Acordes fáceis de ouvir e difíceis de explicar: a tétrade fá#-lá-dó-mi é figura de subdominante em dó-maior? / Chords easy to hear and hard to explain: Is the tetrad f#-a-c-e a subdominant figure in C major? I Mus PopUni, UFRGS, 2015

Share Embed


Descrição do Produto

I MusPopUni

Marília Stein Raimundo Rajobac Luciana Prass Organizadores

Marcavisual

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Reitor Prof. Carlos Alexandre Netto Vice-Reitor Prof. Rui Vicente Opermann Pró-Reitor de Pesquisa Prof. José Carlos Frantz Vice Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Bruno Cassel Neto Pró-Reitor de Graduação Prof. Sérgio Kieling Franco Pró-Reitora de Extensão Profa. Sandra de Deus Diretora do Departamento de Difusão Cultural Claudia Boettcher

Marcavisual – Conselho Editorial Airton Cattani – Presidente UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Adriane Borda Almeida da Silva UFPel – Universidade Federal de Pelotas Celso Carnos Scaletsky UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos Denise Barcellos Pinheiro Machado UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro Marco Antônio Rotta Teixeira UEM – Universidade Estadual de Maringá Maria de Lourdes Zuquim USP – Universidade de São Paulo

Diretora do Instituto de Artes Profa. Lucia Becker Carpena Vice-Diretor do Instituto de Artes Prof. Raimundo José Barros Cruz Coordenadora da Comissão de Pesquisa do Instituto de Artes Profa. Silvia Balestreri Nunes Coordenadora da Comissão de Graduação em Música Profa. Flávia Domingues Alves Chefe do Departamento de Música Profa. Luciana Prass Coordenadora do Programa de PósGraduação em Música Profa. Catarina Leite Domenici Coordenadora do Programa de Extensão em Música Profa. Regina Teixeira

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

I Encontro Brasileiro de Música Popular na Universidade

O estado da arte do ensino de Música Popular nas universidades brasileiras UFRGS – Porto Alegre/RS, 11 a 15 de maio de 2015

ANAIS

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

Comitê Científico do I MusPopUni

Logo MusPopUni

Marília Stein (UFRGS) – Presidente

Chico Machado

Bernardo Oliveira (UFRJ) Carlos Sandroni (UFPE/UFPB)

Site

Clifford Korman (UFMG)

Martin Weiler

Eloi Fritsch (UFRGS)

Rafael Pedro Bueno

Isabel Nogueira (UFRGS) Ivan Vilela (USP)

Secretaria de Comunicação do IA/UFRGS

Laila Rosa (UFBA)

José Carlos de Azevedo – coordenador

Luciana Prass (UFRGS)

Paula Ebert Harsteln – bolsista

Luciano Zanatta (UFRGS) Mario de Souza Maia (UFPel)

Realização

Pedro de Moura Aragão (UNIRIO)

Departamento de Música / Instituto de Artes /

Raimundo Rajobac (UFRGS)

UFRGS

Regina Machado (UNICAMP) Rogério Constante (UFPel)

Parceiro

Werner Ewald (UFPel)

Projeto Música na Escola do Rio Grande do Sul

Editor@s do Caderno de Resumos do I MusPopUni

Apoiadores

Luciana Prass

PROPESQ/UFRGS; PROGRAD/UFRGS;

Marília Stein

PROREXT/UFRGS;

Raimundo Rajobac

Programa de Extensão do DEMUS/IA/UFRGS; PPGMUS/UFRGS;

Diagramação

Grupo de Estudos Musicais – GEM/UFRGS.

Marcavisual __________________________________________________________________________________________________________ E56p Encontro Brasileiro de Música Popular na Universidade (1. : 2015 : Porto Alegre, RS) Anais ... / I Encontro Brasileiro de Música Popular na Universidade: o estado da arte do ensino de música popular nas universidades brasileiras – I MusPopUni ; Organizadores : Marília Stein, Raimundo Rajobac [e] Luciana Prass. – Porto Alegre: Marcavisual, 2015. 594 p. : il. ; 21x29,7cm Inclui resumos e referências. 1. Música. 2. Música popular. 3. Música popular – Brasil. 4. Música popular – Universidade. 5. Música popular – Repertórios – Práticas. 6. Música popular – Gênero – Identidades étnico-musicais. 7. Música popular – Ensino – Aprendizagem. I. MusPopUni (1. : 2015: Porto Alegre, RS). II. Stein, Marília. III. Rajobac, Raimundo. IV. Prass, Luciana. V. Título. CDU 784.4(81):061.3 __________________________________________________________________________________________________________ CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação. (Jaqueline Trombin– Bibliotecária responsável CRB10/979) ISBN 978-85-61965-37-2

