Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela

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Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela1 Abuse of rights: new perspectives between legality and “meritevolezza”

EDUARDO NUNES DE SOUZA

1. Introdução. 2. Desenvolvimento histórico do instituto. 3. Critérios de aferição do abuso no Código Civil de 2002. 3.1. O fim econômico e social do direito. 3.2. O princípio da boa-fé objetiva. 3.3. Os bons costumes. 4. Situações jurídicas subjetivas passíveis de abuso. 5. Abuso como juízo de valor sobre o exercício dos direitos. 5.1. Estrutura e função das situações jurídicas subjetivas. 5.2. Controles negativos do exercício das situações jurídicas. Ato ilícito e abuso do direito. 5.3. Controle positivo do exercício das situações jurídicas. Merecimento de tutela. 6. Perspectivas da aplicação do abuso às situações existenciais.

«C’est sans doute un terrible avantage que de n’avoir rien fait — mais il ne faut pas en abuser» (Antoine de Rivarol)

Resumo: O presente trabalho busca lançar novas luzes sobre o instituto do abuso do direito, identificando sua atual posição no quadro geral de mecanismos de controle valorativo das situações jurídicas subjetivas, como degrau intermediário entre o juízo (negativo e de natureza estrutural) de simples licitude e o juízo (positivo, relacionado à promoção da função social) do merecimento de tutela. Nesse sentido, apresenta-se o abuso como exercício contrário à função, vale dizer, à síntese de interesses que qualifica a situação jurídica subjetiva. Afirma-se a responsabilidade pelos danos advindos do abuso baseada no critério da culpa normativa, apresentam-se as consequências in natura do ato abusivo, e apresentam-se as potencialidades do instituto em sede de situações jurídicas existenciais. Adota-se como marco teórico a escola do direito civil-constitucional, que melhor congrega, em sua doutrina, as duas principais preocupações que orientaram a produção deste trabalho: formalmente, o esforço de reordenação sistemática e, materialmente, a efetiva promoção dos valores que guiam nosso ordenamento.

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O autor gostaria de agradecer pela imprescindível orientação do Prof. Gustavo Tepedino, pelas

preciosas sugestões da Profª. Milena Donato Oliva, e pelas perguntas insuperáveis da Profª. Maria Celina Bodin de Moraes — três privilégios imerecidos dos quais abusou para a elaboração deste trabalho.

1948.12-2 RTDC-50

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Palavras-chave: Abuso do direito. Situações jurídicas subjetivas. Análise funcional. Exercício de posições jurídicas. Abstract: The present work seeks to shed new lights over the institute of abuse of rights, identifying its current position in the general frame of axiological control mechanisms over subjective juridical situations, as an intermediary step between the (negative, structure-centered) judgment of mere lawfulness and the (positive, social-function-promoting) judgment of meritevolezza. Accordingly, the abuse of rights is presented as the exercise against the function, that is, the synthesis of juridical interests that qualifies the subjective juridical situation. The responsibility for damages deriving from the abuse is affirmed on an objective concept of fault basis, and the in natura consequences of abusive acts are presented, as well as the potentialities of this institute when it comes to non-patrimonial juridical situations. This work adopts as its theoretical mark the diritto civile-costituzionale school, which best congregates, in its doctrine, the two main concerns that have directed it: in the formal field, the efforts of systematical restructuring and, in the material field, the effective promotion of the values that guide our juridical system. Keywords: Abuse of rights. Subjective juridical situations. Functional analysis. Exercise of juridical positions.

1. INTRODUÇ‹O

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A teoria do abuso do direito foi considerada, por muito tempo, um dos mecanismos mais eficazes de controle valorativo do exercício de posições jurídicas. Seu espírito inovador e moralizador da visão que o Direito Civil conservara até então do direito subjetivo (expressão máxima do poder da vontade individual tutelado por lei) parecia tão necessário à civilística brasileira que sua base legal era extraída, sob a égide do Código Civil de 1916, de interpretação a contrario sensu do dispositivo sobre exclusão da ilicitude pelo exercício regular de direito. Na lição de San Tiago Dantas, o abuso do direito tem muito este papel técnico, de antecipar as inovações, porque vai revelando, através da atividade dos magistrados, o desajustamento entre a norma jurídica e as situações novas apresentadas pela vida. O legislador, tomando conhecimento do desajustamento, não tarda a consagrar numa norma nova a proibição que o magistrado tinha feito, algumas vezes, lançando mão da teoria do abuso.2

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SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil: Teoria Geral. 3. ed. rev. e

atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 320. No direito português, MENEZES CORDEIRO é enfático: “O abuso do direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do

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Trata-se de instituto, porém, que sempre trouxe mais incertezas do que segurança à civilística.3 No direito pátrio, antes da promulgação do Código Civil de 2002, esteve atrelado ao ato ilícito e à intenção de prejudicar terceiros,4 muito embora a melhor doutrina já previsse seu desenvolvimento autônomo e sua objetivação.5 De parte as dificuldades em se lhe reconhecer autonomia científica, a teoria do abuso floresceu na prática diária dos tribunais brasileiros, impulsionada por prementes necessidades da análise de casos concretos, da mesma forma como surgira e se desenvolvera alhures.6 E mesmo os autores que criticam dogmaticamente o instituto não ignoraram sua relevância prática: A concepção de abuso de direito é construção doutrinária tendente a tornar mais flexível a aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de

Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes. Até hoje, não se encontrou melhor. [...] Há que usá-lo sempre que necessário” (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Vol. I, Tomo I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 248). 3

A insegurança resultava, em última análise, da resistência da doutrina em admitir a relatividade dos

direitos: “Trata-se, com efeito, de desarmar o titular dum direito, e, por conseguinte, tratar de maneira diferente direitos objetivamente iguais pronunciando uma espécie de decadência contra o que é exercido imoralmente. Não se trata dum simples problema de responsabilidade civil, mas duma questão geral de moralidade no exercício dos direitos” (RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis. 3. ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 168). 4

Na lição do Prof. Caio Mário da Silva PEREIRA: “Em sua maioria, os autores situam a teoria do abuso

do direito no campo da responsabilidade civil por ato ilícito, atentando em que na noção fundamental deste reside o procedimento contrário ao direito. Argumenta-se, então, que o titular de um direito subjetivo deve conduzir-se no seu exercício até o ponto em que não o transforme em causa de prejuízo a outrem, desnecessário à sua utilização, ou ultrapassando os seus limites regulares” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 274). 5

Em obra de 1990, analisava Caio Mário da Silva PEREIRA que a teoria do abuso, “de iure condendo,

assumirá a categoria de um instituto autônomo. [...] Num estágio final, é de se prever que, estruturada a teoria do abuso de direito como instituto autônomo, marchar-se-á para o critério de apuração objetiva” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, op. cit., p. 275). 6

“A noção de abuso de direito, embora triunfante na doutrina como na jurisprudência, assim como

em alguns códigos, todavia não é um assunto pacífico. Sérias são as controvérsias que a envolvem, e muitas as obras publicadas em torno de tão árduo assunto. Três são os pontos fundamentais e causadores de atrito, consoante a opinião de Markovitch: a) a sua definição; b) a sua posição num dado sistema jurídico; c) a pesquisa do critério que deve caracterizá-lo” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, vol. I, p. 526).

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corresponder às aspirações sociais da atualidade. Trata-se de um conceito amortecedor. Sua função precípua é aliviar os choques frequentes entre a lei e a realidade. No fundo, técnica de reanimação de uma ordem jurídica agonizante, fórmula elástica para reprimir toda ação discrepante de novo sentido que se empresta ao comportamento social. [...] Mas a utilidade prática desse recurso técnico é reconhecida.7 A doutrina do abuso do direito ganhou novo fôlego com a promulgação do Código Civil de 2002, que fez expressa referência ao instituto em seu art. 187. Sofreu, por outro lado, certo refluxo diante do crescente recurso (não raro excessivo ou mesmo desnecessário) ao princípio da boa-fé objetiva, ao qual o Código de 2002 aludiu no próprio art. 187, como parâmetro de aferição do exercício abusivo. Tamanha se revelou a força argumentativa do princípio, e tantas foram as esperanças de inovação e arejamento do Direito Civil tradicional nele depositadas, que a doutrina e, sobretudo, a jurisprudência passaram a invocá-lo em ocasiões das mais diversas — por vezes sem qualquer fundamentação e como justificativa genérica de decisões que, em verdade, se baseavam, quando muito, em juízos de equidade. De parte a referida superutilização do princípio, resulta indiscutível a abrangência da boa-fé objetiva, capaz de incidir sobre as mais diversas situações jurídicas, adaptando-se de forma mais eficaz ao avanço veloz das relações sociais que uma regra jurídica especificamente prevista para certas relações — característica, aliás, decorrente de sua formulação sob os moldes de cláusula geral.8 Diante de nosso ordenamento atual, axiologicamente orientado por princípios de grande abrangência e flexibilidade como a boa-fé objetiva, caberia indagar

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GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.

120. Remata o autor: “A imprecisão do conceito [de abuso do direito] não tem sido obstáculo para traduzir, pelo menos, a tendência, geralmente aceita, da restrição dos poderes individuais. É que se tornou necessário, como produto contingente da impossibilidade em que se encontraram as formas jurídicas de seguirem de perto o mais acelerado e livre desenvolvimento da vida social, de adaptarem as manifestações desta e seus esquemas tradicionais e preencherem as lacunas deixadas pela aplicação destes” (Ibid., p. 120). 8

Sobre a técnica de cláusulas gerais, esclarece CANARIS: “É característico para a cláusula geral o ela

estar carecida de preenchimento com valorações, isto é, o ela não dar os critérios necessários para a sua concretização, podendo-se estes, fundamentalmente, determinar apenas com a consideração do caso concreto respectivo” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 142).

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se ainda há espaço para um instituto como o abuso do direito, surgido décadas antes do ideal pós-positivista como primitiva tentativa de moralização das relações jurídicas.9 Especificamente sobre a máxima nemo potest venire contra factum proprium (regra tradicional que boa parte da doutrina considera desdobramento da doutrina do abuso do direito), indaga Anderson Schreiber: “por que insistir no seu estudo e aplicação como instituto autônomo? Por que não incorporá-lo integralmente ao conteúdo da boa-fé objetiva, negando autonomia a um degrau principiológico mais concreto de proibição ao comportamento contraditório?”.10 A razão, segundo o autor, reside justamente na ainda excessiva abstração da cláusula geral da boa-fé objetiva: a identificação do princípio de proibição do comportamento contraditório parece ter uma utilidade concretizadora do conteúdo desta cláusula geral. Em outras palavras, a insistência doutrinária no estudo do venire contra factum proprium e de outras figuras [...] como categorias autônomas tem o efeito, ainda que muitas vezes inconsciente, de evitar a superutilização da boa-fé objetiva.11 A mesma lógica se aplica ao instituto, mais amplo, do abuso do direito. Mesmo a doutrina que extrai a vedação ao exercício abusivo da incidência de cláusulas do Código Civil como a boa fé, ou da aplicação direta de princípios constitucionais como a função social, não pode ignorar o caráter eminentemente didático do abuso do direito, elemento concretizador

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do

“[...] a teoria do abuso do direito é toda inspirada pela ideia moral e não penetra no domínio jurídico

senão duma maneira limitada. Quando Saleilles propôs à Comissão de revisão do Código Civil introduzir no título preliminar ao Código e, depois do art. 6º, um texto geral proibindo ao titular dum direito abusar desse direito, viu bem que havia aí, não a simples aplicação duma regra da responsabilidade, mas um princípio geral de direito. E se a Comissão recusou adotar este princípio, é que receou esta intrusão das ideias morais no mundo jurídico” (RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, op. cit., p. 168). 10 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da confiança e venire

contra factum proprium. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 121. 11 SCHREIBER, Anderson, o.l.u.c. 12 José de Oliveira ASCENSÃO, embora negue a existência de um instituto unitário do abuso do direito

no ordenamento brasileiro, afirma que o art. 187 representa, ainda assim, um avanço no “movimento de eticização e substancialização do Direito, em que o novo Código se empenhou. [...] Este é o contributo do art. 187 no domínio do exercício dos direitos” (ASCENSÃO, José de Oliveira. A Desconstrução do Abuso do Direito. In DELGADO, Mário Luiz e ALVES, JONES FIGUEIREDO (coords.). Novo Código Civil: Questões Controvertidas no Direito das Obrigações e dos Contratos. São Paulo: Método, 2005, p. 54).

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conteúdo de cláusulas gerais (ainda) insuficientemente estudadas13 e reiteradamente mal empregadas — tanto por aqueles que pretendem sua aplicação a certos ramos do direito total ou parcialmente incompatíveis com ela,14 quanto por aqueles que expandem imprudentemente seu conteúdo além dos seus limites lógicos de aplicação.15

13 Aduz-se sobre o princípio da boa fé: “Numa opinião difundida, a boa fé, no Direito civil, estaria

fortemente representada na literatura. Não é assim. [...] O estudo do litígio concreto, a comparação de casos similares, a sua dogmatização e a sistematização subsequente formam a base essencial duma investigação sobre a boa fé. Essa necessidade, dificulta, face à especialização dos juristas, o conhecimento juscientífico — logo real — da boa fé por parte dos cultores que, a nível de Ciência do Direito, se pronunciam sobre o tema. A boa fé objetiva, embora jurídica, parece escapar à lei. Na fase anterior à formação de um Direito jurisprudencial seguro, ela implica uma atividade judicante que, sem mediações normativas, deixa face a face o sistema global e o caso a resolver. [...] A boa fé continua indefinida, incapaz de delimitação conceitual” (MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil. 3. reimp. Coimbra: Almedina, 2007, pp. 41-44). 14 Ainda no que concerne à boa fé objetiva, afirma-se que seu domínio é o do direito obrigacional

(MARTINS-COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 456). Daí as dificuldades de sua aplicação a outras áreas. Ilustrativamente: “nas relações existenciais de família, também se deve admitir a aplicação da boa fé objetiva, como mecanismo de controle dos atos de autonomia privada, onde outros instrumentos, mais específicos, já não exercem esta função. Imperativo faz-se, todavia, atentar, sobretudo em tais relações, para a incidência direta dos princípios constitucionais, que, sendo hierarquicamente superiores à tutela da confiança e à boa-fé objetiva, quase sempre antecipam para os conflitos instaurados neste campo uma certa solução. Tal solução pode não apenas se mostrar contrária à solução recomendada pela boa fé objetiva, onde sua base negocial tiver decisiva influência, mas se revela, mesmo em caso de convergência, fundamentada em norma mais elevada sob o ponto de vista da hierarquia do sistema jurídico vigente, característica importantíssima na sua conservação” (SCHREIBER, Anderson. O Princípio da Boa Fé Objetiva no Direito de Família. In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 457). 15 O princípio da boa fé objetiva, expresso na forma de cláusula geral, é dotado de grande flexibilidade,

o que acarreta implicações diretas sobre os limites e condições de abertura de nosso sistema jurídico. Isso porque o preenchimento do conteúdo das cláusulas gerais exige verdadeira reformulação da teoria das fontes do direito, a se reconhecerem critérios de validade “extra-positivos” (tais como a justiça ou a natureza das coisas), subsidiários à lei e, em geral, apoiados no substrato juspositivo (CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, op. cit., pp. 118-119). Nessa perspectiva, a cláusula geral da boa fé encontra claros limites lógicos, e sua mera invocação pelo julgador não configura argumento legítimo em toda e qualquer hipótese, sem embargo da abertura que lhe é inerente.

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Nessa ótica, embora o recurso aos princípios seja inerente à metodologia civil-constitucional16 — na qual o juízo de merecimento de tutela desponta como a instância mais evoluída de controle do exercício de posições jurídicas —, não se pode refutar a utilidade do instituto do abuso do direito.17 A noção de exercício abusivo não apenas contribui para a concretização desses princípios, como também permite o controle valorativo do exercício em casos nos quais o merecimento de tutela — ao menos em sua formulação mais diretamente ligada ao cumprimento da função social — não conduz a solução pacífica.

2. DESENVOLVIMENTO HISTŁRICO DO INSTITUTO Em análise preliminar, pode-se definir o abuso do direito18 como o exercício de determinada situação jurídica subjetiva por seu titular de forma anti-social, de tal modo que o direito (rectius, a situação jurídica) em questão não mais cumpra a função ou finalidade que justifica sua tutela jurídica.19 Na lição de San Tiago Dantas:

16 Indispensável a referência a Pietro PERLINGIERI: “Não existem, portanto, argumentos que contrariem

a aplicação direta dos princípios constitucionais: a norma constitucional pode, mesmo sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina jurídica de uma relação de direito civil. Essa solução é a única permitida se se reconhece a preeminência das normas constitucionais — e dos valores por elas expressos — em um ordenamento unitário, caracterizado por esses conteúdos” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 589). Salienta o autor que “o que importa não é tanto estabelecer se em um caso concreto se dê aplicação direta ou indireta (distinção nem sempre fácil), mas sim, confirmar a eficácia, com ou sem uma específica normativa ordinária, da norma constitucional” (Ibid., pp. 589-590). 17 “A aplicação direta dos princípios constitucionais dispensa, na verdade, a invocação de uma categoria

semelhante [ao abuso do direito], mas a noção é útil, sobretudo em ambientes ainda inóspitos ao caráter normativo e à aplicabilidade direta das normas constitucionais” (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da confiança e venire contra factum proprium, op. cit., p. 115). 18 Diz-se abuso do direito, e não de direito: “A expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado

de fato’ e ‘estado de direito’; porém não ‘abuso de fato’ e ‘abuso de direito’. Abusa-se de algum direito, do direito que se tem. O Código de Processo Civil fala de ‘abuso de direito’, expressão que aparece em alguns juristas desatentos à terminologia científica e indiferentes à sua exatidão” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, t. LIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 71). 19 Poder-se-ia falar em “merecimento de tutela”, vez que a noção de abusividade guarda evidente

relação com o controle de admissibilidade de condutas à luz do ordenamento. Não há, porém, no juízo

