Abraço de irmãos

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RELIGIÃO FRANCISCO

irmãos ABRAÇO

DE

O histórico abraço ecumênico do papa Francisco, da Igreja Católica, e o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, é um encontro de extraordinário valor para o diálogo ecumênico Moisés Sbardelotto *

T

empo necessário para que dois irmãos voltassem a se encontrar e a se abraçar: 962 anos. E isso ocorreu no dia 12 de fevereiro passado. Uma data histórica, que marcou o primeiro encontro, desde 1054, entre o papa de Roma e o patriarca da chamada “terceira Roma”, Moscou. Os protagonistas desse abraço histórico foram o papa Francisco e o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, em um encontro de extrema importância para o diálogo ecumênico. Mas como dois irmãos na fé puderam passar quase um milênio sem nem ao menos se verem? Isso diz muito sobre a complexidade das questões políticas, culturais e teológicas que levaram ao chamado Grande Cisma ocorrido em 1054, quando as Igrejas de Roma e de Constantinopla (a chamada “segunda Roma”) se excomungaram mutuamente. No âmbito político, a cisão estava relacionada historicamente com a ex-

pansão do Império Romano ao Oriente e a sua subsequente divisão em dois: o Império Romano Oriental e o Ocidental, com a fundação no ano 395 de uma segunda capital imperial, na então Bizâncio (depois Constantinopla, hoje Istambul, na Turquia). Culturalmente, com a ascensão do islã e o controle do Mediterrâneo por parte dos árabes entre os séculos 7o e 12, os contatos entre os dois impérios se tornaram cada vez mais difíceis, e os católicos ocidentais e orientais só se distanciavam: uns falando latim e vivendo os costumes romanos; outros falando grego e vivendo os costumes helenísticos. As Igrejas do Ocidente e do Oriente discordavam, teologicamente, quanto a dois pontos principais, dentre outros. Primeiro, a questão do Filioque, ou seja, da fonte do Espírito Santo: para os católicos ocidentais, Ele provém do Pai e do Filho; mas, para os orientais, apenas do Pai. O segundo ponto era

o primado do papa: para os católicos ocidentais, o papa de Roma é o sucessor de Pedro e, por isso, detém a supremacia sobre todas as diversas Igrejas católicas; mas, para os orientais, o papa é apenas o patriarca do Ocidente, com um status de honra como primus inter pares, ou seja, o primeiro bispo dentre todos, mas sem autoridade sobre os demais. Por essas e outras divergências históricas, os católicos romanos e os ortodoxos até hoje não comungam do mesmo pão eucarístico. Todos esses fatores levaram às excomunhões recíprocas entre as duas Igrejas. Elas só foram removidas quase um milênio depois, em 1964, quando o papa Paulo VI e o patriarca ecumênico Atenágoras de Constantinopla se encontraram e se abraçaram em Jerusalém, cidade à qual ambos se dirigiram como peregrinos. Em pleno Concílio Ecumênico Vaticano II, encerravam-se, assim, nove séculos de incomunicabilidade entre Roma e a “segunda Roma”.

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Unidade querida por Deus – Contudo, depois de tantos séculos, ainda faltava o abraço entre o papa de Roma e o patriarca da “terceira Roma”, Moscou. E ele aconteceu no mês passado, em Cuba, “por vontade de Deus Pai, de quem provém todo o dom, no nome do Senhor Nosso Jesus Cristo e com a ajuda do Espírito Santo Consolador”, como disseram o papa Francisco e o patriarca Kirill, na declaração conjunta assinada em Havana. Por meio de um tuíte, o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, também se uniu ao encontro, afirmando que estava “rezando pelos meus irmãos em Cristo”. Como explicou Francisco, a declaração de Havana, composta por 30 parágrafos, não é política ou sociológica, mas sim “de dois bispos que se encontram com preocupações pastorais”. Nela, o papa católico e o patriarca ortodoxo russo explicitaram diversos “desafios do mundo contemporâneo”, como a perseguição aos cristãos no Oriente Médio e na África, o diálogo inter-religioso, a integração europeia, a família, o direito inalienável à vida, os conflitos na Ucrânia, entre outros. Francisco e Kirill também afirmam que estão “determinados a realizar tudo o que seja necessário para superar as divergências históricas que herdamos”, na esperança de que o seu encontro “possa contribuir para o restabelecimento dessa unidade querida por Deus, pela qual Cristo rezou”. E reiteram: “Não somos concorrentes, mas irmãos”.

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Esse abraço foi relembrado e revivido 50 anos depois, em 2014, quando o papa Francisco e o patriarca ecumênico Bartolomeu de Constantinopla se reencontraram e se abraçaram, novamente na Terra Santa. Lá, reafirmaram, em declaração conjunta, que esse encontro fraterno era “um passo novo e necessário no caminho para a unidade, à qual só o Espírito Santo nos pode levar: a unidade da comunhão na legítima diversidade”.

Momento histórico entre o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, e o papa Francisco, da Igreja Católica, que aconteceu em Havana, Cuba, por ser um país distante das disputas do “Velho Mundo”

Por que em Cuba? – Mas por que esse encontro foi celebrado justamente em Cuba? Por ser a “encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste”, afirmaram os dois líderes religiosos. Por um lado, um país bem distante “das antigas disputas do ‘Velho Mundo’”, que também impregnaram uma boa parte da história da cristandade. E, por outro lado, um país que representa o “forte potencial religioso da América Latina” e da “sua tradição cristã secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas”. Como disse o papa Francisco, católicos e ortodoxos são irmãos na fé, têm o mesmo batismo, e, embora ainda haja muito caminho a percorrer no diálogo ecumênico, “a unidade se constrói caminhando”. Por isso, o local desse abraço também ganha um sentido todo especial: celebrar a busca da unidade cristã em um aeroporto – lugar do encontro de pessoas provenientes de diversos lugares, onde a estada é temporária, e o destino é alçar voo para ir ao encontro de outros – também significa entrar em um movimento rumo à

comunhão afetiva e efetiva de todos os cristãos, em uma mesma “casa comum” (oikos-uméne, ecumenismo). Com esse “encontro de aeroporto”, o papa, que veio “quase do fim do mundo”, continua oferecendo novos “céus” e novos “ares” para a Igreja. Uma Igreja que Francisco não quer que seja apenas romana, europeia, centrada em um Ocidente autorreferencial, mas também voltada para o Oriente. E, justamente neste ano, será celebrado, entre os dias 16 e 27 de junho, na ilha grega de Creta, o Santo e Grande Concílio Pan-Ortodoxo, reunindo todos os patriarcas e primazes das diversas Igrejas ortodoxas. Outro evento que não ocorria havia mais de mil anos. Em pauta, entre outras coisas, também estará a questão das relações da Igreja ortodoxa com as várias Igrejas cristãs. Relações que, depois do abraço de Francisco e Kirill, nunca mais serão as mesmas. * Moisés Sbardelotto é jornalista, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e La Sapienza, em Roma. É também autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário).

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