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

Acordes fáceis de ouvir e difíceis de explicar: a tétrade fá#-lá-dó-mi é figura de subdominante em dó-maior? FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de (UDESC) [email protected] Resumo: O argumento técnico pode contribuir para a apreciação crítica e para amanipulação poética de uma figura de harmonia? Ponderando sobre tal questão de fundo, interferente também em processos formais de ensino e aprendizagem da Música Popular, aborda-se aqui um argumento funcional que pode regular a singular alocação da tétrade meio-diminuta sobre uma nota extra diatônica em tom maior: a quarta nota elevada um semitom. Nota-se que, em determinados contextos e em franco âmbito tonal, tal alocação alcançou valor de refuncionalização análogo ao de um neologismo, já que tal tétrade, vigente em outras situações harmônicas, pôde então ser equiparada aos acordes diatônicos de função Subdominante em tonalidade maior. Para ilustrar absorções e transformações desta refuncionalização ao longo do século XX, comentam-se aparições desta figura, dita #IVm7(b5), em “Night and Day” de Cole Porter e “Influênciado Jazz” de Carlos Lyra. Adiante, numa espécie de neologização do neologismo, este #IVm7(b5) mostra-se equiparado aos acordes reconhecidos como “II7” e “VIm6”. Para ilustrar esta nova situação, relembra-se o caso da anagramática equiparação destas três harmonias de Subdominante em versos da canção “Águas de Março” de Tom Jobim. Com uma metodologia híbrida que concilia revisão bibliográfica e pesquisa de repertório, no correrdo texto caminha-se para a conclusão de que, um argumento técnico alcança maior validade e vigência se, contextualizado, agregar conotações que, mesmo não formalmente expressas, manifestem compatibilidade com concepções musicais prevalentes. Concepções musicais que, por seuturno, se mostrem sintonizadas com aspirações sociais e culturais mais amplas e gerais defendidas por determinados grupos e visões de mundo. Palavras-chave: Harmonia Tonal, Acorde meio-diminuto, Teoria e crítica da Música Popular. Abstract: Can the technical argument help the critical appreciation and poetical handling of a harmony figure? Pondering this substantive issue, which also interfere in formal Popular Music teaching and learning processes, we herein approach a functional argument able to regulate the singular allocation of the half-diminished tetrad over an extra diatonic note in major key: the fourth note one half step higher. It is noticed that in certain contexts and in a frank tonal scope such allocation reached re-functionalization value similar to that of neologism, since such tetrad – also present in other harmonic situations – could be compared to diatonic chords of subdominant function in major key. The use of the #IVm7(b5) figure in the Cole Porter’s “Night and Day” and the “Influência do Jazz” by Carlos Lyra is discussed in order to illustrate absorptions and changes in this re-functionalization throughout the XX century. Later on, as a way to neologize the neologism itself, this #IVm7(b5) appears equivalent to recognized chords such as “II7” and “VIm6”. In order to illustrate it, one may remember the case of the anagrammatic equivalence of these three harmonies of Subdominant in verses of the song “Águas de Março” by Tom Jobim. By using a hybrid methodology, which links bibliographic review and repertoire research, the text leads to the conclusion that a technical argument reaches higher validity if, once contextualized, adds overtones, even when not formally expressed, compatible with

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

66

prevalent musical conceptions. Musical conceptions which– in their turn – are tuned with broader and general social and cultural wills from certain groups and world views. Keywords: Tonal Harmony, Half-diminished chord, Theory and Critics of Popular Music. O cromatismo varia e embeleza o diatônico com semitons que produzem na Música o mesmo efeito que a variedade de cores produz na pintura. [...] Como com cada nota se muda de tom no [gênero] cromático, há que se limitar e regular essas sucessões por temor a perder-se. Jean-Jacques Rousseau Dictionnaire de musique, 1767