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Todas as situações jurídicas, que nós conceituamos como direito subjetivo, são reconhecidas e protegidas pela norma, tendo em vista uma finalidade que poderemos chamar a finalidade econômica e social do direito. [...] Acontece, porém, que o titular de um direito, em vez de exercê-lo no sentido destas finalidades, exerce-o no sentido de finalidade oposta, contrariando, expressamente, a finalidade para a qual o direito foi instituído. Temos, então, o exercício anti-social do direito e este exercício anti-social é que nós conceituamos como abuso do direito.20 A concepção de exercício anti-social aqui apresentada mantém relação direta com o período histórico em que o instituto do abuso fundou suas raízes: trata-se de reação ao caráter eminentemente individualista que inspirou a elaboração do Code Napoléon e das demais codificações ao longo do século XIX.21 O contexto econômico e as transformações sociais verificadas no período posterior à Revolução Industrial, com o estabelecimento de graves desigualdades (contrastantes com o paradigma liberal da isonomia formal),22 ensejaram a

valorativo pressuposto pelo abuso uma correspondência perfeita com o “merecimento de tutela” (meritevolezza) referido no item 5.3, infra, motivo pelo qual se evitou o uso da expressão. 20 SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil, op. cit., p. 319. 21 “La législation napoléonienne, toute impregnée du souffle révolutionnaire, était appelée à se cristal-

liser autour des axiomes fondamentaux qui venaient d’être érigés [...]: au premier rang de ces vérités premières, figurait l’intangibilité de la personnalité humaine dont le libre essor et l’épanouissement paraissaient impliquer la reconnaissance de droits individuels sacrés, imprescriptibles et, en principe du moins, illimités; l’homme, qui est à lui-même sa propre raison suffisante, qui est, dans la doctrine Kantienne, une fin en soi, doit pouvoir exercer souverainement, indéfiniment les prerrogatives qui constituent la marque et l’affirmation de sa personnalité; il ne saurait en abuser. Conception procédant d’idées philosophiques infiniment respectables et généreuses, mais conception tout artificielle, reposant sur une fiction inadmissible: l’isolement de l’homme” (JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Rélativité. Paris: Dalloz, 1927, pp. 6-7). Remata o autor: “la grande majorité sinon l’unanimité des civilistes ont pris parti en faveur de la rélativité des droits et contre la doctrine absolutiste à laquelle école philosophique du XVIIIe siècle, les lois de la période révolutionaire et la grande codification napoléonienne avaient donné une faveur passagère qu’expliquait seul un désir de réaction violente contre le passé mais qui venait se heurter, en tant que doctrine permanente, à l’essence même du droit et à sa mission sociale” (Ibid., pp. 8-9). 22 “Aquilo que inicialmente representou um avanço — pois o Direito, com tal noção, passou a ser a

mais poderosa arma contra o absolutismo do Estado —, com o passar do tempo mostrou-se de grande inconveniência em face de nova realidade socioeconômica, realidade, essa, que demonstrou serem

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busca, na seara jurídica, de critérios limitadores do exercício de direitos antes tidos como absolutos — dentre os quais o mais emblemático de todos seria a propriedade. O instituto do abuso (adotado por boa parte dos ordenamentos romano-germânicos)23 difundiu-se amplamente a partir de construção jurisprudencial surgida na França a partir da segunda metade do século XIX.24 Tornou-se notório o caso Clément-Bayard, no qual certo proprietário rural, vizinho ao hangar de um fabricante de dirigíveis, edificou em seu terreno, sem qualquer interesse útil, enormes torres de madeira com hastes de ferro pontiagudas, apenas para criar manifesto perigo para a manobra das aeronaves na propriedade contígua. Sobrevindo acidente com um dos dirigíveis, o fabricante das aeronaves pediu perdas e danos e a demolição das construções. O construtor das torres alegou como defesa o caráter absoluto da propriedade sobre seu terreno; o tribunal, porém, deu provimento à pretensão do dono do hangar, com base na teoria do abuso do direito.25 Embora a doutrina busque raízes bem mais antigas para a teoria do abuso — havendo autores que identificam a origem do instituto na máxima neminem laedere do direito romano26 ou na vedação aos atos emulativos já conhecida pelos juristas medievos27 — o

relativos não só o Poder do Estado, mas também os direitos conferidos ao homem” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 151). 23 Trazem dispositivos relacionados à matéria, dentre outros: o ABGB (§1.295, II), o BGB (§226), o

Código Civil suíço (art. 2º), o Código Civil português (art. 334), o Código Civil espanhol (art. 7º), o Código Civil peruano (art. 1º), o Código Civil grego (art. 281). 24 Relata SERPA LOPES que “a configuração moderna da noção de abuso do direito nasceu em 1890,

desafiando os últimos redutos do individualismo, nas mãos de Larombière, Demolombe e Laurent. Na elaboração da ideia, a jurisprudência antecedeu a doutrina, em razão do que passou o tema a preocupar esta última, nascendo daí as teses de Josserand e quase simultaneamente a de Saleilles, que foram as pedras angulares da construção que hoje se apresenta magnífica, embora ainda bastante controvertida” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, op. cit., p. 535). 25 O caso (julgado pelo Tribunal Civil de Compiègne e pela Corte de Amiens em 1913 e pela Câmara

de Requerimentos em 1915) é relatado por JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Rélativité, op. cit., pp. 25-26. Também célebre foi o caso julgado pela Corte de Colmar (1855) envolvendo o dono de uma casa que fez construir sobre seu telhado chaminé de altura imponente. A obra, sem qualquer utilidade para ele, destinava-se a fazer sombra sobre a casa do vizinho, que recorreu à justiça para fazer cessar esse dano “permanente e malicioso”, e que obteve a demolição da chaminé. Entendeu-se que o exercício regular do direito caracterizava-se pelo “interesse sério e legítimo” e pela utilidade pessoal (Ibid., p. 24). 26 Confira-se a lição de Ebert CHAMOUN: “A violação da norma jurídica não se verifica [...] quando se

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caso dos dirigíveis serve a evidenciar, na gênese do instituto, uma obra eminentemente jurisprudencial.28 O caso demonstra, ainda, que o âmbito original de aplicação da teoria era o dos direitos patrimoniais (notadamente os direitos reais) e da responsabilidade civil subjetiva (exigindo-se a intenção do agente em prejudicar terceiros).29

exerce um direito próprio, caso em que não há ofensa ao direito alheio, embora se prejudique o interesse alheio (qui iure suo utitur neminem laedit). Contudo, é certo que já no direito clássico se dizia que o exercício de um direito não deve trazer prejuízos a outrem (male enim nostro iure uti non debemus) (summum ius summa iniuria) e o direito justiniâneo firmara, acerca das relações de vizinhança, o caráter ilícito do exercício do próprio direito com o intuito de causar prejuízo a outrem (ato emulativo). Esses princípios fazem supor que os romanos já tivessem concebido a teoria do abuso do direito” (CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, pp. 107-108). 27 “Precedente imediato da teoria do abuso de direito é a opinião dos juristas medievais sobre a ilicitude

dos atos de emulação, aqueles que o proprietário ou o vizinho pratica sem qualquer vantagem econômica mas com o objetivo de prejudicar terceiros” (AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 208). No mesmo sentido, LIMA, Alvino. Culpa e Risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, pp. 223-224. Nos sistemas da Common Law a repressão aos atos abusivos também é tradicionalmente associada às relações de vizinhança; veja-se, exemplificativamente: “In our law of torts, there is a tort or quasi-delict called nuisance. It corresponds, roughly, to what civil law systems name ‘neighborhood disturbances’ [...]. In 1936, a case of blatant abuse of rights came before the High Court in London. The plaintiff had a silver fox farm. He bred silver foxes to sell them. His neighbor hated the foxes and the farm, and to ruin the farm he decided to fire his gun near the border of his land when female foxes were pregnant, in order to make them abort. [...] His malice made his behaviour into a tort of nuisance — thus, it could be stopped by the law” (DEBRUCHE, Anne-Françoise. “What is ‘equity’? Of Comparative Law, Time Travel and Judicial Cultures”. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, out.-dez./2008, vol. 36, p. 244). 28 A indicação da atividade jurisprudencial francesa como marco inicial para a teoria do abuso do direito,

a que alude boa parte dos autores que tratam do assunto (por todos: CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito, op. cit., p. 51; CARDOSO, Vladimir Mucury. O abuso do direito na perspectiva civil-constitucional. In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 62), não deve ignorar que a preocupação acerca do exercício regular dos direitos já existia também na doutrina e mesmo no direito positivo de outros países. Nesse sentido, por exemplo, o ABGB e o BGB, datando do século XIX, já traziam dispositivos relativos aos atos emulativos. 29 Relata CUNHA DE SÁ que, “através das hipóteses concretas que lhes foram sendo submetidas, os

tribunais franceses recorreram, umas vezes, à ideia dos limites do próprio direito exercido (casos Lingard, Mercy, Lecante e Grosheintz, os três primeiros relativos a fumos e maus cheiros de fábricas, no âmbito das relações de vizinhança, e o último sobre escavações que provocaram o aluimento do terreno vizinho),

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Partindo dessa concepção, o abuso do direito passaria por longa evolução, até a sua expressa previsão, no direito positivo pátrio, pelo Código Civil de 2002. O estudo dessa evolução deve ser feito em dois momentos distintos: primeiramente, abordando-se o debate sobre a existência do abuso como instituto autônomo; em uma segunda etapa, assumida a autonomia científica do instituto, identificando-se critérios para sua caracterização. Congregam-se sob a alcunha de negativistas as teorias que, pelos mais variados motivos, não reconhecem qualquer possibilidade de exercício abusivo de situações subjetivas, ou ao menos, negam autonomia dogmática ao instituto do abuso. Possivelmente o opositor mais célebre da doutrina do abuso do direito, Marcel Planiol afirmava tratar-se a expressão “ato abusivo” de verdadeira contradictio in terminis: se há abuso, já não mais haveria direito.30 O autor entendia despicienda a noção de abuso, vez que os limites ao exercício dos direitos poderiam ser, legítima e objetivamente, estipulados pela lei, evitando-se assim delegar a avaliação da regularidade do exercício ao arbítrio do juiz.31

outras vezes à intenção de prejudicar com que o exercício do direito era efetuado” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 52-53). 30 “Nier l’usage abusif des droits, ce n’est pas tenter de faire passer pour permis les actes dommageables

très varies que la jurisprudence a reprimés; c’est seulement faire cette observation que tout acte abusif, par cela seul qu’il est illicite, n’est pas l’exercice d’un droit, et que l’abus de droit ne constitue pas une catégorie juridique distincte de l’acte illicite. Il ne faut pas donc être dupe des mots: le droit cesse ou l’abus commence, et il ne peu pas y avoir usage abusif d’un droit quelconque, par la raison irréfutable qu’un seul et même acte ne peut pas être tout à la fois conforme au droit et contraire au droit” (PLANIOL, Marcel e RIPERT, Georges. Traité Élémentaire de Droit Civil. Tome II. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1952, p. 344). Na análise de CUNHA DE SÁ, “a contrariedade, apontada por Planiol, ao fato de o mesmo ato ser simultaneamente conforme ao direito e contrário ao direito, isto é, proibido e permitido, desfaz-se, pois, quando se afaste previamente o dogma de que entre o ‘permitido’, como sinônimo de lícito, e o ‘proibido’, como sinônimo de ilícito, não pode haver juridicamente um terceiro termo. [...] Neste ponto de vista, não deixa de ser sintomático que a mesma afirmação de Planiol, ‘o direito cessa onde começa o abuso’, seja agora enunciada, não já como condenação definitiva da figura de abuso, mas como justificação da própria proibição do exercício abusivo e como confirmação da relatividade dos direitos” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 327-333). 31 “Une telle doctrine, en accord avec le développement des idées socialistes, a incité les tribunaux à

déclarer fautifs des actes dommageables pour autrui qui, antérieurement, n’étaient pas générateurs de responsabilité. Mais, liée comme elle l’a été, à la campagne ménée par Duguit contre la notion de droit subjectif, elle constitue une erreur, à moins qu’on n’entende renoncer à toute liberté individuelle. [...] Quant à donner au juge le pouvoir de déclarer illicite l’exercice d’un droit, comme contraire à son but social, l’exemple des tribunaux de l’Allemagne national-socialiste et de la Russie communiste, où les

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Outras teorias de menor repercussão foram formuladas em oposição à autonomia do abuso do direito.32 Certa corrente entendia que o abuso configurava mera questão interpretativa, nada mais que a tarefa conferida ao julgador de adaptar a previsão normativa abstrata à realidade social, por meio da delimitação estrutural das prerrogativas decorrentes de cada situação jurídica subjetiva.33 Se, porém, a identificação do ato abusivo torna-se possível apenas a partir da interpretação da norma em face do fato concreto, por outro lado a atividade interpretativa também deve perpassar toda e qualquer qualificação jurídica.34 Tal entendimento, portanto, não permite, na civilística atual, afastar existência do abuso, sob pena de se negar autonomia a tantas outras categorias, como a do próprio ato ilícito.

tribunaux ont précisément reçu cette mission, montre le danger pour la liberté individuelle” (PLANIOL, Marcel e RIPERT, Georges. Traité Pratique de Droit Civil Français. Tome VI. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1952, pp. 802-803). A mesma preocupação pode ser encontrada na obra de seu sucessor, Georges RIPERT, que, conquanto reconhecesse a existência do abuso do direito, restringia o conceito à conduta dirigida a prejudicar terceiros; o abuso não restaria caracterizado pelo mero exercício disfuncional, pois, do contrário, “o motivo ilegítimo precedendo o exercício do direito viciaria o ato praticado, tal como a causa ilícita anterior ao contrato basta para o anular. O ato seria objetivamente irrepreensível, mas o juiz apreciaria se o autor visava um fim útil e razoável. Esta concepção oferece o temível perigo da verificação do exercício dos direitos arbitrariamente feita pelo juiz [...] Para que esse grau superior possa ser atingido sem comprometer a segurança na ação que deve conferir o direito, é preciso esperar que a técnica jurídica destaque as regras, permitindo apreciar os fins visados no exercício dos direitos” (RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, op. cit., pp. 188-189). 32 Cabe fazer referência ao entendimento de Duguit, que negava existência à própria noção de direito

subjetivo, e à tese de Rotondi, segundo o qual o abuso representaria fenômeno sociológico, não já jurídico (a respeito, v. CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 294 e ss.). 33 Esta corrente doutrinária foi assim descrita por CUNHA DE SÁ: “Devidamente interpretada, em

conjugação com a proibição genérica do ato abusivo, seria a própria norma atributiva de um direito subjetivo que condenaria todo o ato de exercício que ultrapassasse os limites que o seu real sentido proíbe ou não prevê. O antídoto para o abuso do direito estaria, pura e simplesmente, na correta interpretação de tal norma” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 342). 34 “A compreensão dos textos jurídicos é um processo que visa alcançar uma forma de conhecimento:

sem esse processo cognoscitivo (interpretação) não existe direito” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 599). Remata o autor: “O conteúdo não se forma no momento da produção do texto por parte do legislador: a produção é uma fase à qual é preciso flanquear outra, ou seja, a recepção do texto por parte do destinatário, o intérprete. A positividade não deriva de um universo transcendente, mas do fato de que o direito é ‘cognoscível para o observador’. [...] a positividade do direito é a sua interpretabilidade” (Ibid., pp. 601-602).

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Teoria intermediária em direção à afirmação do abuso investigava a normalidade do dano. Seu mais eminente defensor foi René Savatier,35 para quem o abuso somente seria verificável nas hipóteses de “direitos de prejudicar a outrem” (categoria por ele prevista na qual o dano a terceiros seria ínsito e inevitável, vale dizer, “normal”: tratar-se-ia dos direitos de concorrência, de defesa, de vizinhança, de expressão do pensamento e, por fim, dos direitos de abstenção). Ultrapassados os limites impostos pela equidade ou pela lei para os danos produzidos por esses direitos, haveria abuso. Como, porém, nesses casos, já não haveria mais direito de prejudicar, tratar-se-ia de responsabilidade pelo dano culposo, não se analisando propriamente a irregularidade do exercício do direito.36 Dentre as correntes afirmativistas subjetivistas, logrou grande repercussão a doutrina de Georges Ripert, que visualizava no abuso do direito uma questão de moralidade (inserida, porém, apenas parcialmente no âmbito jurídico). Quando o titular de certo direito o exercesse de modo normal e habitual, mas inspirado pelo desejo de causar prejuízo a outrem, a imoralidade que lhe serviu de móbil justificaria desarmá-lo de seu próprio direito, não lhe cabendo invocar a máxima neminem laedit qui suo iure utitur.37 Apenas este elemento moral (a intenção de prejudicar), porém, é ponderado pela ordem jurídica, ao passo que outras

35 E também apoiada por autores como Charmont, Bonnecase, Lalou e Carbonnier, apud CUNHA DE

SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 350-352. 36 “On ne peut donc pas parler exactement d’abus d’un droit, quand son dépassées les limites d’équité

des droits de concurrence, de défense, de voisinage, de renseignements ou d’abstention. [...] Il peut être commode de parler, tout de même, d’abus de ces droits; mais l’expression est, en ce cas, impropre. Du moment que la limite du droit d’équité est dépassée, toute faute, même d’imprudence ou de négligence, rend responsable, sans qu’on ait besoin de la modeler sur la notion d’abus. [...] Mais, de toute manière, l’abus d’un droit suppose, en matière de responsabilité civile, que la nature de ce droit permette de nuire à autrui. C’est donc, par une confusion courante, qu’il est question d’abus du droit, à propos de droits dont la nature propre ne permet nullement de nuire à autrui. [...] Le dommage que l’on cause à l’aide de sa propriété, n’est pas plus légitime que celui pour lequel on se sert d’un objet dont on n’est pas propriétaire” (SAVATIER, René. Traité de la Responsabilité Civile en Droit Français. Tome I. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1951, pp. 51-52). 37 “Poder-se-ia pôr a coberto com a regra Neminem laedit... mesmo quando tivesse lesado alguém.

Mas o seu ato foi inspirado pelo desejo de prejudicar alguém; a intenção maléfica muda então o caráter do ato” (RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, op. cit., pp. 173-174). O aspecto subjetivista da teoria é evidente: “Será preciso que o juiz reconheça a intenção de prejudicar. Esta busca da intenção oferece dificuldades insuperáveis? Não é mais arbitrária que a análise da fraude ou da boa fé. É uma quimera querer criar um direito civil puramente objetivo e julgar os fatos sem se preocupar com as intenções” (Ibid., p. 176).

