústria nascente e outras ideias que exerceram grande influência sobre List. Grosso modo, para Hamilton, o Estado deveria intervir com um programa de auxílio às indústrias que precisavam ser criadas, sobretudo em substituição às fábricas instaladas na Inglaterra, cujos produtos os Estados Unidos necessitavam importar, mesmo após a declaração de independência nacional. (PEREIRA e MENEZES, 2008, p. 94).

É desta sua experiência nos EUA que se origina seu Sistema Nacional de Economia Política, pois “(...) em 1827, Charles Ingerssol, Vice-Presidente da “Sociedade da Filadélfia para a Promoção da Indústria Nacional” [sic], encomendou a List a elaboração de um documento

de

defesa

do

protecionismo

industrial

a

ser

apresentado na Convenção Nacional dos Protecionistas (...)” (PADULA, 2007, p. 163). Este estudo de List deu origem às 12 cartas publicadas em um dos mais importantes jornais do país, o National Gazette. Estas cartas foram a base para o livro de List publicado sob o titulo de Outlines of American Political Economy, que List chamou de “seu sistema”. Neste livro encontramos a essência de seu Sistema Nacional de Economia Política. Seu

entusiasmo

para

com

a

realidade

econômica

estadunidense encontra-se no prefácio de sua grande obra. “Quando (...) visitei os Estados Unidos, pus de lado todos os livros – pois a essa altura só tenderiam a desencaminhar-me da via certa. A melhor obra sobre Economia Política que se possa ler naquele país moderno é a vida real.” (LIST, 1983, p. 5). List segue relatando como nos EUA se passa da condição de vida material mais primitiva até atingir-se o estado manufatureiro. List termina sua apologia aos EUA no prefácio afirmando que em nenhum outro lugar é possível ver-se a importância do sistema de transportes para a vida intelectual e material.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

152

List inicia o prefácio afirmando seu descontentamento em relação à teoria econômica predominante em sua época: Já faz mais de 33 anos que comecei a ter dúvidas sobre a veracidade da teoria da Economia Política atualmente dominante, empenhando-me desde então em investigar quais, em meu modo de entender, seriam os erros dessa teoria e as causas fundamentais em que radicam tais erros. (LIST, 1983, p. 3).

Portanto, um dos intentos deste texto de List será questionar os fundamentos da teoria clássica, baseada nas principais propostas de Adam Smith presentes em seu A Riqueza das Nações, publicado em 1776, principalmente no que tange às proposituras de liberdade de comércio e de não intervenção do Estado na economia. Ao longo de todo Seu Sistema, List estará dialogando e se contrapondo àquela escola de pensamento econômico. Em síntese, podemos dizer que a teoria de Smith – que se apresenta como crítica ao sistema mercantil vigente na época – baseia-se, sobretudo, na liberdade e igualdade, sendo esses dois princípios características essenciais a uma nação que busca o progresso. Importa destacar que Smith fala em nome dos indivíduos, ou seja, entende a sociedade não em sua coletividade, mas na individualidade de seus cidadãos. Por essa razão, ao evocar o princípio de liberdade, está defendendo, antes de tudo, a liberdade de cada indivíduo poder decidir sobre suas atividades, sem a interferência do Estado, e conduzi-las da maneira que melhor lhe convém. Além disso, defende que todos devem ter igualdade de direitos na luta por melhores condições, posicionando-se contra a concessão de privilégios. Desse modo, o Estado deixa a cargo dos talentos individuais a aquisição de riqueza pelos cidadãos; cabe a ele garantir a liberdade e, ao mesmo tempo, o seu controle, fazer com que a legislação seja cumprida, manter a ordem social e tomar cuidado para não se tornar intervencionista. (PEREIRA e MENEZES, 2008, p. 90).

A Economia Política inglesa ou clássica por vezes é denominada por List como “escola popular” ou “Economia Cosmopolítica”. Antes de adentrarmos propriamente na crítica que List empreende em relação à escola de pensamento fundada por Smith, faz-se mister destacarmos a tradição filosófica da qual List é

153

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

herdeiro à fim de que possamos compreender melhor, em termos metodológicos, porque seria natural que List, destarte questões de hegemonia de poder econômico e de relações internacionais da época, se opusesse ao pensamento da escola inglesa. List se insere no movimento geral do pensamento alemão do século XIX. Assim, a peculiaridade de um pensamento que, embora iluminista, rejeitasse o liberalismo, o individualismo e o atomismo floresceu entre os pensadores alemães e não só na economia: Kant, e principalmente Hegel, são os exemplos mais respeitáveis do campo do conhecimento em que os autores de língua alemã por excelência se destacaram no século 19: a filosofia. (FONSECA, 2000a, p. 5).

Deste concepções metodológicos

modo

temos

econômicas e

aqui que,

filosóficos,

são

a

confrontação em

seus

extremamente

de

duas

fundamentos distintas.

O

pensamento de List deriva da tradição filosófica alemã do século XIX,

cuja

principal

marca

é

a

oposição

ao

individualismo

metodológico. Já o pensamento smithiano deriva da tradição filosófica herdeira, dentre outros, de John Stuart Mill, cuja principal característica é exatamente o individualismo metodológico. Para List existe uma diferença fundamental entre a Economia Política e a Economia Cosmopolítica. Para ele reside exatamente aqui um dos equívocos de Adam Smith e seus seguidores. Remontando-se ao economista fisiocrático François Quesnay, List afirma que este fala de economia cosmopolítica [sic], isto é, da ciência que ensina como a humanidade inteira pode atingir a prosperidade, em oposição à Economia Política, ou seja, à ciência que limita seu ensinamento a investigar como determinada nação [sic] pode obter (nas condições vigentes do mundo) a prosperidade, a civilização e o poder, por meio da agricultura e do comércio. (LIST, 1983, p. 89).

Podemos notar a partir do excerto acima que, para List, o pensamento de Adam Smith e seus seguidores, como Jean-Baptiste Say, possui um caráter universalizante, ou seja, pensam no desenvolvimento econômico da humanidade como um todo. Já

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

154

para List, a questão central se coloca sob o desenvolvimento da Nação. E aqui temos uma das categorias fundamentais para List. Mas, por que List está tão preocupado com a Nação e com seu desenvolvimento e os economistas clássicos estão preocupados com as Nações? Reside aqui um importante elemento histórico contextual. Alguns países como Portugal, Espanha, França e Inglaterra alcançaram sua unidade política interna entre os séculos XV e XVIII. A Itália, a Alemanha e muitos outros países conseguiram atingir seus projetos de unidade política interna somente no século XIX. Portanto, em um momento em que a Inglaterra já está unificada, contando com um mercado interno integrado e já passou por seu processo de industrialização, a Alemanha ainda estava fragmentada, em vias de sua união política. Portanto, “aos alemães faltava a instituição básica, por excelência, dos tempos modernos: o Estado Nacional unificado.” (FONSECA, 2000a, p. 4). Exatamente por isso, “a existência de instituições locais e a inexistência de outras impunham aos homens no cotidiano – a seus governantes e a seus pensadores – , a necessidade de pensar a economia não como algo universal, mas como fruto daquela realidade histórica e institucional.” (FONSECA, 2000a, p. 4). Sendo assim, devido ao fato de que o século XIX é o século das grandes uniões e formações nacionais, o mesmo ficou conhecido por século da História, pois a História, enquanto disciplina, surge exatamente neste momento, como legitimadora dos Estados Nacionais. Aqui reside outra peculiaridade do trabalho de List: a presença da História em sua análise, sendo tido como um dos precursores da Escola Histórica Alemã. Em economia, o verdadeiro precursor da escola foi FRIEDRICH LIST [sic], que, no Sistema nacional de economia política, [sic] publicado em 1841, recorre à história para fundamentar suas teses de patriota que desejava ver os Estados alemães constituírem uma nação. (IGLÉSIAS, 1959, pp. 50-51).

Este método histórico de List, mais uma vez, se contrapõe ao “método dedutivo, abstrato e com pretensões universalizantes dos ingleses.” (FONSECA, 2000a, p. 3). Para List, não poderia existir

155

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Ciência Econômica/Economia sem História. Isso fica claro quando lemos a primeira parte do Sistema de List denominada Livro Primeiro: A História. Através dele, podemos derivar todo o sistema teórico de List, aprofundado e desenvolvido no Livro Segundo: A Teoria4 e encontramos o segundo grande intento de seu texto: buscar a política econômica que propicie o desenvolvimento da Alemanha. He developed a method of historical research into the annals of various people in an effort to find a casual explanation for the origin of civilization to which they have attained. This provided a framework for the Historical School of Economists which for forty years (1843-1883) was the most influential school of thought in German-speaking countries. (BELL, 1942, p. 81).

Nesta primeira parte de seu Sistema, List trata da história de vários povos: os italianos, os hanseáticos, os holandeses, os ingleses, portugueses e espanhóis em conjunto, franceses, alemães, russos e norte-americanos. Sua análise tem sempre em perspectiva o desenvolvimento da Inglaterra enquanto Nação. Ao tratar das repúblicas italianas, já aparece uma das categorias fundamentais para List, conforme pontuamos acima: a Nação. Para ele, a derrocada das repúblicas italianas e o impedimento maior para que estas não atingissem o mesmo grau de desenvolvimento da Inglaterra está no fato de que “faltava-lhe unidade nacional [sic] e o poder que dela deriva.” (LIST, 1983, p. 10). Ao tratar dos hanseáticos, List encontra um subsídio histórico que lhe permite advogar a favor da sinergia entre os diversos setores da economia, uma vez que para os economistas smithianos o incentivo à implementação de manufaturas por parte do Estado imporia um grande ônus aos agricultores. Para List, por outro lado, a agricultura muito se beneficiaria do estímulo às manufaturas, conforme ficará claro na segunda parte de seu Sistema. No tempo de Henrique VIII, os preços de todos os gêneros alimentícios haviam subido consideravelmente devido ao grande número de artesãos e trabalhadores estrangeiros em Londres; Neste tópico não nos utilizaremos deste segundo livro da obra de List. Faremo-lo quando tratarmos, no quarto tópico deste artigo, das idéias em conjunto de List e Prebisch. 4

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

156

um sinal evidente do grande benefício que a indústria agrícola nativa auferia do desenvolvimento da atividade manufatureira nacional. (LIST, 1983, pp. 18-19).

Ao tratar do desenvolvimento econômico inglês, List aponta que a Inglaterra procedeu exatamente da maneira que os economistas ingleses contemporâneos condenavam, de acordo com o que List denomina de “Teoria dos Valores”. De acordo com esta teoria, os ingleses não poderiam contrariar a Lei das Vantagens Comparativas, ou seja, deveriam importar bens cujo custo de produção interno fosse maior, comparativamente às nações fornecedoras, e exportar bens cujo custo de produção interno fosse menor. Ocorre, porém, conforme constata List, que durante seu processo de desenvolvimento a Inglaterra atuou exatamente de forma contrária. Pois, de acordo com essas teorias, a Inglaterra deveria ter comprado o que necessitava, lá onde pudesse comprar melhor a preços mais baixos; foi loucura fabricar para si mesmo bens a custo superior ao dos produtos comprados fora, e ao mesmo tempo ceder essa vantagem aos países do continente. (LIST, 1983, p. 36).

Segundo List, a Inglaterra agiu de acordo com o que, contemporaneamente ao economista alemão, condenava, e que ele chama de “Teoria das Forças de Produção”, que será desenvolvida

mais

adiante

em

seu

Sistema.

Outra

grande

divergência de List em relação ao pensamento de Adam Smith reside no fato de considerar o poder político mais importante do que a própria riqueza, “simplesmente porque o poder nacional é uma força dinâmica que abre a porta para novos recursos produtivos, e porque as forças de produção constituem a árvore da qual cresce a riqueza, e porque a árvore que produz os frutos tem valor superior aos próprios frutos.” (LIST, 1983, p. 37). Aqui temos outra categoria fundamental à análise listiana: as forças de produção ou forças produtivas. Um outro tipo de abordagem aparece também na parte em que List analisa o desenvolvimento da Inglaterra. List não se

157

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

prende

apenas

aos

aspectos

políticos

e

econômicos

do

desenvolvimento. É pioneiro ao considerar fatores institucionais, que somente no século XX seriam tomados como de suma importância pelas teorias do desenvolvimento econômico, como a Nova Economia Institucional, por exemplo. Para List, importa também, admitir o que a enorme capacidade produtiva e a grande riqueza da Inglaterra não podem ser creditadas exclusivamente ao poder nacional e ao amor inato do povo pelo ganho financeiro. Participam deste mérito também o amor inato do povo à liberdade e à justiça, a energia, o caráter religioso e moral do povo. Participam igualmente a Constituição do país, suas instituições, a sabedoria e a força do Governo e da aristocracia. Finalmente, não se deve esquecer a posição geográfica, as riquezas do país, diríamos até, a sorte. (LIST, 1983, p. 39).

Realmente a condição geográfica e a sorte dizem muito respeito ao tipo de desenvolvimento que uma Nação pode ou não alcançar. Neste sentido, encontramos em List uma posição imperialista em relação aos países de clima tropical, que ele denomina de países da zona tórrida. Para List, estes países não apresentam as condições necessárias para o desenvolvimento manufatureiro, devendo se colocar ad eternum como fornecedores de matérias-primas dos países manufatureiros da Europa e EUA. Além disso, países de pequeno porte também não poderiam ascender à condição de país desenvolvido. Outro elemento marcante da análise histórica de List, diz respeito à importância do desenvolvimento das ciências e das artes para o desenvolvimento da Nação. Ligada ao desenvolvimento das ciências, List é pioneiro ao dar importância à necessidade do desenvolvimento de um sistema de patentes. Em virtude de sua legislação sobre patentes industriais, durante muito tempo a Inglaterra monopolizou o gênio inventivo de todas as nações. Agora que a Inglaterra atingiu o ponto culminante de seu crescimento e progresso industrial, é mais do que dever de honestidade restituir às nações do continente europeu uma parte das forças produtivas que originalmente auferiu delas. (LIST, 1983, p. 43).

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

158

Ao analisar o processo de desenvolvimento histórico de sua pátria-mãe, List nos fornece um exemplo do quão profícuo pode ser o protecionismo no desenvolvimento de manufaturas. E aqui temos outra categoria fundamental do constructo teórico listiano: o protecionismo, que quando conduzido pelo Estado através da implantação de tarifas alfandegárias restritivas às importações, toma o caráter de intervencionismo. Seguiu depois o bloqueio continental decretado por Napoleão, evento que marcou uma era na história tanto da indústria alemã como da indústria francesa, apesar de J. – B. Say, o mais renomado discípulo de Adam Smith, tê-lo denunciado como uma calamidade. Quaisquer que sejam as alegações dos teóricos, particularmente dos ingleses, contra o bloqueio, é incontestável – e todos os que conhecem a indústria alemã devem atestá-lo, pois há testemunhas abundantes do fato em todos os escritos estatísticos da época – que, como resultado daquele bloqueio, as manufaturas alemãs de toda espécie, pela primeira vez, começaram a registrar progresso importante. (LIST, 1983, p. 64).

Ao final deste primeiro livro, List já sistematiza toda a sua teoria, que será exposta e contraposta à teoria smithiana, em 3 estágios de desenvolvimento. Nas palavras do próprio List: No primeiro estágio, adotando comércio livre com nações mais adiantadas como meio de saírem elas mesmas de um estado de barbárie e para fazerem progresso na agricultura; no segundo estágio, promovendo o crescimento das manufaturas, da pesca, da navegação e do comércio exterior, adotando restrições ao comércio; e no último estágio, após atingirem o mais alto grau de riqueza e poder, retornando gradualmente ao princípio do livre comércio e da concorrência sem restrições, tanto no mercado interno como no mercado internacional, de maneira que seus agricultores, comerciantes e manufatores possam ser preservados da indolência e estimulados a conservar a supremacia que adquiriram. (LIST, 1983, p. 86).

Fica claro pelo excerto acima que List não é contrário ao livre comércio, tampouco um protecionista/intervencionista strictu sensu. Para List, a fim de que a Nação possa sair de um estado de desenvolvimento

extremamente

baixo,

onde

o

único

setor

159

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

representativo da economia nacional é a agricultura e rumar para um desenvolvimento manufatureiro é necessário adotar uma política de livre-comércio, sem qualquer restrição às importações. Em

um

segundo

desenvolvimento

momento,

sim.

manufatureiro

é

Para

poder

necessário

promover

certo

grau

o de

proteção, pois List pressupõe que todos os setores da economia estão interligados e que a manufatura é um fator indutor do desenvolvimento

de

uma

infra-estrutura

de

transportes,

por

exemplo. Portanto, se neste momento a manufatura nacional tiver que concorrer com produtos manufaturados de outras nações, todo o esforço de desenvolvimento das manufaturas é prejudicado, assim como todos os demais setores da economia. Por fim, quando a Nação estiver com suas forças manufatureiras em um estágio avançado de desenvolvimento, deve-se adotar novamente o livrecomércio de uma forma gradual, posto que se o ambiente interno ainda estiver preservado da concorrência exterior, todos os setores da economia podem se acomodar e entrar em letargia. Após esta sucinta exposição do Sistema de List, passemos agora ao pensamento de Raúl Prebisch, que muito contribuirá para a formação do pensamento cepalino, para, em seguida, tecermos algumas considerações sobre a presença de constructos listianos na teoria de Prebisch. O pensamento de Raúl Prebisch nos anos 1950 e seus principais elementos constitutivos À semelhança do tópico anterior, antes de adentrarmos propriamente nos três textos selecionados para apreendermos os fundamentos do pensamento de Prebisch e que seriam os alicerces do pensamento cepalino, iremos primeiramente analisar de modo breve as condições históricas e intelectuais que propiciaram o surgimento de tais ideias no ambiente da realidade histórica latinoamericana.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

160

Após a Segunda Guerra Mundial tivemos uma polarização do poder mundial, com uma disputa por hegemonia entre os EUA e a URSS. Os EUA, à fim de impedir que o socialismo tomasse a Europa, implementa o Plano Marshall para a reconstrução da Europa. Investimentos maciços são direcionados ao continente europeu e ao Japão. A partir daí a Europa e o Japão se vêem em um crescimento

econômico

acelerado,

com

baixas

taxas

de

desemprego e inflação controlada. Na América Latina o cenário não era diferente. Também algumas economias latino-americanas em função das restrições às importações durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, haviam adentrado no assim conhecido processo de industrialização por substituição de importações, uma vez que não tinham acesso aos bens de consumo produzidos na Europa. Contudo, este processo de industrialização, devido às características históricas da América Latina, principalmente em relação às suas estruturas econômico-sociais, apresentava sérias contradições. Aqui [na América Latina], alguns países transitaram para uma nova dinâmica econômica, baseada na demanda e investimentos internos e alguns centros urbanos passaram à ser os pólos dinâmicos da economia. Neles, uma classe industrial latinoamericana surgia, carente de uma ideologia que representasse sua visão de mundo e seus interesses. Ao mesmo tempo, a rápida migração campocidade, na ausência de reforma agrária, inchou sobremaneira as urbes sem que a oferta de emprego crescesse na mesma velocidade. Desse modo, a mesma economia que se transformava a taxas não desprezíveis era incapaz de reduzir a pobreza. (AMORIM, 2005, p. 4).

Portanto, a CEPAL, que em seu inicio se confunde com o pensamento de Prebisch, visto que foi o principal formulador das teses cepalinas até 1963, ano de sua saída daquela instituição, irá se

debruçar

sobre

as

principais

questões

relativas

ao

desenvolvimento econômico da América Latina. Como foi dito, Prebisch será o principal responsável por essas formulações tendo sempre em perspectiva a economia estadunidense e a teoria neoclássica do comércio internacional.

161

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Prebisch, assim como List, foi um homem extremamente pragmático. Seu pensamento e sua teoria derivam de sua reflexão acerca de como resolver os problemas latino-americanos que impediam a região de deixar sua condição de subdesenvolvimento. Prebisch lecionou na Universidade de Buenos Aires, onde também se formou, entre 1925 e 1948 e foi um dos fundadores do Banco Central da Argentina. Até a grande crise da década de 1930, Prebisch foi um fiel seguidor e defensor das teorias neoclássicas. Nas palavras do próprio Prebisch: “Os ensinamentos dessa crise me fizeram refletir, mais tarde, sobre o desenvolvimento periférico, sua grande vulnerabilidade externa e suas relações com os centros.” (PREBISCH apud FLECHSIG, 1991, p. 94). Sendo assim, o pensamento de Prebisch a partir dos anos 1930 será de crítica à teoria neoclássica do comércio internacional. A lei das vantagens comparativas (um dos pilares da Teoria Clássica) sustentava que, se os países atrasados se especializassem nos produtos primários, e os avançados em industrializados, nas relações comerciais entre eles os países atrasados acabariam levando vantagem, pois absorveriam todo o diferencial de produtividade de seus parceiros avançados. A elevação da produtividade dos países industrializados e, conseqüentemente [sic], a diminuição de seus custos, deveria refletir-se na queda sistemática dos preços de seus produtos e, portanto, dos preços de suas exportações, a serem intercambiadas com as exportações dos países menos produtivos, cujos preços, em vista de sua menor eficiência, permaneceriam mais elevados. Dessa forma, haveria transferência dos ganhos de produtividade dos países avançados para os atrasados, de modo a propiciar o desenvolvimento destes últimos. (MANTEGA, 1985, p. 35).

