Abscesso tireoideano tratado por punção

June 5, 2017 | Autor: Antonio Bertelli | Categoria: Thyroid, Head and Neck Surgery
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Relato de Caso

ABSCESSO DE TIREÓIDE TRATADO POR PUNÇÃO: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA THYROID ABSCESS TREATED WITH NEEDLE ASPIRATION: CASE REPORT AND LITERATURE REVIEW ANTONIO AUGUSTO TUPINAMBÁ BERTELLI 1 SABRINA JARNA COELHO ANDRADE 2 NORBERTO KODI KAVABATA 3 MARCELO BENEDITO MENEZES 4 ANTONIO JOSÉ GONÇALVES

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RESUMO

ABSTRACT

Os abscessos tireoideanos são complicações da tireoidite aguda supurativa, entidade rara entre as enfermidades do pescoço. Sua etiologia pode ser associada a fístulas entre a glândula tireóide e a hipofaringe. Classicamente, são tratados pela drenagem cirúrgica e antibioticoterapia sistêmica. Os autores relatam o caso de paciente de seis anos de idade com abscesso em tireóide após infecção prévia de vias aéreas superiores, sem evidência de fístula faríngea aos exames de imagem e endoscópico realizados. Foi submetida à punção com agulha para coleta de material para análise bacterioscópica e cultura com antibiograma, e evoluiu com melhora do quadro infeccioso sem a necessidade de tratamento cirúrgico. Procedemos também revisão da literatura quanto ao tratamento por punção dessas afecções a fim de averiguar a exeqüibilidade desse método terapêutico em casos selecionados de abscesso tireoideano. Descritores: Tireoidite supurativa; abscesso tireoideano; punção.

Thyroidal abscesses are complications of acute supurative thyroiditis, but extremely rare among cervical illness. It may be correlated to pyriform sinus fistula between the gland and the hipopharynx. The treatment of choice is surgery with drainage and antibiotics. The authors report a case of a 6 years old girl with a bacterial abscess of the thyroid after a respiratory infection, without evidence of pharyngeal fistula in tomographic and endoscopic findings. She underwent needle aspiration for bacteriological study and received intravenous antibiotics. The patient did well and had an uncomplicated recovery without surgery. A review of the literature data was made to evaluate the application of needle aspiration as treatment in selected cases. Keywords: Suppurative thyroiditis; thyroid abscess; needle aspiration.

1 Médico Residente da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 2 Médico Assistente da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 3 Professor Instrutor, Médico Assistente da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 4 Professor Assistente, Chefe da Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Trabalho realizado na Disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Endereço para correspondência: Rua Dr. Cesário Motta Jr, 112 01221-020 São Paulo, SP. Fone: (11) 3226-7272; fax: (11) 3337-8164 e-mail: [email protected] / [email protected] Recebido em 07/10/2004; aprovado: 14/11/2005

Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 34, nº 2 - maio / dezembro 2005

INTRODUÇÃO As tireoidites representam a afecção tireoideana mais freqüentemente encontrada nas formas subaguda e crônica1, causadas por infecção viral e por processo autoimune. Entretanto, a infecção bacteriana da glândula tireóide é rara1,2 devido a vários mecanismos de defesa como a drenagem linfática e sanguínea abundantes, presença de uma cápsula, envolvimento por fáscias e músculos e à alta concentração de iodo no órgão3. A diferenciação entre as diferentes formas de tireoidite e o abscesso tireoideano pode ser difícil, porém, de vital importância para o tratamento adequado1,2,4.

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RELATO DE CASO Relatamos o caso de paciente de seis anos de idade, gênero feminino, raça parda, natural e procedente de São Paulo/SP, que procurou o Pronto-Socorro Infantil do Hospital Central da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo com queixa de odinofagia e febre de 38,5o C, há cinco dias da internação, acompanhada de aparecimento de nodulação cervical anterior há dois dias. Não apresentava antecedentes mórbidos relevantes e, ao exame físico, encontrava-se em bom estado geral, sem sinais de septicemia ou dispnéia e com nódulo cervical anterior em topografia do lobo tireoideano esquerdo, móvel à deglutição, com aumento da temperatura local, doloroso à palpação e de consistência cística, medindo cerca de cinco cm de diâmetro (figura 1), sem linfonodos cervicais palpáveis. O exame da cavidade oral e orofaringe não mostrava afecção odontológica ou faríngea. O restante do exame físico encontrava-se sem alterações. Os exames laboratoriais iniciais mostravam uma taxa de hemoglobina de 9,8 g/dL; hematócrito de 30,0%; leucometria de 10.300 com 73% de segmentados e 1% de bastonetes, 408 mil plaquetas e velocidade de hemossedimentação de 66 mm.