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finalidades imorais, mas úteis para o titular, não são reputadas abusivas. A tese não pressupõe, portanto, um dever geral de agir de acordo com finalidade moralmente legítima, de modo a evitar que caiba ao juiz o exame dessa finalidade.38 Como se percebe, as teorias subjetivistas (Georges Ripert, Jean Dabin e outros) aproximaram o abuso ao ato emulativo, ao mesmo tempo em que identificaram no elemento moral um limite externo, não jurídico, ao exercício das situações jurídicas. Tratou-se da primeira tentativa de acomodação das preocupações valorativas que surgiam em sede jurisprudencial aos modelos tradicionais dos direitos absolutos, que não comportavam restrições ao seu exercício. Caberia às teorias objetivistas trazer para o interior da ordem jurídica os padrões valorativos necessários à aferição do abuso. Neste ponto, a teoria finalista de Louis Josserand tornou-se um marco decisivo, ao levar em conta que todos os direitos tinham um espírito, uma função social que representava seu “curso natural” e contra a qual seu exercício não poderia postar-se.39 Esse espírito poderia ser classificado em três categorias: direitos altruístas, direitos egoístas e direitos não causados, conforme as prerrogativas que conferissem a seus titulares devessem ser exercidas no interesse de terceiros, no interesse próprio ou sem qualquer justificação, respectivamente.40 Em

38 A crítica é de CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 365 e ss. Com efeito,

RIPERT rejeitava a tese da relatividade dos direitos, que para ele tendia “a colocar todas as ações humanas sob a verificação do juiz e a exercer essa verificação, menos sobre o valor moral dos atos, que sobre o seu valor econômico e social. Tentei, noutro lugar, mostrar o perigo dessa teoria. Ela tende a destruir a ideia de direito subjetivo e esta ideia está longe de ser anti-social, é indispensável à manutenção da civilização ameaçada pelo estatismo e pelo comunismo. O absolutismo do direito individual não tem nada, em si, de condenável, pois não é mais do que a tradução jurídica do legítimo desejo de poderio e de liberdade. A única coisa que se deve exigir do direito é que refreie o desejo de prejudicar, ou mesmo a indiferença demasiado absoluta para com o interesse de outrem. O poder não deve ser maléfico. Desde que se tira à teoria do abuso dos direitos o seu fundamento moral cai-se nas mais perigosas fantasias da opressão social” (RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, op. cit., p. 190). 39 “[...] il existe un esprit des lois et, plus généralement, un esprit du droit entendu objectivement et

dans son ensemble, ainsi doit-on admettre l’existence d’un esprit des droits, inhérent à toute prérogative subjetive, isolément envisagée, et que, pas plus que la loi ne saurait être appliquée au rebours de son esprit, pas plus qu’un fleuve ne saurait modifier le cours naturel de ses eaux, nos droits ne peuvent se réaliser à l’encontre et au mépris de leur mission sociale, à tort et à travers; on conçoit que la fin puisse justifier les moyens, du moins lorsque ceux-ci sont légitimes en eux-mêmes; mais il serait intolérable que des moyens, même intrinsèquement irréprochables, puissent justifier toute fin, fût-elle odieuse et inconcevable” (JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., p. 10). 40 JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., pp. 388 e ss.

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seguida, Josserand formulou o postulado da relatividade dos direitos, com base em sua origem social, para concluir que mesmo os direitos de espírito mais egoísta devem deferência ao interesse da comunidade.41 Tal noção seria crucial para a formulação finalista do abuso do direito recepcionada pelo Código Civil de 2002.42 Essa breve exposição da evolução histórica do conceito de abuso, embora incapaz de esgotar os posicionamentos já formulados sobre o instituto, parece suficiente para lançar as primeiras luzes sobre o conceito do exercício abusivo, que se buscará precisar a seguir.

3. CRITÉRIOS DE AFERIÇ‹O DO ABUSO NO CŁDIGO CIVIL DE 2002

O instituto do abuso do direito, desenvolvido, como exposto acima, nos sistemas estrangeiros ao longo de décadas de esforço jurisprudencial e doutrinário, também ingressou no ordenamento brasileiro a partir de construção hermenêutica. Partia-se, no caso, da interpretação a contrario sensu do art. 160, inciso I do Código Civil de 1916, que dispunha: “Não constituem atos ilícitos [...] os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Dessa previsão depreendia a doutrina que o exercício irregular — leia-se, abusivo — de certo direito seria coibido como ilícito e, assim, geraria o dever de indenizar.43 A constru-

41 “[...] la relativité des droits était postulée de toute éternité par leur origine même: produits sociaux,

ils étaient destinés à faire figure sociale, à peine de renier leur filiation certaine et invariable. [...] De toute façon, les prérogatives, mêmes les plus individuelles et les plus égoïstes, sont encore des produits sociaux, soit dans la forme, soit dans le fond: il serait inconcevable qu’elles puissent, au gré de leurs titulaires, s’affranchir de l’empreinte originelle et être employées à toutes besognes, fussent-elles inconciliables avec leur filiation et avec les intérêts les plus pressants, les plus certains, de la communauté qui les a concédées” (JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., pp. 299-300). 42 “E porque até os egoísmos individuais são postos ao serviço da comunidade, concorrendo para o fim

global da sociedade organizada, todos os direitos subjetivos não são mais, afinal, do que direitos-função [...]. O ato abusivo é, pois, o ato contrário ao espírito ou finalidade da instituição, ou seja, a atuação intrinsecamente anti-social e anti-funcional por ao exercício do direito ter sido imprimida uma direção contrária ou disforme com a função e o espírito desse direito” (CUNHA DE SÁ, F. A. Abuso do Direito, op. cit., p. 412). 43 “O Código Civil, art. 160, I, diz que não constitui ato ilícito o praticado no exercício regular de um

direito reconhecido, e no art. 100, já declara que o exercício normal de um direito não se considera coação. Está nestas proposições o fundamento da teoria do abuso do direito” (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, p. 275). No mesmo sentido

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ção ensejou íntima aproximação entre as categorias do abuso e do ato ilícito, a acarretar, dentre outros efeitos, a quase unânime exigência, em sede jurisprudencial, do elemento culposo para a caracterização do exercício abusivo.44 O Código Civil de 2002 previu a vedação ao exercício abusivo em dispositivo próprio,45 o art. 187, suprindo a omissão do diploma anterior e dissociando, na visão de doutrina majoritária, o abuso do ato ilícito strictu sensu.46 A opção do codificador de 2002 para a definição do abuso do direito buscou conciliar as doutrinas divergentes sobre o instituto.47 Trata-se de redação quase idêntica à do art. 334

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, op. cit., p. 275; LIMA, Alvino. Culpa e Risco, op. cit., p. 270). 44 “Foi só na década da virada para o século XXI que a jurisprudência passou a caminhar — ainda que

em passos vacilantes — no sentido da objetivação do abuso. [...] Mas, mesmo então, nenhuma referência há aos elementos de concreção do abuso que viriam a ser consagrados no Código Civil de 2002, quais sejam, a boa fé, os bons costumes e o fim econômico ou social do direito, situação que até hoje perdura, invocando-se o art. 187, mas fundamentando-se o decidido nos postulados normativos da proporcionalidade e da razoabilidade a rejeição do abuso. Em suma: às vésperas da edição do Código Civil de 2002, o abuso do direito era, na prática brasileira, comparativamente a outros países, uma figura tímida, ainda subjetivada e fundamentalmente assistemática” (MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa Fé. In TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito Civil Contemporâneo: Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 65-67). 45 Embora doutrina majoritária entenda que o art. 187 seja a base positiva do abuso do direito, vale

registrar o eminente entendimento de ASCENSÃO: “Não há nenhum instituto cuja base seja o art. 187 CC/2002. Não só não há base para se admitir um regime comum, por a junção ser meramente causal, como a unificação seria até nociva” (ASCENSÃO, José de Oliveira. A Desconstrução do Abuso do Direito, op. cit., p. 47). O autor aduz que os critérios do art. 187 aplicar-se-iam de maneira diferenciada: os bons costumes e o fim econômico-social podem ser detectados ex officio pelo juiz, o que não ocorre com a boa fé. Alega, ainda, que nem todos os critérios ensejam responsabilidade civil, a obstar sua reunião em instituto único. A unidade do instituto, porém, parece alicerçar-se em parâmetro maior — o exercício disfuncional —, como se verá adiante. 46 Dispõe o artigo: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. 47 “A nova redação, inspirada no Código Civil português, acolhe e sintetiza as diferentes concepções

do abuso de direito, impondo limites éticos ao exercício dos direitos subjetivos e de outras prerrogativas individuais” (CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002. Relativização de direitos na ótica civil-constitucional. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 415).

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do Código Civil português de 1966,48 que, por sua vez, inspirou-se no art. 281 do Código Civil grego de 1946.49 Este último teve por matriz o direito tedesco, daí decorrendo a menção à boa fé objetiva e aos bons costumes, traços característicos da responsabilidade objetiva que a jurisprudência germânica desde cedo atribuiu ao instituto.50 A referência ao fim econômico-social, por sua vez, resgatou a doutrina finalista de Josserand.51 Por fim, a exigência de que o excesso seja “manifesto” foi herdada do art. 2º do Código Civil Suíço de 1907.52

48 “Artigo 334º (Abuso do direito): É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda

manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”. 49 “Art. 281: O exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé,

pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do direito”. 50 “O desenvolvimento do abuso do direito, na doutrina da segunda codificação, que, da proibição da

chicana, levou à conformidade com os bons costumes e, por fim, à boa fé, foi, no entanto, mais complexo. Não ocorreu um aprofundar da doutrina, em termos centrais, isto é, processados a partir e em torno do próprio conceito de abuso. Assistiu-se, antes a uma sedimentação jurisprudencial e, até, doutrinária, de situações tipicamente abusivas. O recurso aos bons costumes e à boa fé intensificou-se em volta dessas situações típicas; no termo dum desenvolvimento setorial marcado pode, então, falar-se em exercício inadmissível de direitos, reportado à boa fé” (MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil, op. cit., pp. 694-695). Note-se que a aferição objetiva do abuso verificou-se sem embargo de sua principal base positiva no BGB aludir exclusivamente aos atos emulativos. Eis o dispositivo, vertido para a língua inglesa: “§226. The exercise of a right is not permitted if its only possible purpose consists in causing damage to another”. 51 Nesse sentido, MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil, op. cit., p. 245: “A referência

à ‘função’ corresponde à visão francesa do instituto”. V., ainda, LOPES, Teresa Ancona. Exercício do Direito e Suas Limitações: Abuso do Direito. In NERY, Rosa Maria de Andrade e DONNINI, Rogério (coords.), Responsabilidade Civil: Estudos em Homenagem ao Professor Rui Geraldo Camargo Viana, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 553: “é a vitória de Josserand em ordenamentos que ele sequer imaginaria”. 52 “Article 2. I — Chacun est tenu d’exercer ses droits et d’exécuter ses obligations selon les règles de

la bonne foi. II — L’abus manifeste d’un droit n’est pas protégé par la loi”. A inserção do advérbio “manifestamente” suscita reações das mais diversas em doutrina. De uma parte, afirma-se que ele gera “de imediato a dúvida sobre seu alcance, ou seja, se diz respeito ao grau ou à quantidade. Em outras palavras, somente será abusivo o ato que excede exageradamente os limites ou basta que tal excesso seja ostensivo, facilmente notado? A negativa se impõe em ambas as hipóteses, eis que tal circunstância não é elemento do ato abusivo e, portanto, basta a inobservância dos limites axiológicos para caracterizá-lo” (CARPENA, Heloísa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., pp. 416-417); por outro lado, aduz-se que a expressão se mostra útil para “impedir o excessivo subjetivismo dos juízes. Caberá

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A busca do conceito final de abuso do direito como exercício disfuncional da situação jurídica deve ter como parada intermediária a análise dos três critérios mencionados pelo legislador de 2002 para a aferição do exercício abusivo.

3.1. O FIM ECONłMICO E SOCIAL DO DIREITO

O primeiro parâmetro aduzido pelo art. 187 do Código Civil como indicador do exercício abusivo de certa situação jurídica subjetiva são os limites impostos pelo seu fim econômicosocial. Trata-se de critério que fala intimamente à noção de exercício disfuncional — a única apta a caracterizar adequadamente o exercício abusivo. Embora não se verifique uma correspondência perfeita entre esta função (econômico-social) e a função que se deve levar em conta para a aferição do abuso,53 certamente foi a proximidade das duas noções que levou o legislador a enunciar este critério.54 Expôs-se na Memória Justificativa do Anteprojeto do Código Civil: O conceito de abuso de direito como seu exercício anti-social abre larga margem ao poder de apreciação do juiz, oferecendo o risco, assinalado por Amiaud, de que o fim econômico ou social de um direito seja interpretado na conformidade das ideias e mesmo das paixões políticas do dia, a que não estão imunes os juízes. Mas esse perigo

ao julgador apontar, em cada caso, os fatos que tornam evidente o abuso do direito, com o que se evitará a temida arbitrariedade, ou o cerceamento do legítimo exercício do direito” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., p. 155). 53 Sobre esta distinção, v. item 5.3, infra. 54 Consignou-se na Memória Justificativa do Anteprojeto do Código: “[...] não há unidade de pensa-

mento na caracterização do abuso de direito. A diversidade de critérios reflete-se nas legislações. Das orientações predominantes, preferiu o Anteprojeto a que mais se ajusta à concepção do Direito correspondente ao espírito do nosso tempo. [...] O critério que melhor o define parece ser o que leva em conta a natureza eminentemente social dos direitos. Aplicado ao direito de propriedade, ajusta-se à sua concepção atual. Se a lei o reconhece para que seja usado com finalidade social, evidente se torna que não pode proteger o ato do proprietário que implique desvirtuamento dessa finalidade. Haverá abuso de direito se o exercício é anti-social, pouco importando que haja, ou não, a intenção de causar dano a outrem” (Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Código Civil: Anteprojetos. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas, 1989, pp. 155-156).

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reduz-se enormemente onde tais ideias ou paixões encontram freio em disposições constitucionais que fixam as bases da ordem econômica e social do país, mediante princípios que a consciência média do povo tem como indispensáveis à normalidade dessa ordem.55 A afirmação vem evidenciar como o critério adotado se coaduna com a metodologia civil-constitucional, a reconhecer que a análise valorativa do exercício de qualquer situação jurídica subjetiva não será arbitrária se estiver orientada pela tábua axiológica constitucional, valores últimos da ordem jurídica inaugurada em 1988, de matriz solidarista e personalista.56 O conteúdo da expressão “fim econômico e social”, porém, resta ainda incerto. Embora ainda vacilante a doutrina,57 parece prevalecer que o codificador de 2002 teria feito alusão ao mesmo princípio da função social que consignou, a respeito dos contratos, no art. 421 e, no que tange ao direito de propriedade, no art. 1.228, §1º.58 Sobre a função social dos contratos, leciona o Professor Gustavo Tepedino:

55 Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, o.l.u.c. 56 “A doutrina do abuso do direito está em sintonia com a mudança da racionalidade jurídica, que se

dirige à superação do ideal de completude do ordenamento, ícone do positivismo e da doutrina liberal, que não encontra guarida no direito civil contemporâneo. [...] Isto porque, se não é dado à lei estabelecer todos os limites ao exercício dos direitos subjetivos, tal papel será melhor confiado aos princípios, que desta forma assumem um maior grau de normatividade, incidindo diretamente nas relações jurídicas privadas” (CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., p. 407). Remata a autora: “Nesta moldura, a doutrina do abuso do direito se ajusta perfeitamente, oferecendo ao julgador a possibilidade de identificar outras hipóteses, além daquelas previstas de forma expressa na lei, que igualmente possam ser qualificadas como condutas antijurídicas, violadoras de princípios jurídicos mutáveis, sensíveis e mais sintonizados com a realidade social” (Ibid., p. 408). 57 Admite José de Oliveira ASCENSÃO que “esta categoria [do fim econômico ou social] envolve uma

boa dose de ambiguidade. Temos porém um apoio no art. 2.035 § único CC/2002, que qualifica como regras de ordem pública as relativas à função social da propriedade e do contrato. O preceito é relativo às convenções, mas dele retira-se facilmente a extensão da qualificação da ordem pública também para o próprio exercício. Daqui resulta que a contrariedade do exercício à função social deve ser oficiosamente apreciada em juízo” (ASCENSÃO, José de Oliveira. A Desconstrução do Abuso do Direito, op. cit., p. 49). 58 “Diretamente ligada a essa norma [o art. 187] está a cláusula geral do art. 421 do CC, que determina

que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Ou seja, o contrato que não respeita sua função social, isto é, que vai contra seu valor social, é abusivo. A função social do contrato está diretamente ligada ao abuso do direito. O mesmo se diga, mutatis mutandis, da função social da propriedade. O abuso do direito de propriedade pode ser claramente constatado no

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[...] no sistema em vigor, a função social amplia para o domínio do contrato a noção de ordem pública. A função é considerada um fim para cuja realização se justifica a imposição de preceitos inderrogáveis e inafastáveis pela vontade das partes. [...] de acordo com a função que a situação jurídica desempenha, serão definidos os poderes atribuídos ao titular do direito subjetivo e das situações jurídicas subjetivas. Os legítimos interesses individuais dos titulares da atividade econômica só merecerão tutela na medida em que interesses socialmente relevantes, posto que alheios à esfera individual, venham a ser igualmente tutelados. A proteção dos interesses privados justifica-se não apenas como expressão da liberdade individual, mas em virtude da função que desempenha para a promoção de posições jurídicas externas, integrantes da ordem pública contratual. Vincula-se, assim, a proteção dos interesses privados ao atendimento de interesses sociais, a serem promovidos no âmbito da atividade econômica (socialização dos direitos subjetivos).59 Nesse mesmo sentido, explica Menezes Cordeiro que “a função econômica e social do direito tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação. Se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá ‘direito’ quando o titular desrespeite tal norma constitutiva”.60 A questão da função social será retomada em breve comentário acerca do

mau uso da propriedade que põe em perigo a saúde e a segurança da propriedade” (LOPES, Teresa Ancona. Exercício do Direito e suas Limitações: Abuso do Direito, op. cit., p. 554). V. ainda: “O fim social e econômico do Direito encontra tradução do princípio da função social, decorrente do fenômeno de funcionalização dos Direitos subjetivos. A função social da propriedade e a função social do contrato destacam-se como um limite intrínseco, imanente ao próprio direito, desde o momento em que se constitui, e não de mero obstáculo que delimita externamente a esfera de atuação de um direito” (PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. “Contornos da abusividade e sua Recepção pelo Direito Brasileiro”. In Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, mar.-abr./2008, vol. 396, p. 230). Sobre o direito português, v. CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 209 e ss. 59 TEPEDINO, Gustavo. Notas Sobre a Função Social dos Contratos. In O Direito e o Tempo: Embates

Jurídicos e Utopias Contemporâneas. Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 400-401. No mesmo sentido, a respeito da função social da propriedade, v. TEPEDINO, Gustavo. “A Função Social da Propriedade e o Meio Ambiente”. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, jan.-mar./2009, vol. 37, passim. 60 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil, op. cit., p. 244. CAVALIERI FILHO, por sua

vez, aborda a noção de “fim econômico”, em geral ignorada pela doutrina que trata do art. 187: “Entende-se por fim econômico o proveito material ou vantagem que o exercício do direito trará para o

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juízo de merecimento de tutela, no item 5.3, infra. Assevere-se desde já, porém, que a função social representa apenas um dos interesses a serem considerados na aferição do abuso; a “função” a que se alude quando se trata do exercício disfuncional de um direito não se confunde com o interesse social, embora este seja um de seus elementos.