O excerto acima é uma síntese desta teoria criticada por Prebisch e que tem em Paul Samuelson um de seus principais expoentes. Antes de adentrarmos propriamente no texto de Prebisch de 1949, faz-se mister termos uma ideia de conjunto de seu pensamento à fim de que o mesmo não apareça aqui de forma fragmentária.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

162

A primeira etapa do pensamento de Prebisch, conforme exposto por ele mesmo em seu texto de 1983 denominado Cinco etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo, se inicia com sua saída do Banco Central argentino em 1943 e termina com sua entrada na CEPAL em 1949. A marca aqui são seus estudos sobre o ciclo econômico, antecedentes de seu constructo do sistema centro-periferia

e

o

rechaçamento

à

teoria

econômica

predominante, cujos principais fundamentos expusemos acima. Além das já mencionadas influências derivadas de Keynes e List, encontramos nesta fase outra influência recebida por Prebisch. “Nesta fase, Prebisch estuda também profundamente a obra de Schumpeter, que se materializa nas suas idéias [sic] sobre o ciclo econômico e o papel do empreendedor no processo de desenvolvimento.” (COUTO, 2007, p. 48). A segunda fase do pensamento de Prebisch se dá quando de sua entrada na CEPAL em 1949 até finais da década de 1950. Esta é a etapa de seu pensamento sob a qual nos debruçaremos, posto que é nela que Prebisch sistematiza seu conceito de centroperiferia e faz suas principais assertivas acerca da industrialização da América Latina e alguns de seus principais obstáculos. Ademais, é nesta etapa que podemos notar, de forma mais explícita, como veremos no próximo tópico deste artigo, as permanências e continuidades a partir do pensamento de List. A terceira etapa de seu pensamento possui como marcos delimitadores, o final da década de 1950 até sua saída da CEPAL em 1963. Esta fase ou etapa do pensamento de Prebisch é muito importante, posto que nela Prebisch não trata somente de fatores econômicos quando pensa o processo de desenvolvimento da América Latina, mas inclui em sua análise a estrutura social; e para superar

a

estrutura

social

da

América

Latina,

o

caminho

preconizado por ele está na educação. Outro ponto importante é que em texto de 1959, Prebisch pensa a possibilidade de criação de um mercado de livre-comércio para a América Latina. Aparece

163

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

também sua defesa da reforma agrária e o conceito de insuficiência dinâmica. Por fim, admitia ainda o fim da etapa fácil de substituição de importações [sic]. Foi relativamente simples substituir bens de consumo corrente e alguns duradouros. Tratava-se agora de substituir bens de capital e intermediários, de fabricação mais complexa, que exigia [sic] maiores mercados e capitais. (COUTO, 2007, p. 54).

Na quarta etapa, seu pensamento transcende as fronteiras da América Latina, posto que Prebisch deixa a CEPAL e ingressa na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) como seu secretário geral em Genebra, na Suiça. Esta etapa é delimitada pelos anos entre 1963 e 1969, na qual Prebisch formula

sua

Teoria

da

Transformação

e

sua

abordagem

multidisciplinar se acentua. “Diz que o desenvolvimento não se defrontava apenas com problemas econômicos, mas também com problemas políticos, sociais e culturais.” (COUTO, 2007, p. 56). Por fim, a última etapa ou estágio do pensamento de Prebisch compreende o período entre 1976, quando de sua entrada como diretor geral da Revista de La Cepal, até sua morte em 1986. Esta é uma etapa de intensa produção intelectual, na qual Prebisch se dedica a refletir e sistematizar melhor sobre o capitalismo periférico, bem como é uma fase de grande aproximação com o socialismo. A principal produção de Prebisch é o livro Capitalismo periférico. Crise e Transformação publicado em 1981, no qual Prebisch sintetiza sua contribuição presente em todos os seus artigos anteriores. Apesar de novas interpretações surgidas ao longo de todas estas etapas ou períodos de sua produção, “Prebisch continua acreditando na substituição de importações e nas exportações

de

manufaturados

como

forma

de

superar

o

desequilíbrio externo.” (COUTO, 2007, p. 59). Após

termos

explicitado

as

principais

etapas

do

pensamento de Prebisch, bem como as características de cada uma delas, exporemos as principais categorias presentes em seus três textos que selecionamos para análise, partindo do pressuposto

164

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

de que “ese conjunto de documentos contenía ya todos los elementos que figurarían como la gran referencia ideológica y analítica

para

todos

los

desarrollistas

latinoamericanos.”

(BIELSCHOWSKY, 1998, p. 25). Nos três, o que chamamos de constructo centro-periferia, autores consagrados como Octavio Rodríguez, chamam de sistema. A denominação pouco importa. O que mais nos interessa aqui é pontuar que este sistema de análise foi largamente adotado pela CEPAL e se tornou um termo comum à escola. “Consideram-se centros as economias em que penetram primeiro as técnicas capitalistas de produção. A periferia está constituída inicialmente

pelas

economias

atrasada,

do

cuja

ponto

produção

de

vista

permanece

tecnológico

e

organizativo.” (RODRÍGUEZ, 1981, p. 37). No

texto

de

Prebisch

de

1949,

popularizado

como

“Manifesto da América Latina” por Alberto Hirschman, a primeira vez que os termos “centro” e “periferia” aparecem, é quando Prebisch disserta acerca da divisão internacional do trabalho: “Nesse

esquema

[da

divisão

internacional

do

trabalho]

correspondia à América Latina, como parte da periferia da economia mundial, o papel específico de produzir alimentos e matérias primas para os grandes centros industriais.” (PREBISCH, 1949, p. 47). É a partir do teor das trocas comerciais entre centro e periferia e da análise dos ciclos econômicos da economia capitalista,

que

Prebisch

irá

encontrar

a

dinâmica

de

desenvolvimento da América Latina. Os Estados Unidos são, agora, o principal centro cíclico do mundo, como em outros tempos foi a Grã-Bretanha. Sua influência econômica sobre [sic] os outros países é manifesta. E nessa influência, o ingente desenvolvimento da produtividade daquele país desempenhou papel importantíssimo: tem afetado intensamente o comércio exterior e, através de suas variações, o ritmo [sic] de crescimento econômico do resto do mundo e a distribuição internacional do ouro. Os países da América Latina, com um elevado coeficiente de comércio exterior, são extremamente sensíveis a essas repercussões econômicas. Justifica-se, portanto, examinar as projeções daquele

165

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

fenômeno e os problemas dele [sic] decorrentes. (PREBISCH, 1949, p. 60).

Prebisch irá se contrapor à teoria neoclássica do comércio internacional, exposta sinteticamente acima em citação de Guido Mantega, principalmente no que tange à distribuição dos frutos ou benesses do progresso técnico entre o centro e a periferia do sistema

econômico

capitalista,

principalmente

nas

relações

comerciais entre os países da América Latina e os EUA, principal centro cíclico da economia, em substituição à Inglaterra. E' [sic] certo que a argumentação relativa às vantagens econômicas da divisão internacional do trabalho é de validade teórica inobjetável [sic]. Mas, esquece-se, via de regra, que se baseia em uma premissa terminantemente negada pelos fatos. Segundo esta premissa, o fruto do progresso técnico tende a repartir-se igualmente em toda [sic] a coletividade, seja pela baixa dos preços seja pela alta equivalente das remunerações. Por meio do intercâmbio internacional, os países de produção primária obtêm sua parte nesse fruto. Não necessitam, portanto, de industrializar-se. Pelo contrário, sua menor eficiência fá-los-ia perder irremissivelmente [sic] as vantagens clássicas do intercâmbio. O erro [sic] dessa premissa consiste em atribuir caráter geral ao que de si mesmo é muito circunscrito. Se por coletividade se entende, apenas, o conjunto dos grandes países industriais, é certo que o fruto do progresso técnico se distribui, gradualmente, entre todos os grupos e classes sociais. Mas, se o conceito de coletividade também se estende à periferia da economia mundial, essa generalização encobre um grave erro [sic]. (PREBISCH, 1949, pp. 47-48).

Vejamos como Prebisch contesta esta assertiva de que os países da periferia não necessitariam passar por um processo de industrialização devido ao fato de que o progresso técnico gerado no centro se espalharia para toda a periferia através do livre comércio, devendo os países da periferia permanecer como fornecedores de bens primários e matérias-primas para os países do centro capitalista. Através da teoria dos ciclos econômicos, Prebisch afirma que durante a alta do ciclo, ou seja, no auge cíclico, os preços dos produtores manufaturados sobem/aumentam e os preços dos

166

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

produtos primários também. Nesta alta do ciclo, no centro, parte dos ganhos obtidos em produtividade são repassados como remuneração aos fatores de produção. Na periferia ocorre o mesmo fenômeno. Contudo, na baixa do ciclo as estruturas econômicas distintas do centro e da periferia, fazem com que as consequências desta baixa se manifestem de modos diversos. Ocorre que na baixa cíclica o preço dos produtos primários baixa mais do que o preço dos manufaturados. Isso decorre da estrutura do mercado de trabalho, que no centro tende à rigidez, ou seja, as pressões dos sindicatos organizados não permitem que haja quedas na remuneração dos fatores de produção. Com isso, os preços baixam menos. Na periferia, em contrapartida, devido à maior flexibilidade do mercado de trabalho, os salários são baixados, o que se reflete em uma queda mais acentuada dos preços, comparativamente ao centro. É deste movimento cíclico que Prebisch deriva sua teoria da Deterioração dos termos de Intercâmbio, onde, grosso modo, temos uma tendência de queda dos

preços

dos

manufaturados,

produtos

corroborada

primários pelas

frente

estatísticas

aos do

produtos período

selecionado por Prebisch que, obviamente, não está imune às contestações e controvérsias. Portanto, como não há queda nos preços dos produtos manufaturados, não há transferência de progresso técnico para a periferia e este tem se concentrado no centro do sistema. Daí deriva-se a necessidade de industrialização da periferia, posto que com a industrialização toda a estrutura econômica periférica que propicia este fenômeno não mais lhe daria suporte. A estrutura produtiva da periferia se caracteriza por ser extremamente especializada, ou seja, os frutos do progresso técnico concentramse no setor exportador, pelo fato de a constituição histórica destas economias serem de desenvolvimento voltado para fora. Outra característica

da

estrutura

produtiva

da

periferia

é

sua

heterogeneidade, ou seja, temos setores de alta produtividade, principalmente os voltados ao setor exportador, e outros setores

167

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

onde a produtividade do trabalho é muito baixa e inferior aos mesmos setores dos centros. Esta estrutura produtiva da periferia implica em que A acumulação de capital tende a realizar-se de maneira extremamente desigual no que se refere à incorporação do processo técnico, que se difunde de forma muito restrita entre as atividades produtivas. A produção se concentra, em grande medida – em seus componentes dinâmicos – nos bens de consumo relativamente luxuosos em relação à renda média prevalecente e tende a satisfazer, além de necessitar, da demanda diversificada de uma pequena parte da população que detém em suas mãos uma substancial proporção da renda. (SERRA, 1976, pp. 20-21).

O que explica o aumento da produtividade maior no centro do que na periferia, é o potencial científico e tecnológico do centro e sua maior capacidade de acumulação de capital. Esta configuração estrutural do centro permitiu-lhe gerar maiores níveis de investimento e, consequentemente, reter maior parte deste mesmo progresso técnico por ele produzido. Asimismo, como consecuencia de su mayor capacidad para retenerlo, los centros poseen también uma marcada superioridad en lo relativo a la interacción dinâmica entre acumulación, productividad e ingreso; la periferia, por el contrario, padece el círculo vicioso en que son precários la productividad, el ingreso y la acumulación. (GURRIERI, 1982, pp. 21-22).

Outra característica da América Latina nestas relações de trocas comerciais com o centro é sua tendência estrutural ao desequilíbrio

externo.

Ocorre

que

durante

o

processo

de

industrialização da periferia latino-americana, há uma confluência de fatores que conduzem ao desequilíbrio externo, ou seja, ao déficit no balanço de pagamentos. Primeiro: durante o processo de industrialização ocorre um aumento do coeficiente de importações que

não encontra

proporcionalidade

na capacidade

para

importar, devido ao fato de que a demanda do centro por produtos primários tende à ser inelástica com relação à renda. Portanto, há um aumento no valor das importações, sem um

168

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

correspondente aumento no valor das exportações. Segundo: o padrão

de

consumo

da

periferia

latino-americana

não foi

desenvolvido pari passu com sua capacidade produtiva, sendo que uma parcela importante da população brasileira tem seus hábitos de consumo ditados pelo centro. Estes dois fatores combinados encontram-se presentes em todos os estágios da industrialização latino-americana, exceto quando se atinge o estágio mais avançado. O resultado é que, não havendo nada no sistema que assegure proporcionalidade entre o crescimento da demanda por importações e o crescimento da capacidade de importar, o problema do desequilíbrio externo tende a reaparecer ao longo do processo, ao invés de desaparecer com ele, pelo menos até que um estágio bem avançado da industrialização tenha sido atingido. (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 20).

Desta forma, as importações superam em muito as exportações, gerando déficit no balanço de pagamentos, que deve ser enfrentado através da diminuição das reservas em dólares. Portanto, juntamente com o desemprego estrutural e a inflação, a deterioração dos termos de troca e o desequilíbrio externo seriam os principais obstáculos que, segundo Prebisch, obstaculizariam o processo de industrialização latino-americano. Contudo,

destarte

estes

problemas

estruturais

da

industrialização latino-americana, esta tem papel central na teoria do desenvolvimento econômico de Prebisch. Em trecho do documento de 1952 da CEPAL, intitulado Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico, Prebisch sintetiza sua visão de desenvolvimento econômico. Nela estão apresentadas algumas benesses

trazidas

pela

industrialização,

como

o

estímulo

à

agricultura e o aumento no nível de renda, mas também o obstáculo do desequilíbrio externo. As atividades de exportação dos países latinoamericanos são insuficientes para absorver o aumento da população ativa disponível, em virtude de seu crescimento vegetativo e do progresso técnico. A industrialização desempenha, antes de mais nada, o papel dinâmico de absorver

169

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

diretamente a população ativa excedente e estimular outras atividades, inclusive a agricultura de consumo interno, que contribuem para o mesmo objetivo. Dessa forma, através do progresso técnico e da industrialização, vai crescendo a renda global e melhorando a renda per capita [sic]. À medida que a renda aumenta dessa maneira e que se vai alterando a composição da demanda, é indispensável ir transformando a composição das importações e desenvolvendo a produção substitutiva interna, a fim de que outras importações possam crescer intensamente. Quando esse reajuste das importações não se realiza em medida suficiente, a elevação da renda manifesta-se na tendência ao desequilíbrio externo: as importações tendem a crescer mais do que a capacidade de importar. (PREBISCH, 2000, p. 196).

No Estudo Econômico de 1949, também aparece a industrialização como estimuladora da agricultura. Esta, como indica seu nome, abrange as primeiras etapas do processo produtivo, enquanto a indústria compreende as etapas subseqüentes [sic]. Justamente por essa posição relativa das duas atividades, o aumento da atividade industrial fomenta a atividade primária, a qual, por sua vez, não tem o poder de estimular a atividade industrial. (CEPAL, 2000, p. 147).

Procuramos neste item apontar as principais etapas do pensamento do economista argentino Raúl Prebisch, bem como as principais categorias de análise por ele desenvolvidas ao longo dos anos 50 do século passado. São elas: o esquema centro-periferia e os dois principais fatores que obstaculizam a industrialização latinoamericana: a deterioração dos termos de troca ou intercâmbio e a tendência estrutural ao desequilíbrio externo. Não tratamos aqui da importante

questão

da

industrialização

por

substituição

de

importações, dado que o faremos no próximo item ao buscar as continuidades e desenvolvimentos do pensamento de Prebisch a partir de List. A fim de que possamos encerrar esta seção do artigo, faltanos apenas pontuar a importância do método de Prebsich para seus constructos e esquemas analíticos. O método de análise que se consagrou pela CEPAL, foi o método histórico-estrutural, já presente

170

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

no texto de 1949 de Prebisch através do sistema centro-periferia. Ao contrário do que ocorreu nas ciências sociais, na lingüística e na antropologia quando do surgimento do estruturalismo, ou seja, marcadamente a-histórico, com a CEPAL ele se insere na análise histórica. Ao contrário do preconizado por Rostow, de que o subdesenvolvimento seria uma etapa pela qual os países pobres deveriam passar até atingirem o patamar de desenvolvimento dos países ricos, através do método cepalino, a condição de subdesenvolvimento da América Latina deveria ser estudada a partir

de

seus

experiência,

condicionantes

ou

seja,

o

históricos

caminho

e

de

trilhado

sua

própria

pelos

países

subdesenvolvidos não necessariamente seria o mesmo que o dos países desenvolvidos. En otras palabras, el enfoque histórico-estructuralista cepalino implica un método de producción del conocimiento muy atento al comportamiento de los agentes sociales y a la trayectoria de las instituciones, que se aproxima más a un proceso inductivo que a los enfoques abstracto-deductivos tradicionales. (BIELSCHOWSKY, 1998, p. 24).

Para

além

de

pensamentos

contrapostos:

a

complementaridade List

se

contrapunha

ao

pensamento

econômico

predominante de sua época, ou seja, à teoria de livre-comércio derivada dos escritos de Adam Smith e de seus principais seguidores, como o francês Jean-Baptiste Say. Da mesma forma, Prebisch também rechaçava a teoria neoclássica do comércio internacional, versão da teoria econômica smithiana do livrecomércio na teoria econômica moderna. Ambos, da mesma maneira, não negam a validade destas teorias, contudo, as mesmas possuem um caráter universalizante e, para que atinjam sua validade, são necessárias uma série de pré-condições. Aqui reside uma das grandes semelhanças entre os dois pensadores: o método. Ambos utilizam-se do método indutivo, ou seja, um método eminentemente histórico e não dedutivo como o pensamento

171

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

econômico inglês à época de List e o pensamento da escola neoclássico, extremamente a-histórico, quando das principais formulações de Raúl Prebisch. Devem-se levar em consideração as condições da Alemanha de List naquele momento e não tentar implementar políticas sugeridas pela Inglaterra que se encontrava em outro nível de desenvolvimento. Da mesma forma para Prebisch. “Não é de estranhar, portanto, que prevaleça, frequentemente [sic], nos estudos que se publicam acêrca [sic] da economia dos países da América Latina, o critério ou a experiência especial dos grandes centros da economia mundial.” (PREBISCH, 1949, p. 48). Desenvolvimento tanto para List quanto para Prebisch significa

industrialização.

“Daí

o significado

fundamental

da

industrialização para os países novos. Ela não é um fim em si mesma, mas o único meio de que se dispõe para captar uma parte do fruto do progresso técnico e elevar progressivamente o nível de vida das massas.”

(PREBSICH,

1949,

p.

48).

Assim,

para

Prebisch

a

industrialização melhoraria o nível de vida da população como um todo e para List, em outras palavras, aconteceria o mesmo, com a elevação da condição da Nação a um patamar semelhante ao da Inglaterra em sua época. Já vimos como a condição de um país que apenas se concentra na produção de bens agrícolas ou primários é desvantajosa na visão dos dois pensadores. Em um país dedicado apenas à agricultura em estágio primitivo predominam as seguintes características: embotamento da mente, despreparo físico, adesão obstinada a conceitos, costumes, métodos e processos antiquados, falta de cultura, de prosperidade e de liberdade. Ao contrário, desejo e empenho por constante crescimento das aptidões mentais e corporais, espírito de emulação e de liberdade caracterizam uma nação voltada para a manufatura e o comércio. (LIST, 1983, p. 137).

List vai além dos fatores meramente econômicos quando advoga a favor do desenvolvimento manufatureiro e, em um primeiro momento, podemos até mesmo acusar List de uma desqualificação cabal da agricultura, incluindo aí até mesmo fatores de ordem cultural. Vejamos agora, a maneira como ambos

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

172

concebem este processo de industrialização, bem como seus benefícios. Para Prebisch a industrialização da América Latina se iniciou durante a Primeira Guerra Mundial, em um contexto de restrição às importações, o que induziu um processo de industrialização denominado pela CEPAL de processo de industrialização por substituição de importações. Este processo teria levado a uma transformação das estruturas sócio-econômicas de alguns países da América Latina, induzindo um acentuado processo de urbanização e liberando mão de obra da agricultura para os setores urbanoindustriais. Este quadro teria se acentuado durante a Segunda Guerra Mundial. List também concebeu que restrições ao comércio, como a guerra, poderiam estimular a implantação de manufaturas, ou seja, estimular a industrialização. Se, contudo, uma nação agrícola, cuja produção e consumo diminuíram por motivo de guerra, já tiver feito progressos consideráveis no tocante à população, à civilização e à agricultura, as manufaturas e as fábricas florescerão em conseqüência [sic] da interrupção do comércio internacional devido ao conflito bélico. (LIST, 1983, p. 127).

Para Prebisch, a substituição de importações se dá em etapas, sendo a primeira delas a etapa de substituir a importação de bens de consumo duráveis, através da importação de bens de capital. Para tanto é necessário a intervenção do Estado através da implantação de tarifas aduaneiras protecionistas. “(...) a substituição de importações por produção interna requer, geralmente, a elevação das tarifas aduaneiras, dado o maior custo que via de regra têm os produtos desta.” (PREBISCH, 1949, p. 88). Aqui reside uma das maiores proximidades entre o pensamento de List e o de Prebich: a necessidade de proteção por parte do Estado ao processo de industrialização. É incrível notar que já no século XIX List propõe para a Alemanha, mecanismos de industrialização sugeridos por Prebisch e pela CEPAL aos países subdesenvolvidos mais de um século depois.

