Acerca de uma viagem ao passado: sobre a hospedagem de Sólon em Saís segundo o \"Timeu\" de Platão

August 7, 2017 | Autor: L. Ouro Oliveira | Categoria: Artes plásticas, Platão, Filosofia antiga
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COLEÇÃO HESPÊRIDES

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O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada

Maria Cristina Daniel Alvares Ana Lúcia Amaral Curado Sérgio Paulo Guimarães de Sousa ORGANIZAÇÃO

Universidade do Minho Centro de Estudos Humanísiicos

O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura. Cinema, Banda Desenhada Organização: Maria Cristina Daniel Alvares Ana Lúcia Amaral Curado Sérgio Paulo Guimarães de Sousa Direção gráfica: Antônio Pedro Edição do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho © EDIÇÕES HÚMUS, 2013 Enrf Postal: Apartado 7081 - 4764-908 Ribeirão - V. N. Famalicão Tel. 926 375 305 E-maiL humusidhumus.com.pt Impressão: Papelmunde, SMG. Lda. -V.N. Famalicão 1.3 edição: Dezembro de 2013 Depósito legal: 365811/13 ISBN 978-989-755-018-8

As Immram irlandesas: a influência da narrativa de viagem no imaginário medieval Carlos Carneiro Sei que não sou quem sou e, por isso, tenho de partir. A viagem contra os limites do eu em Saga e O Conto da Ilha Desconhecida Marco André Fernandes da Silva - -xERÁRIOS URBANOS

- NÉRAIRES URBAINS A Lisboa onírica de Alain Tanner e Antônio Tabucchi Ana Fernandes À procura de imagens: Roma nas "relações portuguesas" de viagem na época barroca 5arã Augusto Viagens ao além entre cidades, casas e outros constrangimentos jrbanos: Os Infernos de Dante Alighieri e de Armênio Vieira Daniela Di Pasquale Limage d'lstambul dans Parle-leurde batailles, de róis et d'èléphants de Mathias Énard Aodullatif Acarlioglu DESTINO: MAIS ALÉM :E5TINATION: PLUS LOIN

Acerca de uma Viagem ao Passado sobre a hospedagem 3e Sólon em Sais segundo o Tlmeu de Platão Lethicia Ouro de Oliveira* Reflets de Sabá. Voyage, écriture et imagerie intemporelle Ouelques incursions spatio-temporelles v=sha Mattioli

ACERCA DE UMA VIAGEM AO PASSADO SOBRE A HOSPEDAGEM DE SÓLON EM SAÍS SEGUNDO O 77MEÍ/DEPLATÃO i_ethicia Ouro de Oliveira' jetfiiciaouroByahoo.com.br =ONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

No preâmbulo do Timeu de Platão, a personagem Crítias reconta uma estória que escutara de seu avô quando jovem. A estória fora trazida do Egito pelo poeta e estadista ateniense Sólon. Este a escutara dos sacerdotes da cidade de Sais que a conservaram por escrito num templo religioso. Inusitadamente a estória que vem do Egito conta um grande feito de uma cidade grega, a própria pátria de Sólon, Atenas. Trata-se da famosa vitória desta cidade grega sobre a potência imperial Atlântida. Neste texto evidenciaremos como alguns pares de conceitos perpassam

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esta narrativa: juventude e velhice; memória e esquecimento; artes visuais e arte poética. A partir de uma reflexão sobre o uso e a estrutura destes conceitos na narrativa de Crítias, evidenciaremos que Platão desenha o encontro com o estrangeiro como o encontro consigo mesmo; a viagem de Sólon a Sais pode ser vista como a viagem à sua própria pátria.

