ADERIR OU NÃO AO DELÍRIO: uma análise perelmeniana dos auditórios construídos pelo narrador de Dom Casmurro

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo COGEAE – PUC-SP

ADERIR OU NÃO AO DELÍRIO:

Uma análise perelmeniana dos auditórios construídos pelo narrador em Dom Casmurro

São Paulo 2015

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Tatiany Regina de Oliveira Ocleciano

ADERIR OU NÃO AO DELÍRIO: Uma análise perelmeniana dos auditórios construídos pelo narrador em Dom Casmurro

Monografia apresentada como requisito para aprovação no Curso de Especialização em “Língua Portuguesa”, sob orientação do Prof. Dr. Everaldo Nogueira Jr.

São Paulo 2015

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Dedico esse trabalho a todos que reconhecem que a verdade de outrem nunca é absoluta nem está naquilo que se vê à superfície. É preciso “ajustar as lentes” para enxergar o mundo.

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O ato de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala, pois é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui sujeito. (BENVENISTE)

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OCLECIANO, T.R.O. Aderir ou não ao delírio: uma análise perelmeniana dos auditórios construídos pelo narrador em Dom Casmurro. 2015, 124p. Monografia. Curso de Especialização em Língua Portuguesa. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

RESUMO Este trabalho tem por objetivo identificar os auditórios aos quais o narradorpersonagem Bento Santiago, cuja alcunha dá título ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, dirige sua argumentação. Importa refletir, a partir dessa percepção, sobre a natureza do processo de construção de tais auditórios e sobre o tipo de argumentação que comandam. Questiona-se o porquê de o personagem demonstrar-se aparentemente tão convencido do sucesso da própria argumentação, apesar das falhas e lacunas – intencionais e não intencionais – que apresenta. O trabalho tem por fundamento a chamada “teoria da audiência”, conforme apresentada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação, de 1958. Apoia-se, adicionalmente, em conceitos de psicopatologia apresentados por José Leme Lopes em A psiquiatria de Machado de Assis. Por meio de pesquisa qualitativa e metodologia de cunho indutivo, passagens da narrativa são analisadas em busca de base à proposição de que os diferentes auditórios de Santiago, particulares e universal, foram concebidos sob o efeito de suas paixões (ou delírios). Em sua percepção delirante, ele os vê em perfeita comunhão com os pontos de vista que privilegia e os considera devidamente convencidos. Por fim, argumenta-se que, embora subsista no discurso argumentativo de Dom Casmurro a retórica do apaixonado, ou seja, uma “máscara lógica” que não resiste a um exame racional mais atento, a teoria perelmeniana permite aos leitores que escapem de dicotomias limitadoras ao reconhecer a possibilidade de ajuste da intensidade de sua adesão às teses apresentadas, na extensão dos valores e características que porventura compartilhem com o orador.

Palavras-chave: Chaïm Perelman, auditórios, argumentação, nova retórica, Machado de Assis.

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OCLECIANO, T.R.O. To Adhere or not to Adhere to a Delusion: Analyzing Audiences in Brazilian Novel Dom Casmurro from a Perelmenian Perspective. 2015, 124p. Monograph for a Specialization Course in Portuguese Language. São Paulo Pontifical Catholic University (PUC-SP).

ABSTRACT This study aims at identifying the audiences to which Bento Santiago – character/narrator whose nickname gives title to famous Brazilian novel Dom Casmurro, by Machado de Assis – directs his argumentation. It is an exploration of the way such audiences are constructed in discourse, as well as of the kind of argumentation they imply. We also investigate why the character seems to be rather convinced of the success of his own arguments, in spite of their flaws and gaps – both intentional and unintentional. Our main theoretical framework is the "theory of the audience", put forth by Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca in their 1958 opus The New Rhetoric – A Treatise on Argumentation. Additionally, we rely on psychopathological concepts presented by José Leme Lopes in A Psiquiatria de Machado de Assis (1974). Through qualitative research and an inductive method, we select and analyze excerpts from the narrative looking for basis to our proposition, that Santiago’s multiple audiences, particular and universal, were designed under the influence of his passions (or delusions). In his delusional state of mind, he believes his audiences to be in perfect communion with the point of view he favors, and thus considers his readers duly convinced. Finally, we argue that although the argumentative discourse in Dom Casmurro displays marks of the “rhetoric of the lover”, that is, a "logical mask" that does not stand up to careful rational examination, Perelman and Olbrechts-Tyteca’s theory allows the reader to escape old and limiting dichotomies by adjusting the intensity of their assent to the theses in question, depending on a range of defining features they might eventually share with the author/rhetor. Key words: Chaïm Perelman, audience, argumentation, New Rhetoric, Machado de Assis.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 1.1. Escolha do tema 1.2. Justificativa 1.3. Objetivos 1.3.1. Objetivo geral 1.3.2. Objetivos específicos 1.4. Metodologia 1.5.Chaïm Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca e Argumentação 1.5.1. Distinções entre a retórica clássica e nova retórica 1.5.2. A nova retórica perelmeniana

o

Tratado

09 09 12 14 14 15 16 da 18 21 22

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1. A teoria da audiência 2.1.1. A comunidade efetiva dos espíritos 2.1.2. O relacionamento entre o orador e o auditório 2.1.3. O auditório como construção do orador 2.1.4. O auditório como elemento determinante da argumentação 2.1.5. Persuadir e convencer 2.1.6. Os três tipos de auditório 2.1.7. O auditório universal 2.1.8. Auditórios de elite 2.1.9. A argumentação dirigida para um único ouvinte: debates e Discussões 2.1.10. A deliberação consigo mesmo: razões e racionalizações 2.2. O auditório do escritor: argumentação, teoria da audiência e Literatura

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3. DESENVOLVIMENTO 3.1. Evidências do processo de deliberação íntima 3.2. Resistências e obstáculos à formação de um auditório Contemporâneo 3.3. Auditórios particulares construídos por Bento Santiago 3.4. Ao leitor, as lacunas: evidências dos esforços de cooptação do leitor com vistas à formação de uma “comunidade efetiva dos espíritos” 3.5. Considerações parciais

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO I

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80 83

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CAPÍTULO UM: INTRODUÇÃO

Tudo é famoso, bem palmilhado e esquadrinhado em se tratando de Dom Casmurro. Todas as leituras e interpretações já foram feitas, mas sempre vale a pena aplicar o método da leitura atenta (“close reading”) para descobrir ou redescobrir a maneira pela qual o bruxo de Cosme Velho construía seus enredos com base na exploração da linguagem. [...] Um percurso pessoal de leitura haverá de trazer algum tipo de novidade em relação a caminhos já palmilhados. (MORICONI, 2008, p. 77)

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Escolha do tema

Este trabalho nasce de uma sensação de estranhamento: Bento Santiago, narrador-personagem de uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira, Dom Casmurro1, inicia suas memórias dizendo-se exaurido pela monotonia, que o “lembrou” escrever um livro. Todavia, sente-se estranhamente incapaz de juntar as forças necessárias para qualquer empreitada mais “árida ou longa” – algo estranho para alguém que passa a maior parte do tempo a “hortar, jardinar e ler”, come bem, não dorme mal... Enfim, alguém que se esforça por demonstrar ao leitor que leva uma vida interior “pacata”.

Formado em Direito, área em que atuou profissionalmente, Bento abandona sem pestanejar a ideia de lidar com teorias estabelecidas, mas que lhe deveriam ser familiares – política, jurisprudência, filosofia – e também se nega a buscar “documentos e datas” para reconstruir uma História dos subúrbios. O que de fato o move a escrever, com uma alegria deslocada, sem razão de ser, mas tão intensa que torna sua mão trêmula – uma alegria quase histérica, se poderia dizer –, são as vozes dos bustos que adornam sua casa2.

Essa casa, por sinal, surgiu também de um estranhamento: quase ao final da narrativa, Santiago confessa que, por ocasião da morte de sua mãe – sem dúvida, uma figura central para entender muitas de suas ações e sentimentos –, ao visitar a casa em que passou sua infância e juventude, e em torno da qual gira a maior porção de suas memórias, todo o lugar o “desconheceu”. Ele a descreve como um lugar que nada sabia dele, que tinha um ar interrogativo, que “pasmava do intruso”. A casa onde cresceu e se formou como pessoa havia se tornado um local “estranho e adverso”. Assim, deixou que a demolissem, e mandou erguer outra no bairro do 1

Está sendo considerada a edição de 2006 da Editora Moderna. O uso de algarismos arábicos para os capítulos é característica dessa edição. A grafia de algumas palavras foi atualizada de acordo com os parâmetros do Acordo Ortográfico de 1990. 2 São três imperadores romanos – César (100 - 44 a.C.), general que se tornou ditador e uma das mais notórias vítimas de traição em toda a história humana; o próspero imperador Augusto (63 a.C. 14 d.C.); e Nero (37 - 68 d.C.), conhecido por sua loucura, crueldade e orgias – e um rei africano chamado Massinissa (238-148 a.C.), da Numídia, que estabeleceu em sua época relações com os romanos.

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Engenho Novo, de acordo com as impressões e sentimentos que sua residência original, na Rua de Mata-cavalos, deveria ter continuado a causar. Embora inicie o livro dizendo que reproduzira no Engenho Novo “o mesmo prédio assobradado”, com “as mesmas alcovas e salas”, e que “[o] mais é também análogo e parecido” 3, ele termina reconhecendo que a nova casa, “conquanto reproduza a de Mata-cavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de sentimento”4.

Muitos afirmam que a intenção de Bento Santiago por trás de sua narrativa é “atar as duas pontas da vida”. Talvez, porém, essa seja apenas uma extrapolação indevida da motivação expressa – e frustrada, pois ele afirma ter falhado em tal intento tanto no início e quanto no fim do livro – para a reprodução adaptada de sua residência antiga. Segundo o próprio Bento, são as vozes dos bustos pintados em conformidade com suas lembranças que o movem a “deitar no papel” suas reminiscências. Vozes projetadas, naturalmente – trata-se de sua própria voz, exteriorizada em mais uma de suas muitas fantasias. Em outras palavras, escreve impulsionado por seus próprios anseios. Significativamente, já não são aqueles os mesmos bustos com os quais conviveu quando criança. Pouco lhe resta, materialmente falando, dos tempos que retrata em sua narrativa: não só a casa original foi demolida, mas quase todos os personagens de que se utiliza já estão mortos. Ao que parece, pouco lhe resta até de si mesmo: “falto eu mesmo”, ele diz, “e essa lacuna é tudo”.

Aqui, então, surge nosso estranhamento, aludido mais acima: a visão mais comum da obra-prima de Machado de Assis é de que se trata de uma espécie de peça jurídica, em que o narrador-personagem tenta convencer o leitor da culpa de sua esposa, que o teria traído com seu melhor amigo. Santiago quer o assentimento do leitor também para suas reações, seja daquelas apenas tentadas – suicídio e assassinato – ou levadas a cabo – o exílio da mulher e do filho em outro continente. Embora já por mais de meio século as discussões sobre a obra tenham expandido os estreitos limites do (a nosso ver) infrutífero debate sobre a traição ou não de Capitu, e o foco seja com cada vez maior frequência e intensidade voltado para o 3 4

Capítulo 2 – Do Livro (p. 18). Capítulo 144 – Uma pergunta tardia (p. 157).

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estudo do próprio narrador-personagem, nos parece que poucas vezes os pesquisadores se perguntam por que, se a casa falhou ao “atar as pontas de sua vida”, o esforço autobiográfico parece ter atingido um inquestionável sucesso. Afinal, subitamente, nas últimas linhas da narrativa -- na “suma das sumas” –, Bento Santiago surge capaz de dar de ombros a tudo o que se passou. Sem mais, confia que o leitor, a quem interpela (e alicia, e ridiculariza, e agrada, e admoesta) a todo tempo em sua narrativa, terá chegado às mesmas conclusões que ele – a mulher é culpada, e já trazia consigo os germes da infidelidade e da perfídia desde menina. Deixa de lado o tom amargurado e rancoroso predominante em seu relato e se despede cordial e amável de seus mortos, parecendo até renovado, pronto para lidar com aquilo que antes lhe parecia árduo e penoso: a História dos subúrbios.

Sobram-nos perguntas. O longo século de debates quanto à traição ou não de Capitu prova que os argumentos apresentados por Santiago estão longe de ser irrefutáveis. Baseiam-se em olhares, acasos, omissões e impressões, e podem ser interpretados de maneiras diversas, contraditórias e não raro inusitadas5, segundo o viés de cada leitor. Não obstante, depois de juntá-los, o notável jurista parece dar-se por satisfeito, encerrando de vez sua defesa, como se a considerasse impenetrável. Por que Bento se sentiria seguro de que conseguiu convencer o leitor a aderir ao seu ponto de vista? Em outras palavras, por que pensa ele que seu leitor deveria compartilhar tão prontamente de sua convicção?

A convicção de Bento Santiago, segundo o psiquiatra José Leme Lopes, autor de A psiquiatria de Machado de Assis, é de origem patológica. Lopes baseia-se, entre outros, nos estudos do filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers, que em 1910 identificou quatro graus de manifestação do ciúme: os dois primeiros seriam o ciúme psicológico (que corresponde aproximadamente à definição leiga e comum de ciúme) e o mórbido (em que a ligação à realidade e o senso crítico são titubeantes). No terceiro, o ciúme delirante, “as ideias correspondentes ao afeto deslocado 5

Em artigo publico na revista eletrônica Machado em Linha, o pesquisador espírito-santense Wilberth Salgueiro argumenta, com base no uso que o narrador-personagem faz do verbo “jarretar” (que aparece apenas duas vezes em toda a narrativa), que Bento Santiago pode ser de alguma forma o responsável direto pela morte de Escobar. O texto, publicado na edição de dezembro de 2010, chama-se “Outro crime perfeito: Casmurro, assassino de Escobar” e está disponível em http://machadodeassis.net/revista/ numero06/rev_num06_artigo07.pdf.

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enxameiam, num jogo de observações, de evocações, ora esquecidas, ora neoformadas, sem mais conservação da crítica”. No quarto, o delírio de ciúme, há “um conjunto de ideias sistematizadas” e um humor que “pode ser tranquilo”, sem necessariamente corresponder ao afeto (LOPES, 1974, p. 95). Citando o psiquiatra gaulês Henri Ely, Lopes demonstra que “[q]uando o delírio está formado, sistematiza um feixe de ‘provas’, de ‘pseudoverificações’, de ‘falsas lembranças’, de interpretações delirantes, de falsos reconhecimentos” (idem, p. 98). Freud, que considera o ciúme delirante uma forma clássica de paranoia e vê nele uma homossexualidade suprimida, abafada, também é lembrado.

Assim munido, o psiquiatra apresenta então sua hipótese sobre Santiago, a quem, significativamente, ele trata pelo diminutivo infantil: Há na personalidade de Bentinho as predisposições básicas para o desenvolvimento psicopatológico no sentido de um ciúme delirante. As primeiras manifestações na adolescência, sua volta na fase inicial do casamento, a relativa possibilidade de compreensão, a parcial conservação da crítica, as intermitência falam no sentido do desenvolvimento. No momento, porém, em que surge a percepção delirante, com a transformação mais profunda da personalidade, quando a convicção da identidade física do filho e do amigo se torna inabalável e propicia uma permanente rede de interpretações delirantes, baseadas em acontecimentos ou em recordações falseadas, finalmente ao verificarmos a alteração final, resfriada a atividade delirante, com o isolamento, a impossibilidade de novas ligações amorosas estáveis, a casmurrice, o diagnóstico pende para delírio de ciúme. (ibidem, p. 102)

Como se vê, a psicologia e a psiquiatria podem explicar apropriadamente como um indivíduo acometido por um ciúme delirante chega a distorcer a realidade de forma que, aos seus próprios olhos, o improvável se revista de uma certeza pétrea e inabalável. Ainda assim, interessa-nos observar como essa distorção cognitiva se manifesta no discurso argumentativo construído pelo autor ficcional.

1.2. Justificativa

Como bem lembra o crítico e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Italo Moriconi, citado na abertura desta Introdução, muito já foi falado

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e escrito sobre Dom Casmurro. São numerosas as análises e menções à retórica de Bento Santiago, mas não o são os estudos voltados para os efeitos que causam na argumentação a peculiar seleção de auditórios realizada pelo narrador.

Percebemos na análise retórica tradicional um enfoque que não satisfaz aos nossos

questionamentos

de

maneira

plena:

fala-se

sobre

as

estratégias

argumentativas de Santiago para convencer ao seu leitor, mas poucas vezes é explorado o papel do leitor como auditório receptor dessa argumentação. Existem, é verdade, excelentes estudos6 sobre o escasso e pouco especializado público leitor da época de Machado de Assis7. Contudo, embora tragam informações e proposições importantes, tais pesquisas situam-se no campo conhecido como estética da recepção, capitaneado por figuras como Hans Robert Jauus e Wolfgang Iser. O foco não é, portanto, o discurso argumentativo em si.

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Alfredo Bosi, em texto publicado pela revista eletrônica Machado em linha (ano 2, número 4, dezembro de 2009, pp. 17-32, em http://machadodeassis.net/revista/numero04/rev_num04_artigo02.asp), chama atenção para a obra de Hélio de Seixas Guimarães, intitulada O romance machadiano e o público de literatura no século 19 (publicada pela editora Nankin, em coedição com a Edusp). Segundo Bosi, a ênfase dada por Guimarães à relação escritor-leitor “pôs em primeiro plano uma dimensão, dialógica, quase diria interativa e virtual, que em geral tinha sido descurada pela crítica machadiana” (p. 17, negrito do autor). 7

Luciana Artaud, acadêmica da PUC-Rio, cuja dissertação de mestrado trata das estratégias críticas na ficção machadiana, baseia-se em Hélio Guimarães para comentar sobre o primeiro recenseamento geral do Império (realizado em de 1872 e divulgado em 1876) e seu impacto no cenário intelectual e literário do país. A impressionante taxa de analfabetismo, que então chegava a 84%, “gerou entre os intelectuais, uma ampla discussão acerca do papel do escritor em uma nação que não sabia ler e das possibilidades comunicativas da produção literária onde as instituições existiam, mas por e para 30% dos cidadãos” (ARTAUD, 206, p. 15). Machado de Assis, que até a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas acreditava na existência de um grande público leitor em potencial, apenas temporariamente indiferente ao universo das letras, passou a duvidar de qualquer utilidade mais ampla da modernidade. Era um grande golpe contra seu projeto literário. Nas palavras de Artaud, “tendo sofrido seu maior impacto, a ideia romântica de construção nacional tornou-se insustentável aos olhos machadianos. [...] O romance, tendo sido um objeto surgido em países que viviam intensos processos de urbanização e alfabetização, nasceu como uma forma literária dirigida para o público burguês, condição da sua existência, sobrevivência e também o seu fim. Portanto, como poderia sobreviver em um país predominantemente rural e analfabeto? A solução machadiana é, no mínimo, original: sua ficção buscou dialogar com a restrita elite brasileira, retratando o que percebia como suas vivências, modos e conflitos, de maneira a causar, sem jamais perder de vista seu padrão estético, o ‘mal-estar’ necessário para a reflexão de suas idiossincrasias. Isto é, embora Machado tenha permanecido com a constante sensação de queda no vazio em função da carência de público e de opinião consistente, insistiu em abordar os temas relativos à nossa sociedade fundada em poderosos procedimentos de exclusão, por acreditar firmemente que a produção literária, por resistir ao tempo, deve justamente refletir sobre as questões de seu tempo. [O autor] passou então a adotar como marca radical a postura antidogmática e de desmistificação da produção literária. Em verdade, a partir de Memórias póstumas estará sempre questionando se é ou não romance aquilo que está a escrever.” (idem, pp. 16-17).

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Perguntamos-nos mais acima como justificar a certeza com que Santiago conclui sua narrativa se não há provas concretas que sustentem seus argumentos. A maior “prova” da traição de Capitu parece estar em uma suposta semelhança de Ezequiel, seu único filho, com Escobar, mas o próprio narrador apresenta suficientes argumentos para que se coloque em dúvida, se não em total descrédito, a razoabilidade de tal constatação. Sem essa “prova”, que daria base a uma argumentação lógica, como esperaria Bento Santiago criar alguma convicção em seu leitor? Ao mesmo tempo, se voltarmos nossa atenção para o efeito catártico que a narrativa parece ter exercido sobre o próprio narrador, surge a necessidade de questionar para quem, de fato, o livro foi escrito.

Encontramos instrumentos para abordar tais questões no Tratado da argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, por meio do qual exploraremos aspectos gerais da nova retórica perelmeniana e, mais detidamente, a teoria da audiência. Essa teoria, considerada uma das maiores contribuições de Perelman em seu projeto de revitalização do estudo das técnicas de argumentação, discute as condições necessárias para que a argumentação ocorra e, como o próprio nome sugere, estuda os diferentes auditórios aos quais ela pode ser dirigida.

Ao saber-se mais sobre a quem, de fato, Bento Santiago procurou convencer ao longo de suas páginas, é possível refletir sobre o porquê dessa catarse, típica de quem chega a uma conclusão satisfatória após uma longa e excruciante deliberação íntima. Paralelamente, lançam-se luzes diferentes sobre o antigo debate a respeito da traição de Capitu, que permanece mesmo em face de um narrador que afirma expressamente sua crença na culpa da mulher.

1.3. Objetivos

1.3.1. Objetivo geral

Este trabalho tem por objetivo geral identificar os auditórios aos quais dirige sua argumentação o narrador-personagem Bento Santiago, cuja alcunha dá título ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Tomaremos por base os

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pressupostos teóricos concebidos por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação, de 1958, concentrando-nos na chamada “teoria da audiência”.