3.2. O PRINC¸PIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

O art. 187 do Código Civil prossegue e indica a boa fé como segundo critério limitador do exercício das situações jurídicas. Trata-se de conceito dos mais tradicionais e caros ao Direito Civil.61 Elemento tipicamente moralizador das relações jurídicas, apresentará contornos diferenciados conforme a natureza dos interesses disciplinados, sendo possível dividir suas manifestações em duas vertentes. Fala-se em boa fé subjetiva, predominantemente em matéria de direitos reais, em alusão ao desconhecimento de certo vício pelo titular da situação jurídica.62 Cuida-se, por outro lado, da boa fé objetiva quando não se investiga qualquer

seu titular, ou a perda que suportará pelo seu não exercício. Não mais se concebe o exercício de um direito que não se destine a satisfazer um interesse sério e legítimo. [...] Há quem entenda redundante falar em fim econômico e social, vez que toda finalidade econômica é, em princípio, também social. Sem razão, todavia, porque nem todo direito tem efeitos econômicos, como ocorre no Direito de Família — pelo que plenamente justificável a distinção” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., pp. 156-159). 61 Conforme aduz MENEZES CORDEIRO, a respeito do direito português, mas em análise compatível

com a experiência brasileira: “A boa fé surge, com frequência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, a boa fé informa previsões normativas e nomina vetores importantes da ordem privada. As figuras de ponta da civilística estão-lhe associadas: a culpa na formação dos contratos, o abuso do direito, a modificação das obrigações por alteração das circunstâncias e a complexidade do conteúdo obrigacional. Institutos antigos e criações do pensamento jurídico cristão têm-na como referência: a posse, a aquisição de frutos, as benfeitorias e o casamento putativo. [...] A natureza juscultural da boa fé implica o seu assumir como criação humana, fundada, dimensionada e explicada em termos históricos” (MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa fé no Direito Civil, op. cit., pp. 2-3). 62 A boa fé subjetiva representa, assim, “um sinônimo do estado psicológico do sujeito caracterizado

pela ausência de malícia, pela sua crença ou suposição pessoal de estar agindo em conformidade com o direito” (TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A Boa Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In TEPEDINO, Gustavo (org.). Obrigações: Estudos na Perspectiva

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elemento intencional ou psicológico do agente, mas, ao revés, sua atuação a partir de standards objetivos de conduta, em geral em matéria obrigacional.63 Afirma-se que o legislador de 2002 fez referência à boa-fé objetiva em três dispositivos distintos do Código Civil, em correspondência direta às três principais funções que se confere ao princípio em doutrina: i) cânone interpretativo dos contratos (art. 113 do Código Civil); ii) parâmetro limitador do exercício de direitos (art. 187 do Código Civil); iii) fonte de deveres anexos dos contratantes (art. 422 do Código Civil).64 No abuso do direito, portanto, encontra a boa-fé objetiva uma de suas três funções fundamentais. Trata-se, inequivocamente, do mais festejado parâmetro de aferição do exercício abusivo, tendo logrado tamanha projeção que caberia mesmo indagar se sua aplicação não absorveria por completo (e, assim, destituiria de autonomia) o instituto do abuso.65 De fato, tem-se observado nos últimos anos [...] um processo de invocação arbitrária da boa-fé como justificativa ética de uma série de decisões judiciais e arbitrais, que nada dizem tecnicamente com seu conteúdo e suas funções. Com efeito, devido à sua inspiração original — associada a considerações morais, éticas e até jusnaturalistas — e à sua estrutura — cláusula geral, cujo conteúdo



deve ser preenchido pelo julgador —, a boa-fé objetiva foi se investindo, em todo

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Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29). Em outros termos: “Analisada sob a ótica subjetiva, a boa fé apresenta-se como uma situação ou fato psicológico. Sua caracterização dá-se através da análise das intenções da pessoa cujo comportamento se queira qualificar” (NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 120). Possível considerar que o conceito de boa fé subjetiva foi positivado pelo legislador de 2002 no art. 1.201 do Código Civil: “Art. 1.201. É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. 63 “[...] ao conceito de boa fé objetiva estão subjacentes as ideias e ideais que animaram a boa fé

germânica: a boa fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do ‘alter’, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro polo da relação obrigacional” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado, op. cit., p. 412). 64 Por todos, v. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado, op. cit., p. 427; TEPEDINO,

Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A Boa Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil, op. cit., pp. 35-36; NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, op. cit., p. 119. 65 Sobre o ponto, v. Introdução, supra.

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mundo, da tarefa de oxigenar os códigos civis, realizando, em sua aplicação concreta, aspirações antiindividualistas e antiliberais.66 Sem embargo de relevantes opiniões em contrário,67 porém, forçoso reconhecer que, ao menos do direito brasileiro, a normativa do Código Civil não permite reduzir a vedação do abuso a uma decorrência da boa fé objetiva.68 Não bastasse para tal conclusão a previsão

66 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 121. Remata o autor:

“A boa fé objetiva aparece hoje, não obstante os propósitos meritórios de sua aplicação, como fundamento de soluções a que se chegaria, de forma mais eficaz e mais adequada à luz do próprio sistema jurídico, pela aplicação direta de princípios constitucionais, ou até de regras específicas do direito privado. [...] a intensa força retórica da expressão tem habituado magistrados a simplesmente mencionar a boa fé na fundamentação de suas decisões, sem qualquer espécie de consideração adicional. O resultado é o alargamento do conceito a tal ponto que a sua função passa a se confundir com a do inteiro ordenamento jurídico. Em outras palavras, invocada como receptáculo de todas as esperanças, a boa fé acaba por correr o risco de se converter em um conceito vazio, inútil mesmo na consecução daqueles fins que tecnicamente lhe são próprios” (pp. 121-122). 67 Os autores que reduzem o abuso à boa fé, em geral, não dissociam o instituto de suas raízes

subjetivistas. Ilustrativamente: “Durante muito tempo, a doutrina da inadmissibilidade do exercício de direitos subjetivos restou limitada às figuras do abuso de direito e da exceptio doli, esta proveniente do direito romano, aquela de construção da jurisprudência francesa. Uma e outra soluções, contudo, a par de dificultarem a sistematização dos variados casos de inadmissibilidade do exercício de direitos, estão ainda ancoradas numa perspectiva subjetivista [...]. Por isso a tendência, hoje verificável, de sistematizar estes casos através do recurso à boa fé objetiva” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa Fé no Direito Privado, op. cit., p. 456). Em outra sede, afirma a autora que a boa fé objetiva “é a que melhor se presta para sistematizar a variadíssima tipologia passível de abrangência pelo art. 187” (MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa Fé, op. cit., p. 87). MENEZES CORDEIRO, em crítica severa ao abuso, indica que sua materialização na boa fé seria o melhor modo de salvar o instituto de seu excessivo formalismo: “[...] puras construções formais que, nas hipóteses mais otimistas, apenas encobrem uma interpretação melhorada das normas que conferem direitos: o que seja uma função ou um valor de um direito objetivo é determinado, direito a direito, na contemplação das normas que o instituam. A saída — não assumida, mas possível — de decelar valores gerais ou funções genéricas, independentes de interpretação de cada direito, pressuporia a materialização do abuso — da boa fé, dos bons costumes e, possivelmente, de outras realidades” (MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil, op. cit., p. 879). 68 “É certo que, na expressa dicção do art. 187, o exercício pode ser ainda tornado inadmissível por

contrariedade aos bons costumes ou ao fim econômico ou social do direito — e também aí haverá abuso do direito. O abuso do direito é, sob este ângulo, mais amplo que a boa fé objetiva [...]. Conclui-se, ao

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legal de outros critérios de aferição da conduta abusiva, a concepção mais acurada de exercício abusivo (baseada na análise funcional das situações jurídicas subjetivas) permite depreender que a boa fé atua apenas como mais um indicador da abusividade — e, certamente, já desempenha, nesses termos, papel crucial na análise do caso concreto.69 A tentativa de expandir sua aplicação para além de seus limites lógicos, nos termos em que tem procedido certa corrente doutrinária e jurisprudencial, além de desnecessária,70 acaba por contribuir para o esvaziamento do princípio, que, devidamente aplicado, afigura-se imprescindível à civilística contemporânea.71 Na análise de Anderson Schreiber:

menos à luz do direito positivo brasileiro, que boa fé objetiva e abuso do direito são conceitos autônomos, figuras distintas, mas não mutuamente excludentes, círculos secantes que se combinam naquele campo dos comportamentos tornados inadmissíveis (abusivos) por violação ao critério da boa fé. Entre nós, portanto, é possível falar em abuso do direito por violação à boa fé, sem que aí se esgotem todas as espécies de abuso, ou todas as funções da boa fé” (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., pp. 118-119). Nesse sentido: NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, op. cit., p. 141. 69 Contra: “Todas as categorias aí contidas [no art. 187] respeitam ao conteúdo dos atos de exercício.

Mas a referência à boa fé permite ir ainda mais longe porque, representando uma regulação de relações humanas que se manifestam no exercício dos direitos, impõe uma observância da justiça no conteúdo das situações criadas” (ASCENSÃO, José de Oliveira. A Desconstrução do Abuso do Direito, op. cit., p. 54). 70 O fato de ter sido primeiramente positivada no Código de Defesa do Consumidor contribuiu

fortemente para esta tredestinação da boa fé: “A boa fé objetiva ganhou na jurisprudência brasileira um papel, por assim dizer, reequilibrador das relações não paritárias, que nada tem com o conceito de boa fé em si, mas que era fundamento do Código de Defesa do Consumidor em que a cláusula geral de boa fé vinha inserida. Era natural, portanto, que os tribunais brasileiros, desconhecedores dos contornos dogmáticos da noção de boa fé objetiva, atribuíssem ao instituto finalidade e função que tecnicamente não eram suas, mas do código consumerista. Contribuiu para este fenômeno certa inexperiência do Poder Judiciário brasileiro em lidar com princípios e cláusulas gerais, o que resultava em uma ‘superinvocação’ da boa fé objetiva como fundamento ético de legitimidade de qualquer decisão, por mais que estivesse em campos onde a sua aplicação era desnecessária ou até equivocada” (TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A Boa Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil, op. cit., pp. 33-34). 71 Dentre as muitas vantagens da aplicação do princípio, vale destacar a conveniência em se dispor de

tão abrangente padrão objetivo de aferição de condutas, em consonância com a tendência atual de objetivação da responsabilidade civil: “no sistema atual da responsabilidade civil, o que se faz é subverter a antiga coerência do sistema, superando, em cada vez mais numerosos casos, a antiga finalidade de

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Esta banalização da boa-fé, que já se vê por toda parte, traz, a longo prazo, o grave risco de um ocaso do conceito por sua inutilidade, uma vez que servindo de justificativa para decisões em todos os sentidos, a boa-fé acaba por não ser determinante a qualquer fundamentação, e sua invocação perde sentido. Daí a urgente necessidade de se precisar, com algum grau de segurança, o conteúdo da cláusula geral de boa-fé objetiva.72

3.3. OS BONS COSTUMES

O art. 187 do Código Civil menciona, por fim, os bons costumes como balizas do exercício regular das situações jurídicas. Conforme já afirmava Georges Ripert, ao analisar o dispositivo do Code Napoléon que trata das normas de ordem pública, “por maior desejo que tenham tido os redatores do Código Civil de separar o domínio do direito do domínio da moral, não conseguiram eliminar completamente o apelo necessário aos bons costumes para refrear a expansão das vontades individuais”. O autor criticava enfaticamente os grandes expoentes da Escola da Exegese por não enfrentarem o conteúdo da expressão.73 Na doutrina brasileira contemporânea não tem sido diferente. Limitam-se os autores a anunciarem as muitas dificuldades de concretização da noção de bons costumes,

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que,

identificação do culpado. Isto ocorre pela atribuição de uma responsabilidade, sem culpa, com o objetivo de proteger os direitos das vítimas injustamente lesadas, realizando assim um verdadeiro compromisso com a solidariedade social” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. In Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 401). 72 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 125. Afirma-se,

ainda, em doutrina: “ao contrário do que ocorre nas relações de consumo, nas relações paritárias a insistência nesta concepção excessivamente vaga e puramente moral da boa fé objetiva traz o risco de sua absoluta falta de efetividade na solução dos conflitos de interesses” (TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A Boa Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil, op. cit., p. 35). 73 RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, op. cit., pp. 57-58. 74 Ilustrativamente: “A aplicação desta cláusula, ao menos em um estágio inicial, não se mostra tão

promissora [...]. Os fatores que prejudicam sua concretização são justamente aqueles que a diferenciam da boa fé. Em primeiro lugar, o caráter vago e predominantemente moral do conceito de bons costumes difere da noção fortemente construída da boa fé. Além disso, a aplicação dos bons costumes costuma

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aludida mais de uma vez pelo codificador de 2002,75 soa particularmente extemporânea em um cenário pós-positivista, no qual os valores sociais juridicamente relevantes se encontram consignados em sede constitucional. Com efeito, o recurso aos princípios constitucionais se revela terreno bem mais seguro para o intérprete que a compreensão do termo “bons costumes”, o qual, definido “segundo a concepção do costume de uma determinada sociedade”, revela-se “noção relativa — muda com o tempo, e, por vezes, de lugar a lugar —, genérica, destituída, portanto, de um conteúdo específico e determinado”.76 As dificuldades no estudo do tema indicam certa tendência ao desuso deste terceiro parâmetro. Análise mais aprofundada dos bons costumes, no entanto, poderia demonstrar sua utilidade, sobretudo para a concretização de certos interesses existenciais.77 Exemplo clássico de abuso com base nos bons costumes concerne justamente interesses extrapatri-

ser limitada à restrição de comportamentos, se opondo à da boa fé, utilizada para prescrever condutas e orientar comportamentos” (LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Pautas para a Interpretação do Art. 187 do Novo Código Civil. In Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ago./2005, vol. 838, p. 29). 75 A expressão “bons costumes” é também empregada nos arts. 13 (atos de disposição do próprio

corpo), 122 (licitude das condições), 1.336 (deveres do condômino) e 1.638 (perda do poder familiar) do Código Civil. 76 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 442. No mesmo sentido:

“bons costumes significam o conjunto das regras morais aceitas pela consciência social, correspondendo à moral objetiva, ao sentido ético imperante na comunidade social” (AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdução, op. cit., p. 211); “Entendemos por bons costumes o modo constante e comum de proceder de acordo com os ditames da moral social, segundo cada povo a concebe” (RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 160); “Os bons costumes, correspondentes à moral social [...], traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas, pelo Direito, em cada momento histórico” (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português, op. cit., p. 243). 77 Afirma PERLINGIERI que “o bom costume não pode ter relevância apenas nos limites da moral

exterior”, tratando-se de aspecto que poderia contribuir “para concretizar a legalidade constitucional, frequentemente contraditada na e pela praxe” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 439). A tendência da doutrina, porém, é preferir a análise funcional, mais abrangente, aos bons costumes, demasiadamente vagos. Afirma Rose Melo Vencelau MEIRELES, ao comentar o art. 12 do Código Civil (que cita os bons costumes como limite às disposições do próprio corpo): “Não é, na verdade, a extensão da limitação, mas a sua finalidade, que deveria ser o viés da análise de licitude da mesma” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 184).

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moniais (muito embora o direito abusado fosse a propriedade). Relata-se que, certa feita, um nobre expulsou de seu castelo seu filho, com quem brigara. Tempos depois, a esposa do nobre faleceu e foi sepultada nos domínios do castelo. Quando o filho manifestou seu desejo de visitar o túmulo da mãe, o pai não o permitiu. Identificou-se na negativa do castelão o exercício abusivo do domínio, contrário aos bons costumes”.78

4. SITUAÇ›ES JUR¸DICAS SUBJETIVAS PASS¸VEIS DE ABUSO

Definidos os primeiros contornos do conceito de abuso, e ainda em busca de uma definição mais completa que aquela proposta pelo Código Civil com base na boa fé, nos bons costumes e no fim econômico-social, vale comentar o conteúdo da segunda metade da designação do instituto, e assim determinar quais posições jurídicas sujeitam-se ao abuso “do direito”. Com efeito, afirma-se em doutrina que a expressão abrange, em verdade, não apenas os direitos subjetivos, mas todas as espécies de situações jurídicas subjetivas.79 Na definição cunhada por Paul Roubier, as situações jurídicas subjetivas constituem-se em complexos de direitos e deveres80 imputáveis a determinado centro de interesses.81

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78 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., p. 162. 79 Por todos: PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 683; MENEZES

CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil, op. cit., p. 898; CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., p. 417. 80 “[...] arrivés à ce point de notre exposé, nous commençons à prendre conscience, plus nettement

qu’on ne l’a encore fait jusqu’ici, de l’entrecroisement des droits et des devoirs, qui caractérise l’organisation juridique. C’est cet entrecroisement qui a abouti, chez les auteurs contemporains, à prendre pour base de leurs constructions la notion de la situation juridique plutôt que celle de droit subjectif. La situation juridique se présente à nous comme constituant un complexe de droits et de devoirs; or, c’est là une position infiniment plus fréquente que celle des droits existant à l’état de prérogatives franches, ou de devoirs auxquels ne correspondrait aucun avantage” (ROUBIER, Paul. Droits Subjectifs et Situations Juridiques. Paris: Dalloz, 1963, p. 52). 81 Dá-se preferência à expressão “centro de interesses” na medida que nem toda situação jurídica

apresenta um sujeito titular. A respeito, v. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 734: “A ligação essencial do ponto de vista estrutural é aquela entre centros de interesses. O sujeito é somente um elemento externo à relação jurídica porque externo à situação: é somente o titular, às vezes ocasional, de uma ou de ambas as situações que compõem a relação jurídica; de maneira que não é indispensável referir-se à noção de sujeito para individuar o núcleo da relação jurídica. O que

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Trata-se de noção fundamental na civilística contemporânea,82 que volta suas atenções para o caráter complexo da relação jurídica — a identificar, via de regra, tanto posições ativas quanto passivas imputáveis aos centros de interesses envolvidos.83 O reconhecimento de que todas as situações subjetivas são passíveis de abuso não é obstado pelo fato de ter o Código Civil mencionado exclusivamente o termo “direito” em seu art. 187.84 Com efeito, a distinção entre as diversas situações jurídicas subjetivas permeia