Em situações formais de ensino, aprendizagem, análise e valoração da Música Popular, eventualmente surgem acordes que são fáceis de ouvir e difíceis de explicar. Quando isso ocorre em contextos francamente tonais, determinadas armadilhas teóricas e pedagógicas afiançadas pelas grandes normalizações da harmonia disparam. Daí surgem desconfortos, reabrem-se cisões como aquela que Kopp (2002, p. 33) caracteriza como “intuição musical versus consistência teórica”. Dentre outros, um agravante logo pede atenção: essas grandes normalizações modernas (séculos XVII e XVIII) e contemporâneas (XIX e XX) da disciplina, nem sempre se apresentam de maneira circunstanciada e com o devido zelo musicológico. E sim através de formulações concisas, ditas práticas, que nestas situações parecem mais acentuar os desconfortos

do

que

contribuir

para

uma

compreensão

de

figuras

de

extraordinariedade, embate ou contracultura operantes na poética da harmonia tonal. Para retomar a temática, vale escolher algumas formulações que, recitadas como regras simples, genéricas e racionais, podem enviezadamente tomar lugar das normalizações cultas: os acordes da tonalidade se encontram no campo harmônico diatônico; as funções harmônicas são regidas por vizinhanças de quinta justa acima (Dominante) ou quinta justa abaixo (Subdominante) secundadas por vizinhanças de terça abaixo (Tônica relativa) ou terça acima (Tônica anti-relativa); todo acorde com função Dominante é maior; todo acorde com trítono é Dominante, etc. Quando um acorde destoa de formulações assim, uma reação é propor “estratégias de inclusão” (Damschroder, 2008, p. 204) que, com força de definição, possam justificar harmonias distantes do tom, ou graus que extrapolam a mecânica sancionada pela escala diatônica, o “fundamento racional” da “harmonia de acordes” (Weber, 1995, p. 60). Com isso surgem novas formulações que, mesmo sem uma

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

67

consensual “consistência teórica”, com diferentes pesos e medidas, disputam direito de pertencimento no entre mesclado cotidiano da teoria musical. A estratégia abordada aqui diz respeito àinclusão do #IVm7(b5) como um grau de função Subdominante em tonalidade maior. Em Dó-maior, trata-se do acorde meio diminuto F#m7(b5) (fá#-lá-dó-mi), ambientado em modo lócrio (fá#-[sol]-lá-si-dó-[ré]mi) e racionalizado como harmonia de função Subdominante, o IIm7(b5) oriundo da região anti-relativa menor, Mi-menor, que a tonalidade principal, Dó-maior, toma de empréstimo. Conquanto o formato meio diminuto seja um velho conhecido da teoria e arte da tonalidade, um acorde pleno de memórias e de implicações históricas que se conservam, importa notar que, em determinados cenários da Música Popular do século XX, tal emprego do #IVm7(b5) foi valorizado como escolha inovadora. Um apreço em parte estimulado por uma longeva idealização que percebe o cromatismo como fator de complexificação, subjetivação e modernização.30 No campo da “Música Popular difícil para pessoas complexas” (Freitas, 2010, p. xxxiii), esta refuncionalização se destaca tanto pela recorrência quanto pela capacidade de suportar e estimular recriações que contribuem para tornar mais “nossa” e coloquial a velha harmonia tonal que um dia se quis universal.

*

*

*

Desconsiderando, por ora, as aplicações mais regulares da tétrade tipo meiodiminuta,31 tomemos o caso: a tétrade fá#-lá-dó-mi é figura de Subdominante em Dómaior? Tal questão gira em torno da realocação, e consequente refuncionalização deste polissêmico acorde. Assim, vale redizer, não se trata do emprego do próprio – embora o tipo meio-diminuto o seja, o #IVm7(b5) não é um grau próprio do diatonismo maior e nem do menor –, mas sim de um impróprio. Mal comparando, até certo ponto, pode-se considerar que um #IVm7(b5) é uma espécie de neologismo harmônico, um novo uso para uma tétrade já efetiva na trama tonal. Neste neologismo o que está em jogo não são exclusivamente os sons, as puras notas em acordo. Mas também o movimento de sentidos implicados, qualidades e representações associadas ao chamado “páthos meio-diminuto” (Tagg; Clarida, 2003, 30 31

Cf. Meyer (2001, p. 225-229). Cf. Freitas (2010, p. 593-594).

