ACERCA DOS DILEMAS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

June 1, 2017 | Autor: Adriano Rodrigues | Categoria: Educação, Escola, Etnometodologia
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ACERCA DOS DILEMAS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Adriano Duarte Rodrigues
Um antropólogo brasileiro meu amigo costuma dizer que a escola, se fosse uma coisa boa, não precisava de ser obrigatória. Tenho pensado nesta observação do meu amigo antropólogo nos últimos tempos. Embora eu duvide que aquilo que é obrigatório não seja necessariamente bom, reconheço que a expressão do meu amigo pode ser entendida no quadro das críticas contundentes que, entre os anos 60 e 80 do século passado, muitos sociólogos fizeram ao sistema de ensino nas nossas sociedades, acusando a escola, entre outras coisas, de reproduzir as desigualdades sociais e de alimentar mecanismos de descriminação social, em vez de contribuir para as combater e formar cidadãos livres (Bourdieu & Passeron 1964; 1970; Booles & Gintis 1976). Estas críticas levaram até alguns autores a propor a invenção de uma sociedade descolarizada (Illitch 1970). Não sei se estes estudos e esta proposta têm razão, mas têm pelo menos o mérito de provocar e estimular a reflexão acerca da instituição escolar e de fazer entender melhor aquilo que fazemos com a nossa profissão de professores.
Quando sou confrontado com questões perplexas e inquietantes para as quais não encontro resposta satisfatória, tenho o hábito de começar por indagar a etimologia dos termos que costumamos utilizar para nos referirmos a essas questões. A etimologia não tem evidentemente resposta para todas as questões que nos inquietam, mas tem pelo menos o mérito de indicar a origem e a genealogia dos termos que utilizamos para as colocarmos. Fui por isso levado, antes de vir para este nosso encontro, a procurar a etimologia do termo que costumamos utilizar para referir a nossa profissão e do termo que utilizamos para nos referirmos, tanto à instituição, como ao espaço, em que habitualmente a exercemos. Começo por isso por apresentar a etimologia do verbo educar e do substantivo escola.
O verbo educar vem do latim educere, formado a partir do verbo ducere, conduzir, puxar, tirar, e do prefixo ex-, para fora. Educere significa, portanto, extrair, puxar ou tirar para fora. É também a etimologia do termo latino educare que significa criar, cuidar de, mas também produzir. Podemos talvez dizer que a educação é a tarefa de cuidar, criar, produzir, fazendo sair para fora, fazendo aparecer à luz do dia potencialidades que estão lá dentro, escondidas, que esperam o ato de criação para aparecerem à luz do dia.
Curiosamente este sentido do termo educação é muito próximo do termo grego alêtheia, termo que viria a ser traduzido pelos romanos por veritas, de que deriva o nosso termo verdade. É pena que, com a tradução latina para veritas, se tenha perdido ou esquecido o sentido etimológico grego de alêtheia, formado pelo nome lethe, que significa venda ou véu, e pelo prefixo a-, que indica o ato de tirar para fora, de extração. Etimologicamente aletheia significa portanto desvendamento, tirar o véu ou a venda que encobre alguma coisa que está escondida debaixo. Como vemos alêtheia, a verdade, tem um sentido muito próximo do termo educação.
O que pretendo dizer nesta minha intervenção tem muito a ver com o facto de, em grande medida, eu encarar a minha experiência de professor à luz da etimologia do termo educação. E para começar, fiel a esta minha experiência, permitam que vos advirta de que não vou dizer nada que já não saibam. Apenas vou tentar pôr à luz do dia, tirar para fora, revelar aquilo que cada um de vós já sabe. Tal como, ao longo de quarenta anos de professor, foi-se tornando cada vez mais evidente que não fiz mais nada do que descobrir, do que desvendar as potencialidades dos dispositivos de que os alunos que chegavam às minhas aulas estavam já dotados pelo facto de, nos primeiros anos de vida, terem interiorizado a sua língua materna.