é essencial é a ligação entre um interesse e um outro, entre uma situação determinada ou determinável, e uma outra”. 82 “A rigor, todas as relações jurídicas são formadas por situações jurídicas subjetivas, centros de

interesse juridicamente protegidos, cujos titulares são os sujeitos de direito. O direito subjetivo nada mais é do que uma espécie importantíssima de situação jurídica subjetiva e, como tal, deve ser associado necessariamente à noção de interesse e de titularidade. Em razão disso, deve se preferir a expressão situação jurídica subjetiva a direito subjetivo, de modo a evitar o equívoco de reduzir o tema à problemática dos direitos subjetivos” (TEPEDINO, Gustavo. In AZEVEDO, Antonio Junqueira de (coord.), Comentários ao Código Civil: Direito das Coisas. Volume XIV. São Paulo: Saraiva, 2011, no prelo, p. 25). 83 Neste ponto, fundamental a lição de Pietro PERLINGIERI: “a necessidade de considerar as situações

subjetivas sempre dentro de uma relação jurídica, da qual cada uma delas constitui um dos dois elementos estruturais, permite remover, como falso problema, a questão da pretensa prioridade lógica do dever ou do direito, como se um deva representar o termo originário tão somente a partir do qual seria concebível o outro. A rigor [...] da norma se originam contemporaneamente, sem qualquer precedência lógica, direitos e deveres. Só existe um direito na medida em que existe um correlato dever e só existem uma obrigação e um dever na medida em que existem interesses protegidos que se substanciam no adimplemento daquela obrigação e daquele dever” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., pp. 672-673). 84 Analisa CUNHA DE SÁ sobre o dispositivo legal português (cuja redação é muito próxima ao dispositivo

brasileiro): “Seja como for, a verdade é que a interpretação restritiva dos direitos subjetivos devida a Roubier não exclui no seu próprio pensamento, como se viu, a existência de outras prerrogativas jurídicas individuais: trate-se de direitos subjetivos no sentido próprio, trate-se de liberdades, de faculdades, de funções ou de poderes, o importante é que todos eles constituem vantagens, cuja exata configuração depende em última análise da estrutura qualificativa da norma jurídica. Mas prerrogativas pertencentes aos indivíduos significa prerrogativas de que eles podem usar num ou noutro sentido, mesmo que não seja o da sua transmissão ou o da renúncia a elas. E uso ou exercício que, consequentemente, há de pôr em causa o fundamento axiológico-normativo que a todas preside, em termos que podem trazer conformidade ou contraditoriedade entre um e outro e, por aí, a admissibilidade genérica da figura do abuso do direito em relação a todas as prerrogativas individuais. Chamar-lhes a todas elas, indistintamente, direitos (como faz o nosso Código Civil, nomeadamente em relação aos direitos da personalidade) ou atribuir-lhes designação diferente é, sob este aspecto, coisa de pouca monta, pois é a substância

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o plano da estrutura, ao passo que a aferição do exercício abusivo leva em conta a função.85 Desse modo, não há nenhuma justificativa para se excluir da possibilidade de abuso qualquer situação jurídica que confira vantagem ou prerrogativa para seu titular.86

5. ABUSO COMO JU¸ZO DE VALOR SOBRE O EXERC¸CIO DOS DIREITOS Ao analisar que categorias de situações jurídicas subjetivas estariam sujeitas ao exercício abusivo, afirma categoricamente Cunha de Sá: “o problema do ato abusivo não está [...] no campo da estrutura qualificativa da norma, mas no do valor normativo que a fundamenta e ao qual é confrontado permanentemente o comportamento a qualificar”.87 Ao se falar em abuso, portanto, faz-se referência ao desvio do perfil funcional da situação jurídica, motivo pelo qual não é possível circunscrever o instituto ao exercício de apenas alguns perfis estruturais; ao revés, qualquer situação jurídica, porque dotada de uma função, é passível de abuso. Em uma palavra, se há uma função, há a possibilidade de exercício disfuncional.88

5.1. ESTRUTURA E FUNÇ‹O DAS SITUAÇ›ES JUR¸DICAS SUBJETIVAS

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Neste ponto, a fim de delinear o papel que o conceito de abuso desempenha no quadro

fundamentada e fundamentante que leva ínsita a possibilidade de abuso” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 611-612). 85 Sobre estrutura e função, v. item 5.1, infra. 86 “Quer se trate de liberdades, faculdades, direitos potestativos ou poderes, todos constituem vanta-

gens, cuja configuração depende, em última análise, da estrutura qualificativa da norma jurídica. Logo, em reação a qualquer situação subjetiva será admitida a figura do abuso do direito, visto que nenhuma delas será jamais desprovida de fundamento axiológico” (CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002. Relativização de direitos na ótica civil-constitucional, op. cit., p. 417). 87 CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 551-552. Remata o autor: “ora,

o conteúdo qualificado em termos de direito subjetivo ou de outra faculdade ou de poder individual é, precisamente, aquele comportamento que preenche a estrutura qualificativa da norma e o valor normativo que lhe é imanente — donde, faltando uma no outro, não haver lugar à qualificação em termos do direito subjetivo ou de outra prerrogativa jurídica em causa perante a conduta que ali é desde logo formalmente ilegal e aqui se revela como abusiva”. 88 Todas as situações subjetivas são passíveis de abuso, “visto que nenhuma delas será jamais desprovida

de fundamento axiológico” (CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., p. 417).

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geral de mecanismos de controle valorativo do exercício de situações jurídicas, cabe explicitar, mesmo que sucintamente, os conceitos de estrutura e função, que encontram ampla acolhida em sede doutrinária.89 Tem-se afirmado que estrutura e função representam, “do ponto de vista metodológico, a natureza de qualquer noção”.90 Sinteticamente, quando se indaga acerca da estrutura de certo fato jurídico, deseja-se saber “o que ele é”; quando se fala de sua função, a análise recai sobre “para que ele serve”:91

Diz respeito à estrutura o número de partes necessárias para formar um ato idôneo a produzir efeitos jurídicos. O ato (ou negócio) que requer a declaração de uma só parte tem uma estrutura unilateral; se, por outro lado, exige as declarações de duas partes é bilateral, e assim por diante. [...] Ao valorar o fato, o jurista identifica a função, isto é, constrói a síntese global dos interesses sobre os quais o fato incide. A função do fato determina a estrutura, a qual segue — não precede — a função.92

A análise funcional foi, por muito tempo, considerada irrelevante pela doutrina,93 em

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89 Dentre os muitos trabalhos que empregam a distinção entre análise estrutural e análise funcional, v.,

exemplificativamente: TEPEDINO, Gustavo. Notas Sobre a Função Social dos Contratos, op. cit., p. 400; RENTERÍA, Pablo Waldemar. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 285; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego. Rumos Cruzados do Direito Civil Pós-1988 e do Constitucionalismo de Hoje. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Direito Civil Contemporâneo: Novos Debates à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 276. 90 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 937 91 “O fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem

para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve)” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 642). Na sempre precisa análise de BOBBIO: “acredito ser possível afirmar com certa tranquilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tinha obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito’ do que ‘para que o direito serve’” (BOBBIO, Norberto. Em direção a uma teoria funcionalista do direito. In Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito. Barueri: Manole, 2007, p. 53). 92 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 642. 93 “Parece-me que uma das razões do desinteresse dos teóricos do direito pelo problema da função

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uma lógica típica do positivismo kelseniano.94 “Superada esta perspectiva, pela consciência de que a atividade interpretativa necessariamente envolve valores [...] defende-se a importância de priorizar, na análise de um instituto, seu perfil funcional”.95 A função, com efeito, traduz a justificativa para que o ordenamento permita que determinado fato produza, modifique ou extinga situações jurídicas; é sobre a legitimidade dos interesses incutidos naquele fato jurídico que recai o juízo valorativo que determina sua proteção pela ordem jurídica.96 Nesse sentido, afirma-se que “identificar a função não é o mesmo que descrever os efeitos do fato, interligando-os diretamente entre si, mas sim apreender o seu significado normativo. Este significado, reconstruído pela aplicação das regras e princípios, se exprime em situações subjetivas, isto é, em efeitos do fato”.97 A análise funcional não se reporta exclusivamente aos fatos jurídicos, admitindo-se que

estava exatamente na sua presumida irrelevância. À consideração de que o direito se caracterizava por ser um instrumento específico que deveria servir ao desenvolvimento de muitas funções, acrescentava-se não só a consideração de que as mesmas funções se desenvolviam em diferentes sociedades, como também na mesma sociedade por outros meios, e que, portanto, enquanto era legítimo falar, em relação ao direito, de funções alternativas, não seria legítimo falar de instrumentos alternativos” (BOBBIO, Norberto. A análise funcional do direito: tendências e problemas. In Da Estrutura à Função. Barueri: Manole, 2007, pp. 87-88). 94 Comentando a Teoria Pura do Direito, afirma KELSEN: “[...] é uma teoria do Direito radicalmente

realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o Direito positivo. Como ciência, ela não se considera obrigada senão a conceber o Direito positivo de acordo com a sua própria essência e compreendê-lo através de uma análise da sua estrutura. [...] Assim, impede que, em nome da ciência jurídica, se confira ao Direito positivo um valor mais elevado do que o que ele de fato possui, identificando-o com um Direito ideal, com um direito justo; ou que lhe seja recusado qualquer valor e, consequentemente, qualquer vigência, por se entender que está em contradição com um Direito ideal, um Direito justo” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 118). Ressalta BOBBIO: “Na obra de Kelsen, não só a análise funcional e estrutural estão declaradamente separadas, como esta separação é a base teórica sobre a qual ele funda a exclusão da primeira em favor da segunda. [...] A análise funcional é confiada aos sociólogos e, talvez, aos filósofos” (BOBBIO, Norberto. Em direção a uma teoria funcionalista do direito, op. cit., p. 54). 95 KONDER, Carlos Nelson. “Causa do contrato x função social do contrato”. In Revista Trimestral de

Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, vol. 43, jul.-set./2010, p. 33. 96 Com efeito, o termo “função” pode ser compreendido em duas vertentes: síntese causal do fato e

razão justificadora do mesmo (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, op. cit., p. 96). 97 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 642.

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as decorrências destes, isto é, as situações jurídicas por eles constituídas, modificadas ou extintas,98 também apresentam estrutura e função.99 Na síntese de Gustavo Tepedino: as situações jurídicas subjetivas apresentam dois aspectos distintos — o estrutural e o funcional. O primeiro identifica a estruturação de poderes conferida ao titular da situação jurídica subjetiva, enquanto o segundo explicita a finalidade prático-social a que se destina. O aspecto funcional condiciona o estrutural, determinando a disciplina jurídica aplicável às situações jurídicas subjetivas.100 Como se demonstrará adiante, a função (na acepção aqui apresentada do termo) das situações jurídicas subjetivas configura o elemento a ser levado em consideração para a identificação do exercício abusivo, e o fator que permite diferenciá-lo do ato ilícito.

5.2. CONTROLES NEGATIVOS DO EXERC¸CIO DAS SITUAÇ›ES JUR¸DICAS. ATO IL¸CITO E ABUSO DO DIREITO

Conforme se depreende do breve histórico traçado da evolução do conceito de abuso, o reconhecimento de autonomia dogmática ao instituto implicou, em última análise, sua afirmação como tertius genus entre o ato lícito e o ilícito.101 Trata-se, com efeito, de verdade

98 “A eficácia do fato com referência a um centro de interesses, que encontra a sua imputação em um

sujeito destinatário, traduz-se em situações subjetivas juridicamente relevantes” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 668). 99 “As situações subjetivas podem ser consideradas ainda sob dois aspectos: aquele funcional e aquele

normativo ou regulamentar. O primeiro é particularmente importante para a individuação da relevância, para a qualificação da situação” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 106-107). 100 TEPEDINO, Gustavo. Notas Sobre a Função Social dos Contratos, op. cit., p. 400. 101 “a absoluta identidade que Planiol estabelece entre ato ilícito e ato abusivo (este apenas uma das

espécies daquele, sem qualquer sinal distintivo) prescinde da diferença de sentidos que a expressão ‘contraditoriedade ao direito’ assume quando referida ao ato ilícito e ao ato abusivo. É evidente, por claramente lógico, que um mesmo ato não pode ser simultaneamente lícito e ilícito e que o ato abusivo não é um ato lícito. Mas, sendo um ato não-lícito, o problema que se coloca não é o de concluir, apressadamente, dando um salto de raciocínio, que é um ato ilícito [...] Pelo contrário, é o próprio abuso

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evidente: tanto o exercício disfuncional quanto o ato ilícito ferem a ordem jurídica e são, neste ponto, “não lícitos”; tal aspecto comum, porém, não permite concluir que o ato ilícito abarcaria também o abusivo. Reputa-se, tradicionalmente, “ilícito” o ato que, “praticado sem direito, causa dano a outrem”.102 Dispõe o Código Civil, em seu art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. De se concluir, portanto, que no direito brasileiro a contrariedade à ordem jurídica constitui apenas um dos elementos do ato ilícito, a indicar que a antijuridicidade representa conceito mais amplo que a ilicitude. Dispôs o codificador, porém, no art. 187 que “também comete ato ilícito” quem abusa de seu direito, reunindo as duas figuras sob a rubrica “Dos Atos Ilícitos”. Abriu margem, assim, a argumentos formalistas que identificam no abuso espécie de ato ilícito.103 Diversamente, a melhor doutrina interpreta a sistemática adotada pelo Código como evidência de que tanto ilícito quanto abuso são espécies do gênero “ato antijurídico”. O art. 187, portanto, “deve ser interpretado como uma referência a uma ilicitude lato sensu, no sentido de contrariedade ao direito como um todo”.104 De parte a escolha do legislador, não está pacificada dogmaticamente a independência

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de direito que vem nos mostrar que entre licitude e ilicitude tertius datur” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 331). 102 BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 270. 103 Por exemplo, já se lamentou o fato de que “o novo Código [Civil de 2002] também não concebe o

abuso do direito como instituto autônomo, persistindo no equívoco de considerá-lo simplesmente um ato ilícito” (CARDOSO, Vladimir Mucury. O Abuso do Direito na Perspectiva Civil-Constitucional, op. cit., p. 78). 104 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; e BODIN DE MORAES, Maria Celina (orgs.), Código

Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 342. Cite-se, ainda: “Em ambos, o agente se encontra no plano da antijuridicidade: no ilícito, esta resulta da violação da forma, no abuso, do sentido valorativo. [...] O fato de produzirem os mesmos efeitos não iguala os dois tipos de atos antijurídicos, quando muito os assemelha, persistindo contudo a fundamental diferença quanto à natureza da violação e, por via de consequência, quanto à necessidade de expressa previsão da conduta proibida ou sancionada. Somente se poderá falar de ilicitude quando houver ‘específica obrigação normativa’, isto é, um comportamento contrário a um dever jurídico determinado que o qualifica. Sempre que tal qualificação não competir ao legislador, mas sim, casuisticamente, ao julgador, estaremos tratando de abuso” (CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., pp. 405-407).

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do ato abusivo em relação ao ilícito.105 Cumpre, porém, investigar, em cada opinião doutrinária, a que figura se alude com a terminologia adotada: não raro, inspirada pela sistematização do Código Civil de 2002, a doutrina tem considerado que as hipóteses dos arts. 186 e 187 são espécies distintas de um gênero maior que denomina “ato ilícito”. Nesses casos, por evidente, trata-se rigorosamente da mesma sistemática aqui defendida, substituindo-se apenas o adjetivo “antijurídico” pelo termo “ilícito”.106 A mera divergência terminológica resulta, assim, em falsa controvérsia doutrinária; deu-se preferência à designação “ato ilícito” para a figura do art. 186 apenas por força da tradição, a reafirmar a autonomia do abuso do direito, que se evidencia, como se busca expor a seguir, tanto em seus requisitos de configuração quanto em suas consequências jurídicas.

5.2.1. DISFUNCIONALIDADE

A esta altura, já se torna possível perceber a forte carga valorativa que inspira o abuso

105 A reunião do abuso e do ilícito em uma única categoria relaciona-se com o fato de a ilicitude

encontrar-se, em nossa tradição jurídica, atavicamente imbricada com o dano e o dever de repará-lo: “abuso, culpa, dano patrimonial e responsabilidade civil subjetiva parecem ainda ser institutos indissociáveis, não se trabalhando, nem na doutrina, nem na jurisprudência, a distinção conceitual e formal entre ilicitude civil (como contrariedade ao ordenamento jurídico) e culpa (como violação de dever jurídico que o agente podia e devia observar). Confirmando nossa tradição doutrinária — pela qual a legislação corre à frente da doutrina —, o Código Civil de 2002 veio romper com esse modelo. [...] a obrigação de indenizar ganhando autonomia e estando agora situada em título próprio, liberou a reconstrução do conceito de ilicitude por forma a abranger também a ilicitude derivada do exercício jurídico de que não resulte consequência indenizatória, mas outras formas de tutela, inclusive processuais, como as antes referidas ‘tutelas de remoção do ilícito’” (MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa Fé, op. cit., pp. 73-74). 106 “A rigor, bem examinadas as coisas, tem-se de convir em que, no atual ordenamento, o ato ilícito

passa a constituir um gênero, com duas espécies, a do art. 186 (violação de direito alheio) e a do art. 187 (abuso de direito próprio). Cada espécie tem seus pressupostos. Para apurar a ocorrência da segunda figura, a do ilícito consistente em abuso do direito, o essencial é verificar a presença dos pressupostos enumerados no art. 187, não a dos arrolados no art. 186. Se assim não fosse [...] tornar-se-ia inútil o art. 187. Haveria, não equiparação, mas identificação, ou melhor, subsunção da figura do abuso de direito na do ato ilícito, segundo o art. 186” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Abuso do Direito”. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, jan.-mar./2003, vol. 13, p. 104).