173

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Os

estágios

de

desenvolvimento

de

uma

Nação

preconizados por List – “No tocante à economia, as nações devem passar pelos seguintes estágios de desenvolvimento: barbárie inicial, estágio pastoril, estágio agrícola, estágio agromanufatureiro e estágio agromanufatureiro-comercial.” (LIST, 1983, p. 125) – e apresentados por nós na página 10 do presente artigo, poderiam ser “traduzidos” da seguinte maneira em termos cepalinos: o primeiro estágio seria aquele em que se deveria adquirir bens de capital para a industrialização; o segundo seria o de implementar políticas protecionistas à industria nascente; e o terceiro estágio, após o que Prebisch denominou de “etapa fácil do processo de industrialização por substituição de importações”, seria o de promover a consolidação da indústria de bens de capital e estimular a concorrência à fim de se evitar a estagnação. Vejamos agora as proposições de List quanto à proteção alfandegária ou aduaneira e a intervenção do Estado na economia, para em seguida podermos traçar um comparativo com as propostas de Prebisch. Para List, a produção agrícola não é passível de proteção, ou seja, não se devem impor taxas alfandegárias às exportações de produtos primários, tão pouco à importação destes mesmos produtos. De acordo com nosso sistema, só se pode pensar em proibir a exportação, ou em impor taxas à exportação, em casos excepcionais; as importações de produtos naturais devem, por toda parte, estar sujeitas somente ao direito meramente fiscal e nunca a taxas alfandegárias destinadas a proteger a produção agrícola nacional. (LIST, 1983, p. 207).

Quanto à importação de bens manufaturados, List aponta que

os

países

subdesenvolvidos

não

devem

impor

tarifas

alfandegárias à sua importação, o que certamente não agradaria à Prebisch. (...) os países de clima quente, ou de população ou territórios reduzidos, ou os países ainda não suficientemente povoados, ou países ainda subdesenvolvidos no que tange à civilização e às

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

174

instituições sociais e políticas, só devem impor meros direitos fiscais sobre os bens manufaturados. (LIST, 1983, p. 207).

O protecionismo, através de tarifas alfandegárias, não é indiscriminado. Como vimos, para List não deve haver proteção quanto aos produtos agrícolas/primários. Além disso, a política protecionista não pode ser implantada em qualquer país, ou em termos listianos, em qualquer Nação. List nos apresenta as características que uma Nação deve possuir para que a política protecionista seja exitosa. As medidas protecionistas só se justificam com o intuito de fomentar e proteger a força manufatureira interna, e somente no caso das nações que, por possuírem território extenso e uniforme, população numerosa, recursos naturais abundantes, agricultura em estágio avançado e elevado grau de civilização e de desenvolvimento político, tiverem capacidade para competir com as grandes nações agrícolas, manufatureiras e comerciais, e com as maiores potências navais e militares. (LIST, 1983, p. 207).

List, demarcando o aspecto histórico de sua teoria, coloca que o grau de proteção deve ser analisado segundo as condições específicas de cada Nação. Não é possível determinar teoricamente até que ponto se devem aumentar as taxas alfandegárias no caso de mudança do sistema de livre concorrência para o sistema protecionista, e até que ponto devem ser reduzidas em caso de mudança do sistema proibitivo para um sistema de proteção moderada; isto depende das condições específicas e das condições relativas na qual se encontra a nação menos desenvolvida em relação às mais avançadas. (LIST, 1983, p. 210).

É notória, por exemplo, a semelhança entre a assertiva de List acerca da necessidade de nações pouco desenvolvidas importarem o que ele denomina de “maquinaria” e a propositura cepalina acerca da necessidade de se estimular, por parte do Estado, a importação de bens de capital – que nada mais são do que “maquinaria” em termos listianos – para a primeira etapa do processo de substituição de importações.

175

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

As nações ainda pouco desenvolvidas na técnica e na manufatura de maquinaria devem permitir a importação livre de qualquer maquinaria de maior complexidade, ou, pelo menos, impor taxas muito moderadas, até que possam produzi-las com a mesma rapidez que a nação mais avançada. (...) esse setor específico da manufatura necessita do apoio direto do Estado, no caso de não poder concorrer em regime de taxas de importação moderadas. (LIST, 1983, p. 210).

Fica claro pelo excerto acima, que a importação de bens de capital, em termos cepalinos, ou de maquinaria, em termos listianos, deve ser estimulada pelo Estado, senão através de uma não taxação, ao menos através de tarifas preferenciais, como por muito tempo se fez na economia brasileira. Uma preocupação de Prebisch e da CEPAL em relação ao padrão de consumo de uma classe completamente pautada pelos padrões estadunidenses, também já aparece em List: “As indústrias que só produzem artigos de luxo de preço elevado são as que merecem menos consideração e menor grau de proteção.” (LIST, 1983, p. 210). Neste sentido, tanto para Prebisch, quanto para List, os bens supérfluos deveriam ser mais taxados, à fim de desestimular a importação de bens não essenciais para a industrialização. Ainda sobre a necessidade de se restringir a importação de bens de luxo e estimular a importação de bens de capital, já em seu texto inaugural de 1949, Prebisch pontuava: “Há, pois, que admitir (...), a possibilidade de que tenha que reduzir-se o coeficiente de importações, seja em conjunto ou em dólares, reduzindo ou suprimindo artigos não essenciais, para possibilitar mais amplas importações de bens de capital.” (PREBISCH, 1949, p. 80). Portanto, quanto às tarifas alfandegárias impostas aos produtos importados, as posições que encontramos em Prebisch, podemos também encontrar em List, principalmente no que tange à necessidade de importar bens de capital/maquinaria e de desestimular a importação de bens de luxo/supérfluos. Em ambos os pensadores o Estado tem papel fundamental em estabelecer os níveis de proteção à industria nacional. Contudo, também em

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

176

ambos os pensadores, a proteção não pode ser indiscriminada, seu nível e incidência devem se dar de acordo com condições específicas. Após termos explicitado como se daria o processo de industrialização para cada pensador, bem como as formas de estimulá-lo, passemos agora às benesses que cada um aponta derivadas desse processo. Como demarcamos anteriormente no tópico dedicado à List, este pensador, ao contrário dos economistas vinculados a Adam Smith, não vê que a manufatura poderia prejudicar a agricultura, devido ao fato de que uma política de apoio à industria nascente faria aumentar o preço dos produtos manufaturados, devido às tarifas protecionistas. Ao contrário, List defende que a manufatura estimularia a agricultura. Ou seja, List vê grande sinergia entre os diversos setores da economia, onde a manufatura faria com que se estimulasse toda a implantação de uma infra-estrutura de transportes que, consequentemente, faria o preço da terra subir, bem como a renda auferida pelos proprietários na forma de renda da terra. Os preços agrícolas também seriam estimulados, pois com o desenvolvimento das manufaturas, a demanda por produtos agrícolas aumentaria. A indústria, para Prebisch, também traria grandes benefícios ao setor primário exportador, posto que a indústria poderia absorver os excedentes de mão de obra provenientes das rodadas de progresso técnico pelas quais passaria o setor primário. “Compete à indústria e às atividades que dependem direta ou indiretamente do desenvolvimento da produção primária, portanto, a função de absorver esse excedente.” (CEPAL, 2000, p. 145). Outra forma de estímulo à produção primária trazida pela industrialização seria o incentivo ao aumento da produção deste setor. Contudo, assim como List pontua por várias vezes em seu Sistema, Prebisch também não vê a possibilidade de que o processo inverso ocorra, ou seja, de que a atividade primária estimule a atividade industrial.

177

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Esta, como indica seu nome, abrange as primeiras etapas do processo produtivo, enquanto a indústria compreende as etapas subseqüentes [sic]. Justamente por essa posição relativa das duas atividades, o aumento da atividade industrial fomenta a atividade primária, a qual, por sua vez, não tem o poder de estimular a atividade industrial. (CEPAL, 2000, p. 147).

Na análise de Prebisch, a renda da terra também aumentaria em consequência do processo de desenvolvimento dos transportes trazido pela industrialização. “A renda das terras economicamente novas é, em última instância, a expressão de sua maior produtividade, em comparação com as terras de exploração mais antiga. O progresso técnico dos transportes explica esse fenômeno do aumento da renda.” (CEPAL, 2000, p. 151). Além do beneficio trazido pela industrialização para a agricultura, Prebisch aponta outros setores que seriam dinamizados por este processo, como o comércio – através do incremento no consumo devido ao aumento no nível de renda – e até mesmo melhorias no mercado de trabalho com o surgimento de novas fontes de ocupações. A industrialização absorve uma parte da população disponível e contribui para que uma outra parte seja absorvida em atividades correlatas, como os transportes e o comércio, que se desenvolvem paralelamente à ela. Além disso, o aumento da produtividade média em que se manifesta o processo de industrialização, juntamente com o aumento de produtividade determinado pelo aperfeiçoamento das técnicas na produção primária, eleva a renda per capita [sic] e traz consigo uma demanda crescente de serviços, com o que surgem novas fontes de ocupação. (PREBISCH, 2000, p. 185).

Podemos também encontrar em List subsídios que nos permitem pensar em uma incipiente Teoria da Deterioração dos Termos de Intercâmbio/Troca. List esclarece que uma nação agrícola muito se prejudica se depender das importações de seus produtos por parte de outras nações para fazer frente à sua demanda por produtos manufaturados. Se pensarmos que a base da Teoria da Deterioração dos Termos de Troca está na questão da queda

secular

dos

preços

dos

bens

primários

frente

aos

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

178

manufaturados e que o quadro se agrava devido ao fato de que o país que exporta produtos primários depende das condições do país importador, o raciocínio de List é bastante inspirador. A inconstância da demanda externa constitui, sob todos os aspectos, o fator mais pernicioso de todos, se em decorrência de guerras, fracasso das safras, diminuição de importações de outros países, ou devido a qualquer outra circunstância ou ocorrência, a nação manufatureira exigir grandes quantidades, especialmente de gêneros de primeira necessidade ou de matérias-primas e se depois essa grande demanda baixa deixa novamente de existir, em circunstância da restauração da paz, de colheitas abundantes, de maiores importações de outros países, ou em decorrência de decisões políticas. (LIST, 1983, p. 167).

A consequente tendência ao desequilíbrio do balanço de pagamentos que estão sujeitas as economias que importam bens manufaturados e exportam bens primários, também está presente em List. A experiência tem demonstrado repetidas vezes (...) que, nas nações agrícolas, cujo mercado manufatureiro está exposto à livre concorrência por parte de uma nação que já atingiu a supremacia manufatureira, com freqüência o valor da importação de bens manufaturados ultrapassa de muito o valor dos produtos agrícolas exportados, o que por vezes ocasiona repentinamente uma exportação extraordinária de metais preciosos, gerando confusão na economia da nação agrícola, sobretudo se seu comércio interno estiver baseado principalmente na circulação de papelmoeda, chegando-se no caso a verdadeiras calamidades nacionais. (LIST, 1983, p. 183).

Sem querermos aqui ser teleológicos, se substituirmos o termo “metais preciosos” do excerto acima, por “dólares”, não teríamos dificuldade em ver aí um gérmen do desequilíbrio externo tratado

pelos

economistas

cepalinos,

e

por

Prebisch

originariamente. Ademais, a calamidade à que List faz referência é a inflação, que também estaria presente, devido ao fato de que se buscaria implementar uma desvalorização cambial a fim de se tentar restabelecer as reservas monetárias.

179

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Algumas considerações finais Tratamos aqui de expor de forma geral o pensamento de List e o pensamento de Prebisch. Não pudemos adentrar em aspectos mais detalhados de ambos os pensadores, devido ao fato de que nosso espaço não propicia tamanho intento. Contudo, esperamos

que

nosso

objetivo,

de

demonstrar

a

complementaridade das ideias dos dois autores, tenha sido alcançado. Vimos que o pensamento de List, em muitos aspectos estaria à frente de seu próprio tempo, bem como também à frente, em certa medida, do pensamento do próprio Prebisch, ao considerar fatores políticos e culturais que impediriam ou estimulariam a implantação de manufaturas e que Prebisch iria integrar em sua análise somente décadas depois. Obviamente que a análise de Prebisch é mais sofisticada que a de List, posto que Prebisch tinha à sua disposição um instrumental de análise mais desenvolvido do que List. Porém, List se limita, até mesmo pelos intentos de sua grande obra – colocar a Alemanha em um mesmo patamar de desenvolvimento que a Inglaterra – , como vimos, à destacar as benesses da industrialização, sem se atentar para seus obstáculos, como o faz Prebisch para o caso específico da América Latina, ao importar bens de capital do centro, por exemplo. (...) ao efetuarem seus investimentos, tais países deparam com a necessidade de importar os mesmos equipamentos a que chegaram os países desenvolvidos depois de uma longa evolução. Assim, sucede que equipamentos com uma grande intensidade de capital por homem empregado, compatíveis com a elevada renda per capita [sic] dos centros industializados, são igualmente oferecidos aos países menos desenvolvidos, nos quais a renda per capita [sic] e, portanto, a capacidade de poupança são evidentemente inferiores. (PREBISCH, 2000, p. 200).

Contudo, a grande aproximação entre os dois pensadores se



pela

questão

do

método

eminentemente

histórico

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

180

desenvolvido por ambos, procurando pensar o desenvolvimento de cada região em uma perspectiva histórica de longo prazo. Conhecer o pensamento de List e seus desdobramentos no pensamento de Prebisch nos instrumentaliza para a compreensão de debates ainda contemporâneos nas relações internacionais e na economia brasileira. Por vezes, o governo brasileiro se queixa das medidas protecionistas dos governos estadunidense e europeus quanto ao setor agrícola, o que diminui a competitividade dos produtos primários brasileiros naqueles mercados. Diante da avalanche de produtos chineses que toma o mercado brasileiro, encontra-se em debate ainda, a questão de se proteger a indústria nacional em relação à estes produtos, com o argumento de se garantir a competitividade dos produtos brasileiros no mercado nacional, que não teria condições de concorrer com os produtos chineses, devido, entre outros fatores, aos baixos salários vigorantes na China. Portanto, conhecer o debate em torno de políticas protecionistas versus políticas mais liberalizantes, da intervenção do Estado na economia, além de necessário conhecimento no âmbito da História do Pensamento Econômico, também nos instrumentaliza para os debates em torno dos rumos da política econômica brasileira e das relações internacionais.

181

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas AMORIM, Ricardo. A Cepal clássica, o emprego e a nação: algumas considerações (1950-70). Campinas: Anais do X Encontro Nacional de Economia Política. Disponível em: . Acessado em 11/04/2012. BELL, John F. Frederick List, Champion of Industrial Capitalism. The Pennsylvania Magazine of History and Biography. Pennsylvania, v. 66, n. 1, pp. 56-83, 1942. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Evolución de las ideias de la CEPAL. Revista de La CEPAL. Santiago, número extraordinário, octubre, pp. 21-45, 1998. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. BUARQUE, Cristovam. Introdução. In: LIST, Georg Friedrich List. Sistema Nacional de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. CEPAL. Estudo econômico da América Latina, 1949. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal, v. 1. Rio de Janeiro: Record, 2000. CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004. COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Raúl Prebisch. Economia e Sociedade. Campinas, v. 16, n. 1, pp. 45-64, 2007. FLECHSIG, Steffen. Em memória de Raúl Prebisch (1901-1986). Revista de Economia Política. São Paulo, v. 11, n. 1, pp. 92-107, 1991. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. As origens e as vertentes formadoras do pensamento cepalino. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, v. 54, n. 3, pp. 333-358, 2000. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. O pensamento econômico alemão no século 19. In: HELFER, Inácio (org.). Os pensadores alemães dos séculos XIX e XX. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000a. Disponível em: . Acessado em 14/04/2012. GURRIERI, Adolfo. La Economía Política de Raúl Prebisch. In: GURRIERI, Adolfo (org.). La obra de Prebisch em la CEPAL, v.1. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. IGLÉSIAS, Francisco. Introdução à historiografia econômica. Belo Horizonte: FCE; UMG, 1959. LIST, Georg Friedrich. Sistema Nacional de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MANTEGA, Guido. A Economia Política brasileira. Petrópolis: Vozes, 1984. MENEZES, Sezinando Luiz e PEREIRA, Luciene Maria Pires. Sobre idéias e instituições: a riqueza das nações ou a riqueza da nação? As idéias de Adam Smith e Friedrich List sobre o desenvolvimento do capitalismo. Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 30, n. 1, pp. 87-95, 2008. RODRÍGUEZ, Octavio. Teoria do subdesenvolvimento da CEPAL. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981. SERRA, José. O desenvolvimento da América Latina. Notas introdutórias. In: SERRA, José (org.). América Latina: ensaios de interpretação econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. PADULA, Raphael. Friedrich List. OIKOS. Rio de Janeiro, n.8, ano VI, 2007.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

182

PESSALI, Huáscar Fialho. Kicking away the ladder: development strategy in historical perspective. Ha-Joon Chang. Nova Economia. Belo Horizonte, v. 14, n. 3, pp. 189-193, 2004. PREBISCH, Raúl. O Desenvolvimento Econômico da América Latina e seus principais problemas. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: v. 3, n. 3, pp. 47-111, 1949. PREBISCH, Raul. Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento na Cepal, v. 1. Rio de Janeiro: Record, 2000. VARELA, Carmen Augusta. Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Ha-Joon Chang. São Paulo: Editora UNESP, 2004. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 26, n. 4, pp. 627-628, 2006.

183

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

As Minas de Mato Grosso: Apogeu, Crise e Declínio da Mineração1 Romyr Conde Garcia2 RESUMO Este artigo trata-se de um estudo sobre a mineração em Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX procurando através da história quantitativa determinar um momento em que esta atividade chega ao seu apogeu e entra em crise. Partindo de dados demográficos e econômicos e realizando comparações com outras regiões mineradoras, Minas Gerais e Goiás ficam provadas que as minas mato-grossenses apresentam regularidade e alta produtividade, porém, na medida em que sua população cresce o ouro vai decaindo e com ele, elevam-se os custos de produção. Esta crise situa-se por volta de 1800, momento em que a mineração não permite mais a manutenção do plantel escravista. Palavras-chave: Mineração, Mato Grosso, História Quantitativa, Escravidão. ABSTRACT This paper covers a study on mining in Mato Grosso during the eighteenth and nineteenth centuries, aiming at determining a moment when this activity reaches its peak and when it starts its decadence, through quantitative history. Starting from economic and demographic data and conducting comparisons with mining in other regions such as Minas Gerais and Goiás, it is proved that mines in Mato Grosso have regularity and high productivity, nevertheless, as its population grows, gold declines, and together with it, the production costs rise. This crisis is set around 1800, when the mining activity no longer allows the maintenance of slavery. Keywords: Mining, Mato Grosso, Quantitative History, Slavery.

Artigo recebido em 08/08/2013. Aprovado em 10/10/2013. Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo.Pós-Doutor pela Universidade Federal Fluminense, Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso – UNEMAT. 1 2

184

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Introdução É intrigante pensar-se na decadência da mineração no Brasil colonial. Atestada na documentação oficial: ofícios e relatórios dos governadores, dos intendentes do ouro e das juntas de fazenda, lamentada por figuras ilustres do Império, como José Bonifácio e Eschwege, confirmada pela produção acadêmica e divulgada por livros didáticos, todos falam de uma “decadência das minas” ou “redução da arrecadação dos Quintos” no final do século XVIII e início do XIX. Se esta é a tendência nacional, cujo exemplo principal é Minas Gerais, o que podemos dizer de uma capitania de pequeno porte como Mato Grosso? Nas pesquisas realizadas encontramos o mesmo “tom de desânimo” nas correspondências oficiais de Mato Grosso tanto no século XVIII como para o início do século XIX (1808), e ainda para os últimos anos do Primeiro Reinado. Parece que a decadência sobrevivia às administrações e reinados. Por sua vez, a bibliografia tende,

seguindo

mais

o

ritmo

aurífero

nacional,

do

que

propriamente o ritmo da capitania de Mato Grosso, definir a segunda metade do século XVIII como um momento de declínio da produção mineradora. Ou seja, para grande parte dos historiadores, a capitania teria sido criada em momento de crise. A longa decadência apresentada pela documentação oficial contrasta com a ideia de criação e surgimento da capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, como o próprio crescimento de sua população. Diante deste impasse, é fundamental para qualquer estudo econômico sobre Mato Grosso, situar o momento em que esta crise se abateu sobre esta região mineradora, ou mesmo, se esta crise realmente existiu. Segundo as nossas pesquisas acreditamos que Mato Grosso teria sofrido um padrão de fortes flutuações econômicas no período 1800-1840, flutuações estas mais agudas até do que aquelas do conjunto da economia brasileira. A causa para estas flutuações encontra-se no setor minerador.