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

68

p. 180). Em especial, é flagrante um pesado campo de conotações, já que este #IVm7(b5) traz consigo um legado incomum, as memórias de um acorde que, na esfera culta, “é conhecido por todos como acorde de Tristão” (Schoenberg, 2001, p. 367). O celebérrimo primeiro acorde da ópera “Tristan und Isolde” escrita por Richard Wagner entre 1857 e 1859. Sobre tal acorde, como se sabe, muito já foi dito. Este “sem dúvida é o ‘invento’ harmônico mais famoso do romantismo” (Meyer, 2000, p. 421), enquanto “fonte de primeira ordem na história da música moderna” (Dahlhaus apud Meyer, 2000, p. 420), “o acorde do Tristão pode ser usado como uma metáfora da essência do desejo e ansiedade, de maneira tanto zombeteira quanto intensamente séria, conforme o contexto” (Whithall, 1995, p. 465). Para sintetizar e ao mesmo tempo adensar aquilo que envolve o “acorde do Tristão”, Menezes (2006, p. 45-134) qualifica tal “agregação intervalar” como um “acorde arquétipo”: o “arquétipo Tristão” Respeitando o interesse das discussões acercado “acorde de Tristão”, estas menções ao campo da musicologia culta têm aqui o propósito de sublinhar a distinção, ou capital simbólico, erudito e cultural associado ao acorde. Sugerir que, em alguma medida, o acúmulo dessas doutas divisas repercute em determinados mundos da Música Popular contribuindo para que o “páthos meio-diminuto”, assim amplificado, enobrecido e atualizado, se valorize valorizando produções e personagens que souberam tirar efeito do emblemático arquétipo. Ao fundo, importa argumentar que, de modo mais geral, a funcionalidade harmônica não é uma grandeza absoluta, que se encerra em si mesmo, antes decorre de confluências entre um emaranhado de extrínsecos silenciosos (valores sociais, culturais, comerciais, conceituais, artísticos, teóricos, simbólicos, etc.) e a factualidade de um específico acordo de sons. Na canção “Night and Day”, o exitoso standard Tin Pan Alley, composto por Cole Porter em 1932, ouvimos um acorde assim. Um #IVm7(b5) que, em lugar de um IV7M, se faz seguir por IVm7. Um meio-diminuto deslocado que ajudou disseminar, também no âmbito da cultura de massa, esses sons inspirados pelo vocabulário do Tristão. Essa tétrade não diatônica, F#m7(b5) se a canção estiver em Dó-maior, reforça o início de um verso confidente que, em tradução livre, diz: “próxima ou não, não importa, querida, aonde você estiver, penso em você noite e dia...” (Fig.1). E que, numa espécie de subtexto, parece também asseverar: próximo ou não, não importa o diatonismo que fundamenta o #IVm7(b5), sua sonoridade imperfeita – a indisfarçável I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

69

5ª diminuta – é perfeita para matizar aquilo que se diz aqui. Tal F#m7(b5) não pertence ao conceito mecânico de campo harmônico diatônico de Dó-maior, mas não importa, pertence sim ao seu campo poético. Figura 1 - O acorde de #IVm7(b5)na canção “Night and Day” de Cole Porter, 1932

Com força de estereótipo, o acorde de “Night and Day”, ou mesmo toda a progressão delineada na Figura 1, repercute em vários repertórios da Música Popular do século passado. Embora o propósito aqui não seja o de mapear tal repercussão, vale citar um caso que, depois de três décadas, ainda parece conversar com as harmonias de “Night and Day”. Trata-se de “Influência do Jazz”, canção de Carlos Lyra de 1962. Nesta passagem (Fig.2), com outros maneirismos associados ao mundo do jazz, o clichê #IVm7(b5) que, em lugar de um esperado IV7M, se faz seguir por IVm6,parece mesmo escolhido para ambientar uma irônica alusão ao glamourizado mundo Tin Pan Alley.

