Acertar com o chão: O devir teatral de \"Nome de Guerra\", de Almada Negreiros

June 30, 2017 | Autor: Pedro Sobrado | Categoria: Teatro, José de Almada Negreiros
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Acertar com o chão* O devir teatral de Nome de Guerra, de Almada Negreiros

PEDRO SOBRADO

1. A teatralidade é consubstancial à obra literária de Almada Negreiros. A tese tem sido elaborada pelos seus mais capazes leitores, como Fernando Cabral Martins, que nos descrevem uma teatralidade radical, manifestada no “sulco da intensidade da presença”,1 no “amor ao acto físico raro”,2 na “exacerbação da vontade de comunicar”, na “veemência oral”,3 mas também nos temas: o circo, o music-hall, a figura do arlequim, etc. A escrita de Almada cita e solicita a cena, o ritual, a representação. “Dez minutos: tempo cumprido”,4 remate de circunstância que – como em tempos esclareceu Gustavo Rubim5 – redunda afinal essencial, ao inscrever no coração do discurso o acto performativo, a ordem do teatro ou, empregando uma típica formulação de Osório Mateus, da “profissão directa por corpos vivos”. Poderíamos porventura dizer que todos os textos de Almada – e não apenas aqueles que, nas palavras de Eduardo Lourenço, fazem o “folclore do Modernismo”6 – são escritos para um volume de voz, uma impetuosidade elocutória ou uma clareza tímbrica que tem a exibição como horizonte e regra? Poderíamos efabular e supor que não apenas peças de teatro, conferências e manifestos, mas também poemas, ensaios, artigos e romance disputam o seu devir cénico, acotovelando-se nos bastidores, aguardando a hora da sua entrada em cena, o instante decisivo do seu escândalo ou do seu encantamento? Este exercício não requer talento imaginativo: um por um, ainda que de forma desigual, episódica e muitas vezes precária, ora por teatros nacionais e companhias profissionais, ora por grupos amadores e escolas, os textos não-dramáticos de Almada têm sido postos em cena: os habituais A Cena do Ódio e o Manifesto Anti-Dantas, mas também A Invenção do Dia Claro, Direcção Única, Mima-Fatáxa ou os mais *

Conferência realizada no âmbito do colóquio internacional Almada Negreiros: un trait-de-union tra arti

e culture, Pisa, Palazzo Matteucci, 10 de Junho de 2015. Todas as citações de Nome de Guerra provêm da edição publicada em 2001 pela editora Assírio & Alvim e organizada por Fernando Cabral Martins, Luis Manuel Gaspar e Mariana Pinto dos Santos. Tendo em conta o número de vezes que o romance é citado ao longo da comunicação, optamos por não incluir qualquer nota bibliográfica, indicando antes, no corpo do texto e entre parênteses rectos, a página da referida edição a que cada citação diz respeito.

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imprevistos O Kágado, O Menino d’Olhos de Gigante, Nome de Guerra e até Saltimbancos serviram de matriz textual a espectáculos teatrais.7 A este fenómeno não é alheia a emancipação da cena face à escrita dramática: fazer teatro de tudo, pretendia Antoine Vitez, o que por vezes tem significado fazer teatro de muito pouco, ou quase nada. Todavia, esta explicação não esgota o assunto: dir-se-á também que Almada não escreve para o “ambicioso gesto universal do livro” (Walter Benjamin), e ainda menos para essa instituição um pouco risível que é a gaveta (nem sequer para uma caixa de chapéus, embora aí o manuscrito do seu romance tenha permanecido oculto vários anos). Almada escreve para um palco e uma plateia: um teatro. O escritor é um artista que entra em cena para “pôr palavras à solta por cima das cabeças à espera de corações abertos”.8 Nome de Guerra partilha esta teatralidade essencial. Mas não só. Volvidos os capítulos iniciais, em que o autor se debate com a propriedade ou impropriedade dos nomes próprios, inquire o mistério que se enraíza na árvore genealógica de cada um ou narra um episódio que só poderia ocorrer na Ribeira do Porto, o romance exibe a sua queda para o teatro: diálogos, acções, personagens reconhecíveis (o “estreante”, o “experimentado”, “raparigas avulsas”), espaços identificáveis (o clube, o quarto de cama, o hotel). Judite parece confirmar-nos esta suspeita: “Melhor representado do que isto, meus senhores, nem no teatro!” [p. 28] Sucede que, a dada altura, o romance migra para o interior de uma cabeça. Porém, ao contrário do que poderíamos supor, agarrados como náufragos aos destroços de uma concepção naturalista de acção dramática e teatral, este trânsito não torna o romance menos teatral. Pelo contrário. Aí radica o acerto de Exactamente Antunes, uma adaptação teatral de Nome de Guerra realizada pelo dramaturgo Jacinto Lucas Pires e encenada por Nuno Carinhas e Cristina Carvalhal no Teatro Nacional São João, em 2011, e aí reposto, para uma segunda temporada, em 2012.9 No caso de Exactamente Antunes, o teatro não é um “admirador sem pontaria” do romance, mas acerta com o “exacto do seu valor” [p. 146].