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OS TEXTOS FILOSÓFICOS TRATAM DE TEMAS UNIVERSAIS, buscam um saber válido não só no presente, mas também no passado e no futuro: em todo e qualquer tempo. O filósofo deseja conhecer o que é sempre o mesmo, o eterno, que, no caso do pensador grego Platão, é identificado às idéias, como se repete nos manuais de filosofia. Esse universal, eterno e imutável naturalmente escapa aos olhos que se detêm nos acontecimentos históricos particulares constantemente em mutação. A atividade filosófica tal como ilustrada por Platão caracteriza-se por um redirecionamento do olhar, uma aproximação da alma da estrutura universal da realidade: a famosa saída ascendente da caverna sombria. 1

Gostaria de agradecer aos professores Manuel Curado e Ana Lúcia Curado, que me receberam de forma gentilíssima em Braga ao longo do Colóquio "O Imaginário das Viagens: literatura, cinema, banda desenhada". Agradeço também à minha orientadora Maura Iglésias que atenciosamente leu e comentou esse texto.

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No proêmio de um dos tardios"1 e mais comentados121 diálogos platônicos, o Timeu, esse redirecionamento do olhar ou aproximação da alma acontece, em certo sentido, graças à rememoração de um saber adquirido numa viagem. Platão leva um de seus personagens, ou melhor, como veremos a seguir, o personagem de um personagem, até o Egito para que lá encontre a ilustração pretensamente histórica da sabedoria política utópico-fílosófica exposta num diálogo anterior, a República. Expliquemos o contexto dessa passagem do Timeu em partes. Na cena de abertura do Timeu, Platão justapõe os personagens Sócrates, Timeu, Crítias e Hermócrates numa conversa sobre o tema que será abordado naquele dia de encontro. Os amigos continuam um colóquio iniciado no dia anterior quando Sócrates expôs sobre a melhor constituição possível e os homens que deveriam executá-la. Curiosamente, o discurso de Sócrates é apresentado como um dom de hospedagem: se no dia anterior Crítias, Timeu e Hermócrates receberam um discurso como um presente do então anfitrião Sócrates'31, na data dramática do diálogo é Sócrates quem deve receber um discurso como retribuição pelo que proferira.'41 Na Grécia Antiga, a prática da Çevío, que podemos traduzir por hospitalidade, fazia parte da tradição em sua lida com os estrangeiros, Çévoi, provenientes de outras cidades-estado (TTÓXeiç) ou até mesmo de civilizações não-helênicas. Trata-se da recepção de um viajante, um estrangeiro, em casa e da troca de presentes e/ou oferta de refeição ou banquete em comum. Estabelece-se, desse modo, uma relação de qnXía, termo grego geralmente traduzido por

1

Cf., por exemplo, as cronologias dos diálogos propostas por Lutoslawski, Raeder, Ritter. Wilamowitz e Ross em Ross, D., 1953, p. 2 e IO. 2 Principalmente na Antigüidade e na Idade Média. Sobre isso, cf., por exemplo, JOWETT. B., 1892, p. 341,342 e BRISSON, 1974, p. 55-71. 3 Ver a tradução de Luc Brisson para a primeira fala do diálogo que clarifica a relação de hospedagem da qual falamos. Ele ressalta os sentidos de SCUTUHÓVUJV, hóspede convidado para uma refeição, e éoriáTiup, que oferece uma refeição como dono da casa: "Socrate: un. deux, trois, mais notre quatrième, mon cher Timée, celui qui faisait partie du groupe de ceux que j'avais invités au banquei que j'ai offert hier, et qui compte parmi ceux qui aujourd'hui m'ont convié à cê banquet, ou est-il?" (Zü)Kpórr|c;. Elç, ôúo, rpelç- 6 Se êí| TÉiapioc r)HÍv, w : do faraó Amasis, e é deste que imita uma das leis. Todavia, o arcontado de Sólon I9Q3.C.) é mais de vinte anos anterior do início do reino de Amasis. Sobre isso, cf. fc.joo2,p.XIII. •cois Pradeau analisa o vocabulário do diálogo que desenvolve o relato sobre a Atenas paana. o Crítias, e percebe nele um vocabulário tipicamente herodoteano ausente no o je sua obra. A nosso ver, trata-se de mais um indício da proximidade deste relato ••escritos históricos de Herodoto. Cf. Pradeau, 1997, p. 154-79.