Tendo em vista o escopo de nossa pesquisa, não ultrapassaremos comentários breves e pontuais sobre recepção crítica, desdobramentos filosóficos e diferentes correntes de pensamento que se formaram a partir da teoria desenvolvida e defendida por Chaïm Perelman ao longo de quase quatro décadas. Afinal, suas ideias foram tão veementemente encampadas quando confrontadas, e mesmo entre seus seguidores surgiram interpretações opostas de um mesmo aspecto, mormente relacionadas ao conceito de auditório universal.

1.3.2. Objetivos específicos

É objetivo específico deste trabalho entender a quem Santiago dirige seus argumentos e, a partir dessa percepção, refletir sobre os efeitos que tais auditórios parecem ter sobre o próprio personagem, que se demonstra convencido do sucesso da própria argumentação, apesar das falhas e lacunas – intencionais e não intencionais – em sua construção.

Em que pese o supramencionado diagnóstico provável de ciúme delirante, com seu grau elevado de desconexão da realidade e tendência à construção de certezas onde há apenas indícios ou impressões deslocadas, a argumentação do jurista Bento Santiago não se pauta exclusivamente por impulsos inconscientes, nem se reveste de qualquer inocência. Escrevendo em primeira pessoa, a todo o tempo o narrador solicita aos leitores por ele idealizados – auditórios em função dos quais constrói sua argumentação – que lhe preencham as lacunas narrativas e argumentativas, efetivamente tornando-os coautores, parceiros, cúmplices.

Enquanto apresenta suas justificações para tudo o que alega ter pensado, sentido e feito, Santiago também cuida de proteger sua argumentação contra possíveis críticas, valendo-se, além desse processo de cooptação, da ridicularização de leitores que possam vir a se opor aos seus pensamentos e atitudes. Conforme

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procuraremos demonstrar, tais procedimentos encontram explicação na teoria perelmeniana, que estuda, entre muitos outros aspectos, como o orador se adapta a auditórios heterogêneos, e como a defesa “prévia” de argumentos se enquadra no processo caracterizado como deliberação íntima, no qual o “eu” é o próprio auditório da argumentação.

1.4. Metodologia

Em face da teoria que nos serve como base, optamos por um viés qualitativo para nossa pesquisa. Selecionamos todas as passagens da narrativa machadiana em que detectamos o narrador em momentos de interação com os auditórios por ele construídos – seja com os diferentes leitores idealizados, seja consigo mesmo, em deliberação íntima.

Desse corpus, apresentado em sua totalidade nas tabelas disponíveis no Anexo I deste trabalho, selecionamos alguns dos trechos que consideramos mais significativos,

esperando

detectar

correspondências

diretas

com

a

teoria

perelmeniana, além de eventuais traços discursivos e gramaticais distintivos. Assim, ao buscar por padrões gerais em uma série de exemplos particulares, nossa metodologia se demonstra marcadamente indutiva.

Em que pese o foco na teoria da audiência, o fato de adotarmos como objeto de estudo a obra mais emblemática do autor mais estudado de toda a história da literatura brasileira, faz com que diferentes aspectos de sua bibliografia crítica inevitavelmente integrem e fundamentem nossa análise. Não buscaremos aqui, porém, refazer em detalhes o longo percurso crítico percorrido em mais de um século de esforços interpretativos acumulados, e que resultaram em uma bibliografia incrivelmente vasta e diversificada, em constante desenvolvimento.

Ao contrário dos estudos sobre Chaïm Perelman, ainda relativamente restritos no cenário acadêmico nacional, análises e discussões sobre Machado de Assis e sua obra, sob os mais diferentes pontos de vistas, abordagens e níveis de profundidade, são hoje de fácil acesso a quaisquer interessados. Assim, autores,

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estudos e referenciais teóricos relevantes para a discussão por nós proposta serão apresentados oportunamente.

O trabalho está dividido em quatro partes principais, incluindo esta Introdução, correspondente ao Capítulo 1. No Capítulo 2, empreenderemos uma exploração dos pontos principais da teoria da audiência, conforme apresentada no Tratado da argumentação, de forma a construir uma fundamentação consistente o bastante para reconhecer elementos que elucidem as dissonâncias que percebemos no discurso de Bento Santiago.

No Capítulo 3, utilizaremos essa teoria para analisar trechos selecionados de Dom Casmurro, em busca de correspondências com os pressupostos perelmenianos e também de padrões que sustentem nossas próprias proposições. Os traços comuns entre tais trechos foram agrupados em categorias, de acordo com sua função argumentativa ou auditórios percebidos. Em cada categoria, um trecho representativo será analisado em maior detalhe, ficando assim facilitada o reconhecimento de traços equivalentes em outros trechos da mesma natureza.

Por fim, no Capítulo 4, apresentaremos nossas considerações finais, buscando reunir e resumir os aspectos estudados e aplicá-los a nossa leitura do texto machadiano. Além das proposições expostas até o momento, esperamos adicionalmente explicar por que a análise perelmeniana do discurso argumentativo em Dom Casmurro é consideravelmente mais promissora do que tradicionais abordagens cartesianas, que podem prender o leitor em uma armadilha sem saída, qual seja, a nosso ver, a busca por uma resposta definitiva para o eterno debate a respeito da traição supostamente sofrida pelo narrador.

Antes, porém, nas subseções seguintes, contextualizaremos brevemente o Tratado da argumentação, procurando situá-lo histórica e epistemologicamente, para então apresentar algumas considerações sobre a corrente de pensamento conhecida como “nova retórica”, com destaque para o ponto de vista perelmeniano.

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1.5. Chaïm Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca e o Tratado da argumentação Originalmente publicado em 1958, mas em desenvolvimento desde 1947 8, o Tratado da argumentação tornou-se um texto-chave para a filosofia contemporânea ao pôr em xeque o viés cartesiano que vinha dominando o pensamento ocidental desde o século XVII.

Pioneiro em um campo de estudos que se tornou conhecido pelo subtítulo do livro9, qual seja, a nova retórica, o tratado uniu o judeu naturalizado belga Chaïm Perelman, autor já com sólida carreira acadêmica e que defendia o positivismo lógico (também chamado de “neopositivismo”) desde 192910, até que, na esteira da Segunda Guerra Mundial, viu-se incapaz de encontrar em tal posicionamento explicação para os horrores que presenciou, à licenciada em ciências sociais 11 Lucie Olbrechts-Tyteca, esposa do chefe do departamento de estatística da Universidade Livre de Bruxelas e com quem Fela Perelman, esposa de Chaïm, já havia trabalhado 8

Há controvérsias quanto à data exata em que o trabalho começou de fato a ser desenvolvido. Contudo, tomamos por base nesta apresentação a data utilizada pelo catedrático americano David Frank, da Universidade de Oregon, em artigo coescrito com Michelle Bolduc, da Universidade de Wisconsin-Milwaukee. Segundo estes autores (2010a, p. 141), Perelman e Olbrechts-Tyteca desenvolveram trabalhos relativos à nova retórica, em colaboração ou individualmente, entre 1947 e 1984, ano da morte de Perelman. 9 Em francês, Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique. 10 Em sua excelente dissertação sobre a nova retórica de Chaïm Perelman, o acadêmico Marco A. S. Alves, da Universidade Federal de Minas Gerais, procura suprir o pouco conhecimento que o público brasileiro em geral possui sobre filósofo belga por meio de uma biografia que, embora resumida, é bastante completa e suficiente para nossos propósitos. Alguns de seus aspectos serão retomados em nosso texto por meio dos artigos de David Frank. No texto de Alves (2005, p. 1), lê-se que “Chaïm Perelman (1912-1984) nasceu em Varsóvia e transferiu-se para Bruxelas em 1925, naturalizando-se belga. Em seus primeiros passos intelectuais, Perelman recebeu uma sólida formação jurídica – escrevendo uma tese de doutoramento em direito, concluída em 1934 – e também em lógica formal – ocorrida no decorrer da década de 30 sob a influência do neopositivismo, defendendo uma tese de doutoramento em 1938, sobre o lógico alemão Gottlob Frege. Na década de 30, voltou à Polônia para estudar na famosa Escola Polonesa de Lógica, Matemática e Filosofia Positivista, onde foi aluno de Kotarbinski e Lukasiewicz. Com o advento da Segunda Guerra, toda essa formação logicista acabou se voltando contra ela mesma. Perelman, de origem judaica, não concordou em entregar o discurso sobre os valores ao arbítrio – que seria a consequência natural de uma posição neopositivista – e se interessou pela possibilidade de uma lógica dos juízos de valor, com o fim de subtrair este âmbito do domínio do irracional. A partir de 1948 e durante dez anos de pesquisas em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca, estudiosa de ciências econômicas e sociais, Perelman abandonou seu estudo anterior de uma lógica específica dos juízos de valor – concluindo pela sua inexistência – e se voltou para as técnicas de argumentação e persuasão estudadas pelos antigos e, em particular, por Aristóteles. O resultado desta nova reflexão estão, sobretudo, em Rhétorique et Philosophie, de 1952, e no Traité de l’Argumentation, de 1958. Além do desenvolvimento da Nova Retórica, Perelman aprofundou seus estudos em algumas repercussões que a teoria da argumentação trazia para a filosofia, o direito, a moral e a justiça. Seus escritos possuem natureza fragmentária – com exceção do Traité de l’Argumentation – e estão espalhados em uma grande quantidade de artigos.” 11 Segundo Frank e Bolduc (2010a, p. 146), o título equivale ao grau de mestre nos Estados Unidos.

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durante a guerra, contra a ocupação nazista: Olbrechts-Tyteca era secretária-geral da divisão de Brabante da Liga Belga contra a Tuberculose, e usava sua posição para manter arquivos secretos sobre os judeus belgas que se ocultavam para escapar da perseguição alemã.

Filósofo de renome internacional, Perelman escreveu, entre 1931 e 1947, sobre uma vasta gama de assuntos, incluindo paradoxos, contradições, axiologia, julgamento, conhecimento, definições, metodologia, liberdade, democracia, escolha e justiça. O pensador produziu também, nesse período, textos sobre Nietzsche, Dupréel, Russel e Frege, além de artigos sobre a questão judaica na Europa. Em seu primeiro livro, La justice, escrito durante a guerra (concluído em agosto de 1944), ele explorou o papel da razão nos juízos de valor a partir de uma ótica neopositivista. Sua insatisfação com as conclusões a que chegou o levou a buscar, como alternativa, um sistema de raciocínio não formal, compatível com o conceito de “valores” e adaptado a um mundo abundante em ambiguidades e informações incompletas. Por um curto período Perelman ainda buscou respostas com um viés neopositivista, ao utilizar métodos de cunho empírico, preconizados pelo lógico e matemático alemão Frege em sua exploração dos juízos de valor, encontrando diferentes limitações em tal caminho teórico. Logo após Olbrechts-Tyteca juntar-se ao projeto, em 1947, deu-se a guinada em direção à retórica, por meio da qual os autores esperavam encontrar uma concepção de razão que pudesse explicar adequadamente os juízos de valor e as ações humanas (FRANK; BOLDUC, 2010a, pp. 144-145).

Dada a grande diferença entre a bagagem acadêmica dos dois autores, é bastante discutida a extensão da participação de Lucie Olbrechts-Tyteca no trabalho colaborativo. Após os dez anos que culminaram com a publicação do Tratado, ela e Perelman somente voltaram a publicar em colaboração em 1983, um ano antes da morte do filósofo que passou toda a segunda metade de sua vida consolidando e expandido as bases da nova retórica. Couberam a Perelman os esforços de supervisão das traduções do Tratado para o italiano e o inglês, e foram intensas suas atividades relacionadas ao projeto nos anos 1960 e 1970, período em que foi convidado por universidades na Europa, União Soviética e Estados Unidos para lecionar sobre nova retórica e outros assuntos. Olbrechts-Tyteca não buscou os

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holofotes, nem voltou a escrever, individualmente, sobre os assuntos que desenvolveu em conjunto com Perelman. Depois do Tratado, ocupou-se com literatura, estatística e pesquisa sobre tuberculose (idem, pp. 145-146).

Há evidências de que Perelman tenha sido responsável pela definição dos rumos do projeto e de que sua participação teórica tenha sido de muito maior peso. São fortes, por exemplo, os paralelos entre conceitos-chave da nova retórica conforme apresentados no Tratado e aspectos da filosofia judaica que sempre estiveram presentes em seu sistema de pensamento12. Em contrapartida, provavelmente partiram da autora importantes análises sobre a estrutura dos argumentos e os exemplos necessários, sobretudo literários, para dar lastro às proposições de cunho mais abstrato. Tanto ele quanto Olbrechts-Tyteca creditam a um “quase acaso” a guinada rumo à retórica, “revelação” ocorrida após a leitura de uma sequência de autores e citações que os levaram a Aristóteles e à tradição retórica grega (ibidem, p. 148).

Pode-se argumentar que havia um Tratado concebido por Perelman, outro por Olbrechts-Tyteca e um terceiro materializado a partir da colaboração entre ambos13. No meio acadêmico, porém, é bastante comum que Chaïm Perelman seja citado isoladamente em discussões sobre o Tratado da argumentação, o que fica evidente pelo uso generalizado do adjetivo “perelmeniano”. Incorremos em tal prática durante a apresentação a seguir, mas a recuperação nominal da participação da autora se dá logo mais à frente, durante a discussão sobre o papel dos auditórios na literatura.

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David Frank nota que, “assim como na tradição judaica, na nova retórica prioriza-se a comunidade dos espíritos, e é um auditório humano, e não D-us, a lógica formal ou o indivíduo quem julga os méritos de um argumento” (1997, p. 320, tradução nossa). Em outra passagem, Frank advoga que o estudo da argumentação em uma era pós-iluminista deve necessariamente ser incrementado pelo sistema dialético de influência judaica apresentado na nova retórica. Segundo ele, existem “sistemas de lógica e inferência não formais e que permitem o julgamento não fundamentado [em evidências]. O sistema de raciocínio Kal Ve-Chomer desenvolve uma lógica não formal pautada pelo domínio da justiça e pela dissociação de conceitos, evitando a compulsão pelo silogismo e a produção de julgamentos que envolvem princípios gerais inescapavelmente atados a fatos concretos. Tal lógica realiza os objetivos da nova retórica ao proporcionar às comunidades sistemas não violentos para solucionar conflitos baseados em valores” (1997, p. 328, tradução nossa). 13 Cabe registrar aqui a resposta de Perelman ao primeiro acadêmico a escrever uma dissertação sobre a nova retórica, em 1969ª ao ser questionado sobre a participação de sua colega na composição do Tratado. Utilizando o tratamento formal característico do relacionamento entre os coautores, o belga afirmou: “a Sra. Olbrechts-Tyteca, que não é filósofa, mas estudou sociologia e literatura, escreveu o Tratado em colaboração comigo, tendo sido a maioria das seções reescritas por ambos” (FRANK; BOLDUC, 2010, p. 149).

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1.5.1. Distinções entre a retórica clássica e a nova retórica

A segunda metade do século XX viu surgir uma gama de autores que podem ser agrupados sob a chancela de uma “nova retórica”. Segundo as professoras e pesquisadoras americanas Lisa Ede e Andrea Lunsford, além de Chaïm Perelman, nomes como Richard Weaver, Richard McKeon, Kenneth Burke, Albert Duhamel e Edward P. J. Corbett caracterizam-se “pela tentativa de recuperar e reexaminar os conceitos da retórica clássica e ao mesmo tempo definir-se em oposição a esses conceitos” (1982, p. 2, tradução nossa).

Essa oposição, segundo as autoras, se dá por meio de quatro distinções “persistentemente” estabelecidas entre a nova e a clássica retórica, resumidas em um quadro que traduzimos e apresentamos abaixo: Quadro 1: Principais distinções tipicamente estabelecidas entre a clássica e a nova retórica Retórica clássica 1. O homem é um animal racional que vive em uma sociedade marcada pela coesão social e por valores compartilhados.

Nova retórica 1. O homem é um animal que faz uso de símbolos e vive em uma sociedade fragmentária.

3. Relacionamento antagônico entre orador e auditório, caracterizado por uma comunicação unidirecional e manipulativa.

2. Ênfase nas provas de cunho emocional ou psicológico. 3. Relacionamento cooperativo entre orador e auditório, caracterizado por uma comunicação bidirecional e empática.

4. Persuasão como objetivo.

4. Comunicação como objetivo.

2. Ênfase na prova lógica ou racional.

Fonte: Ede e Lunsford (1982, p. 6).

Para elas, a percepção dos defensores da nova retórica com relação à clássica se baseia em uma contradição fundamental – os dois primeiros itens caracterizam a retórica tradicional como “racional demais”, enquanto os dois últimos a acusam de depender demais da manipulação emocional e da coação – e em uma falha na compreensão da abrangência do sistema filosófico aristotélico.

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Apoiando-se nos estudos de William Grimaldi14, entre outros, as autoras procuram demonstrar que não há na retórica de Aristóteles uma oposição estanque entre aspectos racionais e emocionais. O objetivo último da retórica – de acordo com indicações “claras” de Aristóteles, segundo elas – é levar à krisis (julgamento), uma atividade prática do intelecto, impulsionada, portanto, pela ação do logos e do pathos em relação de complementaridade. Como resultado, o ‘estado de espírito ideal’ somente pode ser compreendido como uma referência ao estado emocional que, quando unido à razão no processo de julgamento ou decisão, torna possíveis escolhas inteligentes e responsáveis (JOHNSTONE apud EDE; LUNSFORD, 1982, p. 9, tradução nossa).

Com Grimaldi, as autoras observam que, por trás das interpretações equivocadas do sistema aristotélico está justamente a (falsa) percepção de que os pisteis (ethos, pathos e logos) estão relacionados a três modos independentes de demonstração retórica – os dois primeiros, às argumentações não lógicas (ou quase lógicas) e o último, ao entimema, a forma silogística própria da retórica. Ao serem vistos

como

elementos

discursivos

isolados,

que

podem

ser

aplicados

separadamente, ethos, pathos e logos podem, por suas características, reforçar o viés racionalista ou emocional-coercivo conforme as preferências de diferentes autores.

A solução estaria na compreensão de que os três pisteis correspondem a elos indissociáveis unindo as pessoas engajadas em uma atividade discursiva. Afinal, como sugerem as autoras, uma forma mais apropriada de descrever os objetivos da retórica de Aristóteles seria como “uma forma interativa de descobrir significados por meio da linguagem (EDE; LUNSFORD, 1982, p. 14, tradução nossa).

1.5.2. A nova retórica perelmeniana A oposição entre os modelos clássico e “novo” de retórica é menos direta no caso do projeto filosófico perelmeniano. Desde as primeiras linhas do Tratado, o autor deixa claro que a ruptura que pretende é com a concepção cartesiana de razão e raciocínio, que, segundo ele, tornou-se característica marcante da filosofia 14

Professor emérito da Universidade Fordham, em Nova York, EUA.

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ocidental desde o século XVII. Situando a argumentação “no campo do verossímil, do plausível, do provável”, Perelman critica Descartes justamente por considerar “quase como falso tudo quanto era apenas verossímil” (DESCARTES apud PERELMAN, 2005, p. 1).

O sistema de pensamento cartesiano, segundo Perelman, impõe a evidência como “marca” da razão. Evidência, em suas palavras, é “ao mesmo tempo, como a força à qual toda mente normal tem que ceder e como sinal de verdade daquilo que se impõe por ser evidente” (TA15, p. 4). Citando Pascal, o belga afirma que, em tal sistema, toda prova é mera redução à evidência, enquanto o que é evidente simplesmente não requer prova. Tal concepção fez com que, por mais de três séculos, os “lógicos e teóricos do conhecimento” deixassem de lado o estudo da argumentação como forma de se obter a adesão a uma tese, já que “[a] própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e á evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência” (TA, p. 1). Para o belga, “o lógico, inspirado no ideal cartesiano, só se sente à vontade no estudo das provas que Aristóteles qualificava de analíticas, pois todos os outros meios não apresentam o mesmo caráter de necessidade” (TA, p. 2). Perelman percebe limitações à ideia de razão mesmo em pensadores como Pascal, Bergson e Kant, ao afirmar que a concepção pós-cartesiana “nos obriga a fazer intervir elementos irracionais16, cada vez que o objeto de conhecimento não é evidente” (TA, p. 3).

Conforme apresentado mais acima, um dos motivos por trás dessa ruptura com o positivismo lógico foi a incapacidade de explicar, por tal viés, os juízos de valor e ações capazes de levar à violência sistêmica e sistemática17 que a Europa 15

Para simplificar as referências ao Tratado da argumentação e privilegiar a clareza e fluidez da leitura, utilizaremos esta forma abreviada a partir deste ponto da apresentação. 16 Perelman classifica tais elementos em duas categorias: obstáculos a serem superados (imaginação, paixão, sugestão etc.) e fontes suprarracionais de certeza (coração, graça, intuição etc.). 17 Esta expressão surge na citação de Crosswhite no texto de David Frank (1997, p. 311, tradução nossa): “Os estudiosos da retórica ainda não perceberam a importância do projeto perelmeniano como uma ‘resposta filosófica a uma Europa pós-moderna, talhada pela violência sistêmica (e sistemática) e pela fragmentação irrestrita...’ (Crosswhite, ‘Audience’ 137).”