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José Eduardo Silva (Tio) | © João Tuna

2. “Leva-me daqui o filho da minha irmã e traz-me um sobrinho que seja meu!” [p. 21] A apropriação teatral de Nome de Guerra pode ser lida à luz da reivindicação da personagem do Tio, cuja divisa – “é preciso alguém que faça as coisas. Sim, não fui eu que escrevi, mas sou eu que faço!” [p. 22] – poderia igualmente ser assumida por aqueles que operam a transmodalização dramática de uma matéria narrativa e a levam para cena. Como o Tio do Antunes, aqueles que desencaminham o romance para o palco metem-se de permeio onde não são chamados – e por vezes “nem Deus lhe[s] tira isso da ideia” [p. 21]. Nesse exercício de transposição, pretende-se converter o filho da nossa irmã – um romance – num sobrinho que seja nosso, que pertença ao teatro, que o teatro reconheça como seu. Uma perversão? É coisa que sucede desde que o teatro é teatro: afinal, também os tragediógrafos gregos dramatizavam material épico. Mas, ao contrário do que candidamente se supõe, esse programa não se reduz a conservar os diálogos, condensar a acção em didascálias, ordenar cenas, rasurar descrições e digressões, em suma, a enfiar o corpo livre do romance no espartilho vitoriano da forma dramática clássica. Em teatro, fazer do filho da nossa irmã um sobrinho que seja nosso envolve manipulações genéticas – montagem, colagem e reescrita, como as praticadas pelo engenheiro Brecht – e operações cirúrgicas, tais como excisões e implantes textuais, reorganização da narrativa, acelerações ou abrandamentos estilísticos, redução ou concentração de personagens, invenção e inflação simbólica de uma ou outra figura, reformulação do próprio desenlace – trinta por uma linha.10 A própria mudança do título ou, se se preferir, do nome – Exactamente Antunes e não já Nome de Guerra – e a 3

emergência de uma nova figura de autoridade, um outro autor – Exactamente Antunes, de Jacinto Lucas Pires, a partir de Nome de Guerra de Almada Negreiros – sinalizam uma operação metamórfica um pouco brutal. É sabido que um transplante cardíaco comporta riscos e obriga o próprio organismo receptor a adaptar-se. Nesta experiência não é apenas o romance que sai transformado: ao reinventar uma obra como Nome de Guerra, o palco é levado a reinventar-se a si mesmo – e, nessa medida, difere afinal da personagem monolítica do Tio. À semelhança do que acontece ao herói, no seu devir teatral, um romance nasce uma segunda vez. Com Exactamente Antunes é o que sucede: Nome de Guerra nasce uma segunda vez, e assiste ao próprio nascimento.