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do direito, em suas variadas concepções históricas.107 A delimitação de conceito mais acurado para o instituto exigirá a definição desse conteúdo axiológico, imperativo que não se satisfaz apenas com a referência genérica aos valores e princípios orientadores do ordenamento. Com efeito, aduz Cunha de Sá, apoiado em doutrina portuguesa e italiana: [...] reduzir o abuso do direito à correção das contradições de princípios da ordem jurídica, isto é, convertê-lo apenas num princípio geral de interpretação das normas jurídicas no que se refere ao exercício dos direitos subjetivos, é perder de vista a natureza específica do ato abusivo perante o ato ilícito, é tornarmo-nos incapazes de compreender que o problema do abuso do direito “é um problema metodológico-normativo de realização (ou de aplicação) concreta do direito, e não um problema dogmático da determinação do conteúdo jurídico positum (na lei)”.108 Tecendo críticas contundentes à maior parte das sustentações doutrinárias em prol da autonomia do instituto, afirma Menezes Cordeiro: Há efetivo exercício inadmissível de posições jurídicas, como instituto jurídico autônomo, se a análise das decisões concretas, passada pelo crivo da Ciência do Direito, demonstrar a ocorrência de delimitações jussubjetivas irredutíveis às restrições comuns. Essa irredutibilidade tem de ser materialmente constatada e não deduzida de proposições — por exemplo, cláusulas gerais — que lhes estejam na origem: as construções centrais esgotaram as suas potencialidades históricas, tendo de, uma vez por todas, abandonar os hábitos mentais dos juristas. [...] Uma resposta pode ser dada pela ideia de disfuncionalidade jurídica.109

107 “[...] tão fora se está do direito quando, no seu exercício, ou por ocasião do mesmo exercício, se

ultrapassa os limites da sua definição formal, como quando a atuação concreta do titular do direito se opõe ou se afasta dos limites materiais que para o seu conteúdo resultam do fundamento axiológico de tal direito. Os termos concretos do comportamento do sujeito só aparentemente constituem exercício do direito; na realidade, ultrapassam-no, excedem-no, precisamente por violarem o seu sentido ou fundamento objetivo. E que deste fundamento materialmente objetivo não se pode prescindir na conceitualização do direito subjetivo é, hoje, conclusão ganha pela doutrina mais qualificada” (CUNHA DE SÁ. Abuso do Direito, op. cit., p. 455). 108 CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito, op. cit., p. 343. 109 MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil, op. cit., p. 880. Ressalte-se que o autor,

em direção diversa daquela defendida neste estudo, não admite o abuso vinculado à análise de casos

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De fato, esse elemento valorativo, apto a unificar o instituto e dotá-lo de autonomia, não pode ser outro senão a função,110 fator que define e constitui cada situação jurídica subjetiva.111 E, com efeito, a referência ao exercício disfuncional encontra-se presente na doutrina.112 O termo “função”, porém, revela-se polissêmico, e tem sido empregado de formas distintas no que tange à identificação do abuso. Alguns autores fazem referência diretamente à função econômico-social da situação jurídica sob análise, remetendo ao critério expressamente aludido pelo art. 187.113 Outros, por sua vez, aludem à “função” no sentido que, paralelamente à noção de estrutura, serve a qualificar as situações jurídicas.114

concretos: “Apurar, caso a caso, quais possam ser os bastidores do direito subjetivo-proteção institucional, é, de novo, relançar um tema de interpretação” (Ibid., p. 884). Isso o conduz a buscar a autonomia do instituto na inspiração cultural de integração sistemática existente na tentativa de controlar espaços internos de suposta não funcionalidade no exercício de certos direitos: “O abuso do direito, em representação central, é o produto dessa aspiração, quando ela atue no espaço não funcional interno dos direitos subjetivos” (Ibid., p. 885). Reconhece, de todo modo, que “o encarar do sistema jurídico pelo prisma funcional da ação relevante para o Direito, portanto pela vertente dos comportamentos jurídicos conformes com as interações persistentes, por ele postuladas, [...] tem um interesse particular para esclarecer o fenômeno do abuso” (Ibid., p. 882). Remata o autor: “O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema jurídico em que estas se integrem” (o.l.u.c.). 110 Em sentido contrário: “Há porém desde já que observar que a disfunção não é necessariamente

repelida pela ordem jurídica. Pode a disfuncionalização ser deixada à autonomia privada. O que dizemos ilustra-se flagrantemente com a figura do negócio indireto. [...] Tal como o negócio fiduciário. O contrário se passa com o negócio simulado, de que o indireto se distingue bem. O negócio simulado é proibido, mas por razões que nada têm a ver com a disfuncionalização” (ASCENSÃO, José de Oliveira. A Desconstrução do Abuso do Direito, op. cit., p. 41). O juízo de abusividade, porém, parte de perspectiva diversa, que considera o desvio do exercício da posição jurídica em relação à função originalmente pretendida pelas partes, não já a (eventual) oposição desta função por elas perseguida à finalidade típica do negócio; em uma palavra, a análise ocorre, não na gênese da posição jurídica, mas no momento, posterior, de seu exercício. 111 “Na individuação da natureza dos institutos concorrem estrutura e função, mas é esta última, como

síntese dos efeitos essenciais e característicos, produzidos ainda que de forma diferida, a tipificar a fattispecie” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 118). 112 Cite-se Pietro PERLINGIERI: “O abuso é o exercício contrário ou de qualquer modo estranho à função

da situação subjetiva. Se o comportamento concreto não for justificado pelo interesse que impregna a função da relação jurídica da qual faz parte a situação, configura-se o seu abuso” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 683). 113 Ilustrativamente: “Aquele, portanto, que age obedecendo apenas aos limites objetivos da lei, mas

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Não se trata de duas correntes distintas; em verdade, o termo “função” costuma ser empregado de forma particularmente fluida, mesmo pela mais respeitável doutrina.115 Parece, porém, assistir razão à segunda concepção apresentada, quando se cogita do exercício disfuncional. Realmente, a função aqui investigada há de ser aquele regulamento de interesses tendente à produção de efeitos de cada situação jurídica subjetiva, o “para quê” a justificar a individualização e a proteção da posição jurídica pelo ordenamento. Equiparar o abuso, tout court, ao descumprimento da função social revelar-se-ia, ao fim e ao cabo, um esforço em vão: bastaria aplicar, nesse caso, diretamente o princípio da função social ao caso concreto, revelando-se inócuo o recurso a instituto intermediário de direito civil.116 Negar-se-ia autonomia científica ao ato abusivo, e reduzir-se-ia a letra morta instrumento de grande valia para o controle do exercício das situações jurídicas. A noção de exercício disfuncional baseada na função específica de cada situação jurídica, por sua vez, coaduna-se com a origem do instituto como imperativo prático da atividade judicial (a exigir a consideração dos interesses envolvidos no caso concreto),117 bem como

que no exercício do direito que lhe confere o preceito legal, viola os princípios da finalidade econômica e social da instituição, da sua destinação, produzindo o desequilíbrio entre o interesse individual e o da coletividade, abusa de seu direito (LIMA, Alvino. Culpa e risco, op. cit., p. 219). E, ainda: “Há abuso de direito sempre que o titular o exerce fora dos seus limites intrínsecos, próprios de suas finalidades sociais e econômicas” (AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdução, op. cit., p. 207). 114 Assim: “abuso do direito é o exercício de uma atividade que, formalmente, entra nos direitos do

agente, mas que está sendo exercida com um fim que não é aquele que a norma jurídica tinha em vista quando protegeu aquela atividade” (SAN TIAGO DANTAS, F. C. Programa de Direito Civil, op. cit., p. 318). 115 Exemplificativamente: “deve-se entender como fim econômico ou social a função instrumental

própria de cada direito subjetivo, a qual justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício. Tal concepção parte da ideia de que os direitos subjetivos são instrumentos jurídicos para a realização de interesses” (AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdução, op. cit., p. 211). 116 Como é sabido, “uma das características fundamentais do direito civil-constitucional é a aplicação

direta dos princípios constitucionais às relações privadas. Isto significa dar grande peso aos princípios no processo de interpretação-aplicação do direito. [...] os princípios são o pedestal normativo do sistema; concretizam os valores reputados, ou melhor, democraticamente estabelecidos, como os mais essenciais àquela comunidade” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Perspectivas a partir do Direito Civil-Constitucional. In Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 65). 117 “A juridicidade do problema do abuso só pode, assim, advir da interioridade ou imanência ao direito

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permite antever, com singela clareza, a efetiva fronteira entre abuso e ilícito. Enquanto o ilícito decorre de direta desobediência à estrutura das situações jurídicas (não há direito), o abuso se afere em um segundo degrau do controle dessas situações: ocorre se, embora obedecida a estrutura (o titular não excede as prerrogativas que se lhe conferem), a posição jurídica é exercida em finalidade diversa daquela que justifica sua existência. Na síntese de Maria Celina Bodin de Moraes:

Não se trata de entender o ato abusivo como um ato que, embora em contrariedade ao direito objetivo, estaria em conformidade com o direito subjetivo. Não há, com efeito, contraposição possível entre o ordenamento jurídico e o direito subjetivo, sendo este apenas uma especificação do primeiro. Trata-se, na verdade, de confrontar as duas faces de uma mesma moeda, quais sejam: o aspecto lógico-formal do direito (chamado de estrutural) e o aspecto ético-social (isto é, funcional), e considerar que o princípio da proibição do abuso do direito atua como limite interno ao próprio direito (subjetivo), o qual somente vigorará para o seu titular se, e enquanto, não for exercício nocivo ao interesse social.118

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Por outro lado, ressalte-se, a função da situação jurídica a ser levada em consideração para a identificação do exercício abusivo, por ter o papel de identificar a legitimidade daquela síntese de interesses que resultou na constituição da posição jurídica, deve obrigatoriamente

subjetivo do valor por que o comportamento do sujeito se orienta” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 459). Trata-se, portanto, de “confrontação da concreta atuação, materialmente situada, isto é, do comportamento in actu, com o respectivo fundamento axiológico-normativo” (o.l.u.c.). 118 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à Realização do Exame de DNA e Direitos da Personalidade,

In Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de Direito Civil-Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 181. Veja-se, nesse sentido, CARPENA, Heloisa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., p. 405. E, na doutrina portuguesa, CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 460: “O que vale no direito subjetivo é o que orienta o seu exercício e se por aqui se vem a encontrar correlação entre valor e fim, do mesmo modo se alcança como o valor é o que explica o ser do direito subjetivo e o que permanentemente o fundamenta. A estrutura formal do direito subjetivo é, pois, vivificada, numa mesma e única intenção jurídica, pelo fundamento que lhe inere e pelo qual a situação concreta deve ser constantemente aferida, para ser ou deixar de ser o exercício de um determinado direito subjetivo”.

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levar em conta toda a tábua axiológica constitucional, e, nessa tarefa, acabará por abarcar, muitas vezes, também o princípio da função social.119 A diferenciação aqui apresentada entre função e função social, portanto, tem por fulcro apenas indicar que a análise do perfil funcional de certa situação jurídica subjetiva vai além da consideração do interesse social.120 Não há qualquer antagonismo entre ambas as noções, que, ao revés, complementam-se. Apenas não se pode defender que a função de uma situação jurídica seja somente social;121 basta considerar que o art. 187 cita outros critérios de aferição do abuso para se concluir que o exercício pode ser disfuncional sem violar, necessariamente, o princípio da função social.122

119 Em estudo relativo à causa (afim à noção de função aqui apresentada), afirma Maria Celina BODIN

DE MORAES: “[...] qualquer interesse social merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico pode cumprir o papel de função idônea a justificar o ato de autonomia privada. [...] a causa do contrato se constitui, efetivamente, do encontro do concreto interesse das partes com os efeitos essenciais abstratamente previstos do tipo (ou, no caso dos contratos atípicos, da essencialidade que é atribuída pela própria autonomia negocial)” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Causa dos Contratos. In Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pp. 305-306). 120 A transição (a confirmar a distinção) entre estas duas acepções de “função”, pouco valorizada por

boa parte da doutrina, foi argutamente notada por Carlos Nelson KONDER: “Esta premissa [da funcionalização dos institutos] foi expressamente assumida pelo marco teórico chamado direito civil-constitucional, o qual destaca que, não apenas deve-se priorizar a análise da função do instituto, mas também verificar sua compatibilidade com os valores que justificam sua tutela por parte do ordenamento, positivados sob a forma de preceitos constitucionais. A supremacia do texto constitucional impõe que todas as normas inferiores lhe devam obediência, não apenas em termos formais, mas também no conteúdo que enunciam, de forma que todo instituto de direito civil se justifica instrumento para a realização das normas constitucionais. A isto normalmente se refere como funcionalização dos institutos de direito civil” (“Causa do contrato x função social do contrato”, op. cit., pp. 33-34. Grifo do original). 121 Reconhece-o Pietro PERLINGIERI: “A função, portanto, é a síntese causal do fato, a sua profunda e

complexa razão justificadora: ela refere-se não somente à vontade dos sujeitos que o realizam, mas ao fato em si, enquanto social e juridicamente relevante. A razão justificadora é ao mesmo tempo normativa, econômica, social, política e por vezes psicológica (assim é, por exemplo, em muitos atos familiares sem conteúdo patrimonial)” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, op. cit., p. 96). 122 Ao analisar a causa dos contratos, que compreende como o perfil funcional do negócio jurídico

concreto, explicita Carlos Nelson KONDER: “Quando se afirma que a causa é a função econômico-social, se faz confusão entre o objeto e o critério na qualificação, entre o fato e o valor, entre aquilo que é avaliado e aquilo que avalia. (...) Quando à causa, elemento do negócio jurídico, se atribui a natureza de função econômico-social — isto é, a função se exprime em termos de socialidade, de ordenamento — se acabaria misturando elementos do negócio concreto com critérios de avaliação do próprio ordena-

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Logicamente, admitida a tese de que todas as situações jurídicas seriam dotadas de função social, o juízo de admissibilidade do exercício teria de abranger, em todos os casos, o cumprimento dessa função.123 A coincidência, porém, entre função e função social decorreria, então, de outro fundamento, não já da equiparação ontológica das duas noções. Por outro lado, não reconhecida a função social de determinadas situações (nomeadamente, as situações puramente existenciais), nem por isso o aplicador estará impedido de investigar a regularidade de seu exercício, vale dizer, sua conformidade com a função que legitima a posição jurídica, e que leva em conta todos os valores do ordenamento.

5.2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL

A primeira disposição legislativa expressa caracterizando objetivamente o abuso do direito (vale dizer, a prescindir da verificação do ânimo do titular) deve-se ao Código Civil Suíço de 1907. No direito brasileiro, sob a égide do Código Civil de 1916, predominava o aspecto subjetivo do abuso (vale dizer, a intenção de prejudicar). A escolha da verificação objetiva do exercício abusivo pelo codificador de 2002 permitiria afastar definitivamente o abuso do ato emulativo no direito brasileiro, alcançando-se sua configuração mais atual. No intuito de demarcar as aproximações e diferenças entre o ato ilícito e o abusivo, cabe investigar que espécie de responsabilidade civil é aplicável aos danos por eles produzidos — vale dizer, se em ambos os casos se prescreve a responsabilidade subjetiva. Certamente, a verificação do abuso não pode mais levar em conta a intenção psicológica de prejudicar — fala-se, neste aspecto, de uma investigação objetiva. Não se pode inferir, porém, dessa assertiva que o codificador teria afastado a responsabilidade subjetiva (que preservou para os atos ilícitos) e adotado a responsabilidade objetiva para os danos decorrentes do abuso do direito. Ao contrário, resta silente o art. 187 neste ponto. De fato, a chamada “objetiva-

mento. (...) Esta confusão entre a função do negócio concreto e os critérios de avaliação do ordenamento conduziria à desconsideração, no julgamento do merecimento de tutela, de elementos importantes para o negócio concreto, mas não reputados essenciais para o modelo abstrato” (“Causa do contrato x função social do contrato”, op. cit., pp. 49-50). 123 Na lição de PERLINGIERI: “o ordenamento vigente conforma a função de cada situação subjetiva em

sentido social. O fenômeno pode ser mais ou menos relevante; por vezes, o é a ponto de transfigurar a situação subjetiva” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 670).

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ção” do abuso não implica, de per se, a conversão do dispositivo em cláusula geral de responsabilidade objetiva, tal como o art. 927, p.u. do Código Civil. Tome-se como ponto de partida este último dispositivo, que institui a responsabilidade objetiva em atividades de risco. Trata-se de responsabilidade civil que depende apenas da verificação de dano e da existência de nexo causal para ensejar o dever de reparar, prescindindo do concurso da vontade do agente para o evento danoso. Inspirado pelo princípio da solidariedade, procedeu o legislador à alocação do risco da atividade nas mãos de certos agentes econômicos (e, em última instância, da coletividade): De fato, no sistema atual da responsabilidade civil, o que se faz é subverter a antiga coerência do sistema, superando, em cada vez mais numerosos casos, a antiga finalidade de identificação do culpado. Isto ocorre pela atribuição de uma responsabilidade, sem culpa, com o objetivo de proteger os direitos das vítimas injustamente lesadas, realizando assim um verdadeiro compromisso com a solidariedade social. Com tal fundamento, quem suportará o dano causado no contato social não será mais a vítima, mas aquele que gera, com a sua atividade, a mera “ocasião” ou a “oportunidade” de dano, à qual sucede, de fato, um dano: para este (agora) responsável se deslocará o custo do dano, que poderá ser repartido entre os membros da coletividade através de diversos mecanismos, inclusive o do aumento do preço dos serviços e das atividades em geral.124 Não se torna difícil concluir que esta não é a ratio subjacente à responsabilidade civil pelo abuso de situações jurídicas subjetivas. A responsabilidade objetiva do parágrafo único do art. 927 abrange o prejuízo causado por atividade plenamente lícita,125 porém estatisticamente arriscada ou hábil à produção de danos em grande escala.126 O abuso do direito,

124 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva, op. cit., p. 401. 125 A doutrina ressalta “a impossibilidade de reduzir a responsabilidade pelo risco como contrapartida

de vantagens, baseada num princípio de justiça de distributiva, à responsabilidade por atos ilícitos, a que é totalmente estranha a ideia de antijuridicidade” (CUNHA DE SÁ, F. A. Abuso do Direito, op. cit., p. 646). 126 A noção de atividades de risco parece abranger aquelas “atividades que apresentam grau de risco

elevado seja porque se centram sobre bens intrinsecamente danosos (como material radioativo, explosivos, armas de fogo etc.), seja porque empregam métodos de alto potencial lesivo (como o controle de

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ao revés, configura exercício antijurídico, nunca lícito, de tal modo que a ressarcibilidade dos danos causados por abuso não apresenta fundamento muito diverso da reparação dos danos causados por ilícito — o agir antijurídico.127 Avançando mais um passo, cumpre destacar que o fundamento da responsabilidade objetiva no ordenamento brasileiro atual transcende a simples noção de risco. Com efeito, “a construção do risco como fundamento exclusivo da responsabilidade objetiva parece dirigida a anseios de imputação subjetiva que, hoje, já não se mostram tão necessários”.128 A responsabilidade objetiva figura, assim, como opção legislativa legítima para muitas hipóteses nas quais, no passado, doutrina e jurisprudência invocavam, não o risco, mas a culpa presumida como fundamento (tais como a responsabilidade por fato de terceiro — art. 932 do Código Civil — ou por fato de animal — art. 936 do Código Civil). Revela-se, assim, a verdadeira vocação da responsabilidade objetiva: “a de uma responsabilidade independente de culpa ou de qualquer outro fator de imputação subjetiva, inspirada pela necessidade de se garantir reparação pelos danos que, de acordo com a solidariedade social, não devem ser exclusivamente suportados pela vítima”.129 Novamente, porém, esta não parece ser a lógica que orienta o ressarcimento dos danos oriundos de abuso, para os quais existe um responsável evidente (o titular da situação jurídica exercida abusivamente), ao qual é perfeitamente razoável imputar-se a reparação, diante de critério objetivo de valoração da sua conduta (o exercício contrário à função). No ponto médio entre culpa e risco, aduz Cunha de Sá:

recursos hídricos, manipulação de energia nuclear etc.)” (SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 25). 127 “Há o dever de evitar o abuso nos mesmos termos e pelas mesmas razões por que há o dever de não

praticar o ilícito; sob este aspecto não há nenhuma diferença material ou de substância entre a antijuridicidade específica do abuso do direito e a que é própria da ilicitude (formal)” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 641). 128 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas..., cit., p. 29. Remata o autor: “a responsabilidade objetiva

consiste em uma responsabilização não pela causa (conduta negligente, conduta criadora de risco), mas pelo resultado (dano), distanciando-se, por conseguinte, de considerações centradas sobre a socialização dos riscos, para desaguar em uma discussão mais finalística sobre a socialização das perdas”. 129 SCHREIBER, Anderson, o.l.u.c.