É claro que, na escola, os jovens aprendem muitos saberes novos que os programas curriculares pretendem transmitir-lhes, fazendo com as novas gerações não tenham que começar tudo de novo, mas aproveitem os conhecimentos conquistados pelas gerações anteriores. Mas a minha experiência de professor ensinou-me que os nossos alunos só os conseguem compreender e assimilar, porque os formulamos com os termos e com as estruturas gramaticais da língua que as mães lhes ensinaram. Quando chegam à escola os nossos alunos já possuem interiorizadas todos os dispositivos de toda a experiência possível do mundo. Pelo simples fato de possuírem o domínio da sua língua materna, já vêm apetrechados, não só com as competências práticas que lhes permitem ou os habilitam a adquirir os comportamentos adequados às diferentes situações que encontram, mas também com as categorias que tornam possível referirem-se às diferentes componentes da sua experiência. O esquecimento deste enraizamento nas competências e nas categorias da língua materna faz com que as aprendizagens dos saberes formais dos programas escolares que tentamos transmitir-lhes não passem de formas vazias que não conseguirão entender. Podem eventualmente reproduzir nos exames e nos testes as formas e as fórmulas que ouviram nas aulas, mas depressa as esquecerão, tendo por isso pouca ou nenhuma utilidade para o seu futuro como cidadãos livres, como homens e mulheres do seu tempo. É por isso que para mim o único método pedagógico realmente aceitável começa pela observação. Observar atentamente o que fazem e dizem os nossos alunos nas diferentes situações da sua vida é para mim o único princípio pedagógico realmente importante. É por isso que, com o passar dos anos, fui dedicando cada vez mais tempo à observação e à escuta, a ponto de achar que a ciência pedagógica tem que começar pela observação. Acabei assim por alimentar uma espécie de dúvida metódica acerca de todas as teorias pedagógicas que nos procuram inculcar e que se têm alternado no Ministério da Educação, quais modas de diversão para a ausência de respostas para os dilemas com que inevitavelmente a instituição escolar se debate.
Para melhor fazer entender o que pretendo dizer deixem que recorde que, ao longo dos primeiros anos de vida, os vossos alunos interiorizaram, com a aprendizagem da língua materna, os dispositivos indispensáveis, não só para a aquisição dos conhecimentos que a nossa espécie acumulou ao longo da sua evolução milenar, mas também para a aquisição todos dos saberes adquiridos ao longo do processo sociogenético de formação da cultura da comunidade em que nasceram. Foi esta interiorização que fez deles seres humanos queridos, dotados de todos os dispositivos que os fazem perfeitamente competentes para viverem neste planeta e na comunidade humana de que fazem parte. Quando chegam à escola, já possuem os dispositivos que permitem adquirir os conhecimentos inerentes à sua experiência possível do mundo físico, das suas componentes e das suas regras de funcionamento; já possuem os dispositivos que tornam possível a aquisição dos conhecimentos inerentes à sua experiência do mundo social, das suas normas de comportamento e das suas estratégias de aplicação, assim como todos os dispositivos que tornam possível adquirir os conhecimentos inerentes à sua experiência do seu mundo subjetivo, das suas regularidades e das suas rotinas. É por isso qua a educação, como a etimologia do termo sugere, não é mais que a instituição social destinada a desvendar ou a revelar, a trazer para a luz do dia as potencialidades dos dispositivos de que já são dotados. Não podemos por isso dizer simplesmente que a escola se destina a ensinar saberes novos. O que a escola faz é desenvolver ou desencadear as potencialidades dos dispositivos interiorizados ao longo da primeira infância. É neste processo que as aprendizagens formais das diferentes disciplinas, tanto nas áreas da matemática e da lógica, da física e das diferentes ciências da natureza, como nas áreas das humanidades, assentam ou se inscrevem. Estou cada vez mais convencido de que muitas das dificuldades com que nos confrontamos na nossa atividade docente decorrem do esquecimento desta relação dos saberes disciplinares com a experiência de vida aberta pelos dispositivos de que estão constituídos. No meu caso, se pudesse voltar atrás e começar de novo a minha atividade docente ou se, pelo menos, estivesse ainda na vossa situação, procuraria seguir o método da observação dos comportamentos dos meus alunos, começando por detetar as estratégias que eles seguem para lidarem com o mundo à sua volta, por entender o raciocínio que elaboram para resolver os problemas com que se confrontam e para resolverem os dilemas da sua existência. Estou cada vez mais convencido de que é só em diálogo permanente com os saberes já interiorizados que os podemos levar à aprendizagem do programa da disciplina que temos a nosso cargo.