3. Conta-se que, em certa ocasião, estando a pregar na catedral de Pádua, Santo António é acometido pela urgência de ir a Lisboa socorrer o pai, sobre o qual impendia a forca por causa de um homicídio que não cometera. Santo António interrompe a pregação, cobre a cabeça com o capelo do hábito e, nesse instante, comparece em Lisboa, diante do juiz que se apresta a sentenciar o progenitor. Sem testemunha que pudesse convocar, cita a vítima, ou seja, um cadáver sepulto, para que este pronuncie o nome do seu assassino. O defunto exumado volta momentaneamente à vida e cumpre a ordem, ilibando o pai de Santo António. Em Pádua, o taumaturgo quebra o silêncio e retoma a prédica no ponto em que a havia deixado. A experiência carismática do desdobramento espacial de Santo António é conhecida como bilocação, e a ela Almada faz uma referência no seu romance. No clube, uma pergunta teletransporta o protagonista: “Isso dura há muito tempo?”, questiona D. Jorge, reportando-se ao namoro de Antunes na aldeia natal.

…aquela pergunta tirou-o daquele sítio. Ficou parado e com os olhos por cima da direcção dos telhados. Como Santo António, quando pregava em Itália e veio num instante a Lisboa para salvar o pai, assim também o Antunes foi com certeza naquele momento à província passar por baixo da janela da namorada. [p. 20]

O romance diz-nos que o protagonista acredita em milagres – “não como supersticioso, mas como se acredita em milagres, como infeliz” [p. 74]. Ora, o milagre da bilocação é arquetípico desse neófito chamado Antunes. D. Jorge vê-o ausente e chama-o de volta com uma pergunta que, justificadamente, um padovano destravado lançaria a Santo António, ao percebê-lo tão distante: “Tás lá ou saíste a cavalo?” [p. 27] Sem o saber, o

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filisteu acerta em cheio. Lemos nos derradeiros capítulos do romance que Antunes não é capaz de “acertar com o chão” [p. 129]: sente-se “sempre a ser jogado entre a sua imaginação e a realidade, como uma bola entre a gravidade e a elasticidade da sua própria borracha”. Sente-se, em suma, “mal feito” [p. 130].

Paulo Freixinho (D. Jorge) e João Castro (Autor) | © João Tuna

Exactamente Antunes não ortopediza esta deformação antunesiana: texto e encenação tratam-na não como defeito, mas enquanto feitio (leia-se: carácter, génio). Dois exemplos: seguindo no táxi com D. Jorge, Judite e uma “rapariga avulsa”, Antunes ausenta-se e vai escutar o Tio debitar a sua viril e exígua mundividência; depois, na cama com Judite, que – aspecto essencial – o embalara como a um menino, Antunes visita ou é visitado por Maria, a sua namorada desde criança, que nos traz um passo de Deseja-se Mulher, mencionando uma casa que “ficou parada à nascença. Para sempre”.11 Exactamente Antunes radicaliza a bilocação antunesiana de um modo que afecta a própria estrutura narrativa, baralhando planos diegético e meta- ou extradiegético: sentindo o impasse da sua personagem, o Autor – um Almada performer, com fato-macaco futurista, luva de boxe e tudo – irrompe em cena qual demiurgo, para aplicar um knockout ao “experimentado” e treinar o “estreante”. A dado momento, o carisma da bilocação amplia-se, generaliza-se e, nessa medida, dissolve-se: estamos em toda a parte, e já não sabemos onde estamos. Perto do final, como num travelling, a cena coloca-nos simultaneamente no automóvel que segue rumo à Boca do Inferno, no quarto da Judite e numa aldeia perdida do ‘Portugal profundo’, para nos dar