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relevado como condição ou pressuposto da obrigatoriedade do comportamento ressarcitório no caso da responsabilidade civil subjetiva a culpa e no caso de responsabilidade civil objetiva o risco como contrapartida de vantagens, são estes mesmos elementos, respectivamente subjetivo e objetivo, [...] que vamos encontrar simultaneamente na fonte da obrigação de indenizar por ato abusivo: o elemento subjetivo, enquanto ela não surge independentemente de um juízo de censura sobre a própria vontade do agente; o elemento objetivo, na medida em que o ato abusivo é identificado pela ultrapassagem dos limites axiológico-materiais da prerrogativa jurídica individual exercida.130 A indicação de que o elemento objetivo da verificação do abuso reside nos padrões axiológicos da situação jurídica subjetiva acaba por remeter o intérprete ao conceito de “culpa normativa”. A tradicional noção de culpa, dita culpa psicológica, associava-se à violação de dever específico preexistente, na formulação clássica de Planiol, e vinculava-se à consciência do procedimento e à previsibilidade do resultado.131 Já a culpa normativa, elaborada no início do século XX, baseia-se no descumprimento do dever geral de não lesar ninguém. Nessa acepção, “a culpa seria um desvio do modelo de conduta representado pela boa fé e pela diligência média, isto é, ação ou omissão que não teria sido praticada por pessoa prudente, diligente e cuidadosa, em iguais circunstâncias”.

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Resta evidente a convergência entre os padrões de comportamento sobre os quais se baseia a noção de culpa normativa e aqueles levados em conta na aferição do abuso. Assim, se boa parte da doutrina afirma que a responsabilidade pelos danos em ato abusivo objetivou-se,133 forçoso compreender que se trata de responsabilidade subjetiva por culpa norma-

130 CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 644-645. 131 PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Responsabilidade Civil, op. cit., pp. 75-77. 132 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos

Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 211. Remata a autora: “A noção normativa de culpa, como inobservância da norma objetiva de conduta, praticamente substituiu a noção psicológica, com vistas a permitir que se apure o grau de reprovação social representado pelo comportamento concreto do ofensor, isto é, a correspondência, ou não, do fato a um padrão (standard) objetivo de adequação, sem que se dê relevância à sua boa ou má intenção” (Ibid., p. 212. Grifou-se). 133 Nesse sentido, dentre muitos outros: TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE

MORAES, Maria Celina et alii, Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República, op. cit., p. 342; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., p. 150; MARTINS-COSTA,

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tiva, não já de responsabilidade objetiva,134 no que o abuso do direito não difere, afinal, fundamentalmente do próprio ato ilícito. As duas categorias, como se expôs, distinguem-se em sua configuração, mas não no mecanismo de reparação dos danos que delas possam advir.135 Por outro lado, o abuso pode ensejar uma miríade de reparações in natura, específicas para a fattispecie concreta, a revelar outra nota diferencial do instituto.

5.2.3. CONSEQU¯NCIAS DO ATO ABUSIVO Dispõe o art. 927 do Código Civil que aquele que causar danos, por seu ato ilícito ou abusivo, estará obrigado a ressarci-los. Com efeito, a responsabilidade civil nos casos de abuso, há muito reconhecida pela doutrina, sempre levou a doutrina a exigir a produção de dano para que se reputasse configurado o exercício disfuncional. O dano ressarcível estava de tal forma atrelado à proteção jurídica do interesse lesado que não se cogitava de outra forma de tutela que não a reparação pecuniária.136 Tal premissa, sempre aplicada ao ato ilícito, estendia-se ao abuso em face da aproximação dogmática dos institutos.137

Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa Fé, op. cit., passim; CARPENA, Heloísa. O Abuso do Direito no Código de 2002, op. cit., p. 416; LOPES, Teresa Ancona. Exercício do Direito e Suas Limitações: Abuso do Direito, op. cit., p. 550. 134 Diversos autores já buscaram, para o abuso, uma concepção objetiva de culpa. No direito português,

mas em lição compatível com o caso brasileiro, v. CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 640: “[...] o abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um ato abusivo não danoso), quer, quando os haja, de qualquer elemento subjetivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora, sendo assim, a exigência de culpa, como requisito da responsabilidade civil por atos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente”. Fazendo referência a um critério de “culpa social”, v. LIMA, Alvino. Culpa e Risco, op. cit., p. 277: “Não há, nesta hipótese, apreciação de erro de conduta, mas simples verificação da lesão à coletividade, no exercício de um direito, baseando-se num critério social. [...] Daí se poder concluir que a culpa não reside, no caso do abuso do direito causando dano a terceiro, num erro de conduta imputável moralmente ao agente, mas no exercício de um direito causador de um dano socialmente mais apreciável. A responsabilidade surge justamente porque a proteção do exercício deste direito é menos útil socialmente do que a reparação do dano causado pelo titular deste mesmo direito”. 135 “[...] não é da especificidade da sanção que se deve partir para a autonomia dogmática do ato abusivo

perante o ato ilícito, mas sim da construção científica do abuso do direito para a determinação da sanção” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 632). 136 Afirma-se que essa visão “era perfeitamente congruente a uma determinada forma de pensar-se o

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A evolução da dogmática civilística culminaria na caracterização do ato ilícito e do ato abusivo como elementos que podem ensejar responsabilidade civil, se deles advier evento danoso, mas para cuja configuração o dano não representa, ontologicamente, um pré-requisito.138 Do mesmo modo, passou-se a admitir a tutela específica contra o abuso, em esforço muito mais eficaz139 de proteção dos interesses envolvidos.140 São exemplos de tutela

Direito Civil, a saber, uma forma liberal, tipicamente oitocentista, a tutela ressarcitória expressando ‘apenas o custo econômico da lesão’ e assim mantendo íntegros os ‘mecanismos do próprio mercado, sem alterar sua lógica’. Contudo, muito antes dos civilistas, os processualistas perceberam que, sendo a unificação das categorias da ilicitude e da responsabilidade civil um mero reflexo dos valores do Estado liberal, decorreria, pela mudança no perfil do Estado e da própria sociedade civil, a necessidade de tutela diferenciada que atendesse aos novos bens dotados de relevância jurídica” (MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa Fé, op. cit., p. 73). Cabe ressaltar que a dispensa do dano para a configuração do ilícito, no direito brasileiro, encontra óbice na própria redação do art. 186 do Código Civil (“violar direito e causar dano a outrem”); o mesmo não se verifica, porém, para o abuso do direito, previsto no art. 187. 137 “A ampliação do conceito tornou insuficiente esse regime repressivo. Desde que a anormalidade no

exercício de um direito não se verifica apenas na esfera em que podem ser produzidos danos materiais, a sanção consistente unicamente na obrigação de repará-los passou a ser inadequada, uma vez que, em muitos casos, não constituiria sanção eficaz” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, op. cit., p. 122). 138 “[...] se é certo dizer-se que o ato abusivo não importa responsabilidade civil para o seu autor senão

quando seja causa de um dano, [...] não pode haver obrigação de indenização quando a atuação do sujeito, independentemente de ser qualificável como abusiva ou como ilícita, não ocasiona danos para alguém: o dever de indenizar é, logicamente, transitivo: quem indeniza, indeniza alguém por alguma coisa” (CUNHA DE SÁ, F. A. Abuso do Direito, op. cit., p. 632). Na doutrina pátria, v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 337: “Para sua incidência [do art. 187] dispensa-se a exigibilidade do dano, pois suas consequências podem ter características de prevenção ou inibição, que evitem o dano”. 139 “A indenização pecuniária não só se revelaria, sob esse aspecto, totalmente ineficaz e insatisfatória

para a preservação dos interesses afetados pelo abuso do direito, como tão pouco a obrigação de reparar o dano assumiria obrigatoriamente tal forma: antes a indenização específica seria a melhor e mais adequada maneira de repor as coisas no estado anterior ao da lesão, fazendo destruir o que foi feito com desprezo do exercício do direito sãmente entendido. Consequentemente, o princípio que dominaria a sanção do abuso do direito seria o da reparação natural, variável evidentemente com o tipo concreto de ato abusivo praticado” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., p. 629). 140 “Por duas maneiras o abuso do direito é sancionado pela ordem jurídica: de um modo geral, o

ressarcimento por perdas e danos; de um modo especial e quando possível e adequado, mediante a

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específica as chamadas sanções in natura (destruição de construções, destituição do poder familiar, nulidade do ato jurídico,141 dentre outras). Problema específico diz respeito à tutela preventiva da repetição do ato abusivo. De uma parte, afirma-se que seria “injustificável sancionar o abuso do direito com a ablação do próprio direito de cujo exercício se abusou”, sobretudo quando a lei previsse sanção específica diversa para o exercício abusivo.142 De outra, não parece desarrazoado falar-se na proibição preventiva, não do exercício regular do direito, mas do exercício disfuncional. A doutrina pouco se dedicou às consequências jurídicas do ato abusivo. Com efeito, revela-se ainda atual a lição de Josserand, que dividia as sanções ao abuso em três grupos: i) perdas e danos (sanção pecuniária e reparatória);143 ii) medidas judiciais preventivas, que representavam, em geral, o suprimento de manifestações de vontade ou o reconhecimento de invalidades (sanção in natura de cunho inibitório);144 iii) recusa de tutela jurídica ao titular da situação exercida abusivamente, que não poderia invocar seu direito como forma de defesa.145 As múltiplas possibilidades de exercício disfuncional impedem enumeração mais

supressão ou anulação do fato ou ato abusivo, restabelecendo-se o statu quo ante. A lei visa não somente negar apoio ao ato abusivo de um direito como, indo mais além, em sendo possível, igualmente, impedir a sua continuação” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, op. cit., p. 540). 141 A nulidade do ato abusivo é negada por alguns autores, em respeito ao interesse de terceiros.

Favorável à nulidade, v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral, op. cit., p. 338: “Como o abuso do direito envolve limites, a nulidade do ato abusivo alcança o que ultrapassá-los. Contudo, o ato jurídico abusivo pode ser declarado nulo, quando o seu objeto for inteiramente contaminado pelo abuso e não puder ser aproveitado pela conversão ou pela conservação do negócio”; e, ainda: GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, op. cit., p. 122. Contra, v. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, op. cit., p. 541: “Todavia, em se tratando de um ato abusivo resultante de um ato jurídico, impõe-se afastar a solução de sua nulidade, sobretudo pela possibilidade de poder afetar o interesse de terceiros, confiados na aparente legalidade do ato. Em tais casos, a sanção deverá resumir-se na condenação a perdas e danos”; e, ainda, JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., p. 411, ressalvando que o ato pode ser invalidado sob outro fundamento (vício do consentimento ou fraude contra credores). 142 SERPA LOPES, Miguel Maria de, o.l.u.c. 143 JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., pp. 405 e ss. 144 JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., pp. 413-414. 145 “Si, par exemple, un entrepreneur de spectacles annonce par voie d’affiches la représentation d’une

pièce licencieuse et déshonnête, il ne saurait obtenir une condamnation à des dommages-intérêts contre celui qui a lacéré lesdites affiches, car il ne doit pas pouvoir se réclamer de sa propre faute” (JOSSERAND,

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minuciosa de sanções in natura. Estas definir-se-ão diante das especificidades do caso concreto — apenas à luz do qual, aliás, pode ser verificado o abuso.146

5.3. CONTROLE POSITIVO DO EXERC¸CIO DAS SITUAÇ›ES JUR¸DICAS. MERECIMENTO DE TUTELA

Terceiro elemento do quadro geral de mecanismos de controle do exercício das situações jurídicas (composto, de um lado, pelo ato ilícito e, de outra parte, pelo abuso) é o juízo de merecimento de tutela, cuja aplicação se mostra fundamental na tarefa de conferir efetividade aos princípios orientadores de nosso sistema jurídico. Em sentido lato, falar da ilicitude ou da abusividade de certo ato corresponde a analisar até que nível determinada conduta se revela merecedora de tutela jurídica, vale dizer, até que medida se justifica sua acolhida pelo ordenamento. O juízo de merecimento de tutela (meritevolezza) aqui aludido corresponde a aspecto mais específico dessa fundamentação. Segundo Pietro Perlingieri:

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Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., p. 415). O exemplo, que se aproxima da autotutela, pode parecer extemporâneo, mas ilustra a ratio da sanção in natura: qualquer interessado pode pretender, em juízo, a cessação do exercício abusivo, e o titular da situação jurídica não pode invocá-la como meio de defesa. 146 “Além do pedido da omissão do exercício abusivo do direito, seria impossível a este propósito e atenta

a infinda riqueza da vida e da imaginação humanas, proceder a mais do que à sua mera exemplificação, certo como é que a determinação da sanção que em última análise se aplicará ao ato abusivo só deverá ser feita em função e de acordo com as circunstâncias específicas do comportamento concretamente assumido pelo titular do direito. Aduzir-se-á ainda, não obstante, o caso da admissibilidade de legítima defesa, própria ou alheia, contra o ato abusivo, ou da recusa de eficácia do consentimento do lesado como causa justificativa da lesão, [...] da recusa de satisfazer um direito à indenização por dano de gravidade mínima e que também só possa explicar-se pela intenção de vexar o lesante, da atribuição ao devedor da faculdade de requerer a fixação judicial do prazo de cumprimento da obrigação, que tenha sido contratualmente deixada ao credor, ou, na promessa unilateral, de um prazo de caducidade para o exercício do seu direito, quando a abstenção deste seja em qualquer das hipóteses abusiva, de determinação da exigibilidade antecipada das restantes prestações, da faculdade de rescisão ou de invocar a exceptio non adimpleti (ou non rite adimpleti) contractus no contrato sinalagmático, [...] da consignação em depósito quando seja abusiva a falta de cumprimento da obrigação” (CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do Direito, op. cit., pp. 649-650).

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Em um ordenamento no qual o Estado não assiste passivo à realização dos atos dos particulares, mas exprime juízos sobre eles, o ato meramente lícito não é por si só valorável em termos positivos. Para receber um juízo positivo, o ato deve também merecedor de tutela (meritevole).147 Esse juízo de merecimento surge no bojo do fenômeno que Norberto Bobbio denominou “função promocional do direito”,148 e que converte a ótica protetivo-repressiva dos sistemas liberais (baseada no desencorajamento de condutas valoradas negativamente) em uma perspectiva de encorajamento de atos conformes ao direito.149 O ordenamento adota, desse modo, uma postura ativa, ao promover e incentivar uma mudança social com base em seus próprios valores.150 A função promocional do direito, que inspira o merecimento de tutela aludido por Perlingieri, demonstra que esse juízo valorativo do exercício de direitos difere substancialmente do juízo valorativo contido nas noções de ato ilícito e de ato abusivo. Estes últimos representam o controle negativo (ou passivo) de condutas, categorias típicas dos ordenamentos liberais protetores de prerrogativas individuais.151 O conceito de merecimento de tutela à luz dos valores e princípios orientadores de nosso ordenamento, por sua vez, traz em seu âmago o potencial de um controle positivo (ou ativo).152

147 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, op. cit., p. 92. 148 Sobre a função promocional nas constituições liberais, v. BOBBIO, Norberto. A Função Promocional do

Direito. In Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito. São Paulo: Manole, 2007, p. 13. 149 A técnica do encorajamento visa a tornar “os atos obrigatórios particularmente atraentes e os atos

proibidos particularmente repugnantes. [...] A introdução da técnica do encorajamento reflete uma verdadeira transformação na função do sistema normativo em seu todo e no modo de realizar o controle social. Além disso, assinala a passagem de um controle passivo — mais preocupado em desfavorecer as ações nocivas do que em favorecer as vantajosas — para um controle ativo — preocupado em favorecer as ações vantajosas mais do que em desfavorecer as nocivas” (BOBBIO, Norberto. A Função Promocional do Direito, op. cit., p. 15). 150 “Considerando agora as medidas de desencorajamento e as de encorajamento de um ponto de vista

funcional, o essencial a se destacar é que as primeiras são utilizadas predominantemente com o objetivo da conservação social e as segunda, com o objetivo da mudança” (BOBBIO, Norberto, o.l.u.c.). 151 Não se pode, porém, prescindir de tais categorias: “parece inconcebível um ordenamento, em

especial um ordenamento complexo como é o de um Estado moderno, que se sustente apenas sobre sanções positivas” (BOBBIO, Norberto. Em Direção a uma Teoria Funcionalista do Direito, op. cit., p. 75). 152 Embora se adote o termo “controle” em paralelismo à expressão empregada para atos ilícitos e

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Quer-se com isso indicar que o controle da abusividade no exercício das situações jurídicas coloca-se em posição intermédia entre o controle de licitude e o controle do merecimento de tutela, no que tange ao juízo valorativo de condutas. E, se tal configuração do quadro de mecanismos de controle é adequada, como parece, torna-se possível afirmar que, embora atos ilícitos ou abusivos nunca sejam merecedores de tutela, o exercício plenamente funcional de certa situação jurídica lícita pode, ainda assim, não ser considerado digno de tutela à luz dos valores que o ordenamento busca promover. A distinção nem sempre é clara, pois sói acontecer que o caso concreto apresente dois interesses de fato contrapostos, tanto nas hipóteses de exercício disfuncional, quanto nos casos em que se pode proceder à etapa seguinte, do merecimento de tutela.153 Há que se atentar, porém, à antijuridicidade inerente ao exercício abusivo. Não haverá, no abuso, dois interesses legítimos contrapostos. O conflito no abuso não reside no choque entre dois direitos, mas no choque entre um regulamento legítimo de interesses (o perfil funcional) e o exercício desconforme a ele, de todo censurável. Difere o abuso, assim, dos casos que contrapõem dois interesses, ambos conformes ao direito, mas que, indicando soluções antagônicas, exigem uma ponderação154 para determinar qual será merecedor de tutela. Outra distinção pode ser ainda evidenciada entre a abusividade e o merecimento de tutela. Como se viu, essencial à identificação do abuso é a função, elemento que atua como mínima unidade de efeitos e razão justificativa da situação jurídica.155 Já merecimento de

abusivos, no âmbito da função promocional o termo não é o mais adequado. A respeito, v. BOBBIO, Norberto, o.l.u.c. 153 A valoração do abuso “é complexa porque postula a verificação da existência de contra-interesses

juridicamente relevantes”, que devem ser considerados “segundo critérios de proporcionalidade individual e social” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 684). 154 A técnica da ponderação de interesses, muito citada em matéria de conflitos de princípios, “tem que

ser efetivada à luz das circunstâncias concretas do caso. Deve-se, principalmente, interpretar os princípios em jogo, para verificar se há realmente colisão entre eles. Verificada a colisão, devem ser impostas restrições recíprocas aos bens jurídicos protegidos por cada princípio, de modo que cada um só sofra as limitações indispensáveis à salvaguarda do outro” (SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição, 1. ed., 2. tir., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 198). 155 Aduz-se que a vedação ao abuso “corresponde à passagem da concepção individualista (ou absoluta)

do direito subjetivo, de total soberania privada, à sua concepção relativista (ou socializante). Tal passagem deu-se através do reconhecimento de que o aspecto funcional é característico do direito tanto quanto é o seu aspecto estrutural. O direito subjetivo não se qualifica apenas por seu conteúdo pré-definido

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tutela, embora expressão de toda a tábua axiológica constitucional, está particularmente vinculado ao cumprimento da função social.156 Esta, como se afirmou, corresponde a um dos aspectos (rectius, interesses) que podem compor uma situação jurídica subjetiva, mas não equivale à sua função.157 Assim, o abuso do direito pressupõe juízo valorativo, a um só tempo, mais restrito e mais amplo que o merecimento de tutela: mais restrito, pois não promove valores diretamente, atuando de forma predominantemente negativa; mais amplo, pois considera aspectos “funcionais” (não estruturais) paralelos à função social.