Permitam que aborde agora a etimologia de escola, do termo que utilizamos para designarmos a instituição em que trabalhamos e para nos referirmos ao espaço em que desenvolvemos a nossa atividade. Escola vem do grego scholé que quer dizer paragem, repouso, ócio. Scholé, scholai no plural, é o nome que os gregos davam às ocupações ou às atividades a que os cidadãos livres, os eleutheroi, se dedicavam. O que caraterizava estas atividades era o facto de serem livres de qualquer compromisso com as necessidades de subsistência. O adjetivo scholastikos era aplicado ao homem desocupado ou ocioso, que se dedicava livremente a atividades desinteressadas, descomprometidas de qualquer utilidade e da obrigação de satisfazer qualquer necessidade material.
Pode parecer paradoxal e, no mínimo, enigmático que seja este o nome que hoje damos ao espaço onde exercemos a nossa profissão. Não é verdade que todos nos pedem, desde os poderes públicos até aos pais dos nossos alunos, para lhes fornecermos conhecimentos que sejam úteis para a sua vida? Não é verdade que um dos indicadores do sucesso escolar é o seu contributo para fazer baixar a taxa do desemprego dos jovens à saída do sistema escolar?
A etimologia do termo escola é reveladora da ideia que os Gregos da antiga Grécia tinham da escola, da sua natureza e das suas funções. Para os Gregos, a escola era o espaço onde os homens livres se entregavam a atividades de lazer, de ócio. Como sabemos, essas atividades consistiam sobretudo em disputas oratórias e em competições. Para os Gregos do século de Péricles, era a possibilidade de se dedicar a ocupações inúteis, pelo simples prazer, que caracterizava a vida verdadeiramente digna de ser vivida, a vida do eleutheros, do homem livre. O escravo, pelo contrário, estava acorrentado a tarefas obrigatórias, às ocupações que lhes eram impostas. Do seu trabalho dependia aliás a possibilidade das scholai, as atividades ociosas do seu senhor.
Creio que é hoje muito oportuno sublinhar o sentido etimológico do termo escola, numa época em que os valores da utilidade parecem sobrepor-se aos valores da liberdade, o princípio primeiro e fundador da cidadania. A submissão ao princípio da utilidade caracterizava para os Gregos a condição de escravo, a vida sem interesse, que não valia a pena de ser vivida. Ao colocarmos hoje a utilidade da formação escolar acima da sua relação com a educação para a liberdade, não corremos um sério risco de pervertermos e de instrumentalizarmos aquilo a que hoje damos o nome de escola? Não estaremos a preparar os nossos jovens para novas formas, talvez mais insidiosas e subtis mas não menos eficazes, de escravatura? Não estaremos a incutir neles a obsessão por saberes meramente voltados para o lucro, acorrentando-os a uma vida de labuta inglória e sem sentido? Como vemos, não é para este desfecho que a etimologia do termo escola aponta. De acordo com este sentido, a escola existe para abrir oportunidades de escolha entre as possibilidade de uma vida realizada e digna, ocupada em atividades em que os nossos jovens sintam realizadas as suas potencialidades e aspirações, como cidadãos, como homens e mulheres livres.
A suspeita de estarmos a viver um momento de aceleração do processo de instrumentalização da escola foi recentemente sugerida, tanto pelo espetáculo quase pornográfico da luta a que assistimos por contratos de associação por parte de algumas empresas como pela disputa entre as escolas de todos os graus de ensino para atraírem os alunos mais rentáveis, como se de nichos de mercado se tratasse. Não tenho visto nesta luta qualquer projeto de educação seriamente sustentado, mas o negócio em que a escola parece ter-se convertido. Em vez de instituição e espaço de preparação para a liberdade e para a cidadania, a escola converte-se assim em objeto de lucro e em mecanismo de instrumentalização das novas gerações para formas de descriminação e de escravatura do nosso tempo.