185

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Como mostraremos a seguir, a mineração mato-grossense, entre 1750 e 1850, conviveu com surtos auríferos e diamantíferos rápidos e violentos, surgimento e desaparecimento de arraiais mineradores, esgotamento rápido de veios auríferos convivendo com a permanência de garimpos não tão produtivos, m a s extremamente regulares. Dentro deste longo processo situamos a crise da mineração na passagem do século XVIII para o XIX, particularmente para o ano de 1800. Destes dois pressupostos um terceiro torna-se possível, a economia mato-grossense deveria entrar em decadência ou estagnação

econômica,

o

que

contraria

as

concepções

acadêmicas vigentes de reordenamento econômico sem vestígios de declínio, muito menos, de estagnação, justamente a resposta por nos encontrada. Este

artigo,

que

é

um

desdobramento

da

tese

de

doutoramento defendida na USP em 2003, orientada por Wilson Barbosa do Nascimento e tentará situar a crise da mineração em Mato Grosso, mostrando novos dados e fontes e, a partir deles, confrontar com a evolução de outras duas capitanias mineradoras: Minas Gerais e Goiás.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

186

Século XVIII: Noya Pinto e o calculo da produção auríferera O primeiro grande trabalho a lançar luz sobre a produção aurífera em Mato Grosso foi O Ouro Brasileiro e o Comércio AngloPortuguês, de Virgílio Noya Pinto (Pinto, 1979), nos seus cálculos, a produção mineral de Mato Grosso não apresentou números elevados, como Goiás e Minas Gerais, no entanto, foi a capitania que teve a produção mais regular. (Veja o Gráfico 01) Considerando os números de Noya Pinto como corretos, perceberemos que a Capitania de Mato Grosso tem o seu ápice na década de 1740, seguido, posteriormente por um longo e suave declínio, período marcado por uma regularidade que a diferencia de outras capitanias mineradoras.

Neste

mesmo

espaço

de

tempo a capitania foi criada, estruturada e sua população apresentou crescimento por todo século XVIII, principalmente no que se refere a população escrava. A princípio, a expansão demográfica poderia indicar que não existia crise no setor

187

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

minerador, mas sabemos que, por toda a segunda metade do século XVIII, bem como para o século seguinte, Mato Grosso nunca mais alcançará os patamares auríferos da década de 1740 e seu sentido sempre foi declinante. Como explicar este descompasso, principalmente no tocante a escravidão? Uma resposta para o descompasso entre o declínio da mineração e expansão demográfica foi a produtividade das minas mato-grossenses. Mesmo tendo a menor produção bruta das três maiores capitanias mineradoras, pela sua diminuta população, a produção per capita da capitania de Mato Grosso era muito superior à de Minas Gerais, e um pouco maior que a de Goiás. Vejase o Quadro abaixo.

Supondo que apenas um terço da população se dedicava à mineração, tal como afirmou Eschwege (1979) para Minas Gerais em 1750 (período de maior extração), a produtividade mato-grossense era excelente. Cerca de 51$741 mil réis (não computando o quinto). Com esta renda, os mato-grossenses poderiam superar o problema da distância, principal fator de encarecimento das mercadorias de exportação. Considerando o preço médio do escravo em 250$000 réis, o valor despendido na sua compra seria coberto em 5 anos. Como a vida útil do escravo, segundo Jacob Gorender seria de dez anos, a renda média do trabalho na mineração nesse período daria para comprar dois escravos, mantendo-se a reprodução do sistema.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

188

Analisando sob o ponto de vista da produtividade, o pequeno tamanho da população de Mato Grosso parecia ser um fator positivo, mais na verdade não o era. Desde os primeiros governadores, passando pelos viajantes do início do século XIX até para relatos de 1868, todos afirmam que as

minas não produziam

mais por falta de braços,

principalmente de escravos. Se as minas de Mato Grosso tinham este problema, existe aspecto positivo desta fragilidade

numérica:

a

atividade mineradora acabou persistindo por muito mais tempo. Talvez isso explique a expansão demográfica da segunda

metade

do

século

XVIII,

que

não

era

acompanhada pela produção aurífera mais notável. Como argumentei através dos cálculos de Noya Pinto, a lenta diminuição da produção aurífera que perdurou por todo o século XVIII, não foi um empecilho ao crescimento econômico de Mato Grosso. Pelo contrário, a regularidade da produção, mesmo que se desse através de pequenos surtos, permitiu manter favorável o fluxo demográfico e promover o crescimento da capitania. Inclusive com outras atividades produtivas. Todavia, à medida que a população cresceu

e

a

província

se

expandiu

mais

rápido

se

esgotariam os veios auríferos. Nesse ritmo, chegaria um momento em que o modelo entraria em colapso. Ou, como alguns preferem, “em crise”. Acredito que esse momento foi o início do século XIX. Descobrimos que volume da produção oficial

de

ouro Mato Grosso contidos nos balanço de oficiais, e pela sua regularidade, se aproximam dos cálculos feitos por Noya Pinto. Ou seja, uma produção que variou muito pouco nas duas últimas décadas. Uma mineração que ainda não

189

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

dava claros sinais de crise. Todavia, não é isso que se observa ao confrontar os índices de produtividade per capita da década de 1770, com a dos anos de 1790. Como a produção de ouro de 1790, foi de 211:944$890 réis, a produção per capita de uma população de 21.000 habitantes, seria de 10$092 réis. Considerando

apenas

a

parcela da

população

empregada na mineração (um terço), cerca de 6.930 indivíduos, a produção per capita dela seria de 30$583. Essa produtividade ainda é duas vezes superior à da capitania de Minas Gerais para o mesmo período. Contudo, o declínio da produtividade em Mato Grosso foi mais sensível que em Minas. Isso se deve à expansão demográfica da capitania do Centro Oeste, que cresceu 31% em quinze anos: saltou de 16.000 em, para 21.000 em 1790.

Se o declínio da produtividade per capita ocorresse, simultaneamente com a queda dos preços dos escravos, das “ferragens” e das “fazendas”, ter-se-ia então um cenário de estabilidade produtiva, afastando, a ideia de crise no setor minerador. Entretanto, Montenegro afirma que, devido ao declínio da rota amazônica, os preços praticados em Vila Bela elevaram-se no século XVIII. Deste modo, a produtividade mato-grossense tornou-se menos interessante que outras capitanias.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

190

Observando-se o Gráfico 02, percebe-se o declínio da produtividade per capita da capitania de Mato Grosso em relação a Goiás e Minas Gerais. Até meados de 1795 a produtividade per capita mato-grossense era de 9$205 réis, contra 5$568 réis de Goiás e 2$930 de Minas Gerais. Considerando a produtividade da população empregada na mineração (33%), a renda seria de 27$616. Com esse valor, em dez anos (tempo de vida útil do escravo), se teria um montante de 270$616 réis. Aproximadamente igual ao preço médio do escravo em Mato Grosso, que ficava entre 300$000 e 250$000 réis. No ano de 1800, a produtividade per capita ficaria em 6$39 réis e a renda da população empregada na mineração em 20$817 réis. Portanto, com essa renda, para se obter um escravo no valor de 275$000 réis, ter-se-ia que trabalhar 13 anos. Três a mais que o tempo de vida útil do escravo. Ou seja:

191

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

com essa produtividade/renda, a reprodução do sistema escravista

na

capitania

de

Mato

Grosso

estava

comprometida. Para agravar a situação, no mesmo ano de 1800, a produtividade/renda da capitania de Goiás ficou muito próxima da produtividade/renda da capitania de Mato Grosso. (veja o quadro a seguir) Como os custos de produção dos goianos eram mais baixos que os dos matogrossenses, tornava-se mais atraente para aqueles que desejam minerar migrar para Goiás do que ficar em Mato Grosso. O que comprometia a elevação da população mato-grossense.

Esses dados reforçam a hipótese de que a crise da mineração em Mato Grosso ocorreu em meados de do ano 1800, e não em outro momento do século XVIIII. Neste quadro, a combinação, queda da produtividade, altos custos

de

produção

e

intensificação

da

exploração

mineradora devido ao crescimento demográfico do final do século XVIII, pode explicar o início da crise da mineração em Mato Grosso.

192

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Flutuações da mineração em Mato Grosso Sendo a mineração o setor mais importante da economia mato-grossense, cabe aqui uma conclusão em separado. Por muito tempo, o quinto do ouro constitui-se na principal

renda

da capitania/província de Mato Grosso.

Na década de 1770, ele chegou a representar mais de 70% de toda arrecadação de Mato Grosso. Mantendo-se estável até o final do século XVIII. Por sua vez, as outras rendas giravam em torno de 30%. Todavia, na segunda metade do século XIX esses valores inverteram: o quinto do ouro caiu e as outras rendas elevaram-se. Essa

inversão

pode

ser

observada

quando

se

compara a flutuação do ouro como o Produto Interno de Mato Grosso, vide o gráfico anterior. Quando se observa uma estimativa da tendência do

produto

de

Mato

Grosso

no período 1796-1822,

xecada contra o padrão de flutuações da produção do ouro, distingue-se claramente duas crises econômicas: a primeira ocorreria em 1799-1800, recuperando-se após o produto; e segundo nota-se de 1810 a 1821, com produção bem abaixo da tendência. Isso confirma o forte padrão de flutuações imprimida a economia da época pela tendência visivelmente recursos.

depressiva não

da

podia

ser

produção

aurífera,

compensada

por

que outros

193

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Na introdução deste artigo afirmei que, devido à crise do setor minerador, Mato Grosso teria sofrido um padrão de fortes flutuações econômicas no período 1800-1840, mais agudas até do que aquelas do conjunto da economia brasileira, sendo possível caracterizá-las como um período histórico de decadência ou de estagnação e que a crise da mineração teria ocorrido na passagem do século XVIII para o XIX, aproximadamente no ano de 1800. Ao confrontar a flutuação da produção do ouro com o Produto Interno de Mato Grosso, acredito que se alcança a comprovação da primeira hipótese. Outro dado que reforça essa hipótese é a evolução da produção per capita da mineração mato-grossense e da renda da população ocupada

no

setor

minerador,

no

período

1770-1830.

Confrontando a renda com a “taxa anual mínima de reposição escravista”, é possível observar uma crise da mineração nos últimos anos do século XVIII, particularmente

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

194

em 1800. A Taxa Mínima Média de reposição escravista é a produtividade anual que o escravo deveria alcançar (em dez anos de trabalho) para poder repor o custo da sua aquisição.

Pelos índices da renda da população ocupada no setor minerador, entre 1778 e 1800, a capacidade de reprodução do sistema escravista estava comprometida. Isso significa que um escravo teria que trabalhar mais de dez anos, para poder comprar outro escravo para o seu senhor. Entre 1800 e 1805 a renda ainda ficou próxima à taxa anual mínima. Todavia, nos anos seguintes, ela ficou abaixo dos 20$000. Ou seja, o escravo teria que trabalhar mais de 14 anos para cobrir o valor da sua aquisição. A extração diamantífera poderia elevar a renda dos mineradores a ponto dessa ficar acima da taxa anual mínima de reposição escravista. Contudo, a mineração de diamantes não causou muito impacto nas rendas provinciais, visto que pouco foi destinado para arrematar as pedras que eram voluntariamente oferecidas a Junta de Gratificação. Entretanto, o início da

195

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

exploração diamantífera causou impactos significativos nesta capitania: (1) fez deslocar contingentes demográficos de outras sub-regiões para o Alto Paraguai, principalmente do Guaporé; (2) deve ter elevado momentaneamente o preço do escravo e dos gêneros; (3) aumentou o extravio realizado pelos escravos, e (4) a grande oferta de pedras fez o preço dos diamantes cair. Voltando à mineração como um todo, um ponto que deve ser observado é a grande presença da escravidão, mesmo no final do período. A atividade de extração aurífera possibilitaria a formação de um plantel de escravos maior que as demandas produtivas

da

mineração

e

das

atividades

ligadas

ao

abastecimento. O apogeu da população escrava teria ocorrido em 1815, quando a província encontrou-se num momento contraditório: declínio da produtividade anual per capita e desenvolvimento dos garimpos

do

Alto

Paraguai.

Como

a

população

escrava

praticamente ficou estável deve-se supor que os mato-grossenses conseguiram aumentar a expectativa de vida do escravo, elevando, consequentemente, a sua vida útil. Isso só poderia ocorrer deslocando-se o escravo para a lavoura de subsistência. Esse deslocamento para a agricultura de subsistência poderia promover mudanças significativas no plantel de escravos da região

mineradora:

(1)

locação

apenas

de

uma pequena

parcela do plantel de escravos na mineração, enquanto a maioria estaria na roça; (2) elevação do número de escravas e, consequentemente (3) elevação da taxa de natalidade. Esse quadro foi detectado no Arraial de Lavrinhas. E acredito que deve ter se repetido em outros lugares, talvez em Vila Bela ou Diamantino. Todas essas mudanças, mas a manutenção da mineração, mesmo que em baixos padrões, poderia explicar porque a população escrava manteve-se estável por todo o período. Conclusão De todos esses movimentos e dados conclui-se que:

196

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.



Possivelmente, a região que sentiu a crise do setor

minerador foi Vila Bela, em meados do final do século XVIII. Em 1800, o Vale do Cuiabá deveria encontrar-se em similar situação, até que o último grande descoberto da era escravista surgiu: Diamantino

(1803).

Esse

descobrimento

provocou

outras

consequências: (1) consolidou de vez o Cuiabá como o centro da província, tornando insustentável para Vila Bela manter-se como a Capital de Mato Grosso; (2) elevou o preço do escravo, tornando inviável a reprodução escravista de muitos garimpos matogrossenses; e (3) tornou-se um centro consumidor de mão-de-obra dos garimpos decadentes, (4) se não revigorou o setor minerador, pelo menos, manteve as atenções dos senhores de escravos para mineração, dificultando a transferência de escravos e capitais para outros setores da economia, ou mesmo, para fora da província. 

O desenvolvimento de Diamantino não acabou com

os garimpos decadentes do Guaporé e do Cuiabá, apenas tornou mais elevados os custos de produção. A mineração nestas regiões se contentaria com baixas produções até a exaustão final dos seus veios. Entretanto, enquanto houvesse ouro, a escravidão seria mantida, mesmo em patamares baixos. Cessou a renovação dos plantéis, como outrora. Contudo, o tempo de vida útil do escravo tendia a aumentar para compensar a renda menor. Assim a população escrava continuou elevada, mesmo na crise dos anos vinte.

O exemplo mais evidente disso seria o Arraial de Lavrinhas (1832-1834).

Não existiam fazendas de gado,

engenhos ou fábricas de açúcar ou aguardente. Sua produção agrícola era suficiente para a subsistência. Sua única atividade econômica de peso era a mineração, com produção anual bruta de apenas 600 oitavas, cerca de 900.000 réis. Do total de 450 escravos, apenas 40, trabalhavam

197

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

na mineração, com produtividade per capita em torno de 20.000 réis. Mesmo com renda abaixo da taxa anual mínima de reprodução escravista (27$000), o arraial não teve seu plantel de

escravos

reduzido.

Pelo

contrário,

apresentou

leve

crescimento. Isso não ocorreu por causa do crescimento vegetativo da população escrava, visto que o número de batismos era inferior ao número de óbitos e de emancipações somados. Excluindo o crescimento vegetativo, a única explicação para o crescimento do plantel seria a compra de escravos. O curioso do caso “Lavrinhas” é esclarecer porque um arraial que não tinha setor agropastoril, voltado para o mercado e não extraia grandes quantidades de ouro, possuía a maior parte do seu plantel (82%), operando fora do setor lucrativo. Para quê tinha a necessidade de comprar escravos? Mais

intrigante

ainda

é

pensar

que

anualmente

emancipavam-se 16 escravos, sendo quatro adultos. A resposta está talvez no envolvimento familiar de trabalho servil. Não se pode responder de todo ao caso peculiar de Lavrinhas. Mesmo com uma renda baixa, ainda era possível ali comprar escravos.

Podia-se comprá-los, podia-se também

importar outras mercadorias. Enquanto existisse ouro existiria comércio de importação. Diante deste quadro, mesmo com de decadência a mineração, a província de Mato Grosso ainda

podia

manter

parte

da

sua

capacidade

de

importação. Afinal, os únicos produtos de exportação ainda eram o ouro e o diamante. E deles se formavam excedentes sobre

o

custo

de

sobrevivência

local,

a

carteira

desembolsos que diferenciava a riqueza da pobreza.

de

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

198

Referências Bibliográficas CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso, 1926, ESCHWEGE, Ludwig Von. Pluto Brasiliensis, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo 1979. GARCIA, Romyr Conde. Mato Grosso: crise e estagnação do projeto colonial, Tese de Doutoramento, São Paulo: FFLCH/USP, novembro de 2003. MOUTINHO, Joaquim. Notícia sobre a Província de Mato Grosso seguida d’um Roteiro da Viagem da sua Capital a São Paulo.Sem data. PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio AngloPortuguês, 2ª ed., São Paulo, Cia Editora Nacional, 1979.

199

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Economia Política e Política Econômica no Brasil Recente: O Neodesenvolvimentismo “Restringido” do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva Glaudionor Gomes Barbosa1 Ana Paula Sobreira Bezerra2 Resumo

O trabalho pretende discutir o conceito de neodesenvolvimentismo “restringido” para verificar os impactos das políticas econômicas dos dois governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e suas limitações ao desenvolvimento. Para tanto, faz uma discussão histórica da expectativa criada com a vitória do referido Presidente, quando a mesma venceu o medo anterior, devido a mudanças feitas pelo Partido dos Trabalhadores – PT, que precisou se acomodar para conseguir tal vitória. Começa-se com um vice-presidente empresário – José de Alencar – sinalizando a acomodação entre trabalho e capital. Contudo, a maior vitória foi a eleição de um operário, com pouca formação (formal) como o homem mais poderoso do país. A partir de então, segue na discussão do papel dos diversos representantes do PT, como Palocci, além do retorno da crença do monetarismo na economia, associado ao arrocho da política fiscal, gerando, com isso, superávits primários bastante elevados. Como forma de “compensação”, foi suspenso o processo de privatização, o BNDES voltou a atuar fortemente como banco de fomento e a Petrobrás passou a agir de forma virtuosa, comprando e ativando diversas plataformas e navios construídos no país, com a finalidade de estimular a produção nacional. No final do primeiro mandato e, principalmente, no segundo, foram tomadas medidas mais “keynesianas”, em especial com o PAC, que teve como metas prioritárias, investimentos em infraestrutura, estímulo ao crédito e ao financiamento, melhoria ao ambiente de investimento e desoneração, aperfeiçoamento do sistema tributário e medidas fiscais de longo prazo. No último tópico, discute a economia brasileira recente e como ela se encontra, dada a eleição de uma Presidenta indicada e apoiada por Lula. Palavras-Chave: Governos Lula; keynesianismo; desenvolvimento econômico.

Abstract This paper discusses the concept of new developmentalism "restricted" to verify the impacts of economic policies of the two governments of President Luiz Inacio Lula da Silva and limitations to development. Therefore, it makes a historical discussion of the expectation created by the victory of the President said, when it won the previous fear, due to changes made by the Workers Party - PT, who had to accommodate to achieve this victory. It begins with an entrepreneur Vice President - José de Alencar - signaling the accommodation between labor and capital. However, the biggest victory was the election of a worker with little study as the most powerful man in the country. Since then, following the discussion of the role of various representatives of the PT, as Palocci and the return of the belief of monetarism in the economy, coupled with the tightening of fiscal policy, generating, thus, very high primary surpluses. As a form of "compensation", was suspended the privatization process, BNDES returned to acting strongly development bank, as Petrobras, and started to act virtuously, buying and activating various platforms and ships built in the country, with the aim of stimulating national production. At the end of the first term, and especially the second, were taken more "Keynesian", especially with the PAC, which had as its priority goals, investments in infrastructure, promotion of credit and financing, improving the investment environment and relief , improvement of the tax system and tax measures long-term. On the last topic, discusses the recent Brazilian economy and how it is given the election of a President and supported by Lula indicated. Keywords: Lula‟s Governments; Keynesianism; economic development. 1 2

Professor e Pesquisador do CAA/UFPE/Brasil. Professora e Pesquisadora do CAA/UFPE/Brasil.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

200

1. Introdução O trabalho tem por objetivo principal analisar as políticas econômicas dos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os limites impostos ao desenvolvimento. Para tanto se utiliza o conceito de neodesenvolvimentismo

“restringido”,

enquanto

tese

conhecida

da

historiografia econômica brasileira. Esta contribuição está estruturada em quatro seções, além dessa introdução. A seção dois trata da transição da vitória da esperança para um quadro de acomodação ou de transfiguração da política; na seção três, discute-se aquilo que ficou conhecido como “herança maldita” e o papel do Paloccismo na manutenção de uma política semelhante àquela do governo anterior; na seção quatro analisa-se a superação do padrão inicial e o advento do PAC; a seção cinco faz a análise do comportamento da absorção externa e da incorporação tecnológica.

2. De como a esperança venceu o medo e depois perdeu ou a política como exercício de “transfiguração” No final de 2002, o Presidente Fernando Henrique Cardoso insistia na tese de que o Brasil estava no rumo certo. A população brasileira que deu 61,3%3 dos votos válidos para Luiz Inácio Lula da Silva discordava do então Presidente Cardoso. Se a estabilidade de preços tornou-se um bem público que todos deveriam proteger, as outras variáveis macroeconômicas haviam se transformado em males que a sociedade queria superar. Passados dois anos de governo do Presidente Lula ficou a impressão de que o sociólogo Fernando Henrique estava certo, em parte, pois a população parecia concordar com o caminho (o rumo certo, segundo Cardoso), mas desejava mudar o piloto. Foi a segunda parte do desejo popular que não estava visível em 2002, nem para o político Cardoso nem para o sociólogo Fernando. Para chegar até a vitória o Presidente Lula e seu partido, o PT fizeram alguns movimentos de acomodação. Em primeiro lugar, a constituição de uma frente ampla o bastante para incluir, além do Senador José Alencar como Vice, sinalizando uma aliança pragmática entre o trabalho e o capital, figuras históricas tradicionais como Orestes 3

Folha de São Paulo, 28 de outubro de 2002.