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a ver (e já não explicar) a correlação simbólica entre a morte da Maria e o fim da relação com a Judite. “Morreu a Maria, acabou-se a Judite.” [p. 124] “As pessoas põem nomes a tudo e a si próprias também.” [p. 9] À natureza de Exactamente Antunes podemos dar um nome de guerra: heterotopia, um conceito que Michel Foucault celebrizou mas que se assemelha hoje a esses parafusos que, de tão repetida e canhestramente atarraxados, ficam moídos e se tornam imprestáveis. Não se trata da “bizarria dos encontros insólitos”:12 texto e cena configuram um lugar outro no qual espaços incompatíveis e tempos heterogéneos são representados, contestados e subvertidos. Exactamente Antunes põe em funcionamento uma máquina concreta de imaginação13 (Didi-Huberman) cujo papel consiste em “criar um espaço de ilusão que denuncia como ainda mais ilusório todo o espaço real, todas as localizações no interior das quais a vida humana está compartimentada”.14 O que o espectáculo faz é operar uma descompartimentação da existência do Antunes, dissolver esses espaços – clube, automóvel, quarto de cama, hotel, ruas da cidade, Boca do Inferno –, denunciá-los como ainda mais ilusórios do que aquele “espaço de ilusão” que encena: a imaginação de um homem, o interior de uma cabeça.

Jorge Mota (Antunes) | © João Tuna

Tudo no espectáculo concorre para descobrir a teatralidade que mora numa cabeça: Exactamente Antunes é um monodrama, um monólogo polifónico, quer dizer, o drama de um só, mas a várias vozes.15 Com inteira razão protesta Antunes quando lhe dizem que a sua história é de outros: “Mentira! É mentira! Esta história é só minha…” [p. 62]

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A presentificação fantasmática de personagens que procedem do passado e que, no romance, não têm intervenção directa – o Tio e a Maria – e a invenção de uma personagem metateatral como o Autor, que está dentro e fora da acção, sugerem um “drama cerebral” (Rachilde). Mesmo aquelas personagens com quem Antunes se cruza no seu novo quotidiano lisboeta não possuem uma existência autónoma: D. Jorge, o Empregado – súmula de todos os criados e motoristas do romance – e a Rapariga Avulsa – ela própria somatório de todas as “raparigas avulsas” [p. 26] do clube – parecem, inicialmente, beneficiar de um outro estatuto, mas essa expectativa é traída adiante, quando todas elas se evaporam e condensam na figura de um Coro. Não já um coro grego, nobre, trágico, mas um coro português, paródico e melodramático.

Paulo Freixinho, Mané Carvalho, João Castro, José Eduardo Silva e Paulo Moura Lopes (Coro) | © João Tuna

Legendas electrónicas e inscrições em lençóis são parte desse dispositivo de exibição da imaginação do Antunes. O teatro é cosa mentale. Encontramos um diagnóstico preciso na famosa advertência que Strindberg antepôs a O Sonho:

Tudo pode acontecer, tudo é possível e verosímil. Deixam de existir tempo e espaço. A partir de uma insignificante base real, o autor dá livre curso à imaginação, que multiplica os locais e as acções, numa mistura de lembranças, experiências vividas, livre fantasia, absurdos e improvisos. As personagens desdobram-se e multiplicam-se, desvanecem-se e condensam-se, dissolvem-se e reconstituem-se. Mas uma consciência suprema a todas domina: a do sonhador.16

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Lígia Roque (Judite), Jorge Mota (Antunes) e João Castro (Autor) | © João Tuna

Com os seus desvios e atalhos, a adaptação teatral de Nome de Guerra acerta com o chão do romance: a cidade onde o provinciano chega é afinal a sua própria cabeça, ou melhor, cidade e cabeça formam um continuum, um anel de Moebius, sem parte de dentro e parte de fora. A encenação de Nuno Carinhas e Cristina Carvalhal compreende esta homologia entre o máximo exterior e o máximo interior ao renunciar a um espaço cénico paisagístico, que recriasse a Lisboa boémia dos anos 20 ou seccionasse os vários lugares da acção, em favor da caixa negra de palco: bastidores à vista, condutas de ar ao fundo, o corpo nu do teatro, uns quantos destroços de realidade (uma porta, uma chaise longue, cadeiras, três ou quatro degraus, painéis reflectores para o jogo de espelhos, altifalantes para essa caixa de ressonância que é um crânio). Nuno Carinhas, responsável também pelo espaço cénico e pelos figurinos, declarava na altura: “O palco vazio é o lugar de todos os acontecimentos”,17 “o palco é o lugar onde tudo se vê e ouve”,18 referindo-se às acções exteriores, aos diálogos entre personagens, mas sobretudo à pasmosa intrasubjectividade do Antunes. A chave da encenação pode talvez ser encontrada num passo do romance que a versão cénica não acolhe: “Em três cenários diferentes passava-se um conto da sua cabeça: uma terra de província, um clube da cidade e um quarto de cama.” [p. 37] Note-se: há três cenários, mas um só conto, um só teatro – a sua cabeça.