Permitam agora que aproveite a referência a este dilema entre a utilidade e a liberdade com que a escola está hoje confrontada, para abordar outros dilemas que tornam a nossa profissão refém de algumas exigências paradoxais. Refiro-me ao dilema entre, por um lado, as exigências de uma abordagem especializada de saberes e, por outro lado, as exigências de uma abordagem global, holística ou transdisciplinar, ao dilema entre, por um lado, uma aprendizagem de saberes positivos e, por outro lado, uma atitude crítica, ao dilema entre formação científica e desenvolvimento da experiência estética, ao dilema entre, por um lado, um tratamento igualitário e, por outro lado, um tratamento diferenciado dos alunos.
Educação holística ou disciplinar?
Na nossa profissão, somos confrontados com os imperativos de uma abordagem que respeite, ao mesmo tempo, as exigências disciplinares dos programas curriculares e a abordagem global, holística ou transdisciplinar dos saberes. É este dilema que gostaria agora de sublinhar.
Nos últimos quatro séculos foi o modelo disciplinar que dominou a organização científica dos saberes. O paradigma cartesiano (Descartes 2014; original: 1637) orientou o ideal de racionalidade do conhecimento, conduzindo à fragmentação dos seus domínios e o modelo arborescente proposto por Hobbes (1620) constituiu a matriz da sua organização hierárquica. É este paradigma racional e este modelo disciplinar fragmentado que levou a uma cada vez maior especialização e autonomia dos institutos e departamentos universitários e que serve em grande medida de matriz para a organização curricular dos programas e para a formação didática dos professores.
Os programas curriculares, ao promoverem exclusivamente a aprendizagem de saberes disciplinares especializados, subalternizam ou, pelo menos, secundarizam a formação transdisciplinar, a compreensão holística ou global dos saberes. E, no entanto, é nas fronteiras entre as disciplinas que surgem as hipóteses mais fecundas e promissoras de novas descobertas.
É certo que a formação transdisciplinar coloca desafios e exigências difíceis de satisfazer. Talvez a primeira e mais difícil exigência decorre da dificuldade em sairmos da nossa zona de conforto e de adquirirmos simpatia pelos colegas que se dedicam a disciplinas diferentes das nossas. Só há uma maneira de combater esta dificuldade: alimentar um espírito de curiosidade intelectual sem limites e criar condições de permanente diálogo entre saberes diferentes. Deste diálogo decorre a possibilidade daquilo a que daria o nome de contaminação virtuosa entre disciplinas diferentes.
Não tenho evidentemente tempo para aprofundar aqui estas questões. Mas não posso deixar de mencionar que a viragem sistémica que começou a esboçar-se timidamente nos finais do século XIX e que se aprofundou de maneira exponencial ao longo do século XX, confere às diferentes ciências uma plataforma interdisciplinar comum cada vez mais evidente. É para esta viragem transdisciplinar dos saberes que a escola tem também que preparar os seus alunos. Temo que o espírito cartesiano e arborescente dos saberes disciplinares esteja ainda muito presente na organização da instituição escolar no nosso país e que tenhamos que fazer um esforço para a adequar às exigências da visão rizomática e reticular que configura indiscutivelmente a organização das instituições científicas do nosso tempo. (Deleuze & Guattari 1980; Santos 2008)
Aprendizagem de saberes positivos ou incentivo do espírito crítico?
Um outro dilema tem a ver com o confronto das exigências da aprendizagem dos conhecimentos formais dos programas escolares com a exigência de uma atitude crítica em relação aos saberes científicos formais. Se não equacionarmos as questões decorrentes deste dilema, corremos o risco do cientismo, de formar cidadãos para aprenderem de maneira acrítica as formulações aceites como verdade no momento em que as aprendem, mas que se tornarão inevitavelmente obsoletas alguns anos depois? Como discernir a contaminação entre conhecimentos cientificamente fundados e conhecimentos fundados em visões e em interesses particulares. Esta questão é particularmente mais sensível nas ciências históricas e nas ciências humanas, mas coloca-se, talvez de maneira subtil, também na física e nas ciências da natureza sempre que está em jogo a necessidade de marcar fronteiras entre fenómenos estudados. Para tomarmos um exemplo evidente da atualidade, vejam a dificuldade em dar uma aula sobre o terrorismo sem ter em conta os nossos pontos de vista e os nossos interesses como membros da sociedade ocidental.