201

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Quércia, Roberto Requião, José Sarney e Itamar Franco. Em segundo lugar, uma carta aos brasileiros, onde ficavam claras as intenções de bom comportamento do Partido e do candidato quanto às regras de mercado. A verdadeira e mais importante mudança foi simbólica. Eleger um ex-operário era um avanço notável em uma sociedade conservadora e submetida a um rigoroso controle social exercido pela grande imprensa. As forças políticas que haviam guindado o Presidente Fernando Henrique ao poder havia 10 anos, trabalhava com uma estratégia de longa duração, algo como um “reinado” de pelo menos 20 anos. Desmontar esta estratégia continuista e conservadora foi uma vitória que exigiu seu preço. Um preço muito alto. A primeira grande mudança do novo governo deu-se em um campo que aparentemente não tem tanta importância, mas que é essencial em tempos de mundialização do capital e multilateralismo. A política externa do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi desde o início um diferencial positivo, como apontou Amorim: A diplomacia vive um momento de grande dinamismo que reflete as prioridades do governo Lula nas áreas interna e externa, como combater a fome e a pobreza, contribuir para a criação de uma nova geografia comercial e adotar postura firme e ativa nas negociações multilaterais, inclusive regionais; com vistas a assegurar um espaço regulatório multilateral justo e equilibrado. Está ainda o imperativo de preservar a nossa capacidade soberana de defender o desenvolvimento que desejamos para o nosso país4. Importante ressaltar, ainda, no campo da economia política internacional que a vitória do Presidente Lula enterrou de vez a imposição por parte dos Estados Unidos de uma agenda unilateral para formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Em consonância com este movimento estratégico, houve o fortalecimento do MERCOSUL e do clube dos vinte5.

AMORIM, Celso. Palestra. Seminário Atualidade de San Tiago Dantas. 27 de setembro de 2004. Disponível em: http://www.acrj.org.br. Acesso em 15 de dezembro de 2011. 5 Trata-se da constituição de um grupo de países com agenda independente no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). 4

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

202

No campo da política econômica “estrito senso” a polaridade histórica que opõe de um lado uma heterodoxia estimuladora de políticas expansivas e de outro uma ortodoxia sempre disposta a puxar o freio de mão já estava instalada desde a campanha e continuou operando dentro do governo. Em certo sentido e durante três longos anos a política macroeconômica foi a mesma dos anos do Presidente Fernando Henrique Cardoso. O que muitos se perguntavam, incluindo petistas da primeira hora, era como se podia conciliar uma política externa independente, solidária e emancipatória associada com propostas gerais de redução da pobreza e da desigualdade, tendo como eixo da macroeconomia, políticas de contração da demanda? A resposta à pergunta acima foi dada recentemente por importantes dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da Presidenta Dilma Rousseff. Mercadante (2009) e Mantega (2012) justificaram a necessidade de um período de ajustamento ou de transição entre o modelo neoliberal e o modelo denominado de novo-desenvolvimentismo. O problema maior é que, na prática, se utilizou de todo um mandato, ou seja, 2003-2006 para realizar a transição. Os argumentos sofrem do defeito de quem fala de si mesmo e de seus feitos. Nada é mais complicado do que autobiografia ou perfil

político

autoconstruido.

Na

verdade

os

mais

“medíocres”

historiadores6 ainda são melhores narradores e mais verdadeiros interpretes da história do que os próprios “heróis”.

3. “Herança Maldita”, Paloccismo e Primeiro Lula ou para que mudar o rumo? Considerando a existência de uma “herança maldita” vinda do governo anterior e representada por um acordo com o FMI de combate à inflação baseado em um Sistema de Metas de Inflação, o Presidente eleito nomeia Antônio Palocci, Ex-prefeito de Ribeirão Preto/SP e Coordenador do programa de governo para o Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles, Ex-presidente mundial do BankBoston para o Banco Central, como gestores da “herança”, de forma a garantir a gestão financeira

Um historiador pode ser medíocre seja por positivismo, seja por crença em uma história linear e sempre sincrônica, seja por vicio estruturalista anti-histórico, seja pela insistência na singularidade dos acontecimentos, como se não houvesse repetição, pelo menos das linhas gerais de configuração das forças sociais. 6

203

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

acordada com o FMI, além da continuidade de reformas planejadas pelo governo anterior. Cabe aqui lembrar que a dupla Palocci-Meirelles renovou o acordo com o FMI7 por mais dois anos, preservando assim a subordinação

da

economia

brasileira

ao

receituário

da

banca

internacional. No que consistia o modelo de controle inflacionário do novo governo?

As

bases

eram

as

premissas

do

velho

monetarismo

friedmaniano8. “Inflação foi, é, e será sempre um fenômeno monetário”. Para os monetaristas, há sempre um excesso de demanda em alguma parte do sistema, assim como há uma contrapartida de um excesso de moeda em circulação. Uma excelente âncora monetária é a taxa de juros. O modelo é muito simples e prático: correlacionam-se a taxa de juros e a taxa de inflação, de maneira que quanto mais as expectativas ou a inflação efetiva se afastam da meta fixada, maior deve ser a taxa de juros comandada pela autoridade monetária. Aqui necessário se faz um parênteses: A constituição dos índices das expectativas de preços e de expectativas de juros é feita por levantamento

do

Banco

Central

junto

aos

100

mais

importantes

operadores e analistas do mercado financeiro, ou seja, os agentes que estão mais interessados em juros altos fornecem as informações necessárias e suficientes para formá-los. Mas não é só. As altas taxas de juros “capturam” os capitais de curto prazo, principalmente os especulativos que auxiliam na rolagem da própria dívida interna. Ou seja, na medida em que reduz a liquidez dosistema, as autoridades monetárias sustentam o dogma monetarista de controle inflacionário, mas de fato estão produzindo os recursos para pagar os encargos da dívida, enquanto aumentam o principal através de novos encargos financeiros. Tabela 1 Brasil Superávit Primário(% do PIB) 1º 2º 2002 2003 mandato mandato FHC FHC 0,0 3,55 3,89 4,37

Superávit Primário Fonte: Banco Central do Brasil

2004

2005

4,61

4,84

O novo acordo com o FMI não foi feito sem resistências dentro do governo. Ele encerrou-se em março de 2005, quando vários membros do governo votaram que o mesmo não precisava ser renovado. A dupla PalocciMeirelles concordou com a não renovação, mas manteve a política subjacente ao acordo. José Dirceu era o principal opositor de Palocci. 8Friedmaniano refere-se ao importante, mas equivocado economista norte-americano Milton Friedman. 7

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

204

A política monetária contracionista não opera sozinha, ela precisa de arrocho fiscal. O aperto fiscal é realizado pelo corte dos gastos públicos e pelo aumento da carga tributária, criando-se os mega-superávites primários9. A tabela 1 mostra que durante o primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso este indicador ficou próximo de zero, aumentou para 3,55 no segundo mandato, voltou a crescer para 3,89 no último ano de governo (2002), pulou respectivamente para 4,37 em 2003; 4,61 em 2004 e 4,84 em 2005. Cabe lembrar que a exigência do FMI era de 4,25%, ou seja, o governo brasileiro foi mais realista que o “Rei” ou mais capitalista que a banca. A tabela 2 mostra que o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu uma taxa de juros reais 10 baixa, isto é de 5,8% em dezembro de 2002. Em julho de 2003 a taxa saltou para 6,8 e sempre em um crescendo atingiu a marca de 14,4 em março de 2004. Como a inflação aumenta a taxa real de juros declina até atingir 9,3 em agosto de 2004. A taxa atinge 12,7% em março de 2005, para depois se estabilizar em 14,0%. Tabela 2 Brasil Taxas de juros reais efetivas (%) Períodos Selecionados Dez./2002 Jul./2003 Ago./2003 Set./2003 Taxa 5,8 6,8 7,4 7,6 Nov./2003 Dez./2003 Jan./2004 Fev./2004 Taxa 11,4 12,9 13,7 13,9 Abr./2004 Maio./2004 Jun/2004 Jul./2004 Taxa 14,3 13,5 11,9 10,2 Fonte: Banco Central do Brasil e IBGE

Out./2003 8,7 Mar./2004 14,4 Ago./2004 9,3

O superávit primário é expresso como percentagem do PIB e apesar de ideologicamente se recobrir com a linguagem séria e douta de “austeridade fiscal” é preciso entender seu real significado. Suponha uma economia muito simples que produza uma quantidade mínima de bens, tais como pão, manteiga, bicicletas, educação e saúde. As pessoas comem pão com manteiga, apenas. Elas se locomovem de bicicleta e cada uma delas precisa de uma consulta médica e de uma matrícula escolar. Suponha quantidades inteiras em um tempo “t” qualquer, ou seja, 1000 unidades de pão, 100 unidades de manteiga, 1000 bicicletas, 1000 consultas médicas e 1000 matrículas escolares. Suponha uma população de 1000 habitantes. Quando as autoridades econômicas se orgulham de terem obtido 5,0% de superávit fiscal, isto significa exatamente que: 50 pães, 5 caixas de manteiga, 50 bicicletas, 50 consultas médicas e 50 matriculas escolares foram “jogadas” em um depósito de inservíveis para apodrecerem ou enferrujarem, enquanto pessoas não são atendidas nas UPAs, carteiras ficam vazias nas Escolas, parte da população anda a pé. Agora se podem multiplicar algumas dessas coisas por milhões, como bicicletas ou por bilhões, como pães. Qual a racionalidade de se jogar fora bilhões de pães? 10 A taxa de juros reais é aquela que efetivamente mede o custo da moeda e do seu uso e depende do nível geral de preços. Assim, mesmo com taxas nominais crescentes, quando a inflação aumenta a taxa de juros reais tem tendência declinante. 9

205

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A tabela 2 mostra que o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu uma taxa de juros reais 11 baixa, isto é de 5,8% em dezembro de 2002. Em julho de 2003 a taxa saltou para 6,8 e sempre em um crescendo atingiu a marca de 14,4 em março de 2004. Como a inflação aumenta a taxa real de juros declina atéatingir 9,3 em agosto de 2004. A taxa atinge 12,7% em março de 2005, para depois se estabilizar em 14,0%. Talvez para compensar políticas econômicas tão ortodoxas, o governo tenha tomado algumas decisões importantes, tais como: (a) suspendeu o processo de privatização que já tinha alienado parte importante do patrimônio público; (b) o BNDES voltou a sua função de banco financiador dos investimentos em empresas nacionais; (c) a Petrobrás fixou um amplo programa de compra de plataformas e de navios construídos no país, com o objetivo de estimular a produção nacional.

Ano 2003 PIB 1,1 Fonte: IBGE

2004 5,7

Tabela 3 Brasil Evolução do PIB 2003-2010 2005 2006 2007 3,2 3,7 4,0

2008 5,7

2009 - 0,2

2010 5,0

O primeiro ano do governo Lula apresentou um quadro econômico tão estagnacionista que decepcionou alguns aliados 12e foi motivo de júbilo no campo adversário. A partir do segundo ano de mandato a economia apresentou crescimento do PIB na ordem de 5,7%, de maneira que no período 2003-2010 a média anual foi de 3,5% (conforme tabela 3), contra 2,3%13 do período 1995-2002 do Presidente Fernando Henrique. O que efetivamente determinou o primeiro ano de estagnação e o que puxou nosegundo ano a locomotiva da “lulaeconomics”?

A taxa de juros reais é aquela que efetivamente mede o custo da moeda e do seu uso e depende do nível geral de preços. Assim, mesmo com taxas nominais crescentes, quando a inflação aumenta a taxa de juros reais tem tendência declinante. 12 O jornal Folha de São Paulo estampou em manchete do dia 7.11.2003: “Fiesp se queixa ao FMI de política fiscal”, e a matéria interna do seu caderno Dinheiro da mesma edição noticia que os empresários paulistas, representados pela sua outrora poderosa Federação, foram à Sra. Anne Krueger, vice-diretora-gerente do FMI, queixar-se do aperto fiscal a que a administração fazendária do governo Lula os submete. Mas a professora Maria da Conceição Tavares, em artigo publicado no mesmo jornal, edição de 9.11.2003, diz que os novos “donos do poder” são o Banco Central e a Secretária do Tesouro, e mesmo os ministros da Fazenda e do Planejamento são cada vez mais apenas simbólicos. E ela entende de governo Lula e do poder financeiro. V. “os novos donos do poder”, FSP, São Paulo, 9.11.2003 apud Oliveira (2005), p. 386, nota 1. 13 IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2001. 11

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

206

No primeiro ano o novo governo seguiu exatamente as mesmas políticas do governo anterior. Resultado: corte na demanda, nos investimentos e aumento do desemprego. De acordo com o IBGE, o investimento caiu em 6,6%. Como a renda cresceu em 1,1% e o crescimento demográfico foi de 1,3%, então ocorreu uma queda na renda per capita. Em face da queda do investimento, dos gastos do governo e do consumo, isto é, da demanda interna agregada, o PIB não foi negativo porque as exportações cresceram em 21%14. Tabela 4 Diversos Países Taxas básicas de juros reais 2004 Países Turquia Brasil “Países Emergentes” Taxa (%) 14,8 9,3 2,7 Fonte: Global Invest.

Países Ricos 0,3

Em 2004, a locomotiva da “lulaeconomics” foram as exportações. Até parecia o Professor Delfim Neto dizendo no início dos oitenta: “exportar é o que importa”. A produção industrial cresceu em 8,3% 15, a melhor taxa desde 1986, enquanto o PIB crescia 5,7%16. O desemprego aberto medido pelo IBGE caiu de 12,3% em 2003 para 11,5% em 200417. Olhando a demanda agregada o que se observa? Taxa de juros reais alta, a segunda maior do mundo, isto é, 9,3%18, o que desestimula o investimento. Superávit Primário de 4,61% do PIB o que significa gastos públicos baixos. Salários reais em queda, o que acarreta, pelo menos, não-crescimento do consumo. Conclusão: demanda interna agregada deprimida. Novamente a resposta está nas exportações que cresceram 32,0%19 em 2004. Pode-se dizer que a reanimação das exportações se deveu aos custos salariais baixos e ao aquecimento da demanda externa por produtos brasileiros. Estes são dois aspectos essenciais da resposta. Um terceiro elemento foi a compressão da absorção interna, pois políticas econômicas restritivas empurram as mercadorias (que não podem ser compradas internamente por falta de renda) para o exterior. Contudo a resposta completa deve incluir a política diplomáticae a política comercial do governo. Enquanto a dupla Palocci-Meirelles jogava água fria na Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011. Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial Mensal. Acesso em 02 de janeiro de 2012 16 Fonte: tabela 28 17Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011 18Fonte: tabela 29 19Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011. 14 15

207

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

caldeira da locomotiva, a dupla Lula-Celso Amorim fazia multilateralismo pragmático. Parodiando o próprio Presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Nunca antes na história deste país um presidente foi um caixeiro-viajante tão eficiente”. Como ocorreu em 1984, ou seja, 20 anos antes, em 2004 o crescimento do setor exportador foi gradualmente se espalhando para a economia interna, através do único instrumento possível: o aumento da massa de salários. O IBGE apresentou informações que confirmam um aumento de 9,0%20 na massa salarial em 2004. Outro elemento importante para o soerguimento do mercado doméstico foi o aumento do volume de crédito, principalmente o crédito consignado para servidores públicos, aposentados, e pensionistas, pois como a garantia do banco era total, os juros podiam ser mais baixos. Milhares destas pessoas, talvez milhões, hoje, são prisioneiros dos bancos, mas seus padrões de vida caíram bastante, dado que a maioria dispõe de apenas metade de seus proventos. No último quadrimestre de 2004, as autoridades econômicas resolvem combinar juros reais mais altos, valorização do real e aumento de tributos. Estas medidas derrubaram o investimento, o consumo e as exportações. O governo insistia na política do “stop and go”. O problema era de que o único operador eficiente entre as autoridades econômicas era o Banco Central. O Ministério do Planejamento que já fora o ministério do crescimento na “era Sayad” havia sido “apagado”. O Ministério da Fazenda executava tarefas de rotina e delegava ao Banco Central. Este operava de acordo com os interesses da média das expectativas dos operadores da banca. A lógica do BACEN era limitar o crescimento a 3,5%. Erraram o alvo e deu 3,2%. Seguramente uma das equações do sistema do BACEN continha um viés ou a média das expectativas divergia das reais expectativas daquilo que o mercado realmente desejava. É preciso tomar cuidado

com

estas

entidades

por

demais

caprichosas,

quase

sobrenaturais. Quem sabe com certeza o que o mercado quer, a não ser ele mesmo. O fato é que a expansão ocorrida nos três primeiros anos do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não era sustentável e, como visto, baseava-se nas exportações. Contudo, seja qual for o componente da demanda agregada que esteja puxando o crescimento econômico é preciso compreender duas questões: (a) sem investimento o crescimento 20

Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial Mensal. Acesso em 02 de janeiro de 2012

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

208

só é possível enquanto houver capacidade ociosa, chegando próximo do pleno emprego os preços sobem; (b) o investimento21 é a variável-chave da dinâmica capitalista, sem ele nenhum crescimento é auto-sustentado. Significava que os juros reais precisavam cair para que os investimentos fossem realizados. Como apontava o documento do IEDI “o trinômio juro, câmbio e investimento público é o problema, pois todos estão fora do lugar” 22. No final de 2005 muitos achavam que era hora de mudar, menos o “paloccismo radical”

23,24que

no início do governo afirmava que as

medidas econômicas eram apenas um remédio amargo necessário para se atingir o desenvolvimento auto-sustentado, mas pretendeu prorrogar as políticas restritivas por tempo indefinido, através de uma proposta elaborada no Ministério do Planejamento. A proposta foi rechaçada por alguns ministros, tendo a frente a ministra Dilma Rousseff. 4. Superando o paloccismo ou o segundo Lula: rumo ao PAC ou por que somos todos keynesianos A possibilidade de adentrar o último ano de mandato e, ao mesmo tempo, ano eleitoral de 200625 com um desempenho econômico medíocre acendeu a luz vermelha (ou terá sido de outra cor?) no comando do partido hegemônico da frente que sustentava o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma das discussões presentes era de que o paloccismo enquanto processo transitório estava ganhando força como forma permanente de gestão e de poder. A direção partidária chegou a conclusão que era possível um segundo mandato, porém que este dependeria de algumas mudanças (ou promessas de mudanças) em pontos sensíveis da política econômica. Era preciso sinalizar para os eleitores que havia condições e vontade política para crescer.