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história verdadeira (cf. Platão, Timeu, zoa, 2ia, e, 26c, e).[nl A < é necessária pois o que escutamos soa, admitimos, fantástico.' dissemos, uma cidade grega, Atenas, é dita mais antiga que uma < egípcia; por ser virtuosa, ainda que abandonada por seus aliados, uma potência imperial; e, após a vitória, ambas, Atenas e sucumbem por terremoto e dilúvio, numa catástrofe natural.'15' Por conta da catástrofe, o relato da excelência e da vitória de Atenas perder-se-ia; todavia, ele se salvou porque os egípcios, já então, dominar vam a arte da escrita.1'41 Eles a usavam, segundo Platão, para guardarem seus livros sagrados, localizados nos templos religiosos, os feitosbefc» e grandiosos de todos os povos de que tivessem notícia. Conservara» em seus hieróglifos o relato da constituição e dos feitos exemplares da Atenas de outrora. Além disso, como aludimos anteriormente fascinados pela beleza da cidade grega, imitaram sua constituição n» cidade de Sais. Porque Sais imita a antiga Atenas, a viagem de Sólon à cidade egípcia pode ser compreendida como uma viagem ao passado: ao passado de seu próprio povo, os atenienses. A cidade que recebe Sólon é semelhante ã Atenas primeva: ao se hospedar em Sais, no estrangeira é como se Sólon estivesse no seu próprio passado originário, "em casa*. No Egito ele não só toma conhecimento do passado longínquo dos gregos conversando com os sacerdotes de Sais, mas também vê e por algum tempo convive numa cidade que segue os mesmos princípios, que possuí a mesma constituição, de sua cidade natal em passado distante Como dissemos acima, este passado é acessível pelo uso egípcio da arte da escrita. Pode-se afirmar que a cultura egípcia é centrada nas artes da escrita, da pintura e da escultura, além, claro, da arquitetura piramidal. Como sabemos, essas artes serão distinguidas e classificadas somente no período da Renascença, quando se exige o qualitativo de

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Isso já fora apontado por Vidal-Naquet, 2008, p. 27. Ressaltamos que muitos helenistas encontram semelhanças entre o relato de Crítias e fatos ou acontecimentos da história grega. Alguns identificam a Atenas histórica à Atlântida, e vêem uma crítica do filosofe à ganância da cidade em que vive. Cf. essa leitura em Idem, 35. 13 Vidal-Naquet ainda ressalta que a Atenas originária não possui nenhuma característica das cidades históricas. Ver Idem, 30. 14 Segundo um mito platônico do Pedro, um deus egípcio, Theuth, inventou a arte da escrita. Cf. Platão, Fedro, 274d-275d-e.