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vivenciou durante a Segunda Guerra. David Frank (2007, p. 313) postula que a opção de Perelman pela revitalização da retórica e da argumentação dialética em substituição à necessidade de evidência racional coerciva pode ter origem, também, no duplo trauma (da perda e da ausência) resultante do Holocausto belga, em que pereceram 44% dos judeus daquele país, muitos deles seus familiares. Tal perspectiva poderia ser ilustrada pela pungente pergunta do filósofo na introdução ao Tratado: “onde nem a experiência, nem a dedução lógica podem fornecer-nos a solução de um problema, só nos resta abandonarmo-nos às forças irracionais, aos nossos instintos, à sugestão ou à violência?” (TA, p. 3). Segundo Frank, Perelman buscou elaborar [seus] traumas ao reformular conjuntamente os conceitos de razão e retórica, movendo ambos diretamente para a esfera dos juízos de valor e da ação. Ao fazê-lo, Perelman conectou o raciocínio retórico ao princípio da responsabilidade [...] e identificou uma expressão de razão, de lógica argumentativa, no mundo da experiência, no plano da ação, no reino do pathos. (FRANK, 2007, p. 322, tradução nossa.)

Frank nos lembra, ainda, que o pensamento perelmeniano é fortemente influenciado pelo judaísmo18, pelo Talmude e pela noção de Tsedek, que é o conceito judaico de justiça (1997, p. 312). Faz parte desse conceito uma definição de razão que contemple a totalidade das faculdades humanas, incluindo empatia, emoção e razoabilidade. Para Descartes, quando duas pessoas chegam a respostas diferentes para um mesmo problema, uma delas está necessariamente errada. Perelman, por sua vez, sustenta que, se duas pessoas discordam, ambas podem ter razão segundo seus próprios pontos de vista. No Talmude, respostas diferentes para a mesma questão podem coexistir, uma vez que “a verdade é indeterminada e pontos de vista alternativos podem abranger diferentes aspectos da verdade” (KRAEMER apud FRANK, 1997, p. 315, tradução nossa).

Mesmo no papel central dado aos auditórios na nova retórica perelmeniana podem ser reconhecidos traços da tradição talmúdica. Alinham-se aos princípios ilustrados pela narrativa talmúdica intitulada O forno de Akhnai, citada por Perelman

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Perelman foi, afinal, fundador e líder da ala judaica do movimento belga de resistência à ocupação nazista (época em que sua esposa, como já dissemos, trabalhou com Olbrechts-Tyteca em prol dos judeus que ocultavam dos invasores). Mais tarde, em 1958, ano de publicação do Tratado, foi um dos cinquenta intelectuais convidados por Ben Gurion, primeiro-ministro israelense, para ajudá-lo (e ao Estado de Israel) a definir o próprio conceito de judaísmo (FRANK, 2007, p. 145).

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em um de seus escritos19, a ideia de que todo discurso, independentemente de sua fonte, deve ser analisado pela razão humana, e de que os poderes finais de julgamento e solução de conflitos estão investidos na maioria, na comunidade em forma de auditório, em detrimento do divino ou do indivíduo. Assim como outros pensadores judaicos, Perelman identifica no discurso, na linguagem, e na retórica uma forma de humanizar o “outro” e resolver conflitos de valores de forma não violenta, respeitando e preservando a liberdade de ambas as partes e proporcionando à comunidade uma forma de organizar hierarquias consensuais de valor (FRANK, 1997, p. 316-318).

Percebe-se portanto que, por sua formação, Perelman se encontrava especialmente predisposto a lidar com formas aparentemente antagônicas de demonstração. Ainda em sua introdução ao Tratado, ele alude explicitamente à coexistência entre os princípios racionais e subjetivos do sistema aristotélico, lembrando que o grego “analisara as provas dialéticas ao lado das provas analíticas, as que se referem ao verossímil ao lado das que são necessárias, as que são empregadas na deliberação e na argumentação ao lado das que são utilizadas na demonstração” (TA, p. 3).

Assim, embora exista na nova retórica perelmeniana um aspecto de oposição ao racionalismo, trata-se de uma refutação aos limites do racionalismo cartesiano, e não de uma má interpretação do sistema de pensamento aristotélico, limitação encontrada por Ede e Lunsford em outras correntes da nova retórica por elas estudadas. Em grande parte, pode-se dizer que Perelman está alinhado às sugestões de Ede e Lunsford, as quais veem a Retórica de Aristóteles como um trabalho que une orador e auditório, linguagem e ação, teoria e prática [...] Se for para a retórica atingir a totalidade de seu potencial [...] como prisma conceitual para disciplinas há muito separadas e como forma de instrução e conduta na leitura, escrita e oratória, será necessário que nos definamos em consonância com o modelo clássico de retórica, e não em oposição a ele. (EDE; LUNSFORD, 1982, p. 22, tradução nossa.)

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Segundo Frank (1997, p. 313), trata-se do artigo “Juridical Ontology and Sources of Law”, publicado por Perelman em 1983.

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E estando assim contextualizados o Tratado da argumentação e a nova retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, dedicaremos o capítulo seguinte a um estudo mais detalhado da teoria da audiência, elemento central da fundamentação de nossa pesquisa.

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CAPÍTULO DOIS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito de seu auditório. [...] É, de fato, ao auditório que cabe o papel principal para determinar a qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores. (PERELMAN, 2005, p. 27)

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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O presente trabalho tem por objetivo analisar os auditórios para os quais escreve Bento Santiago, narrador-personagem de Dom Casmurro, segundo a perspectiva oferecida pelos estudos de Chaïm Perelman (1912-1984) e Lucie Olbrechts-Tyteca (1899-1987) em seu Tratado da argumentação. Importa-nos, sobretudo, entender a quem Santiago dirige seus argumentos e, a partir dessa percepção, refletir sobre os efeitos que esses auditórios parecem ter sobre a estrutura narrativa do romance e sobre o próprio personagem, que se demonstra convencido do sucesso da própria argumentação, apesar das falhas e lacunas – intencionais e não intencionais – em sua construção. Para tanto, utilizaremos como instrumento principal a “teoria da audiência”, como são conhecidas as considerações de Perelman e Olbrechts-Tyteca sobre a natureza e características dos auditórios e sua influência sobre a argumentação. Os conceitos básicos e relevantes para o entendimento da teoria da audiência serão apresentados conforme depreendidos de uma leitura direta do Tratado. Os demais conceitos e pontos de interesse referentes à interpretação literária de nosso objeto de estudo serão aduzidos oportunamente, durante os capítulos voltados à análise e discussão.

Nas subseções seguintes, traremos uma apresentação detalhada sobre teoria da audiência conforme fundamentada ao longo da primeira parte do Tratado, dedicada aos âmbitos da argumentação.

Encerrando este capítulo, serão oferecidas considerações adicionais sobre as aproximações entre a teoria da audiência e a literatura, como forma de introdução à discussão subsequente.

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2.1. A teoria da audiência O objetivo de toda argumentação, segundo Perelman, é “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento” (TA, p. 50). Consequentemente, sua teoria da argumentação tem por objeto de estudo as técnicas discursivas por meio das quais essa adesão pode ser atingida.

Como vimos acima, o pensador belga não se coloca em oposição direta aos princípios da retórica clássica, mas também não se deixa limitar por eles: aproximase igualmente da dialética conforme definida por Aristóteles – ou seja, a “arte de raciocinar segundo opiniões geralmente aceitas” (TA, p. 5) – e recupera a noção de que a adesão dos espíritos às teses ocorre com intensidade variável. Para ele, uma argumentação eficaz é aquela que aumenta essa intensidade até o ponto em que os ouvintes realizem, ou ao menos se mostrem dispostos a realizar em momento oportuno, a ação (ou abstenção) pretendida pelo orador.

A aproximação mais pronunciada com a retórica vem de sua percepção de que essa ideia de adesão e de espíritos aos quais se dirige um discurso é essencial em todas as teorias antigas da retórica. Nossa aproximação dessa última visa a enfatizar o fato de que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. [...] a meta da arte oratória – a adesão dos espíritos – é igual à de qualquer argumentação. (TA, p. 6, grifos do autor.)

Naturalmente, Perelman não restringe sua nova retórica à “arte de falar em público de modo persuasivo”. Na verdade, ele expressamente deixa de lado o estudo da elocução e da ação oratória para preocupar-se com a estrutura da argumentação, encampando o discurso oral, mas concentrando-se sobretudo na análise da argumentação escrita, conforme depreendida dos mais variados tipos de texto.

Tal mudança de foco demanda um estudo detalhado da natureza dos diferentes auditórios, já que é diretamente em função destes que todo discurso é concebido. Importa saber como são constituídos, quais práticas, valores e crenças

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representam ou compartilham e, principalmente, como o orador os concebe em seu discurso, já que, mudando-se o auditório, a argumentação necessariamente muda também de aspecto.

Richard Long, da Universidade da Carolina do Norte, apresenta um interessante resumo sobre a relação discursiva entre orador e auditório na visão perelmeniana: Perelman acredita que o orador cria linguisticamente uma presença à qual o auditório adere. Para tanto, o orador primeiro analisa como o auditório pensa e age, e então procura recriar estilisticamente a informação resultante. A adesão ocorre porque a consciência do auditório é preenchida pela própria essência dessa presença discursiva. O orador entra em comunhão com o auditório e, como resultado das técnicas argumentativas, eles agem em conjunto. (LONG, 1983, p. 107, tradução nossa.)

Por sua centralidade para o projeto filosófico de Chaïm Perelman, e tendo também em vista os propósitos do presente trabalho, dedicaremos as subseções a seguir a uma apresentação detalhada da teoria da audiência conforme depreendida da leitura direta do Tratado da argumentação.

Sabemos que se encontram nesse aspecto da teoria da argumentação alguns dos maiores focos de disputas entre seguidores e detratores20 da nova retórica perelmeniana. Charlotte Jørgensen, da Universidade de Copenhague, diz, com relação às divergências entre Alan G. Gross e James Crosswhite sobre o conceito de auditório universal, ser “espantoso como dois acadêmicos e intérpretes proeminentes de Perelman possam ler a mesma teoria e chegar a visões tão vastamente distintas21 acerca da sua aplicação” (JØRGENSEN, 2012, p. 134). As

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Há muitas outras críticas para além da questão dos auditórios. Frank (1997, p. 311) menciona críticos que consideram o sistema de pensamento perelmeniano relativista, idealista e elitista, entre outros adjetivos. Entre os citados, estão van Eemeren e Grootendorst, que reduzem o Tratado a uma “taxionomia da argumentação”; John Ray, que acusa Perelman de ter-se apropriado da filosofia kantiana para expandir os limites da teoria da retórica com elementos do neopositivismo e do idealismo crítico; e mesmo Lisa Ede, para quem Perelman reluta em abandonar de fato o racionalismo tradicional. 21 Jørgensen discute sobre possíveis inconsistências entre os conceitos de auditório universal e de valores na teoria perelmeniana: se o auditório universal lida exclusivamente com valores abstratos (não especificados, como “justiça”, em oposição a valores concretos como “França”), isso significa sua inaplicabilidade ao discurso político? A partir desta pergunta, Jørgensen compara o posicionamento de Gross – para quem “discursos que visam ao auditório universal enfocam o real; aqueles que se dirigem a auditórios particulares focalizam o preferível” (GROSS; DEARIN apud JØRGENSEN, 2012, p. 136, grifos da autora) com o de Crosswhite, para quem a universalidade deve

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ideias e os aspectos abordados por cada um, embora sustentados por certas passagens dos escritos de Perelman, tornam-se problemáticas quando confrontadas com passagens diferentes sobre o mesmo assunto.

A forma elíptica com a qual Perelman se expressa também é alvo de críticas. Embora a preferência por definições abertas e fluidas esteja em consonância com a busca de alternativas à lógica formal, é inegável que, ao longo das 652 páginas do Tratado22, e mais ainda ao longo de quatro décadas de escritos relacionados, as oscilações

na

caracterização

de

determinados

conceitos

causem

algum

estranhamento.

Long (1983, p. 108, tradução nossa), por exemplo, examinando textos publicados entre 1963 e 1980, entende que Perelman “renega o conceito de auditório universal mesmo enquanto se esforça por defini-lo”: em um contexto, tal auditório é a totalidade dos seres capazes de raciocinar. Em outro, é a encarnação da razão tradicional. Em um terceiro contexto, corresponde a um auditório ideal, que Platão compararia a uma materialização do divino. Por fim, em um quarto contexto, Perelman diz que o auditório universal em verdade não existe: trata-se apenas de uma construção do orador, um ponto de referência discursivo cujo objetivo é aglutinar argumentos que transcendem os limites do auditório particular, variando de pessoa para pessoa e de época para época. Não surpreende, portanto, que ancorando-se em um ou em outro contexto, diferentes interpretações possam levar a caminhos teóricos bastante incongruentes.

De qualquer forma, um apanhado crítico mais aprofundado, e principalmente que vá além dos estudos e artigos disponíveis em língua inglesa, foge ao escopo de nossa presente discussão, por mais produtiva que se afigure tal tarefa. Na ser entendida em graus e está relacionada a uma situação argumentativa particular e o auditório universal é visto como uma espécie de modelo ou paradigma cuja função é assegurar a qualidade da argumentação. Outros pontos de comparação mais diretamente relacionados à questão dos valores (e do discurso político) são apresentados. Embora a autora tenda a aproximar-se da posição de Crosswhite, para ela permanecem em aberto questões importantes, como por exemplo a forma de determinar criticamente qual o auditório universal pertinente em uma determinada situação retórica. 22 De acordo com Noemi Mattis-Perelman, filha do filósofo, após os dez anos de colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca, a versão finalizada do Tratado passava das 2 mil páginas, as quais tiveram que ser reduzidas para as 740 da edição em francês. Talvez seja essa a razão, argumentam Frank e Bolduc (2010b, p. 309) por trás da escrita aparentemente elíptica e insuficientemente elaborada em algumas passagens da obra.

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apresentação subsequente, a única interferência crítica externa, como se verá, acontece no item 2.1.10, que trata da deliberação íntima e da visão perelmeniana sobre as diferenças entre razão e racionalização.

2.1.1. A comunidade efetiva dos espíritos No Tratado da argumentação de Chaïm Perelman, os conceitos de “auditório” e “orador” ganham seus contornos iniciais logo na primeira parte da obra, dedicada aos “âmbitos” da argumentação e na qual são apresentados os elementos e condições prévias para que a argumentação ocorra. O autor defende que “toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual”. Ele parece utilizar as expressões “contato intelectual”, “comunidade efetiva dos espíritos” e “comunidade intelectual” como sinônimos, a julgar pela sequência que dá à sua proposição: Para que haja argumentação, é mister que, num dado momento, realize-se uma comunidade efetiva dos espíritos. É mister que se esteja de acordo, É mister que se esteja de acordo, antes de qualquer coisa e em princípio, sobre a formação dessa comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questão determinada. (TA, p. 16)

A formação dessa comunidade, ou a ocorrência desse contato, para ele, é uma condição prévia para a argumentação mesmo quando esta se dá apenas como processo mental do indivíduo, ou seja, no “plano da deliberação íntima”, em sua definição. Diz o autor que, em tais situações, “a pessoa deve conceber-se como dividida em pelo menos dois interlocutores que participam da deliberação”, já que esta “parece constituída com base no modelo da deliberação com outrem” (TA, p. 16). É interessante observar o uso do termo “parece”, neste caso. Desde que estabeleceu a necessidade de um contato intelectual como pressuposto para a argumentação, Perelman repetidamente mencionou que “nada nos autoriza” a considerar tais relações como evidentes ou necessários. Uma interpretação possível estaria em sua intenção de diferenciar o ato de “argumentar, de influenciar, por meio do discurso, a intensidade da adesão de um auditório a certas teses” da lógica

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formal, que se preocupa com a demonstração coerciva de proposições por meio da manipulação de sistemas axiomáticos de acordo com regras pré-determinadas de dedução. Ao contrário do que ocorre na argumentação, na lógica formal “não há preocupação com o sentido das expressões”, já que os formalistas “[d]eixam a interpretação dos elementos do sistema axiomático para os que o aplicarão e terão de se preocupar com sua adequação ao objetivo pretendido” (TA, pp. 15-16). Assim, fica a impressão de que Perelman pretende evitar em sua formulação qualquer paralelismo com esse aspecto da lógica formal, ao construir, no cerne dos processos que descreve, espaço para diferentes interpretações.

Voltando à análise das condições prévias para a argumentação, temos que a própria comunidade efetiva dos espíritos depende, para sua formação, de um conjunto de condições. A primeira delas, segundo Perelman, “parece ser a existência de uma linguagem em comum, de uma técnica que possibilite a comunicação” (TA, p. 17). Contudo, isso “não basta”, como o autor afirma enfaticamente antes de apontar para a existência de “regras que estabelecem como a conversa pode iniciar-se” (TA, p. 17). Tais regras seriam um “acordo resultante das próprias normas de nossa vida social” em um mundo “hierarquizado, ordenado”. Entre elas, encontra-se o desejo de estabelecer contato com o outro.

2.1.2. O relacionamento entre o orador e o auditório

O autor parece acreditar que nenhum indivíduo tem por objetivo real dirigir-se “a todos os seres humanos” indistintamente. Para ele,”[o] conjunto daqueles aos quais desejamos dirigir-nos é muito variável” (TA, p. 18). Se por um lado existem “seres aos quais não nos preocupamos em dirigir a palavra”, por outro o contato, quando é estabelecido, nem sempre é relevante, desejável, ou resulta em qualquer tipo de deliberação, podendo ser mero efeito de alguma hierarquia estabelecida (como ocorre, por exemplo, quando alguém dita ordens a um subordinado).

É a partir desta noção que Perelman apresenta uma importante definição: “para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental" (TA, p. 18). Lembrando que “em

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muitas sociedades, não se dirige a palavra a qualquer um”, o autor faz notar que ser considerado um interlocutor digno em um processo deliberativo é uma “distinção apreciada”. Isso se verifica mesmo em contatos aparentemente frívolos ou irrelevantes, mas que possuem indispensável efeito de coesão social. Naturalmente, a contrapartida é que “ouvir alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista” (TA, p. 19).

De qualquer forma, o pensador belga demonstra que tentar persuadir alguém “implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta.” Em outras palavras, fica subentendido que o persuasor não dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e [obtenha] imediatamente a convicção. Ele admite que deve persuadir, pensar nos argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocuparse com ele, interessar-se por seu estado de espírito. (TA, p. 18)

Para evitar uma imagem de arrogância, de antipatia, é importante assinalar discursivamente o valor dado à apreciação por parte do outro das ideias ou teses apresentadas. Por outro lado, há sempre o risco de que as características desse “outro” interfiram na qualidade da argumentação desenvolvida. Perelman busca Aristóteles para lembrar que, no debate com certos tipos de pessoa, os raciocínios sempre “se envenenam”, principalmente quando se trata de um adversário que procura “esquivar-se” por todo e qualquer meio dos argumentos apresentados. Em tais casos, “é legítimo tentar por todos os meios chegar à conclusão; mas falta elegância para tal procedimento” (ARISTÓTELES apud PERELMAN, 2005, p. 19).

Retomando o exposto mais acima, tanto é uma distinção receber a atenção de alguém – de uma audiência – de modo que suas palavras sejam dignas de consideração, quanto o é ser esse alguém a quem se dirige a palavra. Sem a participação desses dois elementos – o orador e seu auditório, configurando o “contato dos espíritos” – não há argumentação.

Para que o vínculo se estabeleça, não basta que o orador relate experiências, mencione fatos ou enumere verdades a esmo. De acordo com Perelman, essa atitude resulta de uma ilusão – qual seja, a de que “os fatos falam por si sós e

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imprimem uma marca indelével em todo espírito humano, cuja adesão forçam, sejam quais forem suas disposições” (TA, p. 20). Há situações privilegiadas, como as em que o contato intelectual acontece por força ou por intermédio de protocolos institucionais – uma preleção acadêmica, por exemplo. Mesmo em tais casos, porém, para que orador tome a palavra e seja ouvido, é preciso que ele tenha alguma qualidade que o valide. Essa qualificação é fundamentalmente circunstancial e pode estar relacionada à função ou posição que o orador ocupa em seu meio, ou depender das regras e regulamentações do “campo” – instituições científicas, judiciárias ou religiosas, por exemplo – em que o contato deve ocorrer.

Outra situação privilegiada está na palavra escrita. Para o pensador belga, o texto impresso aproveita-se do viés mercantil da organização econômica de nossa civilização para impor-se à atenção na condição de mercadoria. Tal situação pode obscurecer a real qualificação do orador, que poderia talvez não encontrar auditório se não fosse favorecido pelo próprio meio – o texto impresso – em que sua argumentação se desenvolve.

2.1.3. O auditório como construção do orador

Mais do que mera condição prévia da argumentação, Perelman vê o contato entre o orador e auditório como determinante para o desenvolvimento dela: “como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar” (TA, p. 21). A partir dessa observação, torna-se imprescindível refletir sobre a própria constituição desse auditório, já que a percepção que o orador tem de seu auditório pode levá-lo a modificar os termos de seu discurso. Segundo Perelman, é difícil determinar um auditório “com a ajuda de critérios puramente materiais”. Quando se trata de retórica, ele sugere que se defina o auditório como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (TA, p. 22, grifo do autor). A imaterialidade de tal definição se torna manifesta quando Perelman expressa ser “mais ou menos consciente” a forma como o orador pensa “naqueles que procura persuadir”, ou seja, a maneira como presume o “auditório ao qual se dirigem seus discursos”.

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Por consequência, tem-se que o auditório presumido é sempre uma construção do orador. Importa, sobremaneira, que o auditório construído seja adequado à experiência em questão: Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências. Uma argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato, razões contra. (TA, p. 22, grifo nosso.)