As questões decorrentes deste dilema são particularmente importantes no nosso tempo, uma vez que vivemos uma época de aceleração do processo de descoberta e de confronto entre perspectivas científicas. Esta aceleração é evidente nos domínios tecnológicos, mas ela é ainda mais notória nos domínios científicos, a ponto de já poucos cientistas se reverem nas formulações dos seus saberes que encontram nos manuais escolares, apesar do esforço que os seus autores fazem para os rever e atualizar regularmente.
Até à última década do século passado, a formação técnica escolar garantia uma razoável preparação para as tarefas que esperavam os alunos ao longo, pelo menos, de uma parte importante da sua vida ativa. Mas a partir dos anos 90 do século passado, a aprendizagem de manuseamento dos objetos técnicos tornou-se praticamente anacrónica, uma vez que os dispositivos cibernéticos passaram a envelhecer quase instantaneamente, no momento em que são concretizados. Apesar do notável esforço que tem sido feito ultimamente para contornar esta dificuldade, estamos ainda longe de ter conseguido adequar os programas escolares à viragem cibernética da tecnicidade do presente e do futuro que se adivinha. Será que a recente adoção de tablets como equipamento escolar dos alunos responde a esta inquietação? Não sei evidentemente responder a esta questão de maneira categórica, mas desconfio que, enquanto a aprendizagem tecnológica tiver sobretudo como objeto a aquisição de competências no domínio do manuseamento dos dispositivos técnicos, estas iniciativas servem apenas de diversão. Desconfio que se trata de simples adestramento para a execução de tarefas e que passam, por isso, ao lado do objetivo da escola, entendida como instituição destinada a formar cidadãos livres. Neste domínio, a educação para a liberdade terá que incidir na aquisição de um saber realmente técnico, mais voltado para o entendimento da natureza e do modo de funcionamento dos dispositivos técnicos postos à disposição dos alunos do que ao seu simples manuseamento. Reconheço que se trata de um projeto imenso. Desconfio que nós próprios, professores, teremos que ser os primeiros destinatários desse projeto. Confesso que não estou muito otimista a este respeito, uma vez que não existe uma autêntica formação técnica nos programas de formação de professores. Como é que nós, que não sabemos o que são e como funcionam os objetos técnicos que colocamos na mão dos alunos, podemos fazer com que os nossos alunos não sejam meros utilizadores amestrados, manipuladores dóceis do software programado pelos novos donos invisíveis do nosso mundo, o punhado de peritos da informática da chamada última geração?
A preocupação com a utilização dos novos dispositivos técnicos por parte dos professores nas suas aulas reduz-se muitas vezes à aprendizagem da sua manipulação. Creio que chegamos felizmente a um momento em que já não é este aspeto que deve merecer a nossa atenção. Aquilo a que damos o nome de novos dispositivos técnicos já não é assim tão novo e as competências para o seu manuseamento já estão tão interiorizadas na nossa experiência de todos os dias que nos podemos agora dedicar a refletir sobre questões muito mais importantes.
Mas Idêntico dilema se coloca acerca da aprendizagem dos saberes disciplinares. Os nossos alunos, em vez de descobrirem o espírito científico, como processo de interrogação e de descoberta permanente, correm o risco de atribuir aos conhecimentos adquiridos valores de verdade absoluta, à crença no mito da ciência, a religião das nossas sociedades secularizadas. A vida irá encarregar-se de lhes ensinar que a realidade em si ultrapassa indefinidamente as capacidades limitadas da razão humana. Se a escola não preparar os jovens para lidarem com esses limites e não lhes incutir o prazer da descoberta da riqueza inesgotável da sua experiência do mundo corre o risco de falhar inclusivamente a sua missão científica.
3. Formação científica ou formação estética
Permitam que sublinhe agora um aspeto fundamental que decorre da exigência que acabo de referir, o da importância fundamental da educação artística. Não me estou a referir apenas aos cursos vocacionais na área das artes. Refiro-me à íntima relação da formação científica com a formação do gosto, do refinamento estético, do prazer da observação do mundo e das obras, relação a que todos os alunos, independentemente das suas escolhas vocacionais, têm incontestavelmente direito.
