“acerca das sapatilhas [aladas] de Hermes”

June 8, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Video Art, Estética, Estetica, Museologia, Fotografia
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10.6 A Morte é uma Flor [d’aprés Paul Celan] | Graça Sarsfield

“acerca das sapatilhas [aladas] de Hermes” Blume – ein Blindenwort. | Flor. Flor – uma palavra de cegos. Dein Aug und mein Aug: | Teu olho e meu olho: sie sorgen für Wasser.| eles providenciam água. Paul Celan

As longas cartas atravessam os tempos todos da poesia: pela anuência, celebração ou recusa. Paul Celan evoca-as em “Retrato de uma sombra”. Aparentemente no pólo oposto, Peter Handke intitulou um dos seus ensaios poéticos como “Breve carta para um longo adeus”. Às cartas associam-se ausências, afastamento mas alento de proximidade. Nas palavras interpeladas que início de uma carta anuncia, as pessoas existem em estado prévio que, depois, se solidifica ou dissolve. As fotografias podem residir transitoriamente dentro de envelopes aveludando as cartas. Um sistema de cumplicidade lúcida resolve-se neste diálogo entre imagem e escrita – talvez seja caso de utopia, talvez seja caso de decisão. Haja brevidade ou demora, as cartas configuram-se em formato de flor ou de memória que se assemelha a uma flor perene. A memória adquire estímulos diferentes; isolamos sabiamente as suas tipologias; pensamos que as dominamos pelo fato de lhes outorgar qualificativos singulares e, no “final de contas” vividas, a memória domina-nos a nós, “sem dó nem piedade” – dir-se-ia parafraseando o ditame popular. A memória, seja ela deliberada ou atrevida, é sempre uma reentrada (abusiva) no dia e na hora atual. Deslizando na subtileza de um saber - que venera ou abomina o dia de hoje – a memória decorre do acumulo de muitas pequenezas e lonjuras dilatadas. A memória convoca a repetição, ajustando-lhe a diferença …pense-se no célebre aforismo de Manoel de Barros. A memória é, sobretudo, metamórfica. Jogos OLÍMPICOS 30 julho > 14 agosto 1932 | JOGOS DAS X OLÍMPIADAS em LOS ANGELES | 1332 atletas = 1206 homens + 126 mulheres | 6 Atletas portugueses | “Men's 100m: 1 António Sarsfield Rodrigues — 1st round: 5th (heat 1)”

A obra “10.6 A Morte é uma Flor”2 é agora mostrada no Porto, por Graça Sarsfield, 5 anos após ter sido instalada na Sala Cinzeiro, Museu da Electricidade (Lx, 2009), sob curadoria de João Pinharanda. A peça videográfica revisita sob uma tensão íntima de afeto e homenagem a figura de seu Pai – enquanto atleta e homem. No texto, escrito na ocasião, por Paulo Cunha e 1 2

CF. http://en.wikipedia.org/wiki/Portugal_at_the_1932_Summer_Olympics (consultado a 2 fev. 2015) A obra foi apresentada pela 1ª vez, a 25 de março de 2008, no Teatro Municipal de Almada.

Silva, lê-se: “Resgata [Graça Sarsfield] a glória passada do pai num curioso tributo em que o submete à sua metodologia transmórfica. E a glória passada do pai reveste-se de uma homenagem sensível, em que a artista não deixou de ser filha neste processo de apropriação das imagens em direcção a uma realidade alternativa.” A metodologia aplicada por Graça Sarsfield soube conciliar “razão e sensibilidade” convertendo a imagem em algo texturado, espesso e rico. O procedimento de matriz tecnológica não anulou a densidade implícita que – habitualmente – se atribui, condenando alguns, o digital, dizendo-o anódino na planificação da imagem fotográfica. Lembre-se, como, anos atrás, considerou Paulo Reis, a propósito do vídeo “Des(a)parecer” (2005)3, que a artista sabia atingir, através de uma mestria poética, a essência da imagem em si mesma. Seguindo esta reflexão, dir-se-ia que o recurso a procedimentos exigidos por equipamentos digitais encontra uma plataforma estética quase ontológica. “Le passé a la voix de chaque empreinte, de chaque caresse ou blessure laissées par nous au sol et autour ou faites à un être. »4 Nesta obra combinam-se várias aceções de corpo, mapeadas entre a fisicalidade celebrada e a evanescência iconográfica. A saber: [a imagem do] corpo real – o atleta em performance (histórica) em L.A. 1932, em registros quer fotográficos, quer cinematográficos; [a imagem como] corpo idealizado – o atleta que exerce/atinge o virtuosismo na performance; [a imagem como] corpo imaginário – o atleta que excede a queda em estado de performance;[a imagem do] corpo simbólico – o atleta que une em si ascendência de herói…Assim se combinam estas aceções da imagem do corpo que é celebrado, aurático – o atleta como que além de pessoa”…trabalhando-se assim a ideia de um corpo mítico que voa, quase numa definição remitologizada – o atleta transcendendo o tempo e recorrendo a memória já não somente pessoal mas coletiva. Aqui, trata-se de retomar da memória coletiva (de um tempo), a memória pessoal (individuada quer num caso, quer no outro) para a “renascer” em obra. A força iconográfica de António Sarsfield interpreta o conceito de record que no atletismo - e muito em particular em corrida de velocidade “súbita” - é um desafio dos deuses. A essência volitiva, quase uma aceção apolínea “vontade de domínio” (salvaguardado o paradoxo d’aprés Nietzsche), a intencionalidade manifesta na atuação do corredor rege-se pela superação. Por analogia, identifica-se ao que acontece na dança, ao procurar-se numa sequência de piruetas, perpetuar e ultrapassar sempre o número dominado - uma mais uma mais uma ainda… Essa superação ocorre aqui entre as dimensões do diurno e do noturno, subtilmente divagadas numa película a preto/branco, onde os 600 tons de cinzento (Vieira da Silva dixit) encenam a dramaturgia velada por intervalos de respiração. Se a dança é desenho em movimento, como quis Paul Valéry, a corrida de 100m ajusta-se, também, ao âmago do cinema nos seus primórdios e ambição: registar o movimento na sua matriz. No cinema, podemos considerar a (quase percetível) interseção justaposta de imagens que se assemelha à entranhada (e inconsciente, por vezes) composição de memórias sobrepostas, que no tempo e no espaço emergem e nos dominam ou baralham. Efetivamente, como escreveu Cerith Wyn Evans: “time becomes space” e “space becomes time”. Os olhos são convocados para verem a Flor, para verem a Morte. Lembrando Paul Éluard, é preciso “Donner à Voir”. 3

Conversa com Paulo Reis, relembrada por Graça Sarsfield, quando da inauguração do projeto Des(a)parecer na Galeria Módulo, Lisboa, em 2005. 4 Edmond Jabès - Le Livre des Questions, Paris, Gallimard, 1963, p.156

Os teus olhos, rastos de luz dos meus passos (…) As tuas pestanas, mensageiros de longas cartas5

Maria de Fátima Lambert

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Paul Celan - “Retrato de uma Sombra”, A Morte é uma Flor, Lisboa, Livros Cotovia, 1997, p.19

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