Depreende-se, portanto, que “o conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz” (TA, p. 23). Perelman caracteriza a construção do “auditório presumido” por parte do orador como “mais ou menos sistematizada”, ou seja, nem presa a regras rígidas e incontornáveis, nem tampouco realizada de maneira aleatória. Para ele, tanto as origens psicológicas quanto as origens sociológicas de um auditório são passíveis de determinação. Explorando o aspecto psicológico, Perelman encontrou Aristóteles, que em sua Retórica utilizava idade e fortuna como critérios para classificar auditórios. Cícero, por sua vez, os diferenciava de acordo com sua formação intelectual e moral, opondo o homem ignorante e grosseiro, que “sempre prefere o útil ao honesto", ao homem esclarecido e culto, que “põe a dignidade moral acima de tudo”. Quintiliano, por fim, chamava a atenção do orador para as diferenças de caráter entre os que compunham seu auditório.

Já em sua exploração dos elementos sociológicos pertinentes à constituição de um auditório, Perelman faz notar que, “mais do que seu caráter pessoal, as opiniões de um homem dependem de seu meio social, de seu círculo, das pessoas que frequenta e com quem convive” (TA, p. 23). Isso se deve ao fato de que as opiniões dominantes de cada meio, as convicções que lhe são características e as premissas que são aceitas sem hesitação configuram um quadro cultural que o orador precisa levar em conta e ao qual deve se adaptar, se quiser que sua argumentação tenha os efeitos desejados. É dessa forma que “a cultura própria de cada auditório transparece através dos discursos que lhe são destinados”.

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Ainda tratando do aspecto sociológico, o pensador belga discute como as funções e papéis sociais que os ouvintes cumprem (e também as instituições nas quais exercem tais funções, ou das quais participa) moldam suas atitudes e podem influenciar seu posicionamento diante dos discursos que lhes são apresentados. Qualquer mudança de função pode significar a adoção de uma “personalidade nova, que o orador não pode ignorar. E o que vale para cada ouvinte particular não é menos válido para os auditórios, em seu conjunto” (TA, p. 24). Segundo os antigos, o gênero oratório utilizado decorria diretamente do papel ou função a ser cumprida pelo auditório – deliberativo, se, como tal palavra sugere, houvesse alguma deliberação a ser feita, judiciário, quando ao auditório coubesse a realização de algum julgamento, ou epidíctico, caso o auditório não necessitasse pronunciar-se sobre o “âmago” do caso, usufruindo do desenvolvimento oratório como meros espectadores.

Para alguém que se proponha a estudar a técnica da argumentação, porém, essa não é uma classificação que possa ser cegamente aceita, pois parece presumir auditórios

internamente

homogêneos,

ou

seja,

compostos

por

integrantes

suficientemente parecidos entre si para que se possa negar suas particularidades. No mais das vezes, porém, o auditório com que o orador deve lidar é heterogêneo, formado por pessoas com diferentes vínculos, caráter ou funções. São necessários, então, diferentes argumentos para dar conta de tal diversidade, uma vez que se pode considerar cada um dos integrantes de um auditório assim constituído como pertencentes, simultaneamente, a múltiplos grupos. Perelman ilustra o aparente paradoxo mencionando os discursos que são proferidos diante dos parlamentos, em que o orador precisa reconhecer e lidar com os diferentes pontos de vista representados pelos membros de seu auditório.

Vem à tona, então, outro ponto-chave da teoria da audiência desenvolvida por Perelman: de acordo com o autor, para evitar que o orador “hesite” diante da tarefa de abranger adequadamente a multiplicidade de pontos de vista esposados pelos membros de seu auditório, uma saída é inserir ficticiamente esse auditório em uma série de auditórios diferentes. Em outras palavras, é como se o orador adotasse, para cada aspecto ou inclinação que ele detecta em seu auditório, uma persona correspondente.

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Dada a interdependência entre ambos, “não é somente o orador que muda assim de cara, é muito mais ainda o auditório a que se dirige” (TA, p. 25). Conforme discutido mais acima, pode-se tentar determinar e, durante a argumentação, manipular os fatores psicológicos e sociológicos presentes na constituição de um auditório. O orador pode dividir seu auditório de acordo com os grupos sociais aos quais os seus elementos pertencem (religiosos, profissionais, políticos etc.), ou ainda de acordo com os valores aos quais aderem seus ouvintes. Tais “divisões ideais”, na definição do autor, “não são independentes uma da outra”. Elas podem “levar à constituição de auditórios parciais muito diferentes”, os quais dependerão, por sua vez, também da posição pessoal do orador: ele pode encarar seus interlocutores como partes de um auditório único ou como representantes de uma série de auditórios distintos.

É importante lembrar que tratamos aqui da construção de uma imagem presumida do auditório por parte do orador, de uma condição prévia para que haja a argumentação. É um processo sobretudo discursivo, cujo objetivo final é facilitar o contato intelectual entre as partes e, eventualmente, a adesão dos espíritos à tese apresentada. O orador precisa conhecer o auditório a que se dirige, se deseja que sua argumentação seja efetiva, e saber desconstruí-lo, reconhecendo seus elementos constitutivos, é parte importante desse caminho.

Para o autor, a natureza do auditório e os meios adequados para condicionálo são aspectos correlatos. O orador que conhece seu auditório sabe, também, como assegurar seu condicionamento e, a cada instante do discurso, a proporção em que tal condicionamento foi ou não atingido (TA, p. 26).

Quando se fala em condicionamento, trata-se de fatores externos ao próprio auditório; ou seja, técnicas e elementos materiais (Perelman cita direção teatral, música, iluminação e “jogos de massas humanas”, entre outros exemplos) ou discursivos utilizados como formas de agir sobre as mentes. Seu foco, naturalmente, é o “condicionamento através do próprio discurso, de sorte que o auditório já não é, no final do discurso, exatamente o mesmo do início”. A condição prévia para esse condicionamento, como se vem discutindo nos últimos parágrafos, é a permanente adaptação do orador ao auditório.

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2.1.4. O auditório como elemento determinante da argumentação Cabe ao auditório o papel principal na determinação da qualidade da argumentação

e

do

comportamento

dos

oradores

(ARISTÓTELES

apud

PERELMAN, 2005, p. 27). Mais importante do que aquilo que o orador vê como verdadeiro ou probatório – palavra que pode significar tanto algo que contém ou serve de prova quanto algo que se refere a uma prova – é o parecer daqueles a quem a argumentação se dirige. Na verdade, de acordo com Perelman, “[o] grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito de seu auditório”.

É diferente, segundo o pensador, o caso do homem apaixonado, que tem por única preocupação aquilo que ele mesmo sente. Citando M. Pradines, Perelman diz que o discurso de um apaixonado pode ser tocante, mas não resulta em um “som verdadeiro”. Estaria em operação, nesse tipo de discurso, apenas uma máscara lógica incapaz de resistir à “verdadeira figura”. Para o filósofo francês Maurice Pradines, “a paixão é incomensurável para as razões”. Perelman prefere sugerir que o apaixonado, em sua argumentação, não leva seu auditório suficientemente em consideração, imaginando seus interlocutores sensíveis aos mesmos argumentos que persuadiram a ele mesmo. Desse “esquecimento do auditório” pode resultar uma má escolha de argumentos, os quais até podem, pelo entusiasmo com que são transmitidos, influenciar pessoas mais sugestionáveis, mas que parecerão, à maioria dos ouvintes, “desarrazoados”.

O caráter do auditório é outro elemento determinante para a qualidade da argumentação. Conforme tratado mais acima, quando da classificação de auditório segundo autores da antiguidade, vimos que Cícero diferenciava interlocutores de acordo com sua formação moral e intelectual. Naturalmente, não se pode argumentar com um auditório cuja formação cultural seja notadamente baixa da mesma forma que se argumenta com um painel de especialistas em determinado assunto. Por sinal, o belga acredita que se deve a auditórios incompetentes, desatentos e incapazes de compreender raciocínios ordenados a introdução, na teoria do discurso, de “regras gerais cuja validade parece, entretanto, limitada a casos específicos”. O autor não apresenta exemplos específicos, mas, antes de

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chegar a tal conclusão, já havia mencionado Demóstenes, que pedia ao povo ateniense que se aprimorasse, com vistas ao aprimoramento do estilo de seus oradores.

Ambiguidade moral e ausência ou deturpação de princípios são outra característica que pode impedir um auditório de sequer considerar os pontos de vista de um orador cuja formação moral seja elevada. Perelman (TA, p. 28) retorna aqui a Quintiliano, que tratou do problema da conciliação dos escrúpulos do homem de bem com a submissão ao auditório. O pensador romano defendia que não basta ao orador perfeito persuadir bem – é preciso também “dizer o bem”.

Como se vê, são muitas as possibilidades de reflexão baseadas em particularidades do auditório. Mesmo sua extensão pode influenciar processos argumentativos, já que a mesma plateia ampla que pode inflamar um orador pode atemorizar outro. Importa, tanto quanto a adaptação do orador ao auditório, que o discurso seja adaptado igualmente. Segundo Perelman, o fundo e a forma de certos argumentos, apropriados a certas circunstâncias, podem parecer ridículos noutras. A realidade dos mesmos acontecimentos descritos numa obra que se pretende científica ou num romance histórico não deve ser provada da mesma forma. (TA, p. 28)

Para cada abordagem possível na construção do auditório presumido, o orador irá se deparar com um conjunto diferente de questões. Torna-se evidente, então, a necessidade de uma técnica argumentativa que se imponha a todos os auditórios, transcendendo particularidades locais e históricas e fazendo com que as teses apresentadas possam ser aceitas por qualquer auditório composto por pessoas “competentes ou racionais”. Segundo Perelman, “[a] busca de uma subjetividade, seja qual for sua natureza, corresponde a esse ideal” (TA, p. 29). Transcender “valores temporais e locais”, expressão que Perelman emprestou do filósofo francês Julien Benda23, significa buscar aquilo que é absoluto, “universal”. O belga enxerga nessa questão o ressurgimento de um debate entre os “partidários 23

Conhecido pela obra A traição dos intelectuais, de 1927, em que “acusa os clérigos de traição quando abandonam o cuidado com o eterno e com o universal para defenderem valores temporais e locais”, na descrição de Perelman (TA, p. 30).

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da verdade” e “indagadores do absoluto”, entre os quais ele situa os filósofos, e os partidários da opinião, “envolvidos na ação”, entre os quais estariam os retores. É a partir dessa oposição que Perelman propõe outro conceito-chave para a teoria da audiência e para a própria teoria da argumentação: a diferença entre persuasão e convicção:

2.1.5. Persuadir e convencer

A maneira mais apropriada de introduzir este item passa pela apresentação de uma passagem importante do Tratado: Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional. O matiz é bastante delicado e depende, essencialmente, da ideia que o orador faz da encarnação da razão. (TA, p. 31, grifos do autor.)

Há uma série de ideias importantes condensadas em tal proposição. Primeiramente, gostaríamos de destacar da passagem acima a palavra matiz. Não se trata, então, de uma oposição absoluta entre extremos opostos. Embora reconheça que a distinção entre persuasão e convicção deva ter sua importância, já que se reflete na linguagem por meio de duas noções diferentes, o próprio Perelman, se recusa a adotá-las “dentro de um pensamento vivo”. O filósofo considera sua abordagem da questão bastante próxima – em consequências, ainda que não em princípio – da realizada por Kant em sua Crítica da razão pura24, na qual se lê que “a persuasão não pode, na verdade, ser distinguida subjetivamente da convicção, se o sujeito imagina a crença apenas como um simples fenômeno de seu próprio espírito”.

A diferença entre Perelman e Kant está no fato de este último, que vê a persuasão e a convicção como dois tipos de “crença”, utilizar-se da oposição subjetivo-objetivo como critério classificativo:

24

Conforme citada por Perelman nas páginas 31 e 32 do Tratado.

42 Quando é válido para cada qual, ao menos da medida em que este tem razão, seu princípio é objetivamente suficiente e a crença se chama convicção. Se ela tem seus fundamentos apenas na natureza particular do sujeito, chama-se persuasão. (KANT apud PERELMAN, 2005, p. 31, grifos do autor.)

Kant afirma que a persuasão é “mera aparência”, porque uma crença que tome por “objetivo” um princípio cujo juízo está exclusivamente no próprio sujeito não se comunica, ou seja, não é capaz de produzir o mesmo efeito persuasivo no entendimento alheio. Diz o filósofo alemão: “Posso guardar para mim a persuasão, se me dou bem com ela, mas não posso, nem devo fazê-la valer fora de mim”.

Perelman faz uso também do conceito de razão, mas problematiza sua aplicabilidade e o atrela ao conceito de auditório ao questionar a exorbitância de uma pretensão à “validade absoluta”, para “qualquer auditório composto por seres racionais”, daquilo que é fundamentalmente diferente para cada pessoa, ou seja, o conjunto de fatos, de verdades em que cada um crê. Um orador que acredite estar se dirigindo validamente a um auditório estará fazendo o que está ao seu alcance em busca da convicção, mas não poderá escapar à prova dos fatos nem ao juízo de seus interlocutores, que trazem consigo seus próprios conjuntos de verdades.

O problema é menos aparente em Kant, que fundamenta a convicção na verdade de seu objeto. Segundo Perelman, tal posicionamento leva Kant a excluir da filosofia a argumentação não coerciva, admitindo apenas a prova puramente lógica, necessária, através da qual se chegaria à verdade, objetiva, válida para qualquer ser racional. Postular a persuasão como processo exclusivamente subjetivo e individual significaria, ainda segundo Perelman, aceitar a inviabilidade de toda argumentação voltada a auditórios particulares. É só quando se admite a existência de outros meios de prova além do puramente lógico (ou da “prova necessária”, como define) que “a argumentação concernente a auditórios particulares tem um alcance que supera a crença puramente subjetiva” (TA. p. 32).

Como se vê, muitas vezes chega-se à distinção entre persuasão e convicção por meio de processos de abstração que ultimamente isolam determinados elementos de um contexto mais amplo. Em outras palavras, de um conjunto maior (de procedimentos ou faculdades) são isolados elementos ditos racionais a partir dos

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quais se classificará o caso analisado como persuasão ou convicção. Perelman exemplifica por meio da crença de que determinados silogismos podem ocasionar convicção, mas não persuasão: Dir-nos-ão, por exemplo, que tal pessoa, convencida do perigo de mastigar muito rápido, nem por isso deixará de fazê-lo, porque [...] tal convicção pode colidir com outra convicção, a que nos afirma que há ganho de tempo em comer mais depressa. Vê-se, portanto, que a concepção daquilo que constitui a convicção, que pode parecer baseada numa diferenciação dos meios de prova ou das faculdades postas em jogo, o é também, muitas vezes, no isolamento de certos dados dentro de um conjunto muito mais complexo. (TA, pp. 30-31.)

O exemplo escolhido ajuda a perceber como uma convicção nem sempre leva a uma ação imediata ou esperada. Na verdade, Perelman afirma que, para aqueles que se preocupam com o resultado, “persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação”. Convencer, em contrapartida, é mais importante para aqueles cujo foco está no caráter racional da adesão. Interessantemente, Perelman diz que essa característica racional da convicção depende ora “dos meios utilizados, ora das faculdades às quais o orador se dirige”, já que a persuasão agiria mais diretamente sobre “tudo quanto não é a razão”. Citando o médico e psicólogo francês George-Alphonse Dumas, o belga faz notar que o indivíduo, na persuasão, “se contenta com razões afetivas e pessoais”, critério que não se afasta muito da subjetividade enfatizada por Kant. Perelman classifica como “confuso” o vínculo que se costuma estabelecer entre persuasão e ação, de um lado, e convicção e inteligência, de outro. Como já vimos, em seu modelo ele prefere contrapor os auditórios aos quais o orador se dirige – em linhas gerais, a argumentação será persuasiva quando valer apenas para um auditório particular, ou convincente quando buscar a adesão do auditório universal (ou seja, de “todo ser racional”). Para ele, o “caráter intemporal de certos auditórios” explicaria por que nem todos os argumentos constituem um “apelo à ação imediata”.

Finalmente, com relação à distinção ora sendo discutida, resta apreciar como ela é percebida pelo ouvinte. Em princípio, o autor acredita aplicar o mesmo critério desde que se leve em conta que esse ouvinte “imagin[e] a transferência, para outros

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auditórios, dos argumentos que se lhe apresentam e se preocup[e] com a acolhida que lhes seria concedida”. Em outras palavras, imaginando-se que o ouvinte faça uma introjeção, por assim dizer, do papel do orador, é justo acreditar que perceba a diferença entre persuasão e convicção por um prisma semelhante.

Em consonância com o que se viu até o momento, também nesta análise Perelman evita aproximar-se de qualquer rigor cartesiano em suas definições. Para ele, faz sentido que o matiz entre os termos convencer e persuadir seja sempre impreciso e que, na prática, deva permanecer assim. Pois [...] a distinção entre os auditórios é muito mais incerta e isso ainda mais porque o modo como o orador imagina os auditórios é o resultado de um esforço sempre passível de ser retomado. (TA, p. 33)

Fica claro, assim, que o aspecto, o caráter e o alcance que terão a argumentação dependerão diretamente da natureza do auditório aos quais ela pode ser submetida “com sucesso”. Cabe proceder, então, à observação das classes de auditórios propostas pelo pensador.

2.1.6. Os três tipos de auditório Para o filósofo belga, há auditórios aos quais se atribui um papel “normativo”, que os habilita a decidir sobre a “natureza convincente de uma argumentação” (TA, p. 33). Eles são classificados em três espécies, que serão estudadas em maiores detalhes nas subseções a seguir. São esses auditórios: a) o auditório universal, que seria constituído “pela humanidade inteira” ou, ao menos, por “todos os homens adultos e normais”;

b) o interlocutor, ou seja, a pessoa a quem se dirige durante o diálogo; e

c) o próprio sujeito, nas ocasiões em que este delibera ou procura compreender as razões de seus atos.

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Esta não é, como se tem visto até o momento, uma classificação rígida ou exaustiva, pois o próprio Perelman faz repetidas alusões a auditórios parciais ou particulares, em diferentes contextos e em diferentes configurações. Mais acima, vimos como os integrantes de um auditório podem ser divididos de acordo com os grupos sociais a que pertencem ou com os valores aos quais aderem, o que, nas palavras do autor, pode levar à “constituição de auditórios parciais muito diferentes". O orador, por sua vez, pode encarar seus interlocutores como partes de um auditório único ou como representantes de uma série de auditórios distintos. Também em sua distinção entre persuasão e convicção, vimos Perelman fazendo referência a auditórios particulares, aos quais os argumentos persuasivos seriam dirigidos preferencialmente. O autor parece incorporar essa imprecisão à sua teoria sem maior alarme, já que, ao estabelecer o auditório presumido como construção discursiva do orador, deixou claro considerar tal processo algo “mais ou menos” sistematizado, assim como seria “mais ou menos consciente” a forma como o orador pensa “naqueles que procura persuadir”.

A imprecisão permeia até mesmo as três espécies elencadas: há um paralelo com a distinção kantiana entre persuasão e convicção quando Perelman diz que “somente quando o homem às voltas consigo mesmo e o interlocutor do diálogo são considerados encarnação do auditório universal é que adquirem o privilégio filosófico confiado à razão” (TA, p. 34). Em tal situação, a argumentação dirigida a eles estaria no mesmo patamar que o “discurso lógico”. Fora dessa condição, ambos – interlocutor e indivíduo – podem ser considerados auditórios particulares cujas reações e características seriam mais facilmente reconhecidas e passíveis de estudo.

Além do status ambíguo dessas duas categorias de auditório, que ora podem corresponder ao universal (e, em tese, ter nessa condição dirigidos a elas argumentos que podem gerar a convicção), ora ao particular (sendo alvo de argumentos persuasivos, em princípio mais diretamente voltados à ação), temos a relativização da própria categoria de auditório universal, que na concepção perelmeniana ao mesmo tempo transcende e esta circunscrita à localização discursiva do orador:

46 Com efeito, conquanto o auditório universal de cada orador possa ser considerado, de um ponto de vista externo, um auditório particular, ainda assim, a cada instante e para cada qual, existe um auditório que transcende todos os outros e que é difícil precisar como um auditório particular. (TA, p. 34)

Como se vê, as três espécies de auditório se sobrepõem e se confundem, dependendo do contexto e do ponto de vista em que se apresentam. Para o autor, os auditórios não são independentes e julgam-se uns aos outros: se, por um lado, auditórios particulares concretos podem impor sua própria concepção do auditório universal, por outro lado essa concepção será julgada pelo auditório universal não definido, abstrato, invocado “para examinar, a um só tempo, o modo como é composto, quais os indivíduos que, conforme [a concepção adotada], o integram e qual a legitimidade [dessa concepção]” (TA, p. 39). Seja como for, Perelman discorre sobre a “importância primordial do auditório universal enquanto norma de argumentação objetiva”, considerando a pessoa que delibera consigo mesma e o parceiro do diálogo como “encarnações sempre precárias”25.

2.1.7. O auditório universal

Conforme apresentado mais acima, durante a discussão sobre o caráter heterogêneo dos auditórios26, a teoria da audiência de Perelman estabelece que, diante da “hesitação” em reconhecer os argumentos mais convincentes, o orador pode inserir seu auditório em “uma série de auditórios diferentes”. Foi demonstrada também a importância da adequação do discurso às opiniões do auditório, já que na argumentação não basta “saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige” (TA, p. 26). É possível concluir, assim, que o sucesso da argumentação depende em grande parte da capacidade de adaptação do orador às particularidades de seu auditório.