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

70

Figura 2 - O acorde #IVm7(b5) como Subdominante em “Influência do Jazz” de Carlos Lyra, 1962

A partir de relações estáveis é possível traçar uma estratégia funcional para a inclusão deste estiramento cromático. Uma estratégia formalista que pode contribuir para o manuseio do #IVm7(b5) enquanto “Subdominante alterada” (Chediak, 1986, p. 113) em tonalidade maior que, na falta de norma ou dependendo do repertório, pode cair no desconhecimento ou passar desapercebida. Ou pode também se tornar um truque banal, na ausência de nexos funcionais que situem este #IVm7(b5) em um amplo estoque de acordes de Subdominante permitindo permutas – deste acorde por outro(s) ou de outro(s) acordes por este – sem com isso desvirtuar esta função tonal. Tal estratégia, brevemente introduzida acima, pode ser um pouco mais detalhada com a leitura das próximas figuras. Na Figura 3, parte-se do consabido princípio de que, ladeando o I grau de Dómaior encontra-se, à distância de terça maior acima, o acorde de IIIm (Em) e sua área tonal, dita anti-relativa menor.32 No âmbito deste Em: encontramos o acorde F#m7(b5) como IIm7(b5), grau da função Subdominante (Fig.3b). A transferência ou empréstimo deste IIm7(b5) de Em: para C: está ancorada na conhecida dialética das equivalências funcionais. No caso, entre a função principal “T” e um grau oriundo de sua vizinha “Ta” (Tônica anti-relativa). Daí decorre uma leitura tautológica: F#m7(b5) é 32

Sobre termos, cifrase interpretações para tal acorde ou área tonal, cf. Freitas (2010, p. 541-553).

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

71

Subdominante de uma área tonal (Em:) associada àfunção Tônica (C:). Logo, indiretamente, F#m7(b5) é Subdominante de C:. Pressupõe-se que, enquanto função tonal, “S” é uma razão de unificação que generaliza acordes diferentes e, ao mesmo tempo, defere a singularidade de cada um.33 Figura 3 - O #IVm7(b5) como grau diatônico indiretamente relacionado ao tom maior

A Figura 4 ressalta outro aspecto da reciprocidade funcional embutida na questão que, em poucas palavras, pode ser formulado assim: C: empresta uma “S” (F7M) para a área tonal de Em:. Em retribuição, a área tonal de Em: empresta uma “S” (F#m7(b5)) para C:. Figura 4 - Graus IV7M e #IVm7(b5) como Subdominantes funcionalmente correspondentes

33

Esta unificadora estratégia funcional não exclui outras racionalizações. Na Jazz Theory, argumentase também que este F#m7(b5) resulta do movimento das vozes, como “apojatura” (Buettner, 2014, p. 64) ou “passagem”(Nettles, 1987, p. 41-42) para IV7M ou IVm7. Outros particularizam o #IVm7(b5) como grau oriundo do “modo lídio” que, por “intercâmbio modal”, se emprega na tonalidade maior (cf. Herrera, 1995. p. 31; Nettles; Graf, p. 119; Rawlins; Bahha, 2005. p. 96).

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

72

Tal correspondência funcional não contradiz aquele “vinculum substantiale da concatenação harmônica” (Dahlhaus; Eggebrecht, 2009, p. 114), a ocorrência das notas em comum. Assim como as tétrades Tônicas (C7M e Em7), as tétrades Subdominantes (F7M e F#m7 (b5)) também possuem ao menos três de suas notas constitutivas em comum (Fig. 5). E mais, considerando o entorno diatônico destas tétrades (as escalas relacionadas aos acordes), outras notas comuns expressam diversas semelhanças e diferenças apreciadas pelos cultores da dissonância em Música Popular.

Figura 5 - Notas em comum entre graus e escalas matizados pelo ambiente lídio em Dó-maior

A Figura 5 indica também que, sempre dependendo da adequação aos gêneros e estilos, a inflexão lídio em modo maior sanciona outras colorações: além da modernizadora Subdominante #IVm7(b5), destacam-se os matizes tônicos I7M(#11) e IIIm7(9) que não serão comentados nesta oportunidade.