Considero profundamente lamentável que o incentivo da experiência estética do mundo sonoro, gestual, performativo, plástico seja tão descurado nos programas escolares do nosso país e fique muitas vezes dependente da boa vontade ou da sensibilidade dos agentes locais da educação. Esta lacuna contribui evidentemente de maneira danosa para a falha na preparação dos cidadãos para a fruição estética do mundo, componente fundamental da sua felicidade e da sua cidadania. Mas, talvez mais importante ainda, é o facto de contribuir também para as falhas da própria formação científica. A prova disso é o facto de ser nos países em que a formação musical acompanha todo o percurso escolar que encontramos também os mais eminentes matemáticos e cientistas. O rigor da percepção estética é o melhor treino para a aquisição da perspicácia do olhar e para o adestramento na manipulação dos objetos, competências indispensáveis também na preparação de cientistas.
Mas, ainda a propósito da importância da formação estética dos nossos alunos, permitam que vos confesse que, à medida que fui aprofundando a reflexão antropológica, me fui cada vez mais convencendo de que uma das mais importantes tarefas da escola é a preparação para saber ultrapassar a dor da perda. A nossa espécie distingue-se de todas as outras pelo facto de, a partir do momento em que adquire a consciência de si, se confronta com a inevitabilidade da perda, perda que é experienciada em todas as dimensões da nossa existência.
Os nossos alunos encontram-se numa encruzilhada da vida em que a dor da perda adquire, pela primeira vez, níveis insuportáveis. Somos por isso na nossa profissão confrontados com situações limite próprias desta encruzilhada em que os nossos alunos se encontram e que irá acompanhá-los ao longo de toda a vida. A conquista da cidadania plena que a escola pretende proporcionar exige também uma atenção às manifestações desta experiência e à criação de condições que levem os jovens a descobrir a maneira de ultrapassar a dor da perda. É talvez um atrevimento da minha parte sugerir que o exemplo é um dos nossos contributos mais preciosos, mas creio que, se estivermos atentos, veremos que é também o momento em que os nossos alunos descobrem que é na alegria da criação artística, sob qualquer das suas formas, que encontram a resposta à dor da perda que caracteriza o acesso à plenitude da sua humanidade.
Educação homogénea ou diferenciada?
Mas uma das questões mais dilacerantes da nossa profissão tem a ver com o confronto entre, por um lado, as exigências de uma educação igualitária, que não discrimine os alunos em função das diferenças de género, de origem racial, de condição económica ou de classe social, e, por outro lado, as exigências que decorrem da necessidade de termos em conta as competências diferenciadas que os alunos possuem em função da sua origem e do quadro do seu enraizamento familiar. Como tratar de maneira igual todos alunos e respeitar as diferentes mundividências, as diferentes visões do mundo e experiências que eles possuem? Como adotar pedagogias diferenciadas preservando o direito à igualdade?
É verdade que hoje as diferenças entre o meio urbano e o meio rural parecem ser muito menos profundas do que há algumas décadas atrás, mas o acesso aos bens culturais continua ainda muito mais fácil nos grandes meios urbanos do litoral do que no interior do país ou nas periferias degradadas das nossas cidades. Será que podemos tratar da mesma maneira os alunos provenientes de famílias com recursos económicos e culturais que lhes permitem o acesso às obras da cultura, que têm hábitos de leitura, de frequentação das obras da cultura e os alunos que vêm de famílias desempregadas, sem recursos económicos e capital cultural que lhes permitem viajar, frequentar concertos e museus, incentivar nos seus filhos o gosto pela leitura e pelas expressões artísticas, que não alimentam desde a mais tenra idade a curiosidade pelo mundo que os rodeia?
Não conheço solução para as questões colocados por este dilema. Cada um de nós terá que encontrar a solução apropriada para cada uma das situações com que se confronta. Mas permitam que chame a atenção, por um lado, para a importância que o envolvimento de toda a comunidade educativa tem na ultrapassagem das questões decorrentes deste dilema da instituição escolar e, por outro lado, para o papel que a observação atenta dos sinais das diferentes formas de desigualdade desempenha para a descoberta das maneiras apropriadas para lidarmos com essas questões.
O envolvimento da comunidade educativa é fundamental para a integração dos alunos provenientes de meios desfavorecidos e, neste sentido, creio que estamos de acordo de que não é provavelmente boa ideia a formação das turmas tendo como critério a origem social dos alunos.