25

Supõe-se que o autor se refira, aqui, à precariedade de tais categorias como encarnações do auditório universal, já que, como auditórios particulares, suas reações e características estariam mais diretamente ao alcance da compreensão do orador. 26 No item 2.1.3., que trata sobre o auditório como construção do orador.

47

Contudo, é preciso ter em mente que tal processo não se dá sem o constante risco, para o orador, de alienar ouvintes ou subgrupos do auditório a quem determinados argumentos ou abordagens podem ser indiferentes, estranhas ou até mesmo repulsivas. Perelman demonstra que, em tais casos, um adversário poderia facilmente frustrar os esforços do orador ao opor uns contra os outros os argumentos voltados a parcelas específicas do auditório, caracterizando-os como incompatíveis entre si, ou dirigi-los a ouvintes cuja posição lhes é sabidamente diferente ou oposta. Argumentos aceitos apenas por auditórios particulares teriam, então, uma “fraqueza relativa”, em contraposição ao “valor conferido às opiniões que desfrutam de uma aprovação unânime” (TA, p. 35). Perelman acrescenta que “o valor dessa unanimidade depende do número e da qualidade dos que a manifestam”.

Existe, no entanto, um limite para esse valor, que seria correspondente, na definição perelmeniana, ao acordo do auditório universal. Trata-se, tal acordo, não de um fato, mas de algo imaginado pelo orador, a que ele atribui universalidade e unanimidade na extensão que for capaz de conceber. O próprio status de universalidade do auditório deriva de um processo de exclusão daqueles que podem “por razões legítimas, não ser levados em consideração”.

Continuamos, portanto, tratando de um auditório presumido, construído pelo próprio orador. Conforme sugerido acima, cada orador terá sua própria visão daquele que deveria ser, para ele, o auditório universal. Em contrapartida, o que é universal para um orador, pode ser considerado parcial ou particular, de outros pontos de vista. Como essa construção não se baseia em fato, mas em uma espécie de projeção discursiva, explica-se a dificuldade de precisar o que seria um auditório verdadeiramente universal. Mesmo os filósofos, de acordo com o autor, ao se dirigirem a semelhantes auditórios, o fazem menos por esperarem de fato o “consentimento efetivo de todos os homens [...], mas por crerem que todos os que compreenderem suas razões terão que aderir às suas conclusões”. Segundo Perelman,

48 [uma] argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas. [...] De fato, presume-se que semelhante juízo imponha-se a todos, porque o próprio orador está convencido de que ele não poderia ser posto em dúvida. (TA, pp. 35-36)

Embora seja possível encontrar em tal definição uma retomada do conceito kantiano de convicção, condicionando a adesão das mentes racionais àquilo que é objetivo, às asserções verdadeiras e “necessárias”, nota-se igualmente a presença de um elemento contraditório na afirmação de que basta a certeza do orador quanto à propriedade de seus argumentos para que sua convicção pessoal se comunique a todos. Para Kant, a convicção se confunde com a persuasão quando tomada como “simples fenômeno” de um único espírito – em outras palavras, como um processo subjetivo, por natureza não comunicável. Experimentar os princípios válidos para um indivíduo em outras consciências não serviria para propagar a convicção, mas apenas para “descobrir o valor particular do juízo, ou seja, o que nele é apenas simples persuasão” (KANT apud PERELMAN, 2005, p. 32).

De acordo com o autor, a argumentação voltada para o auditório universal, assim como a dialética, chegou a ser identificada com a lógica. Embora classifique tal procedimento como ilusão, Perelman vê sua importância “no desenvolvimento da filosofia absolutista, buscando por todos os meios passar da adesão à verdade” (TA, p. 41). Perelman observa que “onde se insere a evidência racional, [...] os procedimentos de argumentação não representam nenhum papel”. Para ele, não há liberdade de escolha individual ou espaço para deliberação diante de uma razão perante a qual não pode subsistir a dúvida. Essa certeza cartesiana faria parte de um programa estabelecido pelo racionalismo, cuja pretensão, segundo Perelman, é excluir a retórica da filosofia: “No limite, a retórica eficaz para um auditório universal seria a que manipula apenas a prova lógica”, ou seja, uma situação em que o acordo dos espíritos se dá em função de uma evidência racional que se impõe a todos.

49

A contradição supracitada, além de servir como ponto de partida para uma crítica às pretensões dos racionalistas, também leva Perelman a questionar o status das certezas ditas absolutas ou autoevidentes: Com efeito, como distinguir as evidências verdadeiras das falsas? Será que se imagina que o que convence um auditório universal, cujo representante ideal é considerado a própria pessoa, possui realmente essa validade objetiva? [...] o consentimento universal invocado o mais das vezes não 27 passa da generalização ilegítima de uma intuição particular . É por esta 28 razão que é sempre temerário identificar com a lógica a argumentação para o uso do auditório universal, tal como a própria pessoa o concebeu. (TA, pp. 36-37)

Não se deve pensar, entretanto, que tal questionamento inviabiliza a argumentação efetiva dirigida a um auditório universal, ou que a própria categoria proposta por Perelman seja inviável. O que o autor relativiza é a crença em um auditório universal com constituição e saberes quase divinos, a quem caberia dar seu consentimento a uma “verdade” absoluta e irrefutável. Segundo ele, é muito mais apropriado – e “instrutivo” – caracterizar cada orador a partir do auditório universal que ele formula para si. Cabe encerrar esta parte do resgate teórico com as palavras do próprio autor, que apresentam com total clareza este aspecto fundamental da teoria da audiência: O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que se sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo tem sua própria concepção de auditório universal, e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história, real, verdadeiro, e objetivamente válido. (TA, p. 37, grifos do autor.)

Conhecer melhor orador escolhido por Machado de Assis em Dom Casmurro a partir dos auditórios com os quais ele argumenta é, afinal, um dos objetivos principais deste trabalho.

27

Esta frase em particular, Perelman credita ao economista e pensador italiano Vilfredo Pareto. Retomando conceitos discutidos anteriormente, extraídos dos estudos de David Frank, temos aqui outro exemplo do impacto que a Segunda Guerra causou no sistema de pensamento perelmeniano. Em passagem que se poderia interpretar como crítica aos ideais e proposições propagandeadas pelos nazistas, diz o autor belga: “As concepções que os homens criaram no curso da história dos ‘fatos objetivos’ ou das ‘verdades evidentes’ variaram o bastante para que nos mostremos desconfiados a esse respeito” (TA, p. 37). 28

50

2.1.8. Auditórios de elite

Pelo exposto acima, fica estabelecida a possibilidade de que a argumentação dirigida ao auditório universal não convença a todos, como seria de se esperar. Em tal situação, Perelman concebe duas saídas para o redirecionamento argumentativo, quais sejam:

a) desqualificar o recalcitrante; ou

b) opor ao auditório universal um auditório de elite.

No primeiro caso, o orador opta por considerar o ouvinte que recusa seus argumentos como “estúpido ou anormal”. É uma tática autoexplicativa e notoriamente comum – ao menos desde os tempos medievais, segundo o filósofo. Seu sucesso está relacionado a uma questão numérica, pois há um limite para a quantidade de ouvintes que podem ser assim excluídos sem que o próprio procedimento não caia em descrédito: se o orador se vê levado a considerar a maioria dos integrantes de auditório estúpida e anormal, é provável que a inadequação entre seu posicionamento, os argumentos escolhidos para defendê-lo e os auditórios a que se dirige (tanto os presumidos quanto os concretos) seja mais profunda do que supunha inicialmente.

No segundo caso, a argumentação passa a ser direcionada a um auditório “dotado de meios de conhecimento excepcionais e infalíveis” (TA, p. 37). Tipicamente, o orador que recorre a esse auditório – presumido, e assim como o universal, uma construção discursiva sua – apela “aos bons, aos crentes, aos homens que têm a graça”. Pode ocorrer também de o orador atribuir a si mesmo um saber místico ou considerar-se portador de uma revelação sobrenatural.

Além do viés metafísico, o auditório de elite pode assumir uma faceta especializada, como exemplifica Perelman por meio do auditório do cientista que se dirige a seus pares; uma faceta hierárquica, quando sua posição social ou institucional o localiza acima das pessoas ditas comuns; ou ainda uma faceta de

51

“vanguarda”, quando sua opinião tem o poder de ditar normas e modelos a serem seguidos pelos demais.

A relação desses auditórios de elite com o auditório universal é mais fluida do que o termo “opor”, utilizado mais acima, permite supor. Alguns, como o auditório especializado do cientista, podem ser assimilados mais diretamente ao auditório universal. Outros, como o de vanguarda, serão considerados universais ou particulares de acordo com a aceitação ou negação efetivas de seu papel de vanguarda. Novamente evitando definições cartesianas, o autor se limita a reconhecer o caráter variável do estatuto de um auditório, dependente das concepções que se tem.

Quando a argumentação envolve questões morais, o auditório universal tende a estar próximo de um auditório de elite: “Esperamos que nossos juízos sejam confirmados pelas reações dos outros”, diz Perelman (TA, p. 38), mas não se apela, para tanto, a “quaisquer outros”. O autor ilustra seu ponto de vista citando o filósofo sul-africano J. N. Findlay: “Apelamos, para além das cabeças irrefletidas da ‘sociedade presente’, para a ‘grande sociedade das pessoas refletidas’, onde quer que ela possa ser situada no espaço ou no tempo”. (FINDLAY apud PERELMAN, 2005, p. 38) Apela-se, portanto, somente àqueles que “refletiram devidamente” sobre a conduta a ser aprovada ou desaprovada.

2.1.9. A argumentação dirigida para um único ouvinte: debates e discussões

A segunda espécie de auditório proposta por Perelman é inicialmente chamada por ele de “interlocutor” e trata da argumentação dirigida a um único ouvinte. Sua importância se revela ao tornar-se ponto de partida para uma diferenciação entre debate e discussão, por meio da qual o autor reforça sua proposta de resgate do valor filosófico da argumentação. O tópico abrange também reflexões sobre o processo de escolha da persona do ouvinte, ou seja, do tipo de

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auditório que ele deve representar e as possíveis implicações de tal escolha para a literatura.

Em tempos antigos, segundo o autor, a argumentação dirigida a um único ouvinte era tida como superior e dotada de maior alcance filosófico do que aquela dirigida a um vasto auditório. Explica-se tal opinião, partilhada por aqueles que defendiam a “primazia da dialética sobre a retórica”, então limitada à “técnica do longo discurso contínuo”, pela inadequação desta última a uma situação em que o normal é levar em conta as reações, denegações e hesitações do interlocutor, abordando-as de imediato e adaptando de acordo os argumentos e técnicas empregadas. A retórica tradicional não comporta semelhante interação, em função da qual “o discurso degenera invariavelmente em diálogo”.

Assim, o processo dialógico confere à adesão do ouvinte às teses apresentadas a impressão de serem, estas, “mais solidamente alicerçadas”. Perelman diz que o orador que busca a concordância do interlocutor a cada passo de seu discurso “estaria mais seguro, segundo Platão, de seguir o caminho da verdade” (TA, p. 40).

Surgem, então, as questões que mais diretamente interessam a esta apresentação: qual o valor, e quais as implicações da adesão desse ouvinte único? Perelman29 classifica os diálogos em três tipos:

a) heurístico, quando o interlocutor é uma encarnação do auditório universal;

b) erístico, quando a meta do orador é dominar seu adversário; e

c) habitual, em que os participantes têm por objetivo, no mais das vezes, persuadir seus auditórios com vistas a “determinar uma ação imediata ou futura”.

29

TA, p. 43.

53

Para o que o diálogo -- e, como nota o autor, também a dialética conforme concebida por Platão – tenha alcance como gênero filosófico, ele deve fazer aderir à tese não um interlocutor qualquer, representante de um auditório particular entre tantos possíveis. Esse interlocutor deve ser considerado uma encarnação do auditório universal e possuir os mesmos recursos de raciocínio deste. Sua convicção deve resultar de uma “confrontação rigorosa de seu pensamento com o do orador” (TA, p. 41), mas, ainda assim, não basta que a adesão decorra da superioridade dialética do orador. Ela deve representar uma inclinação ante a evidência da verdade e a argumentação apresentada deve ser válida “aos olhos de todos”. De outra forma, há sempre o risco de se incorrer no ridículo ao “transformar a adesão de um só em evidência de verdade”, como diz o autor ao corroborar a opinião de Pareto.

Outra é a situação quando, em vez de criar convicção, o objetivo do orador é fazer prevalecer o seu ponto de vista diante de outros que lhe sejam opostos. Tornase importante, aqui, resgatar a distinção que o autor faz entre discussão e debate.

Assim como em outros pontos desta teoria, também neste quesito são evitadas definições absolutas ou rígidas, em favor de uma percepção baseada em contexto, nuanças e matizes. No dialogo heurístico, descrito mais acima, embora não se possa considerar indiscriminadamente o ouvinte como um porta-voz do auditório universal, a situação tende a aproximar-se da discussão quando os interlocutores buscam honestamente e sem preconceitos a melhor solução de um problema controvertido. [...] Supõe-se que os interlocutores, na discussão, não se preocupam senão em mostrar e provar todos os argumentos, a favor ou contra, atinentes às diversas teses em presença. (TA, p. 42)

Não deve surpreender a frequente associação entre interlocutor como auditório universal, de um lado, e discussão, de outro, já que esta procura chegar a conclusões inevitáveis, objetivamente válidas e unanimemente aceitas, desde que “os argumentos, presumidamente com mesmo peso para todos, [sejam] dispostos como que no prato de uma balança”. Tais conclusões nos parecem bastante próximas da definição perelmeniana de convicção, a qual, por sua vez, é mais facilmente atingida quando a argumentação se dirige ao auditório universal.

54

Já no diálogo erístico, encontramos o debate, em que são defendidas por seus respectivos partidários convicções estabelecidas e opostas, com o objetivo de “dominar” o oponente. Em tal situação, “cada interlocutor só aventaria argumentos favoráveis à sua tese e só se preocuparia com [os] que lhe são desfavoráveis para refutá-los ou limitar-lhes o alcance” (TA, p. 42). Embora se perceba claramente como a tomada de posição, ou seja, a parcialidade evidente e intencional de cada interlocutor seja um impedimento à validação de argumentos opostos às teses que cada um defende, Perelman ressalta que essa defesa muitas vezes se baseia na crença honesta de que tal ponto de vista é o mais correto, objetivamente – ou seja, na crença de que “seu triunfo é o triunfo de uma boa causa”.

Assim, vê-se que, em vez de uma separação nítida entre debate e discussão, o que se tem é um matiz que depende da intenção que se atribui – “com ou sem razão”, nas palavras do autor – aos participantes do diálogo. Fatores institucionais podem tornar essa distinção mais evidente, como, por exemplo, no caso de uma arguição jurídica, em que previamente se sabe que o papel do advogado será defender uma tese que atenda aos interesses da parte representada. De outra forma, a distinção clara entre um diálogo que tende à verdade e um diálogo que seria uma sucessão de defesas de tese é difícil de manter. Ela só poderia sustentar-se mediante uma distinção prévia e exata, entre a verdade e o erro, distinção essa que, salvo prova de má-fé, a própria existência da discussão torna difícil de estabelecer. (TA, p. 45)

Com relação ao diálogo habitual, Perelman nota que, em que pese seu teor marcadamente persuasivo, pouca atenção teórica lhe foi dispensada ao longo dos séculos. Os filósofos, a seu ver, ora focavam o diálogo heurístico, por sua preocupação com a verdade, ou detinham-se no “aspecto mais psicológico, mas também mais escolar, do diálogo erístico”. Seja como for, concordando com o filósofo mexicano Alfonso Reyes, Perelman vê o discurso privado como uma extensão da retórica, uma vez que “é durante conversas cotidianas que a argumentação tem mais oportunidade de exercer-se” (TA, p. 44).

O último foco de reflexão de Perelman neste tópico volta-se para o próprio ouvinte, que nem sempre se pode considerar uma encarnação do auditório

55

universal. Para o autor, no mais das vezes esse ouvinte representará um auditório particular específico, ou ainda atuará como “amostra” de todo um gênero de ouvintes. O orador projetaria em seu interlocutor o auditório que melhor correspondesse

aos

seus

objetivos,

adaptando,

da

mesma

forma,

sua

argumentação. É possível depreender de tal processo uma visão específica sobre grupo que o interlocutor representa ou integra, sinalizando a localização discursiva do orador.

Na concepção perelmeniana, tal técnica de projeção de um auditório particular – ou de um gênero de ouvintes – em um único interlocutor está presente em toda a história da literatura e da política. Segundo ele, apenas raramente se verifica um “discurso publicado cujo destinatário individualizado não deva ser considerado encarnação de um determinado auditório particular”. Não seria exagerado propor que pensador se refere, no tocante à literatura, a personagens notadamente arquetípicos, utilizados para demonstrar ou refutar uma tese ou como receptores de um tipo específico de discurso, geralmente alguma admoestação.

2.1.10. A deliberação consigo mesmo: razões e racionalizações

A terceira e última espécie de auditório nominalmente delineada pela teoria perelmeniana trata do próprio sujeito, quando este delibera consigo mesmo ou procura compreender a razão por trás de seus atos.

É possível depreender da exposição de Perelman sobre este tópico ao menos três motivos que podem levar alguém à deliberação íntima: formar uma convicção, compartilhá-la com outras consciências ou defendê-la de ataques externos, sejam eles futuros ou em curso. Também, assim como os pares persuasão/convicção e debate/discussão, desta feita o pensador estende suas considerações às diferenças entre razão e racionalização.

A deliberação íntima tende mais diretamente à convicção devido à assimilação supracitada entre o sujeito que delibera consigo mesmo e o auditório universal, mas não se pode, naturalmente, excluir as deliberações que têm por

56

objetivo persuadir o próprio sujeito a tomar alguma ação mais imediata. Conforme visto mais acima30, nem sempre é clara a linha divisória entre persuasão e convicção, ainda mais quando se trata da esfera subjetiva. Mesmo Perelman admite que “convicção íntima do orador [pode estar] baseada em elementos que lhe são próprios – tal como uma intuição incomunicável” (TA, p. 49). A concepção kantiana cancela a validade de tal convicção peremptoriamente, alçando qualquer tentativa de experimentá-la no entendimento alheio à categoria de mero exercício para descobrir o quanto dela é simples persuasão. A visão perelmeniana, por sua vez, com seu foco no efeito que a argumentação tem sobre os auditórios aos quais se dirige, privilegia a liberdade de escolha dos seres humanos. Para o autor, “[o] acordo consigo mesmo é apenas um caso particular do acordo com os outros” (TA, p. 46). Não se pode, portanto, afirmar simplesmente que bastam ao homem racional a sinceridade consigo mesmo, o consentimento de si para si mesmo e a voz constante da própria razão para que se produza efetivamente a convicção por meio da deliberação íntima. Ainda que o sujeito reúna e pese todos os argumentos contrários e a favor que sejam válidos a seus olhos, e que a decisão seja tomada “em alma e consciência”, Perelman reluta em ver nesse processo regras de condução do pensamento que poderiam ser equiparadas à lógica silogística tradicional. Conforme dito acima, o belga considera a deliberação íntima uma espécie particular de argumentação, apoiando-se no antigo orador grego Isócrates para afirmar que utilizamos, ao refletir, os mesmos argumentos por meio dos quais buscaríamos convencer os outros. Na visão perelmeniana, “é a análise da argumentação dirigida a outrem que nos fará compreender melhor a deliberação íntima, e não o inverso”. Muitas vezes, o ato de discutir31 com outra pessoa pode ser uma eficaz ferramenta de autoconhecimento.

Autoconhecimento, por sinal, está na base da diferenciação entre uma deliberação íntima que visa à formação ou reforço de uma convicção – semelhante, portanto, a uma discussão – e outra cujo foco é a busca de argumentos para justificar uma posição tomada de antemão. A partir de tal questionamento, Perelman

30

No item 2.1.5. Tomada, aqui, a ideia de discussão conforme contraposta ao conceito de debate no item anterior (2.1.9). 31

57

estabelece sua própria distinção entre razão e racionalização, contraste que ele acredita ser melhor fundamentado do que aquela feita pelo que ele chama de “psicologia das profundezas”.

O pensador belga parece crer que essa psicologia não é o melhor caminho para entender a natureza da deliberação íntima, pois que nos ensina a desconfiar “até do que parece indubitável à nossa própria consciência” (TA, p. 46). Para ele, “a própria metodologia do psicólogo já constitui um objeto de controvérsia” (TA, p. 10). Dessa forma, não seria possível confiar cegamente na sinceridade do sujeito que delibera, a ponto de saber se honestamente procura a melhor linha de conduta diante de determinada situação, ou se apenas procurar justificar, perante a si mesmo ou outrem, uma postura que em seu íntimo já se cristalizou. De acordo com Perelman, [o] psicólogo dirá que os motivos alegados pelo sujeito para explicar sua conduta constituem racionalizações, se diferem dos móbeis reais que o determinaram a agir e que o sujeito ignora. Quanto a nós, tomaremos o termo racionalização num sentido mais amplo, sem nos prender ao fato de o sujeito ignorar, ou não, os verdadeiros motivos de sua conduta. Conquanto pareça ridículo, à primeira vista, um ser ponderado que, depois de ter agido por motivos muito razoáveis, se empenha em dar, em seu foro íntimo, razões muito diferentes aos seus atos, menos verossímeis, mas que o deixam sob uma luz mais bonita, uma racionalização assim explica-se perfeitamente quando a consideramos um arrazoado antecipado para o uso dos outros, que pode aliás ser perfeitamente adaptado a este ou àquele presumido ouvinte. (TA, p. 47, grifos nossos.)