O investimento depende da comparação entre a taxa real de juros e a eficiência marginal do capital. Esta última funciona, grosso modo, como uma taxa interna de retorno, ou seja, quanto o empresário capitalista ganha na diferença entre o pagamento de juros de financiamento e a receita de seus negócios. 22 IEDI, O sol e a peneira, 30 de novembro de 2005. 23 “paloccismo radical” é uma forma grave e crônica de transformismo onde os problemas de uma economia capitalista semiperiférica são metamorfoseados em virtudes. Onde medidas ortodoxas ditas como emergenciais são transformadas em permanentes. 24 Transformismo refere-se ao processo de adesão (individual ou coletiva) ao bloco histórico dominante, por parte de lideranças e/ou organizações políticas dos setores subalternos da sociedade, com o abandono de suas antigas concepções/posições políticas. Fonte: FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007, p. 250. 25 Folha de São Paulo, 08 de dezembro de 2005. 21

209

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Consideramos fundamental reduzir de forma significativa e sustentada as taxas de juros, algo totalmente compatível com o cenário internacional, com a situação das contas do governo e com estabilidade de preços. Estimamos imprescindível acelerar a execução orçamentária, ampliar os investimentos em infra-estrutura e nas políticas sociais, acelerar a reforma agrária e melhorar o funcionamento do conjunto do governo. O caminho do crescimento permite reduzir a relação dívida/PIB, sem os sacrifícios resultantes das metas do superávit primário, que devem ser reduzidos26. A resolução do diretório nacional do Partido dos Trabalhadores iniciava o processo de repúdio “relativo” ao paloccismo. Palocci começara a ser “fritado”. Como se necessita muito de figuras como o exministro era melhor fritá-lo por razões estranhas ao labor ministerial. Palocci e sua equipe resistiram até março de 2006, para serem finalmente exonerados pelo Presidente. O caminho estava aberto para um derrotado do primeiro ano: Guido Mantega. O economista Mantega começou o governocomo ministro do Planejamento, mas tinha independência e autoridade, e era desenvolvimentista demais, o que ameaçava o protagonismo de Palocci. Desse modo, Mantega foi deslocado para o BNDES, enquanto o “cinzento” Paulo Bernardo assumia o Planejamento, mas recebia ordens do ministro da Fazenda. Guido Mantega assume em meados de maio e em entrevista coletiva afirma que: “[é necessário que] os juros baixem de forma ainda mais consistente, já que há condições para que isto aconteça, porque o país está com a inflação controlada e já conquistou a maioridade para atingir o desenvolvimento sustentado”27. O novo ministro da Fazenda não conseguiu realizar grandes mudanças até o final do ano, porém atuou em duas frentes fundamentais, ambas subordinadas ao seu Ministério. Acompanhou o Banco Central para que o mesmo não interrompesse o procedimento de redução (mesmo que lenta) da taxa de juros e pressionou a Receita Federal para que mantivesse saldos primários iguais a meta e não acima, como ocorria na era palocciana. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito. A principal questão explorada na campanha, pela oposição que começou toda farra de juros

26 27

Jornal O Globo de 11 de dezembro de 2005. Folha de São Paulo, 17 de maio de 2006.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

210

reais e superávits primários altos, foi o baixo crescimento do período 20032006, ou seja, 3,5%.28 Insiste-se, que no período do Presidente Cardoso o crescimento pode ser medido como de 2,3% ou de 1,9% dependendo do Instituto e da metodologia. Contudo, a palavra de ordem pós-eleitoral passou a ser “vamos destravar a economia”. O Presidente reeleito não ficou no discurso, convocou uma equipe para criar um programa de crescimento econômico sustentado. Desse modo, estava lançado, em 22 de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento – 2007/201029, logo conhecido como PAC. O PAC, na tradição estruturalista latino-americana, partiu de um diagnóstico onde havia um conjunto de gargalos que “travavam” o crescimento da economia brasileira.30 Tais pontos de estrangulamentos estavam concentrados na infra-estrutura física, como transporte e energia; e infra-estrutura social, como saneamento e habitação. Assim, era nestas áreas que deveriam se concentrar os investimentos. Ficaram definido metas de crescimento do PIB de 4,5% para 2007 e de 5,0% para o triênio de 2008-2010. As medidas foram enquadradas em cinco categorias: (a) Investimentos em infra-estrutura; (b) Estímulo ao crédito e ao financiamento; (c) Melhoria ao ambiente de investimento; (d) Desoneração e aperfeiçoamento do sistema tributário; (e) Medidas fiscais de longo prazo.31 O PAC, em boa medida, desconsidera as observações de Giovanni Arrighi (1997) em “A Ilusão do Desenvolvimento”, onde aquele cientista social mostra que os entraves ao desenvolvimento estão além do que os teóricos do desenvolvimentismo chamam de gargalos. Vinte e três anos antes de Arrighi, em 1974, no final de um “milagre” o maior economista brasileiro, Celso Furtado em “O mito do desenvolvimento econômico” chamava a atenção sobre problemas semelhantes. “Mito” para Furtado e “Ilusão” para Arrighi. Para os iludidos é suficiente uma boa dose de keynesianismo bastardo32 para se vender novas esperanças de chegada ao Primeiro Mundo (eufemismo ultrapassado para núcleo orgânico do capitalismo). Não significa que um país isolado, principalmente com as IBGE – Online. Acesso em 02 de janeiro de 2012 Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. Acesso em 28 de dezembro de 2011 30Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. p. 6. Acesso em 28 de dezembro de 2011 31 Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. p. 4. Acesso em 28 de dezembro de 2011. 32 Keynes abominou a dominância do capital financeiro. Aceitou a existência de algumas bolhas de especulação em torrentes de produção e nunca o contrário. Keynes propôs a socialização dos investimentos sob o controle do Estado. Ninguém deveria denominar-se keynesiano sem entender a filosofia social da Teoria Geral. 28 29

211

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

potencialidades do Brasil não possa seguir a trilha do desenvolvimento e atingir o núcleo orgânico. É claro que pode, mas precisa de muito mais do que boas intenções e um PAC. Para se compreender um dos limites do PAC veja-se o item transportes, onde o Programa faz a seguinte profissão de fé: “infra-estrutura logística, envolvendo a construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias”.33 Qualquer Plano Econômico que mereça esta denominação, neste país, contém algo semelhante. O Plano de Metas assim se posicionava: “investimentos estatais em infra-estrutura, principalmente transporte e energia elétrica”.34 Tabela 5 Brasil PAC - Investimento em infra-estrutura Bilhões de reais 2007-2010 Eixo de Planejamento Valores distribuídos Logística (sobretudo transportes) 58,3 Orçamento da União 33,3 Estatais, federais e de demais fontes 25,3 Energia 274,8 Orçamento da União Estatais, federais e de demais fontes 274,8 Infra-estrutura social 170,8 Orçamento da União 34,8 Estatais, federais e de demais fontes 136,0 Total do PAC 503,9 Orçamento da União 67,8 Estatais, federais e de demais fontes 436,1 Fonte: Programa de Aceleração do Crescimento/PAC – 2007-2010. É evidente que o Plano de Metas era planejamento no melhor da tradição cepalina. Assemelhava-se bastante a outras experiências de planejamento, inclusive as recentes experiências asiáticas. Mesmo não envolvendo toda a economia, ou seja, mesmo sendo um planejamento setorial, as bases teóricas e conceituais do planejamento seguiam as normas e as técnicas da planificação soviética. 35 Observando o Plano de

Investimento em infra-estrutura. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/pac/infra-estrutura. Acesso em 20 de dezembro de 2011. 34 ORENSTEIN & SOCHACZEWSKI In: ABREU (Org.), 1992, pp. 171-195 35 O Planejamento estatal começou a ser usado de forma ampla na planificação da economia da União Soviética. O primeiro plano qüinqüenal começou em 1929, em um momento histórico de muita gravidade para a economia capitalista mundial, ou seja, enquanto a URSS iniciava sua planificação econômica, o resto do mundo embarcava na Grande Depressão. De 1929 até 1939, enquanto as economias de mercado tentavam sair do fundo do poço, a produção industrial soviética cresceu de 5% no total mundial em 1929 para 18% em 1938. Fonte: HOBSBAWM, 1995. 33

212

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Metas36 verifica-se, claramente, os objetivos de se criar uma ampla malha de transporte e oferta abundante de energia. Foi planejada a construção de 13.000 km de rodovias e foram realizadas 17.000 km. A tabela 6 mostra que se construiu apenas 1000 km de ferrovias, mas este fato denota uma decisão política (equivocada, mas consciente) e não um erro de planejamento.

É

verdade

que

o

Plano

de

Metas

aumentou

os

desequilíbrios regionais, internacionalizou excessivamente a economia e ampliou nossa dependência da economia norte-americana, mas criou uma

infra-estrutura

e

impulsos

dinâmicos,

germinação37 e da demanda derivada

38

vindos

dos

pontos

de

que se propagaram pelas

décadas de sessenta e setenta. Tabela 6 Brasil Plano de Metas: Previsão e resultados 1957-1961 Especificação Previsão Realizado Energia Elétrica (1000 Kw) 2000 1650 Carvão (1000 toneladas). 1000 230 Petróleo-Produção (1000 96 75 barris/dia) Petróleo-Refino (1000 200 52 barris/dia) Ferrovias (1000 km) 3 1 Rodovias-Construção (1000 13 17 km) Rodovias-Pavimentação 5 (1000 km) Aço (1000 toneladas) 1100 650 Cimento (1000 toneladas) 1400 870 Carros e Caminhões (1000 170 133 unidades) Nacionalização (carros) (%) 90 75 Nacionalização (caminhões) 95 74 (%) Fonte: ORENSTEIN & SOCHACZEWSKI (1992), p. 180

% 82 23 76 26 32 138 60 62 78 -

Sabiamente os formuladores do PAC chamaram-no de Programa e não de Plano. Em primeiro lugar, porque o nome planejamento poderia assustar os operadores do mercado, muito dos aliados políticos e poderia,

O Plano de Metas foi proposto pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira no período de 1956 a 1961. O Plano tinha 31 metas, com a meta-sintese sendo a construção de Brasília. No período em questão o PIB aumentou à taxa anual de 8,2%, o que acarretou um crescimento de 5,1% na Renda per capita. Por sua vez, a taxa de inflação interna manteve-se elevada durante todo governo do Presidente Juscelino, este fato provocou uma redistribuição de renda dentro da economia, pois os salários aumentavam em um ritmo mais lento do que os preços e do que outras rendas. Fontes: LESSA, 1981 e LAFER, 1970. 37Pontos de germinação 38 Demanda Derivada 36

213

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

ainda, ensejar idéias de que o partido político hegemônico no governo estivesse

voltando

no

tempo,

praticando

alguma

forma

sutil

de

anacronismo ou abandonando seu “honesto” transformismo. Em segundo lugar, seria impróprio chamar o PAC de Plano, pois uma proposta de planejamento não dedicaria apenas 8,6% 39 para infra-estrutura logística que diz ser: “a construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias”. Teria que se acrescentar estações, armazéns, estaleiros e diversas outras construções que acompanham qualquer expansão de estradas de transportes. Teria que se acrescentar pessoal em diversos níveis de formação. Realmente, 8,6% para um Programa quadrienal é um valor irrisório, tanto é assim que a Ferrovia Transnordestina continua no papel. Desse modo, realmente o segundo mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não foi suficiente. Será certamente, necessário um segundo mandato para a Presidenta Dilma ou a volta triunfante (nos braços do povo ao estilo varguista) de Luiz Inácio Lula da Silva. Em suma: se o PSDB pensou em um “reinado” de pelo menos vinte anos, o Partido dos Trabalhadores pensa o mesmo. Isto porque muito do que o PT faz é a “passo de formiga”. Um dos problemas enfrentado pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC foi o recorrente conflito entre os proponentes do crescimento econômico e os partidários das “finanças sadias”. Não se estar usando de ironia ao se falar de “finanças sadias”, mas se utiliza de um jargão de domínio público. Na verdade estes técnicos monetaristas representam os interesses do capital financeiro dentro do Estado 40. No caso em questão ficou evidente que os esforços do ministro Mantega 41 não foram suficientes para “colocar algumas idéias no seu devido lugar”, principalmente a ineficiência e inoportunidade da política de juros do Banco Central. Fato é que a redução da Selic vinha acontecendo a “passos de tartaruga”, mas acontecia, quando o Copom interrompeu a descida na reunião de outubro de 2007. A decisão unilateral criou uma

Fonte: Tabela 5 Este trabalho prefere não citar nomes, mas sugere um esforço simples da memória dos leitores para os vários membros de diversos governos que vieram e/ou voltaram para o setor financeiro. 41 Em entrevista a Revista Época o ministro Guido Mantega nega ter enfrentado problemas com a dupla Palocci- Meirelles e afirmaque concorda com a política econômica de todo o período 2003-2011. Afirma que deixou claras as divergências com Meirelles, mas não conspirou contra o colega. Chega a ser suave quando fala de Palocci, mas se irrita quando lembrado de que só é rapidamente citado em apenas seis das 254 páginas do livro do desafeto. Parece que a institucionalização do Partido dos Trabalhadores foi completa. Fonte: ÉPOCA, Nº 713, 16 de janeiro de 2012. pp. 32-49. 39 40

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

214

polêmica absurda que envolveu a própria autoridade do Presidente da República.42 O Banco Central não conseguia convencer da necessidade de suspender o processo de redução das taxas. A ata dizia explicitamente que “a dinâmica dos preços indica que a inflação tende a evoluir para a trajetória das metas”.43 Ou seja, nada naquele momento indicava ou sugeria uma elevação dos preços. Os motivos utilizados pelo Banco Central para manter as taxas de juros altas, normalmente, são pressão inflacionária por excesso de demanda ou problema de financiamento da dívida pública. A ata não apontava nenhum dos dois problemas e até os descartavam. Onde estava o problema que gerava este movimento de política recessiva e contrária ao crescimento da economia? O problema estava em um novo tecnicismo, que pode ser expresso da seguinte forma: segundo os gênios da economia financeira havia uma defasagem potencial entre as trajetórias da demanda e da oferta agregadas e isto poderia se transformar em pressão inflacionária futuramente. Dito de maneira, assim, pomposa e repetida “ad náusea” pela mídia transformava-se em argumento indiscutível. É a demanda não convergindo para a oferta, estúpido! Pois é, os estúpidos aprenderam que a demanda e a oferta podem apresentar hiatos e a correção deles, em uma economia de mercado, é função do mecanismo de preços. Mas a pirotecnia monetarista diz que não. Diz que o equilíbrio entre demanda e oferta é garantido pela política monetária. Diz que é a taxa de juros que deve guiar as mercadorias nos labirintos dos mercados.44 Duas questões saltam à vista neste episódio. Primeiro que os monetaristas só controlam inflação “baixando o pau na demanda”, quando a inflação quase sempre é uma expressão de escassez de oferta. “Tão simples, tão óbvio, tão negligenciado”. Segundo é que havia uma ação aberta de boicote ao Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, ou seja, o pouco que a parte desenvolvimentista do governo fazia para crescer no segundo mandato era combatido pela parte monetarista. De público o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o Presidente do Banco Central Henrique Meirelles divergiram. O Presidente Luiz Inácio argumentava, com acerto, que já se estava ocupando toda capacidade instalada e que era necessário baixar os juros para estimular os empresários a expandir a capacidade, o que viria a auxiliar no controle inflacionário. Enquanto o Presidente do BACEN repetia a avaliação do Copom de que era tarefa do Banco Central agir sempre de maneira preventiva e prudencial. 43Comitê de Política Monetária. Sistema de metas para a inflação. Ata da 130ª Reunião, p.1. Acesso em 27 de dezembro de 2011. 44 A imagem da taxa de juros orientando as mercadorias não deixa de ser intrigante, apesar de extremamente hilariante. Seguramente, “Dona” taxa de juros, esta Dama tão sensível, levaria todas as mercadorias, com seus valores de uso e valores de troca para um precipício, tudo por amor ao capital fictício. 42

215

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Do que foi dito acima não se deve concluir que o PAC não tenha desempenhado nenhum papel no crescimento do Produto entre 2008 e 2010. O Programa deu importante contribuição como mecanismo keynesiano tradicional e já testado em diversas condições históricas. É evidente que gastos na ordem de 256 bilhões de reais 45 reanimam a economia e é exatamente isto que o governo deve fazer sempre, apenas como cumprimento de dever. Aqui, também, o investimento privado aparece de imediato na forma de contratos públicos, para em seguida aparecer em outras formas. Tabela 7 Brasil PAC – Balanço Bilhões de reais 2007-2009 Eixo de Planejamento Realizado Logística (sobretudo transportes) 40,5 Energia 72,4 Infra-estrutura social 144,0 Total do PAC 256,9 Fonte: Programa de Aceleração do Crescimento/PAC – Balanço de três anos. A tabela 8 mostra que o número de famílias que foram atendidas pelo Programa Bolsa-Família era de 3,6 milhões em 2003 e cresceu até atingir 12,4 milhões46 em 2009, o que correspondeu a um aumento de 245%, trata-se de um aumento significativo, mesmo que se deva admitir que a base de partida era muito baixa. Em 2003 o referido programa pagou 600 milhões de reais, para pagar benefícios no montante de 12,5 bilhões de reais no ano de 2009. Trata-se de um aumento de mais de 20 vezes. Os gastos da Bolsa-Família entre 2007 e 2009 somam 32,6 bilhões de reais, o correspondente a 12,7% de todo desembolso do PAC 47 no mesmo período. Corresponde, também, a 80,5% dos gastos do PAC 48 com logística.

Fonte: tabela 32 São 12,4 milhões de famílias que passam a consumir e acionam os mecanismos propagadores da demanda agregada. 47Fonte: tabela7 48Fonte: tabela7 45 46

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

216

Tabela 8 Brasil Bolsa-Família 2003-2009 Ano

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Bolsa Família (Famílias Atendidas) (milhões de unidades) 3,6 6,5 8,7 11,1 11,1 11,6 12,4

Bolsa Família (Pagamentos de Benefícios) (bilhões de reais) 0,6 3,8 5,8 7,6 9,2 10,9 12,5

Fonte: Mercadante, 2010.Elaboração do Autor A tabela 9 mostra que o Salário Mínimo acumulou variações reais positivas todos os anos dos dois mandatos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo que no período 2003-2008 acumulou um total de 37,0%; enquanto os Rendimentos Médios Reais cresciam apenas em 9,5% no acumulado do período 2003-2008. Considerando-se a variação do PIB como Proxy para produtividade do trabalho, tem-se que o Produto acumulou 28,0% de aumento. Conclusão: a produtividade foi de 28,0%,49 os trabalhadores receberam 9,5% na média e o salário mínimo teve um ganho real de 37,0%.50 Um valor que reduz a defasagem histórica do mínimo, mas mantém a defasagem da maioria dos salários, principalmente do setor público. No item distribuição de renda e redução da pobreza é preciso buscar a contextualização histórica. Os dados do IBGE, entre os anos sessenta e oitenta do século passado, indicam a seguinte evolução nos percentuais da pobreza no Brasil: Em 1960 havia 41,4% de pobres, este número caiu para 39,3% em 1970 e para 24,4% em 1980. Com a forte recessão dos anos 80, ocorreu elevação na proporção de pobres: e, em 1983 o país voltava ao nível de 1960, com 41,9%. A breve recuperação econômica do ano de 1986 associada ao forte crescimento do Plano Cruzado, fez cair rapidamente a proporção de pobres, neste ano ela desceu para 28,4%. Nos anos seguintes, a escalada da inflação e a 49 50

Fonte: IPEADATA Fonte: Tabela 9

217

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

deterioração econômica, com os efeitos recessivos de planos antiinflacionários, elevaram de novo a taxa: 35,9 em 1987 e 39,3% em 1988, voltando ao nível de 1970.

Ano 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Tabela 9 Brasil Indicadores de Salários e Consumo das Famílias (Variação Anual em %) 2003-2008 Variação percentual Rendimentos Massa Real de Consumo das real do Salário Mínimo Médios Reais (%) Rendimentos (%) Famílias (%) 1,23 - 5,1 -7,8 - 0,7 1,19 0,2 3,6 3,8 8,23 2,4 5,7 4,5 13,04 4,4 4,7 5,3 5,10 3,6 6,4 6,3 4,03 4,0 7,3 7,1 5,79 2,4 2,3 4,1 Fonte: IPEADATA apud Mercadante, 2010. Elaboração do Autor Segundo dados do IBGE em 1992, o percentual de pobres era de 35,16%, caindo para um valor acima de 28,00% no final da década de noventa e principio dos anos 2000. Em 2003 o Brasil tinha 13,7% de sua população vivendo em situação de indigência, enquanto 35% eram considerados pobres. Em 2008, a distribuição da renda já havia melhorado, de modo quenos cinco anos, que separam 2003 e 2008, os índices de indigência e pobreza foram reduzidos, respectivamente, a 6,6% e 24,1%. Estes dados indicam que 32 milhões de pessoas, o que equivale a mais de três vezes a população atual de Portugal e a 80% da população da vizinha Argentina, saíram da linha de pobreza. A primeira vista pode-se pensar que este deslocamento para cima da população na escala de renda deve-se unicamente aos diversos programas sociais do atual governo, contudo, os dados indicam que houve um aumento significativo no volume agregado do emprego, ou seja, algo como oito milhões de novos postos no mercado de trabalho foi criado no período que vai de 2003 até 2009. (Jornal Valor Econômico de 29/12/2009) Segundo Néri (2009) quando se analisa a redução total da desigualdade, verifica-se que a renda do trabalho assalariado responde por 66,86% na variação total, vindo a seguir os programas sociais com 17%, enquanto os benefícios previdenciários explicam 15,72%, o deixa um resíduo de menos de 1%.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

218

Quando se investiga a evolução da renda é preciso combinar os fluxos de renda com a trajetória temporal da pobreza, da desigualdade e das classes de renda. Apesar das limitações evidentes do conceito de classes de renda, é possível fazer uma adequada apreensão do movimento que leva segmentos da população dos níveis mais baixos de pobreza para níveis mais elevados de renda. Assim, a população é desagregada em quatro grupos de renda. Tabela 10 (35) Variação na população por classes de rendimentos Brasil Variação na 2008-2003 2008-2007 população Classe E (19.458.924,00) (3.798.432,00) Classe D (1.485.360,00) (899.594,00) Classe C 25.890.892,00 5.285.627,00 Classe AB 6.095.662,00 1.680.397,00 Fonte: Néri (2009) Nota: os valores entre parênteses indicam redução. A classe de mais alta renda (acima de 4807,00 reais) incorpora entre 2003 e 2008, seis milhões de pessoas, de modo que esta camada atinge quase vinte milhões de pessoas. A segunda classe (entre 1115,00 reais e 4807,00) recebe 25,9 milhões de pessoas. Na terceira classe (entre 768,00 reais e 1115,00 reais) há uma redução de um milhão e meio de pessoas. Na última classe de renda (até 768,00 reais) há uma queda populacional de 19,4 milhões de pessoas. A economia tradicional, mesmo a heterodoxa (ou keynesiana em particular) dá valor excessivo a chamada distribuição pessoal da renda que quase sempre ou “encobre” algumas formas disfarçadas de desigualdade ou “descobre” formas de políticas públicas compensatórias, mas

insuficientes

populações

enquanto

pobres.