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f para trabalhos antes considerados simplesmente manuais ou •tos. como os das artes plásticas. Permitindo-nos o anacronismo «ário para abordar o tema que agora nos interessa, sabemos que pipcios primavam no que hoje chamamos de artes visuais, assim D na técnica da escrita. Enquanto os egípcios caracterizam-se pelo visual de conteúdos simbólicos referentes às suas crenças, como -.: — s lidade da alma, por exemplo, e aos seus rituais festivos assim rfmerários, os gregos se unificaram numa tradição essencialmente transmitida pelos versos poéticos.'151 A consagração de templos icuses. e a oferenda de estátuas são, dentre outras, práticas que regos aprenderam com os egípcios, como afirma o historiador de tarnasso (cf. Hérodote, Histoires, II, 4).íl6í Comparada à tradição do país do Nilo, a cultura helênica parece •rada". Por mais que os rapsodos e os jovens que aprendiam os os homéricos exercitassem, acima de tudo, a memória, enquanto kva grega permaneceu essencialmente orai, os conteúdos verKJJS glorificaram um passado próximo. Os sacerdotes egípcios i ao ouvir o que Sólon considera como os antepassados gregos longínquos baseando-se no saber mitológico: Faroneu, Níobe, aiião e Pirra (cf. Platão, Timeu, 22a,b). Tal descendência é recente •parada ao conhecimento egípcio de muitíssimas gerações antes: eles conservavam estátuas colossais de trezentos e quarenta e •ancestrais, trezentos e quarenta e cinco gerações (cf. Hérodote, •m, II, 143). Sem o registro gravado, escrito, pintado ou esculdos feitos do passado em local seguro, toda catástrofe natural aa inteiramente uma civilização, como aquela sofrida por Atenas unidade grega conferida pela tradição oral homérica, cf., por exemplo, Snell, 159 e Havelock, 1996, Cap. 3: A poesia como comunicação conservada; sobre a idade de escrita, pintura, escultura e arquitetura piramidal na cultura egípcia, basta ormos a função dessas artes nos ritos relacionados à crença tipicamente egípcia «taHdade e transmigração das almas, assim como o uso privilegiado delas para a nação de sua tradição. Sobre isso, cf., por exemplo, Jacob, 2002, p. X; e Vercoutter, iobre a oposição entre as duas tradições, cf. Jacob, 2002, XXVI-XXIX. «etrata de uma observação nova ou especial: todos sabemos da influência egípcia t grega arcaica. Sobre isso, cf. qualquer manual de arte grega ou, por exemplo, ia. 2O12, p. 309.0 historiador da arte Gombrich diz que "os mestres gregos foram b com os egípcios." Gombrich, 2008, p. 55.

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e Atlântida, segundo o discurso de Crítias.1'71 Isso teria acont os atenienses se não tivessem sido admirados pelos egípcios, e, por isso, conservados por eles. Todavia, no proêmio do Timeu, a jovem Grécia não será, comm poderia parecer, menor ou desvalorizada em relação ao antigo EÕB A oposição Juventude X Velhice também é marcada pelo ] que reconta o relato sobre a excelência originária ateniense, i Sublinhemos o que afirmamos de passagem no começo de nosso! porque ouvira o relato da vitória ateniense sobre Atlântida i jovem, Crítias diz que este ficou gravado qual uma pintura < (éyKaú(iaTa ypcupfjc;) na sua alma (cf. Platão, Timeu, 26c). Já o que* na velhice ele pouco retém, escorre-lhe da alma como as águas d Lethe, Rio do Esquecimento. Ressaltemos que para ilustrar a i proveniente da juventude de Crítias Platão usa a imagem de umi visual: a pintura encáustica. Plínio, o Velho, apresenta esta técnica pictórica em sua j Natural (cf. Book XXXV, XLI). Com ela, a pintura é feita pefa: cão de cera derretida, o que confere um efeito de translucidez i assim como uma maior durabilidade. Plínio afirma que essa i era usada na pintura de naus, pois com ela os contornos e cores i tiam à exposição à água, ao sal, ao vento e ao sol. O uso da imagem da pintura encáustica tem como fim ressaltar a i e durabilidade da memória do relato de Sólon na alma de Cr pintura, assim como a escrita anteriormente, no contexto da < relatada por Crítias, é representativa da conservação, da mani de determinado conteúdo cultural. Dado o exposto, percebemos uma relação estruturada de i um tanto inusitada. Ambas, Juventude e Velhice, em oposição l ral, relacionam-se tanto com a Memória quanto com o Esqueomea também em oposição. A Juventude, sem memória porque sem l portanto nesse sentido "esquecida", é propícia à retenção da i ria; a Velhice, cheia de memórias da Juventude, esquece-se dos j 17

Ressaltemos que, além de registrarem sua cultura nas hoje chamadas artes mantinham o mesmo padrão estético há séculos. A arte egípcia não se diferença entre os períodos históricos só pode ser determinada pela retratação do diferentes faraós, e não quanto ao estilo. Sobre isso, ver Platão, Leis, 6566 e V<