*

*

*

O recurso se conservou se reinventando. Através de uma espécie de processo de neologização do neologismo, foi se complexificando, se expandindo. A inovadora figura de Subdominante, #IVm7(b5) e seu diatonismo lócrio, pôde ser equiparada com ao menos mais duas figuras de Subdominante, conforme a Figura 6. Consideravelmente diferenciadas, são “outras substituições”, ou outras

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

73

“reharmonizações”, que “sem mudar o sentido harmônico da Subdominante” (Adolfo, 1994, p. 190), estão a cargo de acordes de tipologia conhecida em outros graus e funções. Uma diz respeito a uma refuncionalização do tipo menor com sexta (equivalente a uma inversão do tipo meio diminuto). Outra envolve uma refuncionalização do tipo maior com sétima menor (o acorde de tipo dominante). Figura 6 - Da equiparação dos graus “II7”, #IVm7(b5) e “VIm6” como Subdominantes em tonalidade maior

Em Dó-maior, a primeira destas duas refuncionalizações pode ser descrita assim: enquanto variante do polivalente feixe fá#-lá-dó-mi, ou como inversão de seus termos, a tétrade lá-dó-mi-fá# pôde ser reinterpretada como um Am6, dito “VIm6” associado ao diatonismo dórico. Tal acorde se incorpora como um tipo de empréstimo, o tradicional IVm6 (Subdominante com sexta acrescentada da antirelativa Em:) se acha em uso como um “VIm6”, dórico, com função Subdominante na tonalidade de Dó-maior. A outra reinvenção, expressa uma analogia funcional talvez mais arriscada. Com o reconhecimento das notas ao entorno das tétrades fá#-lá-dó-mi (F#m7(b5)) e ré-fá#-lá-dó (“D7”) como dois modos (fá#-lócrio e ré-mixolídio) da mesma coleção diatônica (Mi-menor), tornou-se plausível defender, em certos casos, a equiparação de um D7(9,13) mixolídio como uma Subdominante em Dó-maior. Acrescenta-se a isto o argumento de que, D7 mixolídio atua em Mi-menor como bVII7, grau que aqui, eventualmente, faz as vezes de Subdominante. Esta semelhança de sonoridade

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

74

e função, entre F#m7 (b5) e D7, logo se viu eficiente no tom principal (C:). Uma canção capaz de ilustrar estas equiparações neológicas entre os anagramáticos F#m7(b5), Am6 e D7 como acordes de Subdominante na tonalidade de Dó-maior, é aquela que já foi chamada de “o samba mais bonito do mundo” (Nestrovski, 2003): “Águas de Março” de Tom Jobim, compositor que já foi visto como um reinventor dos procedimentos característicos de Cole Porter e que, nesta canção de 1972, atua mesmo como um hábil recriador.

Nada vem do nada [...] Duas fontes são razoavelmente conhecidas. A primeira é o poema “O caçador de esmeraldas” do mestre parnasiano Olavo Bilac: “Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada/ do outono, quando a terra em sede requeimada/ bebera longamente as águas da estação [...]”. E a outra é um ponto de macumba, gravado por J. B. de Carvalho, do Conjunto Tupi: “É pau, é pedra, é seixo miúdo, roda a baiana por cima de tudo”. Combinar Olavo Bilac e macumba já seria bom; mas o que se vê em “Águas de março” vai muito além: tudo se transforma numa outra poesia e numa outra música, que recompõem o mundo para nós (Nestrovski, 2003, p. 132).

Assim, também a estereotipada progressão “CC7FFm” reiterada em todos os versos da canção (Figura 7), reaparece a cada momento reinventada por meio de inflexões provocadas pela aparição da nota fá# nos momentos em que esperamos a nota fá natural: com ela, a nota fá#, os feixes diatônicos fá-lá-dó-ré (o “acorde de Rameau”) ou fá-lá-dó-mi (a célebre versão popular do IV) foram reescritos como fá#lá-dó-mi (F#m7(b5)), lá-dó-mi-fá# (Am6), dó-fá#-lá-mi (Am6/C) e dó-fá#-lá-ré (D/C). Então, “Águas de Março” não possui propriamente uma extensa e complexa progressão harmônica, como pode sugerir a sonoridade aparente dos diferentes acordes dissonantes (não diatônicos) que vão surgindo a cada verso. Trata-se mais é de um reinventar sonoridades para tocar uma sempre única articulação funcional: T  S.