Perelman se recusa a concordar com a noção, que ele ilustra por meio do pensamento de Schopenhauer, de que nos processos de racionalização o intelecto busca camuflar uma irracionalidade absoluta que estaria na origem de muitos dos atos humanos. Para ele, estaria no objetivo de convencer diferentes ouvintes presumidos, ou seja, diferentes auditórios, o motivo para “fazer [a] consciência admitir”, a posteriori, razões diferentes daquelas adotadas para fundamentar inicialmente atos que seriam, então, “perfeitamente refletidos”. Assim, na teoria perelmeniana, a diferenciação que a psicologia faz entre razão e racionalização somente faz sentido quando se considera a deliberação íntima como uma instância particular de argumentação.

58

Acreditamos que o fato de escrever poucos anos após a Segunda Guerra Mundial, quando era ainda inescapável a presença, até mesmo física, dos traumas e danos globais e individuais causados pelo conflito, tanto mais para um pensador de origem judaica que vivenciou de perto o horror e a violência que culminaram com o Holocausto, pode estar por trás de sua relutância em conceder a tais atos o salvoconduto de uma irracionalidade original, que tornaria seus perpetradores incapazes de arcar com a totalidade de suas consequências, como se fossem meros instrumentos de forças que escapam à compreensão humana.

Pelo contrário, ao afirmar que a convicção nasce de uma escolha íntima de argumentos considerados válidos, razões as quais se pode até ajustar ou substituir por outras mais adequadas a auditórios que podem questioná-las, Perelman atribui ao sujeito racional total responsabilidade por suas próprias ações.

Mesmo essa fé na racionalidade do sujeito pode servir como explicação para seu distanciamento, no tópico em questão, da psicologia tradicional: sua noção de homem racional, capaz de discutir internamente argumentos válidos como encarnação de um auditório universal – ou seja, um auditório que delibera com base em opiniões e valores cuja aprovação é unânime –, não se comunica com o sujeito movido por pulsões inconscientes e inarticuladas cujo desencontro com as percepções e possibilidades da própria consciência geralmente se manifesta por meio de neuroses ou psicopatias com variados graus de severidade.

Ainda assim, os projetos teóricos de Freud e Perelman têm mais em comum do que pode parecer à primeira vista. Na descrição do psicanalista Luiz Alberto Freitas, autor de Freud e Machado de Assis32, Freud vem contribuir para o rompimento epistemológico com o século das luzes, para uma valorização do fato singular em oposição inclusiva ao coletivo [...] O pensamento freudiano não se apoia na pretensão de uma verdade absoluta, valoriza uma verdade perenemente relativizada, associada a um pluralismo cultural [...] A psicanálise não busca a exatidão, mas, associada à razão crítica, trilha a via da argumentação e da interpretação. (FREITAS, 2001, p. 27)

32

FREITAS, 2001.

59

Freitas reconhece a aproximação entre os dois teóricos nominalmente, ao afirmar que “[t]anto a psicanálise quanto a literatura podem se associar à teoria da argumentação [de Perelman], pois estão situadas no ‘território do ambíguo e do dialógico’33".

O pensador belga, porém, não aprofunda os termos em que se fundamenta sua oposição à “psicologia das profundezas”, no tocante à distinção entre razão e racionalização. Opta simplesmente por “não se prender” à possibilidade de motivações inconscientes e prefere buscar no exercício do direito, na política e na prática jurídica, exemplos para ilustrar sua proposição, sugerindo a validade, nessas áreas, de julgamentos formulados “em dois tempos”, ou seja, decisões baseadas no “senso de equidade” do julgador, às quais as motivações técnicas (jurídicas, legislativas etc.) vêm como acréscimo, servindo mormente como justificativas perante auditórios específicos.

Argumentações a posteriori podem ser também de natureza não técnica, quando, por exemplo, são oferecidas explicações racionais para uma crença religiosa pré-existente, ou ter cunho político, quando são apresentadas à opinião pública racionalizações apropriadas para que se aceitem determinados estados de coisas.

À possibilidade de que tais racionalizações sejam desqualificadas como insinceras, Perelman contrapõe a noção de que a percepção de insinceridade decorre da adoção de uma perspectiva incompatível com a do orador. Segundo ele, o valor retórico de um enunciado não poderia ser anulado pelo fato de que se trataria de uma argumentação que se julga construída a posteriori, depois que a decisão íntima estava tomada, ou pelo fato de que se trata de uma argumentação baseada em premissas às quais o próprio orador não adere. [...] é legítimo que quem adquiriu uma certa convicção se empenhe em consolidá-la perante si mesmo, sobretudo perante ataques que podem vir do exterior; é normal que ele considere todos os argumentos suscetíveis de reforçá-la. (TA, p. 49)

33

Esta expressão, Freitas empresta do filósofo e catedrático José Américo Motta Pessanha. (A vermelha flor azul – Prefácio. In: Brazil, Horus Vital. Dois ensaios entre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p. 29.)

60

A congruência entre razão e racionalização, entre os argumentos que o convenceram pessoalmente e aqueles que de fato utiliza, somente pode ser cobrada do orador quando este “se dirige a um auditório ao qual presumidamente pertence”, como, por exemplo, quando ele se assimila ao auditório universal. Ainda assim, o pensador não vê ilicitude quando, diante de uma convicção baseada em intuições incomunicáveis, o orador recorra à argumentação para fazer comunicar suas crenças.

Perelman encerra sua exposição sobre a terceira espécie de auditório delineada em sua teoria retomando a noção de que muitos autores conferiram, ao longo da História, um estatuto privilegiado ao estudo da deliberação íntima, certamente como forma de validarem perante consciências alheias suas próprias crenças, que alçavam no foro íntimo à condição de “verdades”. Os limites e implicações de tal estratégia, porém, só se tornam evidentes por meio do estudo da argumentação, de onde se encontram instrumentos para “distinguir as diversas espécies de deliberação e compreender, ao mesmo tempo, o que há de fundamentado na oposição entre razões e racionalizações” (TA, p. 50, grifos do autor). Essa é a crença de Chaïm Perelman, e o estudo dos auditórios é peça-chave para compreendê-la.

2.2. O auditório do escritor: argumentação, teoria da audiência e literatura

Ao mencionar aspectos de sua nova retórica que expandem os limites da retórica tradicional, Perelman põe em evidência “a importância e o papel moderno dos textos impressos”, fazendo deles o foco de sua análise.

Escrevendo em 1958, o pensador não poderia ter imaginado que essa importância só faria aumentar ao longo das décadas – é possível dizer que hoje, com o século XXI em pleno andamento, o texto escrito (já não primordialmente impresso, mas multiplicado nas onipresentes telas de diversas naturezas e tamanhos) serve como base para uma variedade cada vez maior de interações humanas, substituindo contatos presenciais ou mesmo telefônicos, em que a palavra falada seria naturalmente privilegiada.

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Embora seja uma sugestão de pesquisa das mais interessantes, observar como a argumentação se desenvolve e como se configuram os auditórios nos ambientes virtuais compostos pelos aplicativos, plataformas e aparelhos hoje de uso cotidiano (smartphones, tablets, redes sociais etc.), escolhemos como objeto de análise o romance Dom Casmurro, texto literário clássico, em que aspectos típicos da oralidade são espargidos em uma estrutura narrativa complexa e ambígua, cuja tradição interpretativa, já com mais de um século, originou teses tão amplamente divergentes entre si quanto reveladoras das ideologias e traços culturais dominantes em diferentes momentos históricos. Acreditamos que parte da complexidade dessa obra tão notoriamente moldada por estratégias argumentativas se explica pela intricada interação entre os auditórios concebidos tanto pelo autor, Machado de Assis, quanto por seu narrador-personagem, Bento Santiago – o Dom Casmurro.

Cumpre-nos, portanto, buscar na teoria perelmeniana proposições que esclareçam os elos possíveis entre a nova retórica e a compreensão do discurso literário, para que possamos, a partir daí, propor uma análise do texto machadiano à luz da teoria da audiência.

Tal caminho não deve parece inusitado, quando nos lembramos da natureza da contribuição de Lucie Olbrechts-Tyteca para a construção do Tratado, com seus sólidos conhecimentos em literatura e crítica literária. David Frank e Michelle Bolduc (2010a) apoiam-se na pesquisa de Warnick para afirmar que existe ampla evidência de que Olbrechts-Tyteca ‘contribuiu para o Tratado da argumentação como analista e formuladora de conceitos’. Ela trouxe à colaboração um profundo interesse por elementos das literaturas alemã, francesa, inglesa, italiana, espanhola e judaica, incluindo obras como A vida e opiniões de Tristam Shandy, de Laurence Sterne, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, A vigésima quinta hora, de Virgil Gheorghiu, Un monde e De la grandeur de Marcel Jouhandeau, Le mystere frontenac e Les maisons fugitives, de François 34 Mauriac – todas, obras que passaram a integrar de alguma forma o Tratado. (FRANK; BOLDUC, 2010a, p. 146.)

Em sua produção individual, Perelman não recorre à literatura de maneira tão significativa. No Tratado, porém, a literatura é recurso importante para o estudo das estruturas e técnicas de argumentação. 34

Estas obras de Jouhandeau e Mauriac não foram, até o momento, traduzidas para o português.

62

Quando se trata do texto escrito, a percepção de que a centralidade do papel do auditório na formatação do discurso do orador não diminui. Na concepção perelmeniana, a ausência material de leitores não pode levar o escritor a crer que está sozinho no mundo, conquanto, na verdade, seu texto seja sempre condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se. (TA, p. 7)

A quem, então, o escritor se dirige?

Em sua discussão sobre a relação entre o auditório universal e os auditórios especializados ou “de elite”, Perelman observa que, para Sartre, o escritor é lido por apenas algumas pessoas, embora se dirija “em princípio a todos” (SARTRE apud PERELMAN, 2005, p. 38). O pensador francês deriva então, da distância entre esses dois públicos (o ideal e o real), a noção de uma “universalidade abstrata”, atemporal e oposta, naturalmente, à universalidade concreta composta pela “totalidade dos homens que vivem numa dada sociedade”. Diante da impossibilidade de atingir esta última universalidade, segundo Sartre “o autor postula a eterna repetição, num futuro indefinido, do punhado de leitores de que dispõe no presente”.

A ideia é paralela ao pressuposto por Findlay, quanto à busca pela validação de “pessoas refletidas”. Sartre, porém, vê na preferência do escritor pela – ilusória – universalidade abstrata uma forma de compensação pelo “fracasso” na busca pelo contato intelectual com a universalidade concreta. Não por acaso, Perelman menciona ser do pleno conhecimento dos filósofos que “somente uma pequena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seus escritos” (TA, p. 35).

O belga, todavia, relativiza a censura do francês ao fazer notar que este incontornavelmente expõe suas ideias perante esse mesmo auditório universal abstrato que, segundo ele, os escritores fracassam em contatar. É a esse auditório que caberá decidir se houve, por parte dele (Sartre) “ilusão voluntária ou involuntária”.

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Parece-nos, então, inescapável ao escritor a sobreposição dos aspectos concretos e idealizados de seus auditórios – sua argumentação pode oscilar entre o auditório universal e os particulares, ou ainda dirigir-se a ambos os tipos simultaneamente. As circunstâncias, o contexto em que o escrito é produzido, as características – práticas, valores, crenças etc. – do auditório particular (os leitores concretos mais prováveis), e a capacidade do escritor de criar uma presença discursiva potente e propícia à comunhão com esse auditório ditarão a ênfase dada ao auditório particular ou ao universal.

A idealização que o escritor faz de seu leitor adquire ainda outras conotações quando o escrito tem um tom dialógico. Em suas considerações a respeito da argumentação a um único ouvinte, Chaïm Perelman discorre sobre como o interlocutor pode ser assimilado pelo orador a um auditório universal ou a um particular. Esse ouvinte – ou no caso, o leitor presumido – pode ser escolhido, respectivamente, por suas qualidades ou por suas funções, mas revelará, de uma forma ou de outra, tanto a ideia que o orador faz de seu auditório quanto os objetivos que procura atingir. O leitor que representa um auditório particular parece ser o mais comum: nas palavras do autor, “raro é o discurso publicado cujo destinatário individualizado não deva ser considerado encarnação de um determinado auditório particular” (TA, p. 45).

A aproximação com a literatura também se torna aparente quando Perelman examina diferentes tipos de discurso. Da oposição do autor ao pensamento cartesiano, segundo o qual somente demonstrações com base em provas apodícticas – ou seja, evidentes e necessárias – poderiam ser consideradas racionais, surge seu resgate da importância do gênero oratório, que os antigos chamavam de epidíctico, para a argumentação. Assim como os gêneros deliberativo e judiciário, o epidíctico está presente na Retórica de Aristóteles, mas enquanto os dois primeiros foram, com o passar dos séculos, anexados pela filosofia e pela dialética, o terceiro foi absorvido pela prosa literária, chegando a ter sua importância no sistema de pensamento aristotélico questionada durante o século XIX.

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Perelman, ao contrário, acredita que o gênero é um elemento fundamental da “arte de persuadir” e relega tais críticas a uma “concepção errônea dos efeitos da argumentação” (TA, p. 54). Segundo ele, a argumentação do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade da adesão a certos valores, sobre os quais não pairam dúvidas quando considerados isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles. O orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório, valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe para ampliar e valorizar. É na epidíctica que são apropriados todos os procedimentos da arte literária, pois se trata de promover o concurso de tudo quanto possa favorecer essa comunhão do auditório. (PERELMAN, 2005, pp. 56-57)

Assim, como se vê, mesmo quando procura desconstruir distorções que se encontram, segundo ele, na base da desagregação da retórica tradicional, o papel do auditório permanece crucial como eixo estruturador de sua argumentação.

Não são incomuns trabalhos que recorrem ao sistema de pensamento aristotélico para analisar o texto de Dom Casmurro de acordo com os parâmetros do gênero judiciário, ou ainda para evidenciar os diferentes usos e distribuição dos pisteis em sua estrutura narrativa. Contudo, a questão do auditório, ainda mais sob a perspectiva perelmeniana, nos parece ainda pouco explorada, e pretendemos, a partir das páginas seguintes, apresentar uma pequena contribuição esperando incentivar maiores estudos sobre o assunto.

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CAPÍTULO TRÊS: DESENVOLVIMENTO

“Podemos confiar inteiramente na sinceridade do sujeito que delibera para nos dizer se está em busca da melhor linha de conduta ou se elabora um arrazoado íntimo? A psicologia das profundezas ensinounos a desconfiar até do que parece indubitável a nossa própria consciência. [...] um ser ponderado [...] que se empenha em dar, em seu foro íntimo, razões muito diferentes aos seus atos, menos verossímeis, mas que o deixam sob uma luz mais bonita, uma racionalização assim explica-se perfeitamente quando a consideramos um arrazoado antecipado para o uso dos outros, que pode aliás ser perfeitamente adaptado a este ou àquele ouvinte.” (PERELMAN, 2005, pp. 46-47)

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3. DESENVOLVIMENTO

No capítulo anterior foram apresentados, de maneira concisa, os principais elementos constituintes da teoria da audiência, conforme proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação. Sua importância para a nova retórica perelmeniana é evidenciada pela precedência dada ao estudo do papel dos auditórios, alçado ao patamar de elemento catalisador do processo argumentativo, em relação à própria apresentação e exame das técnicas argumentativas propriamente ditas.

Os autores defendem, em sua exposição, que o conhecimento das crenças, posicionamentos e valores do auditório é até mais importante do que o conhecimento daqueles do orador, pois é em função do primeiro que a argumentação será estruturada. Um orador eficiente deve ser capaz de adaptar-se aos mais diferentes auditórios, prevendo-lhes as objeções e adequando seus argumentos as suas naturezas particulares, e criando enfim, uma presença discursiva na qual ambos, auditório e orador, fundam-se em uma comunidade (ou comunhão) efetiva dos espíritos. É por efeito dessa fusão ou assimilação de percepções e pontos de vista que o orador atingirá seu objetivo, seja ele persuadir o auditório a tomar determinado rumo de ação, ou então evitar que alguma ação seja tomada. Em casos nos quais os objetivos do orador estejam além da persuasão – como, por exemplo, quando se deseja fazer comunicar uma determinada convicção –, pode tornar-se necessário o apelo a argumentos que transcendam as peculiaridades de cada auditório particular e se mostrem capazes de convencer a um auditório mais amplo, seja por se revestirem de um caráter mais racional, seja por refletirem opiniões consideradas ilustres, ilibadas. Em tais casos, o orador faz uso de uma construção discursiva que Perelman e Olbrechts-Tyteca chamam de “auditório universal”, que em princípio seria composto por todos os seres racionais e competentes, ou seja, capazes de acompanhar todos os passos de um processo argumentativo.

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Cada orador constrói seus auditórios universais de acordo com sua própria localização discursiva – compreendendo aqui todos os aspectos de sua existência que informam seu discurso, como momento histórico, localização física (sua vila, cidade, país, continente etc.), localização social (seu papel social, e também as instituições que apoia ou das quais participa), crenças e valores (pessoais e compartilhados) etc. Do complexo jogo entre os apelos ao auditório universal e a cada um de seus auditórios particulares (um auditório pode ser composto por diversos auditórios particulares menores, sobrepostos ou não) é que resultará a efetividade da argumentação. Se o orador não for capaz de se deixar animar pelo próprio espírito de seu auditório, são grandes as chances de que sua argumentação falhe em alguma medida, diminuindo a intensidade da adesão do auditório às teses apresentadas, ou mesmo impossibilitando a obtenção de tal efeito.

Conforme discutimos no capítulo introdutório deste trabalho, acreditamos que o

narrador-personagem

de

Dom

Casmurro,

em

função

de

seu

estado

psicopatológico, constrói de maneira equivocada seu discurso argumentativo. Incapaz de comunicar-se adequadamente com o público leitor potencial de seu próprio tempo – em especial, com as gerações mais novas –, Bento Santiago projeta seus pensamentos e anseios em elementos diversos ao seu redor. Escreve impulsionado pelas vozes e fantasmas inquietos que projeta e perde-se em uma longa deliberação íntima, efetivamente argumentando consigo mesmo, embora não sem demonstrar grande destreza ao defender sua argumentação contra possíveis detrações e manipular com maestria as inclinações do leitor que projeta para sua narrativa. Em resumo, Santiago constrói uma argumentação que atende aos anseios gerados por seu delírio de ciúme e, em sua condição, dá-se por convencido da própria capacidade de convencer a um leitor que, ignora, é mera extensão dele mesmo.

Em busca de elementos que nos permitissem identificar os auditórios aos quais Bento Santiago dirige seus argumentos, elaboramos um corpus – apresentado em sua totalidade no Anexo I deste trabalho – reunindo todas as passagens da narrativa em que detectamos algum tipo de interação direta ou subentendida entre o narrador/orador e aqueles a quem ele dirige sua argumentação.

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São trechos em que encontramos o narrador-personagem discutindo consigo mesmo, avaliando seus pensamentos, ideias e comportamento, explicitamente construindo os argumentos que usa em defesa de suas atitudes, e ostensivamente incitando o leitor a completar importantes lacunas em sua exposição daquilo que ele deseja apresentar como fatos, mesmo quando se revelam como impressões sem maior substância.

No quadro integral, as passagens foram agrupadas em quatro categorias, a saber:

a) evidências do processo de deliberação íntima;

b) resistência e obstáculos à formação de um auditório com interlocutores contemporâneos ao narrador; e

c) auditórios particulares construídos pelo narrador;

d) evidências dos esforços de cooptação dos auditórios construídos com vistas à obtenção de uma comunidade dos espíritos, conforme o conceito proposto por Perelman.

Destas categorias, por questões de espaço e foco, selecionamos um pequeno número de passagens que consideramos mais representativas. Nos itens a seguir, elas serão brevemente analisadas em busca de correspondências com a teoria explorada.

Cada uma das categorias acima poderia facilmente originar um estudo em separado, que lhes exploraria em detalhe as estratégias e técnicas argumentativas decorrentes, conforme as elucidam a nova retórica perelmeniana. Fica para um desses estudos potenciais alguma análise que demonstre, para além da identificação de auditórios, o qual fundamental a noção de argumentação dialética para um romance em que não parece haver espaço para verdades objetivas, situado firmemente no terreno da verossimilhança, do provável e do plausível, em que pese a instabilidade interior de seu narrador-personagem.

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3.1. Evidências do processo de deliberação íntima A deliberação íntima é um dos três tipos de auditórios35 definidos por Perelman durante sua apresentação dos âmbitos da argumentação. Este plano argumentativo caracteriza-se pelo desdobramento discursivo do próprio orador em mais de uma “pessoa”, tornando-o, por assim dizer, auditório de si mesmo. Como diz o filósofo, na deliberação íntima “é de se prever que encontraremos [...] a maioria dos problemas relativos às condições prévias para a discussão com outrem” (TA, p. 17), o que equivale a dizer que permanecem a importância e a prevalência do auditório para o sucesso da argumentação. Se levarmos em consideração o princípio de que “conhecer o auditório é também saber, de um lado, como é possível assegurar seu condicionamento, do outro, qual é, a cada instante do discurso, o condicionamento que foi realizado” (TA, p. 26), poderíamos dizer que, na deliberação íntima, o orador sempre sabe, conscientemente ou não, como convencer ou persuadir a si mesmo de maneira eficaz.

Embora Bento Santiago se dirija, como veremos mais abaixo, a uma série de leitoras e leitores ficcionais com personalidades diversas, uma porção significativa de sua narrativa corresponde a momentos em que ele, como narrador-personagem (ou narrador-orador, se tomarmos como foco seu papel na argumentação), parece refletir solitariamente, em uma espécie de monólogo interior, sobre suas impressões, experiências e atitudes.