A tomografia cervical computadorizada axial com infusão de contraste intravenoso mostrava área hipoatenuante septada, substituindo o lobo tireoideano esquerdo, com cápsula hiperatenuante ao redor, de conteúdo cístico espesso, além de lobo tireoideano direito dentro da normalidade e ausência de linfonodomegalias cervicais

Figura 2: Tomografia axial cervical demonstrando a área do abscesso.

Figura 1: Nódulo cervical anterior localizado à esquerda.

À ultra-sonografia cervical havia aumento do lobo tireoideano esquerdo (4,8 x 2,5 x 2,4 cm), com contornos regulares e ecotextura difusamente heterogênea, com áreas hipoecogênicas de permeio, sugerindo tratar-se de processo inflamatório com áreas de liquefação.

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(figura 2). Assim, considerando o bom estado geral da paciente e a ausência de sinais de septicemia, a equipe de Pediatria optou pela introdução de Clindamicina como antibioticoterapia empírica inicial. Além disso, como não havia desconforto respiratório, a equipe de Cirurgia de Cabeça e Pescoço optou pela realização de punção do abscesso tireoideano com a finalidade de coleta de material para análise bacterioscópica e cultura com estudo de antibiograma. Nesse procedimento, houve retirada de cinco mL de secreção purulenta espessa. Após a detecção de cocos Gram positivos e bacilos Gram negativos à bacterioscopia, a Clindamicina foi substituída pela Oxacilina. Por fim, a cultura revelou a presença de Haemophilus sp e Streptococcus pneumoniae, ambos sensíveis a todos os agentes antimicrobianos testados, inclusive à Clindamicina e Oxacilina. A paciente foi acompanhada rigorosamente, para que a drenagem cirúrgica fosse realizada se houvesse sinais locais de piora ou complicação sistêmica do abscesso, contudo, houve diminuição progressiva do tumor cervical e dos sinais flogísticos locais, mantendo-se afebril. Após sete dias da punção, foi realizada nova ultra-sonografia cervical, onde a tireóide encontrava-se com contornos levemente irregulares a custa do lobo esquerdo, que apresentava 2,5 x 1,2 x 3,1 cm,

com volume de 5,0 cm3, ecotextura difusamente heterogênea, predominantemente hipoecóica, sem caracterizar nódulo ou coleção. Recebeu alta hospitalar no 14º dia de internação, sem uso de antimicrobianos, com desaparecimento da nodulação cervical após um mês. Aos dois meses de acompanhamento ambulatorial, foram realizados laringoscopia direta e exame contrastado oral dinâmico (Videodeglutograma), que não demonstraram a presença de fístula faríngea. Estes exames foram repetidos após quatro meses de evolução e estavam normais. Após seis meses, quando deveria retornar para realização de exames de controle, a paciente perdeu o seguimento.

DISCUSSÃO Em estudo sobre tireoidites, Hendrick5 demonstrou que dos 117 pacientes com esta afecção, 28 (24%) possuíam formas agudas e apenas 6 (5%) desenvolveram abscessos tireoideanos. Segundo Rohondia et al.6, o abscesso tireoideano compreende de 0,1 a 0,7% das afecções cirúrgicas da glândula tireóide. Womach et al. (1944) demonstraram, em cães, a resistência da glândula tireóide contra infecções, que pode ser atribuída a três mecanismos distintos, a saber: exuberante suprimento arterial e drenagem linfática; cápsula fibrosa espessa; e altas concentrações de iodo no parênquima glandular. Como a glândula tireóide não possui comunicação com o meio externo, a origem da infecção sempre foi atribuída à via hematogênica e linfática. Em 1978, Takai et al.7 encontraram em seu estudo 15 pacientes com tireoidite aguda supurativa (TAS), tendo a fístula do recesso piriforme como origem aparente da infecção. Taylor et al.2 demonstraram o acometimento do lobo esquerdo em 83% dos casos, além disso, observaram que 66% ocorriam após infecção das vias aéreas superiores, com chance de recorrência de 39%, sugerindo que, em muitos dos casos relatados anteriormente, uma fístula faríngea não diagnosticada poderia ser a origem do processo. A fístula do recesso piriforme consiste em fístula faríngea interna, sendo a anormalidade mais freqüentemente encontrada em pacientes com TAS14. A disseminação a partir de um ducto tireoglosso patente ou de um cisto tireoglosso infectado foi relatada anteriormente, mas não tem sido descrita nos estudos mais recentes2. Contudo, a infecção pela via hematogênica ou linfática, oriunda de infecções das vias aéreas superiores, ainda é considerada a causa mais comum de infecção tireoideana, embora a fonte de infecção, assim como as vias de disseminação, sejam freqüentemente desconhecidas9. Outros fatores etiológicos descritos são o trauma, como punção por agulha fina10, e trauma por corpo estranho11, entre outros12. Os principais microorganismos isolados são Streptococcus e Staphylococcus2. Outros microorganismos também têm sido relatados como causadores de abscesso tireoideano em pacientes portadores da Síndrome da Imunodeficiência Humana, como a Salmonella tiphy, paratiphy e enteritidis, Haemophilus influenza, Escherichia coli, Acynetobacter, Nocardia, Micobactérias, Brucella e Pneumocystis carinii9. Clinicamente, o abscesso tireoideano inicia-se como processo agudo da região cervical anterior, freqüentemente após infecção de vias aéreas superiores13, faringe ou ouvido médio, podendo estar associado a dispnéia, dor, disfagia e febre. Mais raramente, pode apresentar-se como massa pulsátil e paralisia de prega vocal9. Embora a maioria dos pacientes seja sintomática, casos assintomáticos já foram relatados. Os exames laboratoriais podem demonstrar