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recentes. É como se uma fosse a imagem espelhada da outra: por mais que Juventude e Velhice sejam conceitos opostos, no que diz respeito à questão da Memória e do Esquecimento, parecem guardar certa identidade. E qual seria o sentido dessa identidade? No caso do relato de Sólon, podemos dizer que a intenção platônica seja a explicitação da identidade grega, especificamente a ateniense. Passado e presente, memória e esquecimento constituem o processo de encontro do saber sobre quem são os gregos.'181 Para que se responda à pergunta "quem sou eu?" é necessário saber sobre o passado: "qual a minha origem?", "qual a minha progenitura?" e de alguma forma também "qual a minha àpjf\T'. A identidade no presente é alcançada por meio de um conhecimento do passado. E essa busca só acontece se se parte do esquecimento de quem se é para a rememoração.'191 Falamos aqui de um saber não só antigo. Na contemporaneidade, no que diz respeito ao conhecimento sobre as práticas e teorias científicas relativas aos hospitais e às escolas, por exemplo, poderíamos citar o método arqueológico investigativo do filósofo francês Michel Foucault ou, no caso do homem individualmente e seu conhecimento próprio, o processo de análise que desvenda questões recentes pelo resgate de experiências passadas segundo o próprio criador da psicanálise, Sigmund Freud. No que diz respeito ao proêmio do Time u de Platão, a estratégia do filósofo é perspicaz: ele faz de sua utopia filosófica um fato histórico do passado longínquo do seu povo. Assim, o discurso filosófico não pode ser tomado como "algo do outro mundo", inalcançável ao cidadão comum, que não possui um sentido no âmbito prático na TtóXic; de então. Ao contrário, ele ocupa o lugar paradigmático concedido pelos gregos aos feitos e heróis do passado, glorificados pelos poetas e orientadores da vida dos cidadãos: eles compunham a educação dos jovens e eram citados na vida cotidiana dos homens em geral para aconselhar ou justificar uma ou outra atitude.1201 Sendo 18

Como sabemos, essa é uma finalidade da obra de Herôdoto. Novamente o procedimento platônico é paralelo ao histórico. '» Sobre a ligação entre identidade e memória em Herôdoto, cf. Jacob, 2002, p. XXXI. " Sobre esse tema, cf., por exemplo, Snell, 2001, p. 152, Jaeger, 1995, Homero como educador e Havelock, 1996, A enciclopédia homérica. Segundo Snell, os mitos gregos, diferentemente dos de outras tradições, relacionam-se estreitamente com a história. Desde que Schliemman encontrou as ruínas de Tróia e de Micenas, a ligação entre mito e história