Dentre os trechos reunidos no Anexo I, serão transcritos abaixo aqueles especialmente significativos para a caracterização e entendimento do processo de deliberação íntima que em Dom Casmurro. Encontramos exemplos de estratégias e elementos característicos deste tipo de auditório e os dividimos em subcategorias, conforme apresentadas a seguir.

35

Sendo os outros dois o auditório universal e o ouvinte único, conforme demonstrado no item 2.1.6.

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a) Formação de um arrazoado íntimo / para uso dos outros 36

Hão de perguntar-me por que razão , tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. (Cap. 144, p. 157) Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j’écris; c’est moi, c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo. (Cap. 68, p. 93)

Retomando a hipótese de diagnóstico apresentada pelo psiquiatra José Leme Lopes, o narrador de Dom Casmurro teria agido, no calor dos acontecimentos mais marcantes (aqueles representados a partir do momento em que se percebe fascinado tanto pelos braços de Sancha quanto do amigo Escobar, intensificados pela morte e enterro deste, e culminados pelos impulsos suicida e homicida e pela subsequente desagregação do núcleo familiar), sob efeito da condição definida como ciúme delirante. Anos mais tarde, ao escrever suas memórias, Bento Santiago não se encontraria curado, mas apenas preso a um estágio mais ameno do distúrbio, qual seja, o delírio de ciúme.

Nesse estágio moderado, pode-se imaginá-lo capaz de refletir mais calmamente sobre suas próprias atitudes, ainda mais quando seu estilo de vida recluso garante tempo extra à disposição. Acreditamos que tais reflexões tenham sido constantes, a ponto mesmo de criar os fantasmas – as “sombras inquietas” – que nunca de fato o abandonaram.

Um sinal claro de desconexão com seus tempos mais tumultuosos está presente no primeiro trecho acima, que fala da necessidade de reconstruir sua antiga morada em outra localidade e não de maneira absolutamente fiel ao desenho original, mas segundo sua própria orientação e lembranças. É plausível que o desconhecimento que projetou na casa onde viveu durante a infância e adolescência tenha nascido de uma sensação interior, de uma crescente percepção da

36

Todos os negritos são nossos e têm o propósito de ressaltar os pontos-chave de cada citação.

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desproporcionalidade de seus atos, talvez agora carentes, aos seus olhos, de mais sólida fundamentação.

A certa altura do relato, após concordar com Capitu dizendo para si mesmo que os olhos do filho eram, de fato, como os de Escobar, Santiago imediatamente se contradiz, ao considerar: “não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente” (Cap. 131, 147). Ficam registrados assim o seu grau de incerteza quanto à sua própria capacidade de julgamento, e a desconfiança de que talvez suas impressões não fossem a mais segura fonte de confirmação para as suspeitas exacerbadas por seu ciúme doentio.

É assim que, retomando Perelman, podemos ver no segundo trecho em epígrafe indícios da formação de um arrazoado íntimo, que serve tanto à intensificação de suas próprias convicções, quanto ao eventual uso por outros auditórios – daí a ênfase em reunir argumentos que convenham à “construção ou reconstrução de si mesmo”, realizando discursivamente o mesmo trajeto que o levou a reconstruir no Engenho Novo a casa da Rua de Mata-cavalos.

Ao fim de sua narrativa, tendo construído ou reconstruído os fatos a contento, ou seja, de maneira que pareça aos seus próprios olhos suficiente, Santiago parece finalmente encontrar em seu interior o mesmo conforto que lhe traz a casa redesenhada e reconstruída. Tanto que, em seu parágrafo final, embora seja passível de discussão a sinceridade com que os supostos comborço e adúltera se tornaram amigos “extremosos” e “queridos” em sua visão, o fato é que, terminado seu projeto de reconstrução discursiva, de defesa de suas percepções e atitudes, o que o destino quis para eles é o “resto dos restos”. Seu ego pacificado o libera, enfim, para a tarefa antes vista como por demais exaustiva, como se vê no trecho abaixo: uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios. (Cap. 148, p. 160)

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Cabe agora à terra ocupar-se dos mortos que o perturbaram por tantos anos. Santiago escreve como se, pela primeira vez, fosse um homem realmente livre.

b) Desdobramento em interlocutores projetados

Conforme argumentamos no capítulo introdutório deste trabalho, causou-nos estranhamento, entre outros fatores, a forma como Bento Santiago caracterizou o impulso que o levou a escrever seu relato: os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?” (Cap. 2, p. 19)

Sem entrar em uma discussão sobre os significados psicológicos de tal projeção de vozes e sombras, vemos aqui forte indício de um processo de deliberação íntima, conforme caracterizado na teoria perelmeniana: para que o orador seja seu próprio auditório, “a pessoa deve, notadamente, conceber-se como dividida em pelos menos dois interlocutores que participam da deliberação” (TA, p. 16). Explica-se, portanto, o que se vê na passagem acima – uma descrição de como o narrador foi persuadido pela argumentação dos “bustos pintados” a lidar com as “inquietas sombras” que povoam suas memórias. O argumento “dos bustos” sugere que, por mais que alegasse ter uma vida interior pacata, Santiago sentia a necessidade de reconstituir de alguma forma sua experiência. Provavelmente, como argumentamos na subcategoria anterior, com vistas ao reforço de suas convicções, de sua crença na falibilidade da esposa e do amigo e na razoabilidade de suas reações. Se não encontrasse versão mais confortável para sua própria história, o passar do tempo o levaria, eventualmente, a enfrentá-la em toda a sua crueldade e falta de maior fundamento. Orgulhoso, vaidoso e fiel à sua característica de “sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe” (Cap. 83, p. 105), Santiago significativamente prefere transferir a seres fora do plano real e concreto a responsabilidade por sua tomada de atitude.

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Somente assim poderia negar plausivelmente a mal suprimida ansiedade por uma solução para seus conflitos internos – afinal, agitou-se tanto diante da possibilidade de revisitar tais conflitos e fantasmas que sentiu tremores em suas mãos e chegou a um estado próximo da histeria.

Há um bom número de passagens semelhantes. Para citar apenas duas, em dado momento Santiago imagina ouvir um coqueiro velho a murmurar-lhe sua aprovação da paixão adolescente, opinião compartilhada por pássaros, borboletas e “toda a gente viva do ar” (Cap. 12, p. 29). Em outro momento, fundamental para a trama – em que “o desejo por Capitu desliza vertiginosamente para os braços de Sancha e para os braços do amigo”37 e prenuncia-se, deste, o desfecho trágico – sua busca por controle dos próprios sentimentos encontra apoio em um retrato de Escobar, que lhe fala “como se fosse a própria pessoa” (Cap. 118, p. 139). A seguinte, porém, é das mais significativas: Uma fada invisível desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.” – E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me. – Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado. – Ouviu o quê? – Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz? – É boa! Você mesmo é que está dizendo... Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada (Cap. 100, pp. 120-121).

Ao ilustrar uma projeção não apenas mental, mas também física do desdobramento de Bento Santiago em múltiplos interlocutores, a ponto de causar estranhamento ao agregado José Dias, essa passagem serve como novo elemento a demonstrar que o relato do casmurro jurista baseia-se muito mais em uma reflexão de si para si do que a constante interpelação do leitor pode fazer parecer.

Isso não significa, contudo, que o julgamento alheio seja para ele irrelevante. Pelo contrário – encontramos diversos trechos dedicados à defesa prévia de seus

37

O crítico e professor da UERJ assim explica a questão: “a palavra “braços” já vem desde antes no romance marcada por uma sobrecarga de sentido: os braços de Capitu são metonímia / metáfora / alegoria do desejo de Bento por ela. Aqui o desejo por Capitu desliza vertiginosamente para os braços de Sancha e para os braços do amigo” (MORICONI, 2008, pp. 86-87, grifo nosso).

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pontos de vista, outro elemento típico do processo de construção de um arrazoado íntimo. Este será o tópico da subcategoria seguinte.

c) Defesa prévia da argumentação

O relato de Bento Santiago provavelmente não existiria, ou seria substancialmente outro, se houvesse fatos comprovando qualquer má conduta de sua finada esposa e amigo. Como afirma Perelman, “onde se insere a evidência racional, a adesão do espírito parece pendente de uma verdade coerciva e os procedimentos de argumentação não representam nenhum papel” (TA, p. 36).

Tudo o que Santiago tem em favor de sua convicção são indícios, elementos que podem causar suspeita (encontros fortuitos, olhares que ele vê como inadequados, a suposta semelhança entre seu único filho e o amigo), mas nada comprovam. Todos esses indícios são exacerbados por seu quadro de instabilidade mental – o delírio o leva a tomá-los como provas definitivas e incontornáveis.

Há, claro, lacunas intencionais em sua argumentação, que têm por objetivo instar o leitor a participar de sua construção, alçando-o à categoria de cúmplice, de coautor. Estas serão analisadas mais à frente. Por ora, nos trechos abaixo, vemos Bento Santiago explicando gestos e reações que ele intui parecerem descabidas ao julgamento alheio: Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. (Cap. 45, p. 70) 38

eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857. (Cap. 3, p. 19) Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. (Cap. 62, pp. 86-87)

38

Em que pese sua negativa contundente, é exatamente isso o que ele faz, de forma intencional ou não. Bem mais à frente, em meio as suas descrições dos tempos de recém-casado, Santiago diz: “Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alma” (Cap. 103, p. 124, negrito nosso).

75 Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos (Cap. 107, p. 128).

Como se vê, Santiago preocupa-se com quem possa julgá-lo mentiroso, inconsistente e exagerado (ou lacunar). Na previsão e refutação de tais reações, Santiago continua alinhado aos princípios que regem a construção de um arrazoado íntimo. Lembramos que “é legítimo que quem adquiriu uma certa convicção se empenhe em consolidá-la perante si mesmo, sobretudo perante ataques que podem vir do exterior” (TA, p. 49).

Poderiam ser incluídas aqui, ainda, suas constantes menções aos lapsos de memória ou à intensidade de suas fantasias, caracterizando tais intervenções como um preparo, um aviso ao leitor, para que este o julgue de forma menos severa quando se deparar com suas inconsistências ou extravagâncias. Tal leniência, naturalmente, levaria a uma maior adesão ao seu ponto de vista, ou seja, um reforço externo da convicção que ele pretende cimentar definitivamente dentro de si.

Entende-se com mais clareza, também, seu questionamento na passagem a seguir: Acaso haveria em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. (Cap. 140, p. 154)

Por sua pronta resposta, o questionamento parece-nos mais voltado a ele mesmo do que ao leitor. Importa, porém, notar que aquele “homem novo”, referido em terceira pessoa, é ainda outra marca da desestruturação de sua psique. Revelar ao leitor sua surpresa com relação às próprias atitudes é uma forma de levar também seu público a dissociá-lo dos atos que, no fundo, ele sabe reprováveis. Afinal, se o homem antes encoberto veio à tona, não foi por sua própria escolha, mas por força das “impressões novas e fortes”.

A subcategoria a seguir refere-se também a uma estratégia de defesa da convicção contra possíveis ataques, mas utilizando-se, no caso, de um método mais contundente, como se verá.

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d) Desqualificação do recalcitrante

Essa é uma estratégia arriscada, que Perelman contrasta com o recurso a um auditório de elite, “dotado de meios de conhecimento excepcionais e infalíveis”. Um exemplo clássico de auditório de elite em Dom Casmurro está nos capítulos 9, 10 e 11, ao longo dos quais Santiago compara sua vida a uma ópera com base em uma teoria transmitida a ele por um tenor aposentado. A comparação se processa por metáforas elevadas, que tocam em questões religiosas e existenciais. No capítulo 10, que tem por título Aceito a teoria, Santiago reflete: Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que muita vez é toda a verdade, mas porque minha vida se casa bem à definição. (Cap. 10, p. 27)

Trata-se, portanto, de um nível de argumentação que pode frustrar a determinados leitores, menos interessados em metafísica ou questões que escapam ao mundano. Claro, como tem a própria capacidade intelectual em muito boa conta, Santiago a considera das mais apropriadas, mas nos momentos em que os sentimentos falam mais alto que suas aspirações filosóficas, suas reações tendem a ser igualmente mais viscerais.

Perelman argumenta que, diante da perspectiva de não convencer a todos com sua argumentação, resta sempre ao orador a possibilidade de “desqualificar o recalcitrante, considerando-o estúpido ou anormal” (TA, p. 37, grifo do autor). Como se vê nos trechos abaixo, é um recurso do qual Santiago se utiliza bastante liberalmente: Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! (Cap. 33, p. 55) Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos. (Cap. 33, p. 55) Não nos censures, piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo. (Cap. 49, p. 72)

77 a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes... (Cap. 51, p. 74)

Considerando-se o isolamento em que vive e o pouco apreço que tem aos seus contemporâneos, não causa surpresa que se sinta tão à vontade para destratar seus potenciais leitores, cujo número imaginado é difícil precisar. Seja como for, é preciso lembrar que mesmo estes leitores recalcitrantes são projeções suas, e podem também indicar dissonâncias em sua própria constituição psíquica. Não conviria ao seu projeto de reconstrução de si mesmo reconhecer que sua cabeça de onde vem toda a malícia que fomenta a suspeita contra mulher e amigo possa ser tão perversa quanto acusa ser a do leitor. A desqualificação, nesse caso, serviria para deslocar e evitar quaisquer obstáculos internos ao reforço de suas próprias convicções, nos moldes discutidos até o momento.

Antes de prosseguirmos com a análise dos demais auditórios construídos pelo

narrador-personagem,

cumpre-nos ilustrar

com

alguns

trechos

como

percebemos os obstáculos encontrados – ou colocados contra – por Bento Santiago ao estabelecimento de um diálogo direto com seus contemporâneos.

3.2. Resistências e obstáculos à formação de um auditório contemporâneo Lembra-nos o Tratado da argumentação que “[o] conjunto daqueles a quem desejamos dirigir-nos é muito variável” e que, não obstantes as implicações do processo de construção de auditórios universais, está “longe de abranger, para cada qual, todos os seres humanos” (p. 18).

Em muitos casos, o contato com determinados interlocutores pode nos parecer supérfluo, indesejável, contraproducente ou mesmo indignante. Perelman afirma que “para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental.” Mas não basta apreço pelo auditório – é preciso admitir a necessidade de persuasão, querer conhecer esse auditório, para saber como melhor influenciá-lo. É um exercício de modéstia, pois quem quer convencer “não dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e obtém imediatamente a convicção” (TA, p. 18).

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Já nas primeiras linhas de Dom Casmurro somos apresentados à noção de que modéstia e interesse sincero pelo próximo não são as características mais marcantes do narrador-personagem: é o pouco-caso que demonstra pelos versos do “poeta do trem” que lhe rende a alcunha que dá título ao relato. Ao mesmo tempo em que desfruta da atenção intensificada que a anedota e o apelido parecem atrair de seu afastado círculo de amigos (nenhum parece residir em suas proximidades; todos os convites soam como se feitos por quem já espera recusa), Santiago sugere não ter encontrado melhor título para sua narração. Em outras palavras, aprecia a “distinção”, denotando orgulho de bastar-se. Não parece demonstrar apreço por ninguém.

A questão pode parecer superficial, mas é preciso lembrar, como nos diz Perelman, que participar “de um mesmo meio, conviver, manter relações sociais, tudo isso facilita a realização das condições prévias para o contato dos espíritos” (TA, p. 19), ou seja, para que possa ocorrer a argumentação. Ademais, “ouvir alguém é estar disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista”. Não parece que Bento Santiago queira arriscar-se a tanto – ter abaladas em um diálogo as mesmas convicções que procura reforçar na escrita. Além do “poeta do trem”, Bento manifesta descaso também pelas moças e pelas agregações familiares da época. Nos dois casos, a desconexão se dá no plano da linguagem: Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. (Cap. 2, p. 18) Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver. (Cap. 108, p. 129)

É verdade que, “quase sempre, o orador tem toda a liberdade de renunciar a persuadir um determinado auditório, se só o pudesse fazer eficazmente de um modo que lhe repugnasse” (TA, p. 28), e talvez Santiago se considere realmente superior a todas essas pessoas que parecem incomodá-lo. Ainda assim, se espera ser lido por pelo menos algumas delas, prevalece a necessidade de adaptar-se, ainda que

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minimamente, ao auditório que elas representam. Isolado, Santiago não pode conhecer a contento as pessoas de seu tempo, nem entendê-las ou fazer-se devidamente compreendido por elas Quando consegue estabelecer um contato com uma nova “amiga”, descobre que seu foco preso ao passado ergue também uma barreira à plena comunicação entre eles. Elas se interessam pelo viúvo abastado e de renome, mas não conseguem lidar com sua casmurrice, provavelmente porque seu interesse – e aqui fica implícita uma característica que define seu relato – está mais em falar de si mesmo do que em ouvi-las, saber delas, reconhecê-las como pessoas. Apesar da descrição acurada, ele parece não atinar inteiramente por que elas reagem como espectadoras de uma “exposição retrospectiva”: “Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. [...] Não voltavam mais. [...] Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, um guache, e também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão...” (Cap. 147, p. 160)

Como escrever para um público cuja linguagem lhe soa estranha e enfadonha? Como prender na escrita a atenção de pessoas que mal suportam ouvilo? Mais fácil é ouvir o que lhe dizem os bustos pintados e conversar com suas sombras.

Embora quase todas as testemunhas dos eventos que descreve já estivessem a estudar a “geologia dos campos-santos”, uma delas, ainda viva, recebe atenção especial no capítulo 129 do livro: D. Sancha. Significativamente, ele não interpela a viúva de seu amigo, a qual terá sua vida privada exposta em um momento-chave da narrativa, para lhe pedir autorização ou corroboração dos fatos. O pedido que ele faz a D. Sancha é mais interessante: D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é

80 ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle, Rinovellate di novelle fronde. O resto em Dante.” (Cap. 129, p. 148)

Além da informação de que também a filha do casal Sancha e Escobar já não mais vive, o trecho deixa entrever parte do processo de reconstrução dos acontecimentos, uma vez que, se não guarda mais culpa, tal se deve igualmente ao “desmentido” que incluiu em sua narração. Basta, para ele, que tenha explicado por si mesmo o que houve. Qualquer dano adicional que a antiga amiga sofra, embora advindo de suas próprias palavras, lhe será indiferente.

Como se vê, Santiago não busca qualquer contato mais próximo com as pessoas de seu tempo de casmurrice. Desconhecidas, elas se tornam inviáveis como receptoras de sua argumentação, restando a ele construir auditórios inteiramente baseados em suas próprias convicções. Persistem, claro, a perspectiva de impressão do livro e a certeza de que alguém, em algum momento, irá ler suas palavras, mas fica estabelecido um princípio de dissonância, de desconexão entre orador e auditório – ao menos entre ele e seu auditório concreto. Instado pelos bustos na parede, Santiago conjura leitores e leitoras como melhor lhe convém.

3.3. Os auditórios particulares construídos por Bento Santiago

Alienado de seu próprio tempo, isolado de seus pares e privado, assim, de conhecimentos mais fundamentados sobre seu possível auditório concreto – seu público leitor “real”, resta ao personagem narrar para as diferentes vozes que projeta e com quem dialoga.

Essas vozes personificadas assumem, ao longo da narrativa, a forma de leitores e leitoras de personalidades diversas, como veremos mais abaixo. Por vezes, como já vimos, também dão vida aos elementos que constituem seu cenário presente (por exemplo, os já citados bustos pintados, presentes no momento da escrita) ou rememorado (como o coqueiro velho que aprova seu namoro). Em outras ocasiões, evocam figuras ilustres (Santiago pede auxílio aos “Sábios da Escritura” no Cap. 58) ou chegam a personificar figuras de linguagem (como quando pede à

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“retórica dos namorados” que lhe forneça termos de comparação exatos e poéticos, no Cap. 32).

Não se pode, claro, dizer que o público concreto esteja sendo ignorado, mas uma vez estabelecido o papel proeminente que a deliberação íntima exerce no discurso argumentativo de Bento Santiago, fica evidente a sobreposição entre os desdobramentos de suas vozes interiores e a argumentação com auditórios externos a si, já que os leitores que idealiza são, de uma forma ou de outra, também projeções. Procuramos analisar a seguir como o narrador-personagem lida com seus leitores em geral e com seu auditório feminino provável.

a) Leitores (em geral)

Com relação aos leitores suscitados ao longo do relato, se por um lado chegam a formar um conjunto de citações algo distinto, por outro lado notamos inevitáveis sobreposições com diferentes subcategorias. Frequentemente o leitor é interpelado em meio a uma defesa ou justificação prévia de argumentos. Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmá-las; mas as contradições são deste mundo. (Cap. 41, p. 65) Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. (Cap. 67, p. 92)

Em outros momentos, o leitor é claramente cooptado pelo narrador, em um processo de visitaremos no item 3.4, seguinte a este. Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto. (Cap. 101, p. 122)

A análise de auditórios de acordo com a nova retórica perelmeniana precisa reservar espaço para a existência de tais imprecisões. Para o filósofo, “a distinção entre diversos auditórios é muito mais incerta e isso ainda mais porque o modo como o orador imagina os auditórios é resultado de um esforço sempre suscetível se ser retomado” (TA, p. 33).

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Essa retomada – ou reconstrução da própria história – como vimos argumentando até agora, está no cerne do processo de deliberação íntima que caracteriza o relato de Bento Santiago. Assim, o aspecto que ele empresta aos seus auditórios por vezes muda de acordo com seu interesse no momento (defender sua argumentação, justificar-se, desqualificar opositores etc.), quando seria de se esperar que sua argumentação mudasse para adaptar-se aos auditórios.