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Jorge Mota (Antunes) e Joana Carvalho (Maria) | © João Tuna

3. Elemento nuclear neste sonho (ou talvez não) é a personagem da Maria, a quem o romance não atribui direitos de cidadania: não possui uma voz e não tem existência senão por intermédio da correspondência da mãe do Antunes. Almada deliberou que Maria fosse uma carta fora do baralho, ou melhor, uma carta perdida, destas que se extraviam, que não chegam a ser lidas e que um funcionário subalterno dos serviços postais, como Bartleby, prepara para as chamas. Mas a aparição cénica desta personagem não constitui um gesto desmotivado: para além de financiar a teatralidade deste “conto da cabeça” do Antunes, a Maria é uma presença real, quase no sentido eucarístico, na existência do herói. No final, o romance esclarece: “De facto, não tinha estado mais ninguém na vida do Antunes do que a Maria.” [p. 133] O teatro é domicílio de fantasmas: é aí que eles se acoitam, botam corpo, manifestam. Em Exactamente Antunes, Maria começa por ser uma criatura etérea, uma emanação espectral da culpa do Antunes. Vem até ele com umas asas, adejando: é uma borboleta nocturna – uma papillon, diversa daquelas que voluteiam pelo clube. Dramaturgicamente, é um buraco negro, porque absorve matéria e luz de origem vária: assume textos de outros “Almadas” (como o “Anjo da Guarda”), suga a personagem do dr. Oliveira, apropria-se inclusive de material que pertence à Judite. A dada altura, afigura-se já uma personagem autónoma, que instrui o Antunes e o ajuda a emancipar-se daquela portuguesíssima culpa, daquela saudade de si mesmo, rumo à “genial ignorância” [p. 45], ao corpo

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inteiro, ao exactamente. Diz Jacinto Lucas Pires que “Maria é a sacerdotisa deste milagre”.19 Há um aspecto precioso que a personagem traz para cena: o figurino preto da actriz não é apenas a expressão de um luto – o luto sem o qual não chega a haver identidade. Com as suas luzinhas a bruxulear, o figurino dá-nos a ver Maria como uma noite estrelada, a noite que faz aparecer os astros no firmamento: as minúsculas lâmpadas no vestido compõem uma pequena constelação iluminada na noche oscura que a caixa negra de palco instaura. Aquela cujo destino testemunha a eloquência prescritiva dos astros é quem, desde o início do espectáculo, alude à “grande linguagem das estrelas”, à “ordem sereníssima dos astros [que] é uma verdadeira anarquia para a sociedade” [p. 143]. A Maria é a porta-voz do partido das estrelas em que o Antunes acaba por se filiar. Quer isto dizer que não é apenas a dramaturgia que adopta e adapta o romance de Almada: a encenação também o faz, a expensas próprias.

Lígia Roque (Judite) e Jorge Mota (Antunes) | © João Tuna

Dispomos de um exemplo no II Acto, quando uma árvore outonal desce sobre a cena e exibe as suas raízes, como se tivesse sido arrancada do subsolo. Numa cenografia frugal, esta árvore é um luxo simbólico: enuncia o desenraizamento do passado do 10