6. PERSPECTIVAS DA APLICAÇ‹O DO ABUSO ¤S SITUAÇ›ES EXISTENCIAIS

A possibilidade de verificação do exercício abusivo nas situações existenciais foi há muito admitida pela doutrina. Louis Josserand, por exemplo, já comentava o abuso do pátrio

pelo legislador (pressuposto fático), mas principalmente pelas circunstâncias do seu exercício” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à Realização do Exame de DNA e Direitos da Personalidade, op. cit., p. 180). 156 “No ordenamento moderno, o interesse é tutelado se, e enquanto for conforme não apenas ao

interesse do titular, mas também àquele da coletividade” (Pietro PERLINGIERI, O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 678). Em outros termos, “quando se afirma que dada situação jurídica subjetiva tem função social, faz-se uma distinção entre o interesse individual e o interesse social que esteja envolvido. A função social, neste aspecto, impõe que seja merecedora de tutela a situação jurídica apenas se promover interesses sociais ainda que não coincidentes daqueles individuais pertencentes aos titulares” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 43). 157 Aduz Carlos Nelson KONDER, em estudo comparativo entre a função social e a causa do contrato:

“Se a função social do contrato é aquilo que avalia — ou perante a qual se avalia — a causa do contrato é aquilo que é avaliado. Trata-se da função que aquele contrato específico vem a realizar — seu ‘perfil funcional’ — e que, para tanto, deverá ser compatível com o ordenamento, isto é, com a finalidade, socialmente relevante, em virtude da qual se concede este poder aos particulares, enfim, a dita função social do contrato. A causa do contrato, em consequência, é causa daquele contrato específico e individualizado, com suas peculiaridades e vicissitudes, e por isso referida como função econômico-individual, expressa pelo valor e capacidades que as próprias partes deram à operação negocial na sua globalidade, considerada em sua concreta manifestação. Expressa-se igualmente na síntese dos efeitos jurídicos essenciais: não os efeitos tipicamente atribuídos àquela estrutura negocial, mas os efeitos essenciais àquele negócio concretamente firmado” (KONDER, Carlos Nelson. “Causa do contrato x função social do contrato”, op. cit., p. 74).

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poder.158 Na mesma esteira, relevante parcela da doutrina brasileira contemporânea também reconhece que o exercício disfuncional pode recair sobre situações existenciais,159 citando como exemplos, dentre outros: a proibição de visita aos avós como abuso do exercício do poder familiar;160 os castigos imoderados como abuso do poder correcional dos pais em relação aos filhos;161 a recusa à realização de exame de DNA para fins de investigação de paternidade como abuso do direito à incolumidade física;162 o rompimento vexatório de noivado como abuso do direito à revogação ínsito às escolhas existenciais.163 A jurisprudência, porém, raramente reconhece o abuso de situações existenciaisais, decidindo os casos concretos com escassa fundamentação, quando muito amparada por juízos fluidos de merecimento de tutela, baseados na técnica da ponderação de interesses. Com efeito, um dos grandes desafios que enfrenta a civilística na disciplina dos interesses dessa natureza reside na extensão da liberdade a ser conferida à autonomia privada no exercício de tais situações jurídicas.164 Por isso, não raro, faz-se referência à ponderação de

158 Por exemplo, na hipótese em que o pai, separado de fato, criasse entraves para que o filho, cuja

guarda detinha, pudesse ter contato com a mãe, ou nos casos em que a concessão de emancipação ou a recusa a anuir com o casamento do filho incapaz fossem exercidos de forma contrária aos interesses do menor (JOSSERAND, Louis. De L’Esprit des Droits et de Leur Relativité, op. cit., passim e, sobretudo, pp. 87 e ss). 159 “A teoria do abuso de direito não se aplica somente na esfera dos direitos patrimoniais, como, a

princípio, se supôs. [...] O desvio pode ocorrer igualmente no exercício de direitos extrapatrimoniais” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, op. cit., p. 121). No mesmo sentido: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à Realização do Exame de DNA e Direitos da Personalidade, op. cit., passim; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, op. cit., p. 153; VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 623; GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 468; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 262. 160 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, op. cit., p. 121. 161 GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso..., op. cit., p. 468. 162 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Recusa à Realização do Exame de DNA..., op. cit., p. 181. 163 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 262. 164 “No âmbito das situações existenciais, o valor principal a ser perseguido é a dignidade da pessoa

humana, a qual se concretiza juridicamente nos princípios da igualdade, integridade, solidariedade e liberdade. Essa afirmação somente vem confirmar que a vontade não basta por si mesma, pois a liberdade é apenas um dos meios de realização da dignidade da pessoa humana. Saber quais os confins dessa liberdade direcionada a questões da própria existência da pessoa, porém, ainda é um desafio” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., pp. 92-93).

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interesses com base nos princípios constitucionais para a demarcação de limites ao exercício das escolhas existenciais.165 Trata-se, porém, de mecanismo que nem sempre se revela, tecnicamente, o mais adequado para o controle valorativo de tais escolhas. A ponderação (técnica usualmente empregada no juízo de merecimento de tutela) parte do balanceamento de dois interesses ou princípios. Ambos constituem interesses legítimos e juridicamente admissíveis; como, porém, indicam soluções antagônicas para o caso concreto, resolve-se o conflito investigando-se qual deles deve prevalecer e qual deve ceder espaço.166 Com efeito, a ponderação consiste em técnica de decisão aplicável aos chamados hard cases, insolúveis pelo método da subsunção.167 Sua aplicação aos casos de abuso deve ser evitada, justamente por não se tratar de casos difíceis (na acepção estrita que a doutrina constitucionalista confere ao termo). O exercício disfuncional não se funda em interesse legítimo, mas sim na violação de regulamento legítimo de interesses — postura antijurídica, a ser reprimida. E afrontaria a lógica ponderar interesse legítimo (contraposto ao abuso) com outro antijurídico, quando se sabe de antemão que este deve ser censurado integralmente na medida da disfuncionalidade (não apenas parcialmente afastado). A incompatibilidade da técnica de ponderação de interesses com esse tipo de caso concreto apresenta a primeira evidência de que o juízo de merecimento de tutela (que dela se utiliza amplamente) nem sempre será o recurso mais eficaz para o controle valorativo das situações jurídicas subjetivas. O abuso do direito, ao revés, figura como modalidade de controle (certamente diverso, vez que negativo, mas ainda assim de grande utilidade) aplicável a todo e qualquer caso, em se considerando que toda situação jurídica subjetiva traz em si uma composição de interesses — uma função, no sentido que se opõe usualmente à estrutura — que pode ser desobedecida no momento do exercício. Uma segunda constatação evidenciará as vantagens do juízo de abusividade, especificamente para o controle de exercícios de autonomia existencial. O reconhecimento do abuso

165 Ilustrativamente: “só a ponderação de interesses pode identificar o dano indenizável, considerando

a natureza essencialmente revogável das situações existenciais” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 264). 166 “[...] os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo

examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, op. cit., p. 335). 167 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, op. cit., p. 334.

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nas situações extrapatrimoniais exige particular atenção ao fato de que interesses dessa natureza se submetem de forma diferenciada a juízos valorativos. Essa peculiaridade pode ser identificada na doutrina que já analisou a bastante controversa aplicação do juízo de merecimento de tutela (meritevolezza) às situações dessa natureza. Aduz Daniel Sarmento que, para as liberdades existenciais,

existe uma proteção constitucional reforçada, porque, sob o prisma da Constituição, estes direitos são indispensáveis para a vida humana com dignidade. [...] Por isso, não podemos concordar inteiramente com o Professor Pietro Perlingieri quando este, depois de reconhecer que a autonomia privada abrange tanto o campo das relações patrimoniais, como o das situações subjetivas não patrimoniais, de natureza pessoal e existencial, afirma que em ambos os casos existe “um denominador comum na necessidade de serem dirigidos (os atos de autonomia) à realização de interesses e de funções que merecem tutela e que são socialmente úteis”.168 Na nossa opinião, a observação do Mestre de Camerino é inteiramente válida para a autonomia privada ligada a interesses patrimoniais, mas não para as liberdades existenciais, que não dependem de comprovação de utilidade social para tutela.169

A perplexidade acima descrita explica-se por meio de formulação assaz reproduzida em doutrina: o merecimento de tutela dos interesses existenciais há de ser diferenciado porque se considera que tais interesses não têm função social, mas, ao revés, são a função social.170 A partir dessa premissa, proposta conciliatória da aparente controvérsia quanto à “função social” das situações existenciais é formulada por Rose Melo Vencelau Meireles:

168 A referência é extraída de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, op. cit., p. 19. 169 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit., pp. 177-178. 170 “Quando se afirma que dada situação jurídica subjetiva tem função social, faz-se uma distinção entre

o interesse individual e o interesse social que esteja envolvido. A função social, neste aspecto, impõe que seja merecedora de tutela a situação jurídica apenas se também promover interesses sociais ainda que não coincidentes daqueles individuais pertencentes aos titulares. [...] Nas situações jurídicas que são função social não há uma linha divisória entre o interesse individual e o interesse social. As situações existenciais são a própria função social porque afeitas à tutela da pessoa humana e não há fim social maior que este” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 44).

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O fim social a ser perseguido nos atos de autonomia existenciais se traduz na realização da dignidade humana, porque as relações existenciais são função social. Consequentemente, não é incoerente afirmar que a autonomia privada existencial se volta para a satisfação de interesses (a pessoa) e funções (livre desenvolvimento da personalidade) que merecem tutela e que são socialmente úteis (dignidade humana), mas não se subordina a interesses da coletividade. Isto porque o fim socialmente útil a que visa a autonomia privada existencial consiste na dignidade da pessoa humana, portanto, não viola e sim promove a liberdade individual.171 Há que se reconhecer, portanto, no juízo de merecimento de tutela instrumento de promoção global dos valores constitucionais. Assim, a “função social” a ser promovida no exercício das situações existenciais pode residir, simplesmente, na tutela da própria dignidade humana, a partir da livre expressão da autonomia negocial, dentro dos parâmetros de razoabilidade que se considerem adequados a essa ordem de escolhas pessoais.172 Em uma palavra, pode ocorrer que o interesse social nas escolhas existenciais não seja outro que a premissa, já enunciada por Jhering, segundo a qual a defesa da liberdade de cada um equivale à defesa da liberdade de todos.173 Resta evidente que esse reenvio à cláusula geral de tutela da dignidade humana, embora esclareça com precisão o juízo merecimento de tutela nas situações existenciais, não supre a necessidade específica de critérios mais concretos para o controle de seu exercício. Nesse

171 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., p. 189. 172 “Em princípio, a autonomia existencial será merecedora de tutela porque a liberdade integra o

conteúdo jurídico da dignidade humana. Porém, se a autonomia for de encontro a outro princípio igualmente formatizador da dignidade humana, o conflito será resolvido como qualquer outra colisão de princípios” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., pp. 194-195). 173 A noção é desenvolvida na célebre obra A Luta Pelo Direito: “a resistência contra a afronta ao nosso

direito, que ofenda a própria personalidade, ou seja, contra uma violação do direito que por sua natureza assuma o caráter de um menosprezo consciente do mesmo, de uma ofensa pessoal, constitui um dever. Constitui um dever do titular do direito para consigo mesmo, pois representa um imperativo de autodefesa moral; e representa um dever para com a comunidade, pois só por meio de tal defesa o direito pode realizar-se” (JHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 39).

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cenário, destaca-se a figura do abuso como instrumento de grande valor para o intérprete, o que se evidencia, por exemplo, na lição de Menezes Cordeiro:

Existem, [...] dentro do tecido jurídico, ilhas de não funcionalidade. Atine-se no fenômeno do jussubjetivismo, ou seja, da permissão normativa específica de aproveitamento. No seio desta, os comportamentos são funcionais, porquanto conformes com a permissão. Do interior, porém, eles são não funcionais: é irrelevante para o Direito que o exercício se processe desta ou daquela maneira. O sistema pode impor-se, por si, no interior de permissões normativas específicas; quando o faça, o exercício do direito que contradite o sistema, embora conforme com normas jurídicas, é disfuncional. O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema em que estas se integrem.174 Nessa passagem, o eminente civilista português menciona espaços de liberdade (típicos das situações existenciais), diante dos quais vislumbra a aplicabilidade do abuso.175 Ora, considerando que a autonomia ínsita às escolhas existenciais não constitui liberdade pré-jurídica, mas sim garantia conferida pelo ordenamento (devendo, portanto, ser exercida de

174 MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil, op. cit., p. 882. 175 Tais espaços de liberdade não são extrajurídicos, como se poderia supor. Com efeito, não existe fato

que não receba valoração, expressa ou implícita, do ordenamento: “Os chamados fatos ‘juridicamente irrelevantes’, na verdade, ou são fatos relevantes (como exercício de liberdade), mas não predeterminados a ter eficácia, ou não são fatos” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil..., op. cit., p. 640). Com efeito, o exercício de qualquer liberdade revela expressão de proteção normativa genérica. Sobre o conceito de norma geral inclusiva, v. Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 139, que afirma: “liberdade não protegida significa licitude do uso da força privada” (Ibid., p. 131). Em belíssima passagem, observa RODOTÀ que os valores diversificados da sociedade globalizada exigem do legislador, ao tratar da autonomia existencial, “un diritto flessibile e leggero, che incontra la società, promuove l’autonomia e il rispetto recíproco, e avvia cosi la creazione di principi comuni” (RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p. 58). É deste espaço, juridicamente tutelado, porém não regulamentado, que se trata quando se alude a espaços vazios de direito: “Ora ci troviamo di fronte a situazioni in cui l’indicare il fatto e dire il diritto appartengono alla stessa persona, nel senso almeno che esiste un potere di scelta tra risposte giuridiche diversificate o, più radicalmente, di entrata in uno spazio vuoto di diritto. Si può, dunque, uscire dal diritto e rientrare nella vita” (Ibid., p. 62).

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ao interesse do menor: i) não será ilícito, pois o genitor não terá extrapolado seus limites

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mostra-se essencial nos casos em que houver interesse legítimo contraposto. Esse interesse

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forma livre, porém compatível com os valores do sistema), então a possibilidade de abuso de tais situações representa fator crucial para o controle do seu exercício. Tome-se como exemplo o abuso do poder familiar, como no caso em que o pai se recusa a autorizar a mudança de domicílio do filho para outro país (benéfica para o menor). A questão pode ser resolvida levando-se em conta o regulamento de interesses que qualifica essa situação jurídica. Como todo poder jurídico, seu exercício não deve obedecer ao interesse do titular, mas sim do terceiro em favor do qual a potestà se constitui.176 O exercício contrário estruturais; ii) não estará, por outro lado, embasado qualquer interesse legítimo (não cabendo, portanto, ponderação com o melhor interesse da criança); iii) nem representará, tampouco, o descumprimento de suposta função social, vez que o interesse contraposto do menor é individual, e não coletivo.177 Reputar-se-á, isto sim, disfuncional, inadmissível, e acarretará as consequências específicas do abuso — dentre as quais se reconhece possível o suprimento judicial da manifestação de vontade do pai. Nesse diapasão, o instituto do abuso fornece valioso instrumento para a ainda frágil disciplina jurídica dos atos de autonomia existencial. Embora nem sempre se identifique parte legítima para alegar o abuso nas situações dessa natureza, o controle funcional do exercício pode integrar a função da situação subjetiva desde sua gênese (é o caso do abuso do poder familiar),178 ou especificar-se pela violação da regra geral de não lesar ninguém (é o caso da revogação de escolhas existenciais causadora de dano).179 Em qualquer caso, se outro

176 “A potestà é, portanto, uma situação jurídica complexa, que atribui não somente poderes, mas

deveres que não devem ser exercidos no interesse do titular da potestà, o tutor, mas naquele do representado” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 700). No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, op. cit., p. 38. 177 O interesse em prol do qual se instituiu o poder não precisa ser, necessariamente, da coletividade,

podendo representar o interesse “de um terceiro ou da coletividade” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 700. Grifou-se). 178 Note-se que “o exercício da situação requer a manifestação de vontade de um sujeito, não necessa-

riamente do titular do interesse. Por exemplo, o tutor que exerce direitos do menor [...]: o interesse é do menor, a vontade, ao revés, do tutor: o primeiro é titular do interesse, isto é, da situação subjetiva, o segundo é legitimado a exercê-la. Exercício significa também a capacidade de exercer, capacidade de fato” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional, op. cit., p. 670). 179 Embora se admita a possibilidade de dano ressarcível oriundo de escolhas existenciais, sua verificação

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interesse, além daquele do titular, estiver integrado à função da situação jurídica, não será sua natureza existencial a impedir o controle de abusividade do exercício.180 EDUARDO NUNES DE SOUZA Mestrando em Direito Civil pela UERJ. Pesquisador do Instituto de Direito Civil. Advogado.

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exige certa cautela. Assim, por exemplo, “revogar o ato de autonomia existencial é ato lícito e, como tal, não gera o dever de indenizar. Isto porém não impede que possa ser configurado abuso de direito no caso concreto, tornando o dano indenizável. Como exemplo, imagine-se que o disponente de rim que revoga tal disposição frustra que seja destinado ao beneficiário do ato rim recebido no hospital” (MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana, op. cit., pp. 262-263). 180 Reconhece-se que apenas a tutela da própria dignidade humana pode impor limites à autonomia

existencial, a afastar a utilidade da função social para esse tipo de controle: “O conceito [de personalidade] torna-se, então, elástico, abrangendo um número ilimitado de hipóteses, e somente encontra os limites postos na tutela do interesse de outras personalidades” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade, op. cit., p. 127). Nesse sentido, afirma Stefano RODOTÀ, sobre o poder ínsito à autonomia existencial: “Questo potere di liberarsi da vincoli e di riconquistare pienezza di vita, tuttavia, incontra un limite nella vita degli altri. Quando si è dato il consenso alla fecondazione della propria moglie o compagna con il seme di un donatore, non è poi possibile revocarlo [...], perché quel consenso era parte di una comune decisione” (RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole, cit., p. 63).

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