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leucocitose e aumento da velocidade de hemossedimentação; áreas de hipocaptação podem estar presentes à cintilografia9,15. Assim, frente a um caso de abscesso tireoideano, anamnese e exame físico minuciosos devem ser realizados, além de exames radiológicos, como a ultra-sonografia cervical e, preferencialmente, a tomografia computadorizada4. A ressonância nuclear magnética pode ser útil, mas apresenta menor resolução na identificação das fístulas faríngeas quando comparada à tomografia, porém, em todos esses métodos de imagem, é fundamental a avaliação por médico radiologista experiente4,10.O esofagograma baritado pode ser utilizado para a investigação de fístula do recesso piriforme, mas deve-se aguardar o tratamento da infecção e a melhora do processo inflamatório, visto que o edema local pode ocultar o trajeto fistuloso durante a fase aguda. A laringoscopia direta também pode identificar o orifício fistuloso no recesso piriforme4. Segundo Taylor et al. (1982), o uso da punção foi útil em 43% dos casos por eles estudados, para identificação de supuração e exames microbiológicos2, porém, nos casos cuja punção não obteve adequada coleta de material, o diagnóstico só foi realizado no ato operatório. Em virtude da possibilidade de alterações hormonais, ou seja, hipotireoidismo ou hipertireodismo transitórios associados à TAS, é recomendada a dosagem de hormônios tireoideanos no início do quadro clínico, até 12 meses2. As complicações relacionadas à TAS são raras e compreendem: ruptura espontânea para a traquéia e esôfago, extensão do abscesso para outros espaços cervicais e mediastinais, sepse, trombose da veia jugular interna, compressão da traquéia, hipertireoidismo, hipotireoidismo e abscesso tireoideano recorrente9, sendo este último, ocorrência presente em até metade dos casos associados às fístulas do seio piriforme. Embora Szabo e Allen17 (1989) acreditem ser esta afecção autolimitada, o tratamento de escolha para os abscessos tireoideanos é a drenagem ou ressecção cirúrgica através de pequena incisão com a colocação de dreno, aliada à antibioticoterapia intravenosa de amplo espectro2,9. Alguns autores advogam o tratamento apenas com antibióticos, indicando a cirurgia na sua falha16. Contudo, desde 1950, menos de 20% dos abscessos de tireóide foram tratados sem antibióticos ou sem cirurgia, com uma taxa de sobrevivência extraordinariamente alta9. Recentemente, Yeow et al.18 (2001) relataram 87% de cura em pacientes com abscessos cervicais pequenos e uniloculados tratados por punção por agulha e drenagem por cateter, sendo evitada a drenagem cirúrgica aberta nestes casos. No caso relatado, acreditamos que a fonte da infecção foi hematogênica, sendo o Haemophylus sp e Streptococcus pneumoniae (identificados à cultura) oriundos das vias aéreas superiores, visto a não detecção de fístula faríngea nos exames radiológicos realizados após resolução do processo agudo, além de duas laringofaringoscopias diretas executadas por médicos experientes. Também não foi observada a recorrência do abscesso tireoideano durante o período de seguimento ambulatorial. Dessa forma, a punção esvaziadora por agulha, com finalidade inicial de coleta de material para estudo microbiológico, foi efetiva no que diz respeito à drenagem do abscesso tireoideano, propiciando a boa evolução do caso e não justificando mais a drenagem cirúrgica aberta.

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CONCLUSÃO O abscesso tireoideano, complicação da tireoidite aguda supurativa, pode ser causado por disseminação hematogênica de infecções das vias aéreas superiores, porém, a possibilidade de fístula faríngea como fator etiológico deve ser considerada. A punção esvaziadora de abscesso tireoideano associado à antibioticoterapia intravenosa pode ser utilizada como terapêutica em casos não complicados e selecionados, desde que haja condições de acompanhamento clínico rigoroso, para que, caso seja necessário, possamos prontamente proceder a drenagem cirúrgica aberta.

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