Permitam que realce, a este propósito, o papel da observação atenta dos sinais das diferentes formas de desigualdade. A educação é em muitos países uma das áreas importantes de utilização da etnometodologia, a perspectiva que faz da observação o objetivo da sua investigação. Gostaria de sublinhar o importante contributo que estes estudos podem dar, se não para resolver, pelo menos para equacionar este dilema com que estamos confrontados, por vezes, de maneira dramática, na nossa atividade de professores. O que proponho é que cada um, à sua maneira, reserve algum tempo para se dedicar à etnometodologia. Como é a ciência mais fácil de aplicar é talvez a mais difícil de aprender. A dificuldade da etnometodologia não tem a ver com a complexidade dos seus conceitos, das suas proposições e dos seus métodos. Pelo contrário. A etnometodologia é uma ciência difícil porque precisamente consiste em abandonar todo esse arsenal de convicções e de crenças, para criar em nós aquilo a que costumo dar o nome de princípio da disponibilidade, da disponibilidade para olhar e para ver, para escutar e para ouvir. Não tenho evidentemente tempo para apresentar aqui os contributos dos estudos que tinham sido realizados neste domínio. Limitar-me-ei por isso a dizer que é a nossa disponibilidade para retirar do nosso olhar e da escuta daquilo que os nossos alunos fazem e dizem que nos permitirá ir descobrindo soluções para as questões inerentes aos dilemas da inclusão social.
Conclusão
Como vemos, a educação é um processo atravessado por contradições, por todo um conjunto de dilemas de difícil solução. É por isso que para mim a educação não é uma ciência, mas uma arte ou, talvez melhor, uma espécie de artesanato, que consiste em extrair e em valorizar as competências escondidas que os jovens que chegam às nossas aulas possuem. Retomando a etimologia do termo educação, de que falava no início desta minha intervenção, podemos dizer que, tal como o escultor que retira da pedra informe a obra que descobre por entre as suas nervuras, a sua textura e resistência, assim também o nosso trabalho consiste em revelar o cidadão livre que se esconde debaixo das aptidões de cada um dos nossos alunos. Somos muitas vezes levados a proceder por tentativas e a correr alguns riscos calculados. O procedimento que deu resultado com uma turma pode não dar bons resultados com outra turma, em função de fatores que escapam muitas vezes à nossa compreensão e ao nosso domínio. É por isso uma arte que exige uma modalidade específica de sabedoria e de experiência. Desta sabedoria retiramos, não a exigência e o rigor de avaliações punitivas, que Michel Foucault associava ao projeto de vigilância punitiva do panóptico idealizado por Benjamin Bentham (Foucault 1975), mas a capacidade para nos maravilharmos perante a riqueza incomensurável dos resultados. Estou cada vez mais convencido, e espero não estar enganado, de que é esta capacidade de maravilhamento que, não só dá sentido às exigências da nossa profissão, mas também contribui para uma escola verdadeiramente inclusiva.
Estou por isso convencido de que o meu amigo antropólogo brasileiro tem razão quando diz que se a escola fosse uma coisa boa não precisava de ser obrigatória, se entendermos a escola como espaço de servidão e de controlo, mas que não está a falar da escola de que vos falei. A escola de que vos falei e que tentei descrever é antes um espaço de convivência destinada à descoberta em comum das condições para o exercício da liberdade e da cidadania.


Leituras complementares:
Assmann, H. (1998) - Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, Vozes.
Bourdieu, P. & Passeron, j. –Cl. (1964) – Les Héritiers. Les Etudiants et la Culture, Paris, Minuit.
Bourdieu, P. & Passeron, j. –Cl. (1970) – La Reproduction. Eléments pour une Théorie du Système d'Enseignement, Paris, Minuit.
Bowles, S. & Gintis, H (1976) – Schooling in Capistalist America, New York, Basic Books.
Deleuze, G.; Guattari, F. (1980) - Capitalisme et schizophrénie: mille plateaux. Paris: Minuit.
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Hobbes, Th. (original: 1620) – Novum Organum, in: http://www.psb40.org.br/bib/b12.pdf
Illitch, I. (970) – A Sociedade Descolarizada, in : http://www.mundolibertario.org/archivos/documentos/IvnIllich_lasociedaddesescolarizada.pdf.
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