A

alternativa

economia

de

inserção

decente

política,

incluindo

a

das

economia

kaleckiana preocupa-se fundamentalmente com a distribuição funcional da renda, ou seja, no quantum da renda nacional recebido pelos trabalhadores (salários), pelos capitalistas (lucros e aluguéis) e pelos rentistas (juros). Neste caso a parcela da renda apropriada pelos trabalhadores no período 2003-2009 oscilou entre 31,5% e 29,3%51, quando a absurda media histórica brasileira é de 30%. Nos países do núcleo orgânico a parcela fica entre 60 e 70%. Isto, logicamente não significa que 51

Fonte: IBGE. Contas Nacionais e Pesquisa Industrial Anual (PIA) Método de aferição: BARBOSA (2001)

219

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

há nenhuma inversão ou que os trabalhadores “estejam se apropriando” da acumulação, mas apenas que são em número muito mais elevado que os capitalistas. Outro fato para o qual a tabela 9 é absolutamente muda52 são os estupendos lucros bancários, para tanto se precisa da tabela 11. Tabela 11 Brasil Participação dos Grandes Bancos Privados (a) no PIB (%) Períodos selecionados Ano 1995-1998 1999-2002 Ativo/PIB 11,6 12,2 Patrimônio Líquido/ PIB 1,4 1,9 Fonte: Filgueiras& Gonçalves (2007).Elaboração do Autor Nota: (a) Inclui Bradesco, Unibanco e Itaú

2003-2006 19,3 2,2

A tabela 11 mostra a apropriação crescente do capital bancário sobre a Renda Nacional. No período 1995-1998 a relação Ativo/PIB era já de 11,6% passando para um valor de 19,3% no primeiro Lula enquanto a relação Patrimônio Líquido/PIB passou de 1,4% no primeiro FHC para 2,2% no primeiro Lula. A situação é sempre preocupante quando o capital financeiro passa da condição de “servo” obediente para “senhor” do capital produtivo. A tabela 12 mostra que o consumo das famílias teve importante papel na formação da demanda agregada. O consumo teve um valor de – 0,39% em 2003 cresceu para 3,80% em 2007 e 3,27% em 2008. Assim, no ano de 2008 o consumo contribui com 64,0% para a composição do PIB 53. O aumento do consumo deveu-se ao aumento de desembolsos de programas como a Bolsa-Família, do aumento real do salário mínimo em alguma medida do aumento da massa salarial54 A contribuição do consumo do governo tem sido muito discreta, enquanto as exportações caíram desde 2006. Em compensação a Formação Bruta de Capital Fixo apresentou uma ligeira reação desde 2006, ou seja, 1,69% em 2006, 2,34% em 2007 e 3,01% em 2008 55, mas qualquer “vôo de águia” vai depender de uma expansão acentuada da Formação Bruta de Capital (investimento); ou em uma boa e insuperável linguagem e cultura marxista, tudo dependerá de um crescimento

A tabela é muda, isto é, não fala, nem mesmo quando perguntada. tabela 37 54Fonte: tabela 34 55Fonte: tabela 37 52

53Fonte:

220

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

permanente e sustentado da Acumulação de Capital e que não ocorram novas restrições às exportações brasileiras. É exatamente pelo que foi apresentado acima que se pode considerar o período 2003-2010 como uma fase de recuperação nacional restringida, mesmo que se devam reconhecer vários avanços na sociedade brasileira. Tabela 12 Brasil Contribuição ao PIB (Variação Anual em %) 2003-2008 Ano Consumo Consumo FBKF Exportações Importações das do Famílias Governo 2003 - 0,39 0,15 - 0,28 1,47 0,20 2004 2,31 0,79 1,87 2,29 - 1,61 2005 2,64 0,44 - 42,00 1,53 - 1,06 2006 3,06 0,51 1,69 0,76 - 2,13 2007 3,80 0,95 2,34 0,97 - 2,38 2008 3,27 1,12 3,01 - 0,08 - 2,24 Fonte: IPEADATA apud Mercadante, 2010, p. 120.Elaboração do Autor 5. Economia brasileira recente: comportamento da absorção externa e da incorporação tecnológica. Desde

1999

observa-se

um

movimento

de

expansão

das

exportações brasileiras. Contudo, é a partir de 2001 que a Balança Comercial começou a apresentar resultados positivos que levariam amega-superávits maiores do que àqueles dos anos oitenta, chegando-se a atingir uma média de 32,5 bilhões de dólares entre 2002 e 2008.56 O bom desempenho das exportações brasileiras esteve ligado à excelente performance da economia mundial a partir de 2003. O aumento da

demanda

mundial

eleva

a

demanda

de

commodities

e

conseqüentemente seus preços. Isto não significa que a economia brasileira apenas se adaptou aos movimentos dos preços. A leitura da tabela

13

mostra

que

os

produtos

básicos

e

os

produtos

semimanufaturados tiveram variação mais intensa dos preços, enquanto os manufaturados foram guiados por maior variação no quantum (72% contra 31%). Não se pode, então, afirmar que houve uma adaptação totalmente passiva da economia brasileira ao ciclo expansivo mundial, inclusive

Nos anos oitenta acumularam-se saldos de 86 bilhões de dólares, com média de 12,4 bilhões. Nos anos dez do atual século o total ultrapassou 300 bilhões de dólares, a uma média de 30 bilhões de dólares. 56

PIB

1,20 5,70 3,20 4,00 6,10 5,10

221

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

porque a variação do quantum das exportações totais foi de 56%, ou seja, 10% superior ao efeito-preço (46%). Contudo, os fortes efeitos dos preços para as categorias dos básicos (63%) e semimanufaturados (68%) indicam uma tendência à reprimarização. Tabela 13 Brasil Evolução das Exportações por fator agregado 2002-2006 Base: 1996 Período

Exportações Totais Preços

2002 2003 2004 2005 2006 Variação

Quantum

Produtos básicos Preços

77,9 162,3 65,5 81,5 187,8 72,3 90,3 223,8 85,6 101,3 244,7 97,8 113,9 252,8 106,9 46% 56% 63% Fonte: IPEADATA

Quantum

217,6 246,2 280,1 298,5 316,5 45%

Produtos semimanufaturados Preços Quantum

Preços

Quantum

74,9 83,4 95,5 106,8 126,1 68%

82,9 82,4 87,2 96,7 108,6 31%

150,8 182,3 229,8 255,1 260,5 72%

139,0 152,5 163,4 173,6 179,7 29%

Produtos manufaturados

A tabela 14 mostra dados importantes sobre o comércio exterior no período de governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Observa-se que as exportações agrícolas (XA) mantêm uma superioridade muito alta em relação às importações agrícolas (MA), de forma que a razão XA/MA chega a atingir 8,55 vezes. Três conclusões se impõem: (a) a autosuficiênciabrasileira na produção agrícola; (b) o alto volume e receita das exportações

não-industriais;

(c)

os

comercialização de produtos agrícolas.

mega-superávits

obtidos

na

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

222

Tabela 14 Brasil Balança Comercial (Total e Agrícola) (Bilhões de Dólares) 2003-2009 Ano Exportações Importações Razão Saldo Comercial Agrícolas (XA) Agrícolas (MA) XA/MA 2003 30,6 4,7 6,51 25,9 2004 39,0 4,8 8,12 34,2 2005 43,6 5,1 8,55 38,5 2006 49,5 6,7 7,45 42,8 2007 58,4 8,7 6,71 49,7 2008 71,8 11,8 6,08 60,0 2009 64,8 9,8 6,61 54,9 Ano Exportações Importações Razão Saldo Comercial Totais (XT) Totais (MT) XT/MT 2003 73,2 48,3 1,51 24,9 2004 96,7 62,9 1,54 33,8 2005 118,5 73,6 1,61 44,9 2006 137,8 91,3 1,51 46,5 2007 160,6 120,6 1,33 40,0 2008 197,9 173,1 1,14 24,8 2009 152,2 126,9 1,20 25,3 Fontes: Funcex e BCB apud Mercadante, 2010, pp. 80-81 e Ministérioda Agricultura, Pecuária e Abastecimento apud Mercadante, 2010, p. 168. Elaboração do Autor. Quando se observa a parte inferior da tabela 14, relativa ao comércio externo total percebe-se que a razão XT/MT que já foi de 1,61 indicando que as exportações brasileiras pagavam as importações 57 com um saldo de 60%58, acusou uma queda acentuada para 1,14 em 2008 e 1,20 em 200959. São dados preocupantes quando se pensa em desenvolvimento econômico, pois aponta para a possibilidade de um processo de reprimarização da economia.60 Outra informação importante contida na tabela 14 é de que o saldo comercial agrícola superou o saldo comercial total em cinco anos da série, perdendo apenas em 2005 e 2006por pequena diferença, isto Este é um conceito fundamental, isto é de que as exportações pagam as importações. Na verdade, exportar é gerar recursos para importar. Assim pensavam os economistas clássicos. É claro que há mais complexidade no comércio internacional do que supõemodelo ricardiano, mas ajuda muito pensar neste intercâmbio como um trade-off. 58 Esta relação entre exportação e importação com 60% de saldo significou em 2005 um “lucro” de exportação de 45 bilhões de dólares. 59 As razões 1,14 e 1,20 correspondem a saldo de quase metade daquele obtido em 2005, ou seja, 25 bilhões de dólares. 60Por reprimarização da economia se entende o aumento relativo das receitas de exportação (preço x quantum) de bens primários frente ao declínio negativo das receitas de exportação de bens industriais. É uma discussão que deve ser feita com cuidado e rigor. Deve ser devidamente contextualizada. Por sua vez, não é um problema apenas de oferta, mas também de demanda (aqui, também, a demanda comanda a oferta), é claro que para exportar bens primários o país precisa tê-los ou ter os recursos necessários para produzi-los. 57

223

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

novamente indicaria uma forte predominância de bens primários na pauta e conseguintemente uma tendência à reprimarização da economia brasileira. Uma das questões que muito se discute (BRESSER-PEREIRA, 2007 e 2010) é do risco do Brasil sofrer algum ataque da “doença holandesa”61, apesar do risco maior ser a “euforia chinesa”62,63. Volta-se às duas questões mais abaixo. Tabela 15 Brasil Razão das Exportações Agrícolas (XA) Sobre as Exportações Totais (XT) em (%) 2003-2009 Ano Exportações Agrícolas (XA)/ Exportações Totais (XT) 2003 41,80 2004 40,33 2005 36,79 2006 35,92 2007 36,36 2008 36,28 2009 42,57 Fontes: Tabela 14 A

tabela

15

confirma

através

da

razão

exportações

agrícolas/exportações totais (XA/XT) um peso de 36% no período 2005-2008 a 42% em 2009 das exportações agrícolas na pauta. Pode-se dizer, então, que os dados disponíveis quando cruzados indicam que os bens primários ou os semimanufaturados estão aumentando suas participações na receita. A tabela 16 retirada de Mercadante (2010) mostra as principais mercadorias exportáveis brasileiras. São dez produtos mais um item denominado

de

“demais

produtos”

correspondente

a

7,6%

das

exportações brasileiras em 2008. Todos os dez produtos têm origem agropecuária,

mesmo

que

alguns

possam

indicar

processos

de

semimanufaturados ou até manufaturado, não há como observar

61É

um termo geral que se aplica às situações de forte apreciação cambial decorrentes de grandes saldos na balança comercial, que são causadas, principalmente, pelo crescimento extraordinário da quantidade exportada ou do preço de commodities de exportação. A origem do nome deve-se a um fenômeno ocorrido na Holanda quando da descoberta de grandes reservas de gás natural. O aumento da exportação do produto causou forte apreciação da moeda doméstica, perda de competitividade industrial e conseqüente desindustrialização. 62 O PIB chinês cresceu a uma média de 10% entre 1999 e 2008, segundo informação do Fundo Monetário Internacional. Fonte: www.imf.org 63Em 1999 o valor das exportações da China ficou em torno de 670 milhões de dólares, em 2008 este valor aumentou para 16,4 bilhões de dólares, isto corresponde a um aumento de aproximadamente 24 vezes. A voracidade do crescimento chinês e o tamanho de sua sociedade e de sua economia têm potência de absorver toda produção primária, mesmo de um país do porte doBrasil. Fonte: MDIC/Secex.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

224

agregação de alto valor nos citados produtos. Não há como supor muito valor agregado em “cereais, farinhas e preparações” e mesmo que houvesse seu peso é de 3,1%, enquanto “fibras e produtos têxteis” apresentam-se com percentual de 2,2%. O “complexo da soja” representa 25%,ou seja, ¼das exportações brasileiras. Os cinco primeiros itens da pauta correspondem a 76% do total, ou seja, ¾ das exportações. O café, que ajudou tanto, mas também criou inumeráveis problemas, ainda contribui com 6,6% e é o quinto produto da pauta. Segundo Mercadante (2010, p. 169) os setores “complexo da soja”, “carnes” e “sucroalcooleiro” contribuíram com 75% do aumento das exportações brasileiras no período de 2003 a 2008. Por sua vez, a economia brasileira ocupa a primeira posição mundial na produção de açúcar 64, café e suco de laranja. Nesta mesma direção somos os principais fornecedores mundiais dos três produtos citados acima acrescidos de mais dois: “carne bovina” e “carne e aves”. Tabela 16 Brasil Participação dos Principais Exportáveis 2008 Principais Produtos Valor (US$) Complexo da Soja 17.980.184.191 Carnes 14.545.483.709 Produtos florestais 9.326.148.932 Complexo Sucroalcooleiro 7.873.074.318 Café 4.763.068.651 Couro, Produtos de Couro, e peleteria 3.140.208.311 Fumo e seus produtos 2.752.032.482 Cereais, farinhas e preparações 2.206.966.200 Sucos de frutas 2.151.782.905 Fibras e produtos têxteis 1.587.383.802 Demais produtos 5.480.133.717 Total 71.806.467.218 Fonte: SECEX/MDCI apud Mercadante, 2010, p. 169

(%) 25,0 20,3 13,0 11,0 6,6 4,4 3,8 3,1 3,0 2,2 7,6 100,0

Resta lembrar que parte importante da dinâmica mundial recente esteve ligada, pode-se dizer dependente, da forte expansão da economia chinesa. Aquela economia cresceu num impulso tão forte que para sustentá-lo foi necessário uma elevação permanente da demanda por produtos básicos e semimanufaturados, especialmente minerais metálicos e grãos. É a elevação dos preços destes produtos aliada a uma procura sempre crescente que se pode chamar de “euforia chinesa”. Países ricos Gilberto Freyre ficaria feliz em saber que além de adoçar o mundo atlântico o “ouro branco” adoça o mundo todo. 64

225

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

em bens primários, grandes fornecedores de commodities, como o Brasil são automaticamente arrastados pela “euforia chinesa”, tornando-se, também, por contágio, “eufóricos”. Assim,

pode-se

particularmente

ao

creditar

excelente

ao

bom

crescimento

desempenho chinês,

os

mundial,

ganhos

de

exportação da economia brasileira, o que também indica tendência à reprimarização. A própria experiência do período 2003-2008 mostra a existências de movimentos complexos. Observa-se que a taxa de câmbio tende à sobrevalorização devido aos saldos positivos na Balança Comercial e da entrada de capitais externos em função do diferencial entre as taxas de juros internas e as externas, o que deveria ser respondido, numa ótica linear, com acomodações da Balança Comercial pela perda de competitividade. Entretanto, a apreciação cambial foi contrabalanceada pelo aumento dos preços e das quantidades. Tabela 17 Brasil Estrutura das Exportações Brasileiras Por Segmentos de Intensidade Tecnológica (Totais e de Produtos Industriais) (Percentual) Brasileiras de Produtos 2002 2008

Exportações Industriais Alta tecnologia 12,20 8,11 Baixa tecnologia 39,32 36,22 Média-alta tecnologia 26,59 28,28 Média-baixa tecnologia 21,89 27,39 Total 100,00 100,00 Exportações Brasileiras Totais 2002 2008 Indústria de alta tecnologia 9,83 5,81 Indústria de baixa tecnologia 31,70 25,96 Indústria de média-alta tecnologia 21,43 20,27 Indústria de média-baixa tecnologia 17,64 19,64 Produtos Não-industriais 19,40 28,32 Total 100,00 100,00 Fontes: MDIC apud Mercadante, 2010, pp. 163 Mercadante, 2010, pp. 162.Elaboração do Autor

Variação 2008/2002

- 33,52 - 7,88 6,36 25,13 Variação 2008/2002 - 40,89 - 18,10 - 5,40 11,33 45,98 eIBRE/FGV apud

Quando se examinam os dados de exportação quanto ao grau de intensidade tecnológica

dos produtos percebem-se evidências de

movimentos de reprimarização, mesmo que incipientes e de ausência de upgrade das exportações dos itens industriais. A tabela 17 mostra que quando se observa a parte superior da tabela, os produtos industriais de alta tecnologia sofrem uma queda de participação na pauta de 33,52%,

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

226

enquanto os produtos industriais de baixa tecnologia caem em 7,88%. Por outro lado, os produtos industriais de média tecnologia aumentam sua participação em 31,94%65 Na investigação das exportações totais, parte inferior da tabela observa-se que as exportações industriais de alta tecnologia sofrem uma queda

de

40,89%, enquanto as exportações industriais de

baixa

tecnologia, também, caem em 18,10%. As exportações industriais de média-alta tecnologia decrescem de 5,40%, enquanto as exportações industriais de média-baixa tecnologia, próprias da Segunda Onda crescem de 11,33%. Finalmente, mas não em importância, os produtos nãoindustriais apresentam uma variação positiva de 45,98% superior a qualquer outra variação mostrada na tabela 42, seja positiva ou negativa.

Os produtos de média-baixa tecnologia que cresceram 25,13% são todos próprios da Segunda Revolução Industrial ou anterior a esta. Enquanto os itens de média-alta tecnologia que aumentaram apenas em 6,36% são quase todos,também, da Segunda Revolução Industrial, com exceção de três itens que envolvem informática elementar, eletrônico e engenharia de medicina no total de média-alta tecnologia correspondem a irrisórios 2,2%. 65

227

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas ABREU, Marcelo de Paiva (Org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Campus, 1992. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Uma frase (in) feliz?: o que é bom para os EUA, é bom para o Brasil? Colunas do RelNet, janeiro de 2003. Disponível em: http://www.relnet.com.br/pgn/colunaaj132.lasso. Acesso em 03 de outubro de 2011. AMORIM, Celso. Palestra. Seminário Atualidade de San Tiago Dantas. 27 de setembro de 2004. Disponível em: http://www.acrj.org.br. Acesso em 15 de dezembro de 2011. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Boletim, vários números. ____________________________. Diretoria de Política Econômica/Departamento Econômico. Nota para a imprensa. Diversos números. Disponível em . Diversos acessos BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL – BNDES. Diretoria de Política Econômica/Departamento Econômico. Nota para a imprensa. Diversos números. Disponível em: < http://www.bcb.gov.br >. Diversos acessos. ____________________________. Relatório Anual, vários anos. FIBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Indicadores Sociais. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/mapa_site/mapa_site.php#indicadores >. Acesso em 25 de abril de 2010. CICF. Cadernos do desenvolvimento. Vol. 3 (5), dezembro de 2008. Rio de Janeiro: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2006. 280 p. COPOM. Comitê de Política Monetária. Sistema de metas para a inflação. Ata da 130ª Reunião, p.1. Acesso em 27 de dezembro de 2011. ÉPOCA, Nº 713, 16 de janeiro de 2012. pp. 32-49. EXAME. Melhores e maiores. Vários números. FGV. Conjuntura Econômica. Retrospecto anual da economia brasileira. Vários anos. FGV. Estatísticas básicas. Vários volumes. FIBGE. Anuário Estatístico do Brasil. Vários anos. ______. Estatísticas históricas do Brasil. ______. Pesquisa industrial mensal de emprego e salário. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/notícias/noticia. Diversos acessos.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

228

______. Pesquisa Mensal de Emprego. Vários números. ______. Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios (PNAD). números.