Antunes, uma memória que já lhe pertencia antes de nascer, e confere materialidade a “esse segredo do nosso segredo, [a] esse mistério do nosso mistério” [p. 10] que é a árvore genealógica de cada um. “Como vedes, começa pelo princípio”,20 assinala o Autor, insinuando-nos uma imagem edénica: a árvore da ciência do bem e do mal. Mas não é Antunes um avatar de Adão? “Cada qual vê Eva pela primeira vez” [p. 38], adverte o título de um capítulo. A este Adão, Eva não dá a provar um fruto proibido: reprova-o, pousando-lhe sobre a mesa um fruto que lembra coisas proibidas: uma banana. Exactamente Antunes fecha-se à boca de cena, com o actor Jorge Mota, vestido de homem nu, a descascar e a comer uma banana com toda a calma do mundo. Teoria e prática num só gesto: finalmente, Antunes é corpo inteiro. Agora, ele está pronto para: começar.

Jorge Mota (Antunes) | © João Tuna

4. Poderia concluir avaliando aquilo que em Nome de Guerra anunciava já a cena, o que nele é da ordem do teatro. Estaria todavia a acusar a culpabilidade que decorre do facto de fazermos teatro de uma escrita que o não quis ser. Mas, visto a partir da cena, é como se o romance de Almada sempre lá tivesse estado, não falando de outra coisa senão do teatro e dos seus fazedores. Não me refiro apenas àquilo que, dito em palco, chama a atenção para o pacto da representação teatral. Citámos já a reacção exasperada de Judite ao overacting de D. Jorge: “Melhor representado do que isto, meus senhores, nem no teatro!” [p. 28] Posto em cena, o percurso do Antunes parece parabolizar a experiência

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de um actor na construção da sua personagem. Dá que pensar que, logo após Exactamente Antunes, Jacinto Lucas Pires tenha escrito um romance intitulado O Verdadeiro Actor. Há um passo de Nome de Guerra que Antunes reproduz em cena, olhando directamente para o público:

Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem, imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles em vez da respiração. [p. 112]

Como evitar a sensação de que Almada fala, por interposta personagem, não das criaturas grotescas, incompreensíveis, inúteis, vivas, em carne e osso, erradas, mascaradas do clube da Judite, mas do teatro e da sua prole? Quando Judite pergunta a Antunes “Julgas que dura sempre isto de haver quem gosta da gente?” [p. 90], é na verdade a actriz, Lígia Roque, que questiona o actor, Jorge Mota. Não, não dura. O teatro acontece no território do efémero: essa é a sua contingência, e a sua felicidade.

Lígia Roque (Judite) e Jorge Mota (Antunes) | © João Tuna

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Fernando Cabral Martins, “Os cinco elementos: O teatro como arte total em Almada Negreiros”, in

Pedro Sobrado (org.), Exactamente Antunes: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2011, p. 22. 2

José-Augusto França, “Almada”, in Margarida Acciaiuoli (org.), Almada, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian/Centro de Arte Moderna, 1984, s.p. 3

Fernando Cabral Martins et al., “O texto em cena”, in José de Almada Negreiros, Manifestos e

Conferências, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 379.

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4

Almada Negreiros, “Poesia é Criação”, in Manifestos e Conferências, op. cit., p. 292.

5

Vide Gustavo Rubim, “Palcos de palavras: a cena da escrita na poesia de Almada Negreiros”, in Revista

Colóquio/Letras, n.º 149/150, Jul. 1998, pp. 49-58. 6

Eduardo Lourenço, “Almada ou Do Modernismo como Provocação”, in M. Acciaiuoli (org.), Almada,

op. cit., s.p. 7

Uma análise superficial dos dados disponíveis leva-nos inclusive a concluir que o palco tem privilegiado