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

75

Figura 7 - O acorde #IVm7(b5) e as variantes “VIm6” e “II7” em versos de “Águas de Março” de Jobim, 1972

Com tais ilustrações e comentários pode-se concluir ponderando que, o argumento técnico, conquanto formalista e indubitavelmente marcado pelo logicismo positivista, não pode satisfazer muitas inquietações que surgem em nossas rotinas de ensino e aprendizagem. Mas é parte de um legado que está posto, interposto ou composto nisso que chamamos música. É um aparato de pensamento que pode sugerir respostas efetivamente musicais, e pode também enunciar questões outras que, no correr de uma longa trajetória, vêm se entremeando em nossa arte, alcançando repercussão em nossos dias. Dentre tantas questões assim, com Meyer (2000, p. 47-48), reitera-se aqui que, um argumento técnico alcança plena validade e vigência se, contextualizado, agregar conotações valorativas que expressem compatibilidade com concepções musicais prevalentes, como o foram, ou ainda são, os distintos universos da canção Tin Pan Alley, Bossa Nova, MPB ou, em outra instância, o campo do Jazz e da Jazz Theory. Concepções musicais que, por seu turno, revelam afinidades com aspirações sociais e culturais mais amplas e gerais defendidas por determinados grupos e visões

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

76

de mundo. Relendo os conservadores pressupostos funcionais, o argumento supra comentado mostra-se como intermeio, uma “estratégia de inclusão”, de racionalização e socialização dedicada a uma específica torção cromática avaliada como rara, irrevelada ou inexplicável. Conotações que, em certos cenários da Música Popular que ouvíamos no século XX, permeiam os percursos de ressignificação daquele “interesse do romantismo pelo misterioso” (Meyer, 2000, p. 276): o apreço pela coisa incompreensível, que nos escapa e nos atrai. Um pormenor sutil que ajudou a embalar idealizações de instintividade, espontaneidade e arrebatamento.

Referências ADOLFO, Antônio. Harmonia e estilos para teclado. Rio de Janeiro: Lumiar Ed., 1994. BUETTNER, Arno Roberto von. Os modelos harmônicos da música popular. São Paulo: Scortecci Ed., 2014 CHEDIAK, Almir. Harmonia e improvisação. Rio de janeiro: Lumiar, 1986. DAHLHAUS, Carl; EGGEBRECHT, Hans H. Que é a música? Lisboa: Ed. Texto & Grafia, 2009. DAMSCHRODER, David. Thinking about harmony. Cambridge University Press, 2008. FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Tese (Doutorado em Música). Universidade Estadual de Campinas, 2010. HERRERA, Enric. Teoria musical y armonia moderna. Barcelona: Antoni Bosch, 1995. KOPP, David. Chromatic transformations in nineteenth-century music. Cambridge University Press, 2002. MENEZES, Flo. Música maximalista. São Paulo: Ed. UNESP, 2006. MEYER, Leonard B. El estilo en la música. Teoria musical, história e ideologia. Madrid: Ed. Pirámide, 2000. ____. La emoción y el significado en la música. Madrid: Alianza Editorial, 2001. NESTROVSKI, Arthur. O samba mais bonito do mundo. In: MAMM , Lorenzo; NESTROVSKI, Arthur; TATIT, Luiz. Tr s canç es de Tom Jobim. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 31-51. NETTLES, Barrie; GRAF, Richard. The chord scale theory & jazz harmony. Advance Music, 1997.

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

77

NETTLES, Barrie. Harmony 3. Boston: Berklee College of Music, 1987. RAWLINS, Robert; BAHHA, Nor Eddine. Jazzology. Milwaukee, WI: Hal Leonard, 2005. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Diccionario de música. Madrid: Ediciones Akal, 2007. SALZER, Felix; SHACHTER, Carl. El contrapunto en la composición. Barcelona: Idea Books, 1999. SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004. ____. Harmonia. São Paulo: Ed. da Unesp, 2001. TAGG, Philip; CLARIDA, Bob. Ten little title tunes. Montreal: The Mass Media Music Scholars’ Press, 2003. WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995. WHITHALL, Arnold. O impacto de Wagner na história da música. In: MILLINGTON, Barry (org.). Wagner um compêndio. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995. p. 461-465.

I ENCONTRO BRASILEIRO DE MÚSICA POPULAR NA UNIVERSIDADE

78

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.