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assim, concluímos que, para Platão, ser grego é ser como o cidadão õa cidade ideal ou da Atenas originária. Esclarecemos que não pretendemos condenar este filósofo greç». chamando-o de mentiroso e desonesto - um verdadeiro sofista! - ac vestir afilosofiacom as roupas da história. Resgatando o que disse» na abertura deste texto, lembramos que a filosofia trata do atempon^ do eterno. Por isso, seu saber é sobre o passado, o presente e o furam. Platão acredita na filosofia e no seu poder de direcionar os homas para uma vida mais luminosa, virtuosa, e até feliz.M É por essa crença que sua apropriação do discurso histórico não é verdadeiramente f-tn ou dissimuladora. Trata-se antes do testemunho de sua confiança no» frutos do autêntico e árduo trabalho filosófico. Platão usa muitas imagens para retratar o movimento filosofia de percepção do real. No discurso de Crítias do início do Timeu, essa imagem é, em certo sentido, a rememoração do saber adquirido i viagem, ao se hospedar num país estrangeiro. É certo que não sei de uma investigação racional e argumentativa que qualifica a filosofia. Todavia, a cidade apresentada por Crítias é a própria justiça política definida por processo dialógico na República, em movimento. Sendi assim, trata-se de um saber filosófico resgatado, então, pela estará provinda de uma viagem. Num sentido amplo, de acordo com o qae desenvolvemos neste texto, é por meio do relato proveniente do estra*geiro que é possível o conhecimento de si mesmo, no presente i da identidade ateniense, pelo encontro com o outro, a cidade de í Genericamente, toda viagem possui esse poder; pois é pelo encontro c ê incontestável. Sobre isso, cf. Snell, 2001. As origens da consciência histórica. Asn Platão, como vínhamos afirmando, forja um relato de caráter histórico, permeando i só o mundo herodoteano, mas também a caráter histórico dos mitos, repletos de l e ações paradigmáticos para os gregos. Além disso, tal como os mitos homéricos,p» exemplo, Platão fala de uma história distante. Historiadores, como Herodoto, tratam » uma história recente. Por fim, Platão, tal qual Homero, não opõe diametralmente os grea» aos povos orientais, o que só ocorre com Herodoto. Isto nos desvenda a complexidade ai relato sobre a Atenas arcaica: Platão se quer historiador, mas procede tal qual os poett*. Para Vidal-Naquet, trata-se da invenção de um gênero literário: a ficção científica. G Vidal-Naquet, 2008, p. 43. 21 Neste último aspecto Platão pensa diferente de Sólon. Para o último, a injustiça tom infelicidade; a justiça, contudo, não é garantia da felicidade: esta depende também A sorte. Cf. Jaeger, 1995, p. 184.

o outro, o diferente, o estrangeiro, que percebemos quem nós somos: vemo-nos pela diferença, por oposição, ou eventuais semelhanças, em relação ao outro. Genialmente Platão desenha o estrangeiro, Sais, como o próprio, Atenas: o encontro do outro como o encontro de si. De forma geral, as viagens ou, no caso do preâmbulo do Timeu, os discursos recebidos como dons de hospedagem, nos fazem encontrar com o outro - o que, paradoxal todavia logicamente, é encontrar consigo mesmo.

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Homo viator. A perceção da condição humana como uma viagem atravessa épocas e paradigmas histórico-culturais, intersetando fenômenos tão díspares como a moral de Séneca, a simbólica cristã do romeiro, a metafísica existencialista de Gabriel Mareei ou a campanha publicitária de uma conhecida marca de whisky: keep walking. Respondendo ao apelo do mar, da estrada, do deserto, homens e mulheres estão sempre a caminho, sempre em movimento, trilhando o mundo em busca de outro lugar, o lugar de outra coisa, indefinível e enigmática, que se manifesta sob formas variadas como o Graal, a pimenta, os tesouros, as cidades submersas, a lua... São muitos os nomes de viajantes que povoam o nosso patrimônio imaginário, ficcional e não ficcional: Gilgamesh, Ulisses, Marco Polo, Fernão Mendes Pinto, D. Quixote, Chateaubriand, Lévi-Strauss, Kerouac, Bruce Chatwin, Tintin, Nicolas Bouvier; mas também a massa anônima de comerciantes, piratas, repórteres, missionários, exilados, povos em diáspora. Os artigos reunidos neste volume debruçam-se sobre as poéticas e as configurações imaginárias da viagem na literatura, no cinema e na banda desenhada, interrogando o modo como estas poéticas e estas configurações decorrem do jogo de múltiplos fatores, entre os quais se contam gêneros literários, correntes estéticas, formas narrativas, regimes do imaginário, ideologias, materialidades semióticas e tecnológicas, dispositivos institucionais e campos culturais. Por outras palavras, que função ou que incidência tem o tema da viagem e suas representações na (relcriação de formas e gêneros literários como a epopéia antiga, o romance (arturiano, de aventuras, contemporâneo), o travei writing do século XIX, o road movie ou os diários de viagem em banda desenhada, entre outros.

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