os textos não dramáticos de Almada Negreiros em detrimento dos seus textos especificamente dramáticos. Referimo-nos, evidentemente, às conferências e manifestos – cuja efusão performativa permanece, em grande medida, intacta cem anos depois –, mas também a poemas e ficções que, destituídos de uma teatralidade imediata ou manifesta, vão conhecendo o seu devir cénico. São os casos, por exemplo, do conto O Kágado e de O Menino d’Olhos de Gigante, a partir dos quais O Bando de João Brites soube criar dois dos seus espectáculos para a infância (1983 e 2013), e do aberrativo Saltimbancos, que esteve na base da criação de al mada nada (2014), o lado b que Ricardo Pais procurava para o seu quintessencial Turismo Infinito. Na base de dados do Centro de Estudos de Teatro, é preciso recuar às décadas de 60 e 70 para respigar menções a montagens de Deseja-se Mulher (1928); por seu turno, Portugal (1924) conheceu uma única encenação profissional em 1993, graças à Fundação Calouste Gulbenkian. E se Antes de Começar (1919) tem outra fortuna estatística, a sua posteridade cénico-teatral é precária, porque demasiado devedora do labor contingente de companhias de teatro amador. Do destroço de S.O.S. (1928-1929) ou de O Público em Cena (1931) não reza a história – ou, pelo menos, as bases de dados. 8

Almada Negreiros, “A Conferência n.º 1”, in Manifestos e Conferências, op. cit., p. 45.

9

Exactamente Antunes foi apresentado no Teatro Nacional São João entre 17 de Março e 17 de Abril de

2011 e entre 13 de Janeiro e 12 de Fevereiro de 2012. Do espectáculo foi efectuado um registo vídeo, editado em DVD, com realização de Pedro Filipe Marques. Assinale-se que Nome de Guerra fora já objecto de uma adaptação teatral por Maria Germana Tânger, que assinou dramaturgia e encenação de um espectáculo estreado em Abril de 1993, no São Luiz Teatro Municipal, e produzido pelo Teatro Nacional D. Maria II. 10

Vide A.F. Benhamou, “Adaptation”, in Michel Corvin (dir.), Dictionnaire Encyclopédique du Théâtre,

Paris, Larousse, 2003, pp. 25-26. Vide Patrice Pavis, “Adaptação”, Dicionário de Teatro, São Paulo, Editora Perspectiva, 1996, pp. 10-11. 11

Almada Negreiros, Obras Completas: Volume VII – Teatro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da

Moeda, 1993, p. 122. 12

Michel Foucault, As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas, trad. António

Ramos Rosa, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 48. 13

Georges Didi-Huberman, Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta: O Olho da História, 3, trad. Renata

Correia Botelho/Rui Pires Cabral, Lisboa, KKYM, 2013, p. 61. 14

Michel Foucault, “Outros Espaços”, apud Didi-Huberman, Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, op. cit.,

pp. 61-62. 15

Vide Joseph Danan, “Monodrame (polyphonique)”, in Jean-Pierre Sarrazac (org.), Lexique du drame

moderne et contemporain, Belval, Les éditions Circé, 2005, pp. 123-125. Somos, neste ponto, devedores

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de uma reflexão de Alexandra Moreira da Silva, segundo a qual Exactamente Antunes resulta da conjugação dos conceitos de jogo onírico e monodrama polifónico. Vide Alexandra Moreira da Silva, “A vida como uma coisa contagiosa – e sem chapéu”, in Exactamente Antunes [DVD Booklet], Porto, Teatro Nacional São João, 2012, s.p. Já Fernando Mora Ramos, nas páginas do programa de sala, sugeria estarmos “numa espécie de jeu de rêve […], misturando-se os jogos de sonho – o maravilhoso, o onírico e o simbólico – com uma dramaturgia resolutamente quotidiana”. Fernando Mora Ramos, “Três nadas que enchem e uma banana”, in Exactamente Antunes: Manual de Leitura, op. cit., p. 14. 16

August Strindberg, “Prefácio”, in O Sonho, trad. João da Fonseca Amaral, Lisboa, Estampa, 1978, p.

19. 17

Nuno Carinhas et al., “Do branco da página ao preto do palco”, in Exactamente Antunes: Manual de

Leitura, op. cit., p. 6. 18

Idem, p. 7.

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Idem, ibidem.

20

Trata-se de uma citação de Exactamente Antunes, que corresponde a um passo truncado de A

Conferência n.º 1: “Como vedes, a minha sinceridade começa pelo princípio.” Almada Negreiros, “A Conferência n.º 1”, op. cit., p. 46.

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