Vários

FILGUEIRAS, Luiz & GONÇALVES, Reinaldo. A economia política do governo Lula. São Paulo: Contraponto, 2007. FOLHA DE SÃO PAULO. Online. Vários acessos. FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL (FMI). World economic outlook database. Setembro/outubro de 2010. Disponível em: . Vários acessos. GUIMARÃES, F. C. M. S. A política tecnológica nos países de industrialização recente. Rio de Janeiro: UFRJ/IEI, 1986. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. INSTITUTO DE ESTUDOS PARA DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL. Análise IEDI: PIB Trimestral - O sol e a peneira, 2005. Disponível em: http://www.acionista.com.br/mercado/artigos_mercado/301105_pib.htm. Acesso em: 22 de dezembro de 2011. IPEADATA. http://www.ipeadata.gov.br/ . Vários Acessos. MDIC. Evolução do comércio exterior brasileiro – 1950/2005. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/secex/evocoxtbrasil. Vários acessos. MERCADANTE, ALOIZIO (Org.). Brasil: a construção retomada. São Paulo: Terceiro Nome, 2010. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO BRASIL. Coordenação de Estatística e Indicadores. Disponível em: www.mct.gov.br . Acesso em 18 de setembro de 2001. ________________________________________________________. Estatística de Patentes registradas e de artigos publicados em periódicos internacionais. Disponível em: www.mct.gov.br . Acesso em 14 de setembro de 2001. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Carta de intenção referente ao novo acordo. Brasília, 2004. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br. Acesso em 10 de setembro de 2011 __________________________. Política econômica e reformas estruturais. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br. Acesso em 02 de setembro de 2011 __________________________. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília, 2004. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br. Acesso em 10 de setembro de 2011

229

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

PARTIDO DOS TRABALHADORES. PT 20 Anos. Linha Direta, Porto Alegre, nº 77, fev., 2000. _________________________________. Concepção e diretrizes do programa de Governo do PT para o Brasil. Disponível em: http://www.pt.org.br. Acesso em 15 de maio de 2011. _________________________________. Programa de Governo 2002. Disponível em: http://www.pt.org.br. Acesso em 15 de maio de 2011. VISÃO. Quem é quem na economia brasileira. Edição Especial, várias edições.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

230

Resenha: LUSTOSA, Maria Cecília Junqueira(Org.); ROSÁRIO, Francisco, José Peixoto(Org.). Desenvolvimento Local em Regiões Periféricas: A política dos arranjos produtivos em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2011. Os estudos sobre desenvolvimento observaram certa diversificação nos últimos anos. À pauta clássica, tem-se acrescentado os temas da sustentabilidade ambiental, da governança e da incorporação de novas interpretações acerca de conceitos outrora consolidados na área, como desigualdade ou bem-estar, por exemplo. Exauridos ou desacreditados em outras áreas das ciências sociais aplicadas, ainda alguns outros temas tentam apear-se na temática do desenvolvimento, como a “inovação”, ou certo enfoque herdado da quase centenária teoria do lugar central weberiana, este requentado sob a forma conceitual dos arranjos produtivos locais, ou como seus autores gostam de apelidar, APLs. Isto posto, de um livro como o de Cecília Lustosa e Francisco Rosário, professores da Universidade Federal de Alagoas, uma universidade periférica, seria esperado algum acréscimo ao assunto. O título do livro convida; a capa, bonita, seduz. Seria de se esperar alguma boa discussão sobre o desenvolvimento regional. Diz-se boa, porque o tema é não apenas válido, mas premente, atual, relevante e favorável ao próprio desenvolvimento das ciências sociais. Infelizmente, não é o caso do livro (organizado ou autoral? Não há como saber ali) de Lustosa e Rosário. Simplesmente não há nada de positivo a ser dito sobre o uso das quase duzentas páginas de papel. Uma menção inicial – que exime de culpa os responsáveis pela obra, a princípio – vai para o serviço editorial da Edufal. O livro, a despeito da bela capa, remontando ao regionalismo, é um verdadeiro desastre de revisão, edição, diagramação e montagem. Quase nenhum gráfico ou tabela escapa de um arremesso certeiro à incompreensibilidade. Os mapas chegam a ser risíveis, porquanto borrados, distorcidos, e inutilizados em sua função informativa (como apresentar em “tons de cinza” mapas originalmente coloridos?). Uma editora séria já o teria retirado de circulação, apresentando uma edição revisada. Dadas as condições do

231

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mercado editorial, fica a sugestão, que reduziria em parte o dano à leitura. Infelizmente mais uma vez, os erros não limitam aos aspectos formais, avançando por sobre aspectos que envolvem a própria concepção do livro. Em seus seis capítulos, o livro intenta defender o desenvolvimento do estado de Alagoas através do incentivo a criação e consolidação de programas de incentivo aos APLs, como alternativas a uma atual estrutura produtiva centrada no cultivo e comercialização da cana-de-açúcar e de seus derivados. Os primeiros dois capítulos iniciam-se tentando expor uma conjuntura socioeconômica de Alagoas e o fluxo comercial do estado. Nos dois capítulos seguintes há uma tentativa de estabelecimento dos critérios de identificação e mapeamento dos APLs, assim como suas respectivas politicas de auxilio aos arranjos. Dois capítulos finais, bastante reduzidos, tentam fazer uma análise das políticas governamentais postulando o investimento em APLs como a saída para o desenvolvimento do Estado. Embora o tema da obra trate de questões pertinentes ao desenvolvimento alagoano, as falhas metodológicas em seu decorrer prejudicam seriamente a corroboração de quaisquer assertivas coerentes com a realidade alagoana feitas ali. O que se apresenta de início como a análise empírica da “conjuntura socioeconômica”, limita-se a observações do PIB e seus desdobramentos mais óbvios, como os produtos setoriais e a mão de obra empregada. Não aparece a análise de indicadores de desenvolvimento como o IDH ou mesmo o Índice de Desenvolvimento Rural. A análise da “conjuntura socioeconômica” prometida no início do livro é entregue sob a forma de um agregado, de extensão temporal insuficiente, de dados que somente fariam sentido em séries mais amplas. A aparência é a da soma de vários briefings de relatórios de conjuntura de curto prazo. Entender o longo prazo como uma extensão do curto transcende o limite do deslize metodológico, passando à aberração. O resultado não passa de uma simples junção de informações já conhecidas na literatura econômica recente como, por exemplo, a tendência de aumento da participação do setor de serviços no volume total de empregos, caso que de maneira alguma constitui singularidade alagoana. A análise do fluxo comercial, por sua vez, tenta mostrar uma economia apoiada em duas cadeias produtivas: cana e derivados do petróleo. A base empírica para tal alegação, na forma como

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

232

apresentada, é muito rala e pode ser facilmente contestada, levando em consideração que toda a análise limitou-se a observações do ano de 2006. A observação conduz dessa vez à inferência de que a cana constitui o setor mais dinâmico da economia alagoana. A melhor das vontades em assumir a validade científica do trabalho cai por terra diante de tal redundância. Seria possível afirmar aqui pelo menos uma centena de trabalhos que realizaram exame empírico mais apurado, para chegar ao mesmo resultado. O terceiro capítulo busca, a partir de critérios oficiais, identificar os diversos tipos de APLs e organizá-los de acordo com as configurações do mercado em que se inserem. Por simplesmente utilizar o trabalho anterior realizado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), há uma aparente melhoria na qualidade do conteúdo. Contudo, há necessidade urgente de revisão, com mapas simplesmente ilegíveis de impossível delimitação das áreas abarcadas pelos arranjos. Como está, inviabiliza-se qualquer contribuição à elaboração de políticas que visem incentivar a produção dentro da área dos APLs em Alagoas. O quarto capítulo oferece um rol de entidades de apoio aos APLs, e o critérios de avaliação de tais agentes. A qualidade da análise feita nesse capítulo pode ser associada ao grau de congruência com a realidade da variável-chave analisada. Nesse caso, parece ter sido sistematicamente escolhida a variável menos relacionada com a efetividade dos projetos de apoio, ao se basear principalmente nos números de ações encerradas, ações em andamento e em ações cujo marcos críticos não estão sendo superados. Para uma obra que visa formular uma estrutura de organização entre APLs e as atuais entidades de apoio para o desenvolvimento regional, a impressão é de que há pouco interesse no desempenho das ações, importando unicamente a existência de ações de auxilio e não no que estas acrescentariam ao sistema produtivo local. Os dois últimos capítulos refletem a pesquisa rala feita anteriormente e mostram uma inconsistência argumentativa básica: uma vez “descobertos” como “dinâmicos” para a economia do estado os setores da cana e dos derivados de petróleo, qual seria efetivamente o interesse – estratégico, basilar, de mudança estrutural social ou econômica – de investir-se nos arranjos produtivos locais como opção de desenvolvimento regional? À assertiva categórica de Lustosa e Rosário em dois capítulos curtos que repetem o mesmo bordão – o caminho para o

233

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

desenvolvimento de Alagoas estaria no investimento em APLs – não se agrega qualquer argumento sólido, tornando-se o livro ao final uma profissão de fé e não a obra científica originalmente proposta. Há profunda desconexão do diagnóstico com as propostas. Felizmente, o estudo do desenvolvimento regional sobreviverá a tal atentado, por sua pertinência e pela forma como é estudado por pesquisadores sérios e comprometidos com a produção de conhecimento científico na academia e fora dela. O livro ora abordado fica como um exemplo do que não se deve fazer ao estudar o assunto. Rafael Aubert de Araujo Barros Economista – Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica (GEEPHE).

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

234

235

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Resenha: SINHA, Ajit. Theories of Value from Adam Smith to Piero Sraffa. New Delhi, Routledge, 2010 A teoria do valor é uma constante na ciência econômica que permite relacionar boa parte dos autores que têm preocupações de ordem abstrata na construção da disciplina de economia. A predominância contemporânea da teoria do valor utilidade não significa que o debate em torno deste tema tenha terminado, mas apenas que em nosso tempo, o ensino de economia raramente recupera as controvérsias em torno do núcleo duro de nossa disciplina. A área de economia política, por outro lado, sempre se preocupa com a questão. E ela é um ponto de partida segura para os exercícios de história do pensamento econômico. O livro de Ajit Sinha, Theories of Value from Adam Smith to Piero Sraffa, representa um destes exercícios aliados com cautelosa pesquisa bibliográfica da trajetória intelectual desde a fundação da economia política clássica em 1776 até a publicação e repercussão de Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias. De forma sintética, trata-se de um resumo aprofundado do desenvolvimento da teoria do valor, em seu aspecto quantitativo, nas principais obras do quarteto Smith-Ricardo-Marx-Sraffa. É possível ler o livro como um dos resultados indiretos de Piero Sraffa ao “reabilitar”, como diria Meek (1961), o ponto de vista clássico. Em adição a isto, trata-se também de um posicionamento do autor em relação às controvérsias que emergiram na economia marxista após uma manobra admirável de Samuelson (1971) ao desviar a atenção dos economistas das controvérsias de Cambridge para os efeitos de Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias sobre o Capital de Marx. Foi isto que fundamentou o desenvolvimento da polarização entre sraffianos e marxistas em relação à teoria do valor e o surgimento de um fenômeno estranho ao projeto crítico de Piero Sraffa: a criação da corrente neoricardiana. O texto é estruturado com clareza e objetividade: após um prefácio inspirado na visão de Sraffa de que a perspectiva dos clássicos foi esquecida despropositamente, quatro capítulos (um para cada autor em sua respectiva obra prima na área da Economia Política) antecedem um quinto capítulo final de reconsideração justamente sobre o paradigma de retorno da Economia Política Clássica desde o último quarto do século XX..

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

236

O primeiro capítulo começa portanto a investigação sobre a teoria do valor na Riqueza das Nações de Adam Smith. Sinha apresenta a obra de Smith com um recorte bem delimitado: sua busca é sempre direcionada à problemática da questão sobre a determinação dos preços das mercadorias. O esforço do autor é de colocar ao público sua interpretação particular da teoria do valor de Smith. O leitor acompanha a leitura atenta e comentada de Sinha até identificar o núcleo da questão: a dificuldade de estabelecer uma medida para o valor e de fundamentar o papel do trabalho nas relações de troca. A diferença entre a medida em trabalho e a medida em dinheiro, exposta no quinto capítulo de A Riqueza das Nações, serve como ponto de partida para Sinha avançar sobre toda controvérsia em torno do aspecto quantitativo da teoria do valor trabalho que corre em paralelo com o estudo sobre a relação entre o sistema de valores e o sistema de preços. Ele aponta corretamente que Smith reconhecia o problema, ainda que não de forma muito clara, e que é possível reconhecer já no fundador da Economia Política indicações experimentais sobre como resolver a questão. Ao final deste primeiro capítulo, o autor apresenta outras interpretações da teoria do valor de Smith que tiveram grande influência no percurso posterior da Economia Política. Os contemporâneos de Smith, David Ricardo e os ricardianos, Marx e os neoclássicos são postos como leitores de Smith no intuito de diferenciar as correntes que se originam da mesma semente. A única ressalva aqui decorre da própria abordagem que Sinha dá a toda problemática do valor: ao apresentar a leitura de Marx sobre Smith, Sinha restringe a crítica marxista ao aspecto quantitativo da determinação das relações de troca. Certamente Marx apontou problemas e indicou caminhos para solucionar o repetido problema da transformação, mas há um outro aspecto na teoria que só se encontro nele. O diferencial do estudo de Marx sobre a economia política burguesa é justamente a de ser a única que indaga sobre a qualidade do valor, pergunta esta que culmina na busca pela explicação sobre o porquê da teoria do valor trabalho emergir apenas na época dos economistas clássicos e não antes. Esta é a lacuna fundamental da obra que delimita todo eixo de exposição de Sinha. Por exemplo, o segundo capítulo discute a teoria do valor nos Princípios de Economia Política de Ricardo. Sinha defende que a principal preocupação de Ricardo é a de estabelecer a lei dinâmica que determina a distribuição do produto entre as diferentes categorias participantes do processo econômico

237

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

e que se referem às remunerações com nomes específicos, como renda, lucro, salário, etc. Esta perspectiva restringe Ricardo a abordar apenas o aspecto quantitativo da teoria do valor, de modo que a Crítica da Economia Política, esmiuçada por Marx nas primeiras página do Capital, não pode se desenvolver. Dessa forma, quando Ricardo inicia sua obra justamente com a teoria do valor a partir da base posta por Adam Smith, Sinha detalha acertadamente de que se trata da continuação da questão, mas não indica dentro de quais limites a economia política clássica opera quando trata das relações de produção e distribuição. Em outras palavras, toda dificuldade de Ricardo em encontrar uma medida invariável de valor, assim como em esclarecer o processo gravitacional que orienta a determinação quantitativa concreta das relações de troca é contextualizada com propriedade por Sinha. As primeiras fragilidades da teoria do valor trabalho e reticências de Ricardo sobre ela são apresentadas com uma leitura minuciosa dos Princípios, mas uma associação com o movimento socialista que começa a se apropriar da economia política não aparece neste capítulo e nem de forma referenciada no livro. Por conta disso, a questão que Sinha persegue, qual seja: por que começar com o valor (ou por que adotar a teoria do valor trabalho)? flutua como uma controvérsia entre economistaspensadores descolada da realidade da luta dos trabalhadores assalariados em se instrumentalizar para compreender o capitalismo. Este aspecto do livro aqui sob crítica resulta em uma leitura da contribuição de Marx à teoria do valor muito aquém de todo o potencial que a Crítica da Economia Política engendra. A interpretação de Marx sobre a teoria do valor de Ricardo é apresentada como se Marx tratasse apenas da questão quantitativa do valor. Assim, Sinha parece se surpreender com a volatilidade com a qual Marx trata Ricardo, ora aceitando sua teoria do valor, ora rejeitando o pensamento burguês que ele representa. Toda a atenção de Sinha é voltada para o problema da determinação quantitativa das relações de troca entre valores de uso. Assim, sua leitura aborda todo o problema do valor como se fosse apenas o problema da transformação dos valores em preços. O capítulo 3, dedicado ao Capital de Karl Marx dedica-se a exaurir a apresentação das primeiras páginas do capital dentro desta perspectiva quantitativa. De fato, é salutar o esforço e detalhamento com que Sinha contrapõe Marx com Smith e Ricardo para descobrir a resposta para a pergunta que ronda o livro a todo instante (porque a medida do valor é feita pelo tempo de

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

238

trabalho?). Sinha descreve com propriedade alguns dos principais passos na controvérsia do problema quantitativo da transformação dos valores em preços mas em nenhum momento destaca que Marx é o único dos autores a explicar a bifurcação do desenvolvimento da teoria do valor: a mercadoria é a unidade abstrata original, sendo duplicada em valor de uso e valor. Estas duas são novamentes duplicadas, em quantidade e qualidade. A teoria do valor, enquanto tópico da economia política clássica que se transforma em algo novo dentro do materialismo histórico, deve explicitar o nexo entre estes quatro entes que concretizam a categoria mercadoria. Sinha, ao se restringir ao aspecto quantitativo, certamente contribui para a reconstrução histórica da teoria do valor, pois este é uma parte importante da problemática que tem relevância prática enorme para a teoria da planificação econômica. Mas o componente qualitativo que permite justamente compreender a relação entre a Economia Política inglesa e o marxismo é deixado de lado sem que o leitor seja avisado. E o método dialético obriga o tratamento tanto da quantidade quanto da qualidade do valor. O capítulo 4, que apresenta Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias de Piero Sraffa deixa claro que Sinha tem em alta estima as sintéticas linhas publicadas em 1960 pelo economista italiano. O modelo de Sraffa é exposto com certa formalidade para os leitores acostumados com os textos qualitativos de Smith, Ricardo e Marx, mas com grande atenção para a explicação didática das equações representando os setores da economia. Sinha argumenta que a grande contribuição de Sraffa é ter trazido de volta à ciência econômica a teoria objetiva do valor. Todo esforço aqui seria o de contradizer a teoria marginalista do valor, onde as relações de troca são determinadas a partir do julgamento subjetivo dos agentes em relação às coisas transacionadas no mercado. A mensuração dos valores com meios físicos desconectados da avaliação individual em relação aos valores de uso é o que Sinha julga ser um dos principais pontos da teoria do valor de Sraffa. Além deste ponto, as possibilidades de se pensar em um sistema econômico de equilíbrio em Sraffa são discutidas, o que corrobora nossa leitura de que, apesar de levantar a questão-chave para entender o avanço de Marx no desenvolvimento da teoria do valor (por que o tempo de trabalho é a medida de valor?), Sinha acaba caindo repetidamente em outra questão (também relevante, é bom salientar) que lhe toma toda a atenção (por que as mercadorias possuem estes preços e não outros?).

239

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O capítulo 5 repete a tese de Sinha de que a recuperação da perspectiva clássica é positiva para o desenvolvimento da ciência econômica, mas ao mesmo tempo revela os limites de sua abordagem. É relevante destacar que a manobra de colocar a economia política clássica em confronto com a escola neoclássica contemporânea é extremamente importante porque isto mostra que a disciplina de economia tem uma história, que ela se desenvolveu e se modificou ao longo do tempo. Mas é importante lembrar que esta retomada fica aquém da fronteira cientítica em economia quando consideramos a existência do socialismo científico. Qual é a posição de Sinha em relação à teoria do valor utilidade? Mesmo não constando explicitamente no livro, podemos inferir que é a mesma de Sraffa: a de que é uma teoria com erros lógicos internos e que deve ser substituída pelo ponto de vista “dos antigos economistas clássicos, de Adam Smith a Ricardo”, que “tem estado submerso e esquecido desde o advento do método „marginalista‟” (Sraffa ([1960] 1985), p. 175). Mas como lidar na prática com a absoluta ignorância do mainstream em relação à teoria de Sraffa e às inexistentes mudanças nos livros-textos desde o surgimento e esvaziamento das controvérsias de Cambridge? Não existiria uma corrente de interpretação e uso da escola originada nos trabalhos de Menger ([1871] 1950), Jevons ([1871] 1970) e Walras ([[1874] 1954), por exemplo, iniciada por Lange (1935) que estaria em maior conformidade com o método de Marx e portanto com maiores chances de encarar a luta de classes refletida na teoria da economia política? Sobre isso, Sinha nada diz a respeito, o que dá a impressão ao leitor de que não existe necessidade alguma de relacionar a teoria do valor clássica, objetiva, com a teoria do valor neoclássica, subjetiva. De toda forma, levando em conta o estado atual do ensino das ciências econômicas no Ocidente, o livro de Sinha é um excelente guia para estudiosos experientes no campo da Economia Política e da História do Pensamento Econômico, mas de forma alguma substitui a leitura e estudo direto das obras de Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx e Piero Sraffa. Para aqueles que, portanto, ainda não fizeram estas leituras, é recomendável que não se apóiem no livro de Sinha antes de passar algum tempo na companhia dos originais destas quatro distintas figuras em Economia Política que se dedicaram com fervor à construção da teoria do valor objetiva.

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

240

Referências Bibliográficas Jevons, W. S. [1871] 1970. The Theory of Political Economy. Baltimore: Penguin. Lange, O. 1935. Marxian Economics and Modern Economic Theory. The Review of Economic Studies 2 (3): 189-201. Meek, R. (1961). "Mr. Sraffa‟s Rehabilitation of Classical Economics." Scottish Journal of Political Economy, Vol. 8: pp. 119-136. Menger, C. [1871] 1950. Principles of Economics. New York: Free Press. Samuelson, P. A. (1971). Understanding the Marxian Notion of Exploitation: A Summary of the So-Called Transformation Problem Between Marxian Values and Competitive Prices. Journal of Economic Literature, Vol. 9(2): 399-431. Walras, L. [1874] 1954. Elements of Pure Economics. Homewood: Irwin. Tiago Camarinha Lopes Professor da Universidade Federal de Goiás. Representante para o Brasil da IIPPE (International Initiative for Promoting Political Economy).

241

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Normas de Publicação: A REPHE publica textos inéditos referentes às áreas de História Econômica e Economia Política. Os textos podem ser:   

Artigos: mínimo de dez páginas em times new roman tamanho 12, em espaço de entrelinha de 1,5. Resenhas: entre duas a sete páginas em times new roman tamanho12, em espaço de entrelinha de 1,5. Entrevistas: entre duas a sete páginas em times new roman tamanho 12, em espaço de entrelinha de 1,5.

Os textos devem ser enviados ao e-mail [email protected]. Juntamente com o texto, devem ser enviados um resumo de dez linhas (no caso dos artigos), uma versão em inglês do resumo, com palavras chave e um breve registro da qualificação acadêmica e profissional do(s) autor(es). As normas de citações, referências, gráficos e tabelas seguem os padrões da norma técnica da ABNT. Os conceitos emitidos nos textos publicados pela revista são de responsabilidade de seus autores. PRÓXIMA CHAMADA DE TEXTOS: 10 de maio de 2014 © GEEPHE 2014

Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

© GEEPHE 2014 http://rephe01.googlepages.com e-mail: [email protected]

242

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.