As leitoras, por sua vez, quando evocadas pelo gênero, recebem tratamento diferenciado, como se verá na subcategoria seguinte.

b) O auditório feminino

Bento Santiago, homem de bom berço, devotado à própria mãe e integrante de uma sociedade que ainda considerava a mulher como “sexo frágil”, tenta se dirigir às suas leitoras de maneira respeitosa, ainda que condescendente: Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós. (Cap. 14, p. 32) Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao fim, sem susto nem vexame. (Cap. 57, p. 81)

Como se vê, ele chega perto, mas não traz para seu discurso, palavras como as que Capitu usou em um momento de raiva para se referir a D. Glória. Suas leitoras são devotas e castíssimas, mas não abertamente beatas, carolas ou papamissas.

Em uma narrativa marcada por um trágico e fugidio quadrilátero amoroso (não se pode esquecer que Sancha, em um breve, mas importante momento, foi alvo de intensos desejos por parte de Santiago – estes, confessos, não apenas sugeridos pelas circunstâncias), e portanto perpassada por uma certa carga homoerótica 39, é 39

Luiz Freitas, o já mencionado autor de Freud e Machado de Assis, oferece uma perspectiva psicanalítica para a hipótese de diagnóstico que foi apresentada na Introdução deste trabalho, então conforme o estudo do psiquiatra José Leme Lopes. Freitas (2001, pp. 135-136) afirma que, no Cap. 107 de Dom Casmurro, "Machado vai, ao final, dizer que ele, Bento, havia ficado mais amigo de Capitu. Para se dizer que um homem, cada vez mais próximo da mulher, possa estar cada vez mais desconfiado dela, é necessário recorrer novamente a Freud. Este afirmava que, em determinados casos de paranoicos, surgia um delírio de ciúmes após o paciente ter tido relações sexuais

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sintomático que a presença das leitoras seja invocada em passagens que denotam risco de que o desejo ultrapasse limites e entre em território reprovável ou proibido: Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. (Cap. 63, p. 88) na primeira noite que os levou [os braços] nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos (Cap. 105, p. 125).

De um ponto de vista puramente voltado para a aplicação de conceitos da nova retórica perelmeniana, não deve surpreender o tratamento diferenciado dado às leitoras. Basta lembrar que “a natureza do auditório ao qual alguns argumentos podem ser submetidos com sucesso [...] determina em ampla medida tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance que lhes serão atribuídos” (TA, p. 33).

Em um estudo dedicado ao cruzamento entre questões de gênero e discurso argumentativo seria possível investigar a propriedade do tom condescendente percebido e quais valores (do orador e do auditório) ele reflete – nos dias de hoje, pode soar inadequado, mas teria sido recebido com contrariedade pelas leitoras a que se dirigiu? Considerados o papel social da mulher e os pressupostos relacionados à instituição matrimonial e à família durante o Segundo Império, em medida a forma como Santiago estruturou sua argumentação e o papel que reservou explicitamente às leitoras pode ter influenciado, delas, a adesão à tese de que Capitu foi infiel? Tal abordagem, porém, foge ao escopo de nosso trabalho, motivo pelo qual a deixamos como sugestão para estudos posteriores.

3.4. Ao leitor, as lacunas: evidências dos esforços de cooptação do leitor com vistas à formação de uma comunidade efetiva de espíritos Por mais que seu estado mental não possa ser considerado absolutamente estável, não se pode igualmente dizer que Bento Santiago não tenha nenhum satisfatórias com a esposa, inferindo que 'após cada saciação da libido heterossexual, o componente homossexual, igualmente estimulado pelo ato, forçava um escoadouro para si na crise de ciúmes' [...] O fato de Bento negar o seu desejo homossexual, não admitir essa pulsão inconsciente, não percebê-la conscientemente, fez o quadro agravar-se. [...] vai então recorrer a dois mecanismos de defesa: a negação e a projeção. É Capitu quem ama!"

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domínio de si mesmo, ou que seja incapaz de racionar, em determinados momentos e sobre determinados assuntos, com excepcional clareza.

Não parece escapar-lhe que muitos de seus argumentos são incompletos, que sua memória é falha, ou que suas fantasias podem impedir que seus leitores diferenciem o que de fato alega ter acontecido, daquilo que é apenas efeito de sua imaginação.

Seria, na verdade, possível postular que é no jogo de intencionalidade ou não das várias lacunas narrativas que se pode detectar a presença de Machado de Assis manipulando o grau de percepção de Bento Santiago com relação às suas próprias inconsistências. Machado as expõe ao leitor sutilmente – como é o caso do ano em que a tarde da denúncia ocorreu: 1857 ou 1858? –, ao passo que Bento Santiago procura encobri-las sobrecarregando os sentidos do leitor, dizendo e desdizendo, afirmando e colocando em dúvida, e o tempo todo interpelando o leitor para que este participe do processo de criação de ordem e sentidos, como se vê nas passagens selecionadas mais abaixo. Santiago deixa suas intenções claras ao afirmar que “[n]ada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos” (Cap. 59, p. 83). Ao pontuar seu relato com lacunas e omissões, ele conduz o leitor a buscar, por si mesmo, argumentos que o convençam, em um processo que espelha a deliberação íntima que o próprio narrador desenvolve enquanto escreve.

Utilizando-se das lacunas que convida o leitor a preencher, Bento divide com seus auditórios a responsabilidade pela criação da presença discursiva que deve agir como catalisadora da comunhão efetiva entre orador e auditório. Diz Perelman que uma das preocupações do orador será tornar presente, apenas pela magia de seu verbo, o que está efetivamente ausente e que ele considera importante para a sua argumentação, ou valorizar, tornando-os ainda mais presentes, certos elementos considerados efetivamente oferecidos à consciência. (TA, p. 133)

Para o filósofo, essa presença “atua de um modo direto sobre a nossa sensibilidade. [...] Assim, o que está presente na consciência adquire uma

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importância que a prática e a teoria da argumentação devem levar em conta” (TA, p. 132). A constante participação do leitor faz com ele se aproprie do discurso do narrador, preenchendo-o e tornando-o imediatamente presente à sua própria consciência. Como se nota no quadro apresentado no Anexo I, em que figura a totalidade do corpus utilizado aqui para análise, são muitos os exemplos em Dom Casmurro dessa forma de interação entre narrador-personagem e leitor potencial. Não se trata de acaso. Afinal, “há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição” (Cap. 31, p 51).

Abaixo, selecionamos alguns trechos em que o convite ao preenchimento de lacunas é bastante claro: É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (Cap. 59, p. 83) Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico. (Cap. 136, p. 152) E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. (Cap. 1, p. 17) Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha mãe e de Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. (Cap. 108, p. 129) Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. (Cap. 122, p. 142) Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. (Cap. 140, p. 154)

Em alguns momentos, pelo uso da 1ª pessoa do plural, ele busca fundir-se com o leitor, trazendo-o para o momento de escritura do livro como se esta fosse de fato uma atividade compartilhada, em total e comum acordo entre ambas as partes: Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória. (Cap. 85, p. 107)

Outra forma de cooptação do leitor bastante comum no relato de Bento Santiago é a constante sugestão de que o leitor já assimilou ou está em vias de

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assimilar “naturalmente” o argumento apresentado, implicando adesão tácita ao ponto de vista do narrador-orador: Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. (Cap. 31, p. 51) trocariam flores e... E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderás (Cap. 62, p. 87). Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no capítulo 2, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei. (Cap. 64, p. 88) Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe. (Cap. 79, p. 101) Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o céu e a terra, por modo idêntico ou análogo. (Cap. 80, p. 103) Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. (Cap. 93, p. 112) Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. (Cap. 97, p. 119) A vida é tão bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo. (Cap. 133, p. 149)

Como se vê, os exemplos desta categoria são numerosos, porque tratam de um recurso utilizado com frequência por Bento Santiago. Além de ironicamente criar presença pela manipulação de lacunas, o narrador supre dessa forma suas deficiências na construção de auditórios mais consistentes, deixando ao leitor que preencha os argumentos (e valores, e situações) contornados como melhor lhe convier.

Encerrada a análise de trechos da narrativa, cumpre-nos por fim rever algumas de nossas observações e, antes de prosseguir para as considerações finais, refletir sobre a questão do auditório universal em um texto que se pauta pela construção de um arrazoado íntimo.

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3.5. Considerações parciais

Ao longo deste capítulo, elencamos indícios que nos levam a perceber, por trás do constante apelo à participação do leitor, um processo mais profundo de deliberação íntima, em que Bento Santiago empreende a “construção e reconstrução de si mesmo” da forma que julga mais propícia ao apaziguamento das inquietas sombras que o acompanham.

Observamos como sua voz se desdobra e se projeta em diferentes personagens, animados ou não, e como esses personagens o auxiliam a deslocar sua responsabilidade por determinadas atitudes.

Notamos, também, que no caso em que esse desdobramento toma a forma de leitores e leitoras, ocorre uma sobreposição com o público leitor concreto, potencial, já que não se pode dizer em momento algum que Santiago ignore a perspectiva “real” de ter seu trabalho publicado. Embora tenha perdido a conexão com seu próprio tempo, sabe que, uma vez nas mãos do público, seu trabalho será avaliado, julgado, destrinchado, e, por meio da narrativa, sofrerão igual processo as decisões e ações que levaram à destruição de sua família.

Como cabe ao processo de formação de um arrazoado íntimo, nome que Perelman dá ao processo de racionalização, Santiago junta os argumentos e indícios de que dispõe para tentar “deixar sob uma luz mais bonita” as reações que teve enquanto sofria os efeitos de um estado de ciúme delirante, com sintomas paranoicos e impulsos violentos. Mesmo anos mais tarde, seu estado se encontra ainda fora do ideal – vive em delírio de ciúme, estado mais ameno, mas igualmente psicopatológico.

Interessa sobremaneira à parte racional de sua psique que sua reputação seja preservada, e seus atos, justificados. Juntando um relato que organize e cimente suas próprias convicções, e ainda traga o bônus de uma possível validação externa, torna-se mais possível fugir ao horror da percepção da própria crueldade e injustiça. Parte de sua psique, todavia, parece reconhecer que está construindo em

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sua narrativa uma argumentação falha, deslocada por memórias incompletas e intensas fantasias.

Seria possível argumentar que Bento Santiago ocupa, em sua argumentação, o papel de auditório universal – aquele cujos argumentos deveriam ser capazes de garantir a adesão de todos os seres racionais. Vimos anteriormente que cada orador constrói seu auditório universal “com base no que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência” (TA, p. 37).

Ocorre que, em sua narrativa, Santiago é o senhor de todo o discurso, projetando e distribuindo vozes e falas conforme seus interesses. Em outras palavras, todas as vozes são dele – todas as vozes são ele. Tudo o que diz parece racional a sua percepção delirante. Tal hipótese faz ecoar certos questionamentos levantados por Perelman, mesmo que não especificamente relacionados a um discurso autobiográfico40: Com efeito, como distinguir as evidências verdadeiras das falsas? Será que se imagina que o que convence um auditório universal cujo representante ideal é considerado a própria pessoa, possui realmente essa validade objetiva? [...] o consentimento universal invocado o mais das vezes não passa de generalização ilegítima de uma intuição particular. (TA, pp. 36-37)

Seria necessário um estudo à parte para detectar, em meio ao inevitável jogo de sobreposição e desdobramento de vozes em um processo de deliberação íntima, indícios discursivos mais consistentes da construção do auditório universal por esse tipo de orador. É ainda outra abordagem sugerida.

No

próximo

capítulo,

apresentaremos

nossas

considerações

finais.

Procuraremos por fim responder às perguntas feitas durante a Introdução do trabalho, com base na aplicação dos elementos identificados durante as análises realizadas acima.

40

Na passagem original, Perelman faz referência ao racionalismo, que, para ele, tem por pretensão “eliminar qualquer retórica da filosofia”. Ele critica as exigências que percebe no método cartesiano, tornadas incongruentes por “asserções muito contestáveis” feitas por Descartes.

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CAPÍTULO QUATRO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

“[O] homem apaixonado [...] só se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este último possa exercer certa influência sobre as pessoas sugestionáveis, seu discurso o mais das vezes parecerá desarrazoado aos ouvintes. O discurso do apaixonado, afirma M. Pradines, embora possa tocar, não produz um som ‘verdadeiro’, sempre a verdadeira figura ‘rebenta a máscara da lógica’, pois, diz ele, ‘a paixão é incomensurável para as razões’.” (PERELMAN, 2005, p. 27)

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo de todo este trabalho, procuramos demonstrar a propriedade de se analisar um dos aspectos fundamentais do discurso argumentativo construído por Bento Santiago, qual seja, seus auditórios, à luz da teoria proposta por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação. No capítulo anterior, como se pôde ver, há um grande número de passagens da narrativa cujo sentido se expande em confronto com diferentes aspectos da teoria da audiência, porção dos estudos perelmenianos que analisa a interação entre um orador e seus diferentes auditórios – discursivos, notadamente, mas também os concretos.

Em certa altura da rememoração dos eventos que culminaram com a destruição de seu casamento e de sua família, e o levaram ao isolamento e à “casmurrice”, Bento Santiago menciona existirem “reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique” (Cap. 59, p. 83). Quando “os bustos” entraram a falar-lhe sugerindo que narrasse suas experiências, as sombras que evocaram não eram pacatas, como ele a princípio deu a entender que seriam os elementos de sua vida interior. Eram inquietas, como as de Fausto, e a ideia de revisitá-las parece ter desencadeado uma ansiedade tão intensa que o resultado se podia perceber pelo tremor em suas mãos. A alegria atrelada ao tremor só faz seu estado emocional parecer ainda mais histérico e problemático.

Ao reviver pela linguagem o que alega ter vivido por experiência, Bento Santiago, jurista renomado e de elevada posição socioeconômica, teceu uma intricada peça jurídica apresentando os motivos que o levaram a crer que havia sido traído. Ele se demonstra convicto de que sua primeira amiga, sua esposa Capitu, o traiu com seu maior amigo (e possível interesse amoroso inconsciente) Escobar, a quem caberia então a real paternidade de seu único filho, Ezequiel. Aos olhos de Santiago, Ezequiel é prova material da traição pela extrema semelhança física e de caráter com Escobar que ele por vezes alega ver no próprio rebento. Assim descreve a narrativa de Dom Casmurro o crítico Italo Moriconi:

91 Toda a peça acusatória de Casmurro baseia-se na semelhança física entre o filho Ezequiel e o amigo Escobar. No entanto, nosso exame mais acurado do texto mostra [...] uma teoria ou economia do olhar, elaborada na narrativa mediante jogos retóricos e recursos linguístico-poéticos. (2008, p.80)

Por um lado, temos como chave para a compreensão da personalidade de Bento Santiago a leitura realizada por José Leme Lopes em A psiquiatria de Machado de Assis. Interpretadas pelo ponto de vista psicopatológico, os sintomas paranoicos e as ações mais extremas de Santiago (os impulsos suicidas e homicidas e o exílio da mulher e do filho) nasceram de um ciúme delirante, em que, segundo Lopes, há um “jogo de observações, de evocações, ora esquecidas, ora neoformadas, sem mais conservação da crítica” (1974, p. 105), e sua narrativa é construída durante um estado de um delírio de ciúme, condição na qual o humor é um pouco mais estável e a apreensão da realidade um pouco mais sólida, com “ideias sistematizadas”.

Por outro lado, adotando o ponto de vista da nova retórica perelmeniana, encontramos representada ao longo de discurso argumentativo do narradorpersonagem a retórica do apaixonado, isto é, uma “máscara lógica” que não resiste a um exame racional mais atento. Como diz Perelman, o homem apaixonado, enquanto argumenta, o faz sem levar suficientemente em conta o auditório a que se dirige: empolgado por seu entusiasmo, imagina o auditório sensível aos mesmos argumentos que o persuadiram a ele próprio. (2005, p. 27)

O frenesi sob o qual se aproxima da tarefa de narrar o próprio passado sugere que a crença de Bento Santiago na razoabilidade de seus atos não era tão sólida quanto gostaria. Como se vê acima, existe na passagem do ciúme delirante para o delírio de ciúme um minuendo, uma relativa recuperação da capacidade de apreensão da realidade, acompanhada por uma maior estabilidade do humor do indivíduo. Talvez confrontado pela lucidez que traz a perspectiva próxima da velhice, Bento Santiago se vê instado a solidificar seu sistema de crenças, para evitar o horror de reconhecer-se irremediavelmente doente, cruel ou injusto, sem a possibilidade de se arrepender ou buscar o perdão daqueles a quem porventura prejudicou, pois que estão quase todos já mortos ou afastados de seu convívio.

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Tal atitude não é estranha aos pressupostos da nova retórica perelmeniana: Nossa tese é de que, de um lado, uma crença, uma vez estabelecida, sempre pode ser intensificada e de que, de outro, a argumentação depende do auditório a que se dirige. Por conseguinte, é legítimo que quem adquiriu uma certa convicção se empenhe em consolidá-la perante si mesmo, sobretudo perante ataques que podem vir do exterior; é normal que considere todos os argumentos suscetíveis de reforçá-la. Essas novas razões podem intensificar a convicção, protegê-la contra certos ataques nos quais não se pensara desde o início, precisar-lhe o alcance. (TA, p. 49)

Como se vê, mesmo as eventuais incongruências entre os argumentos expostos ao longo do relato poderiam assim ser explicados: novas razões, imiscuindo-se às antigas, reais ou imaginadas. A psicologia chamaria tal processo de racionalização; Perelman o chama de “arrazoado antecipado para o uso dos outros” (TA, p. 47).

Embora a psicologia tenha algo a dizer sobre o leitor que se identifica com a retórica de um indivíduo acometido por ciúme delirante, Perelman permite aos diferentes auditórios que ajustem a intensidade de sua adesão às teses apresentadas, na extensão dos valores que compartilha com o orador. Vale lembrar que as observações de Santiago, principalmente no tocante à representação do caráter e dos costumes de seu tempo, estão longe de ser desprovidas de sentido ou profundidade. Como nota Italo Moriconi, “o juízo do caso pelo leitor dependerá [...] mais dos jogos metafóricos e dos deslizamentos e cadeias sutis de sentido explorados no nível da linguagem” (2008, p. 80). Trata-se, afinal, de um personagem machadiano, entre cuja galeria talvez apenas Brás Cubas lhe ofereça concorrência direta em estatura.

O filósofo belga nos lembra que, mais importante do que a possibilidade de determinar as raízes sociológicas ou psicológicas do sistema de construção de auditórios por parte de um orador é avaliar o quanto essa construção é adequada à experiência. “Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto das circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências” (TA, p. 22). No caso de Bento Santiago, acreditamos que os diferentes auditórios, particulares e universal, extensões discursivas de suas ideias e perspectivas, tenham sido concebidos sob efeito de suas paixões (ou delírios). Faz sentido que ele tenda a vê-los em perfeita comunhão com os pontos de vista que

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privilegia, e os considere devidamente convencidos. As vozes dissonantes (ou recalcitrantes) que porventura imagina ouvir são prontamente desqualificadas – aos leitores que ele chama, entre outros epítetos, de desgraçados, precoces e “pilotos de má morte”, parece repetir-se a cada entrelinha o desafio: “Vão raciocinar com um coração em brasa, como era o meu!”

O ciúme é um sentimento comum à imensa maioria dos seres humanos. Pode-se condenar os excessos a que chegou Santiago, sem contudo invalidar-lhe a desconfiança com relação aos eventos (encontros fora de hora, olhares mais do que fraternais, a “sorte” de uma paternidade que parecia fadada a jamais ocorrer e que jamais se repetiu, e semelhanças mais do que fortuitas) que ele apresenta como mal explicados.

Cremos

infrutífera

qualquer

abordagem

cartesiana

aos

argumentos

apresentados pelo narrador. Não se espera, de um indivíduo em tais situações, ações razoáveis ou argumentação em marcada sintonia com a realidade dos fatos. É conveniente para ele pontuar seu relato com lacunas e considerá-las tacitamente preenchidas. Ao delegar a responsabilidade de preenchê-las ao seu leitor projetado, e mais ainda, ao dar tal tarefa por satisfatoriamente cumprida, Santiago pode furtarse ao enfrentamento da realidade por trás de suas convicções.

Dono de todo o discurso, seja ele apresentado por sua própria pessoa (no ato de narrar ou como personagem rememorado), ou personificado por quaisquer de seus inquietos fantasmas, talvez nem mesmo Santiago tenha tido qualquer acesso “real” aos fatos, em virtude de seu estado. Naturalmente, nada impede que a traição tenha, de fato, ocorrido, mas a verdade última dos fatos não está ao alcance do narrador, nem, muito menos, de qualquer leitor concreto. Este é o terreno da verossimilhança, não das provas necessárias, que, para o caso da traição em particular, inexistem.

Assim, qualquer discussão que ultrapasse o que está ao alcance do narrador, ou as decisões por ele tomadas a partir dos indícios que pôde perceber, se tornará um exercício de coautoria e cumplicidade incidentais, em direto atendimento aos

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interesses do narrador. Não por acaso, ele nos avisa: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos” (Cap. 59, p. 83).

Esperamos ter suscitado, com este trabalho, algum interesse pelas possibilidades que apresenta a nova retórica perelmeniana para a análise de discursos argumentativos não apenas em textos literários, mas também em outros formatos e meios. Em comparação com a preeminência da tradição aristotélica, são estudos ainda incipientes no Brasil, mas nem por isso menos frutíferos, potencialmente. O escopo limitado deste trabalho sugere uma gama de outras possibilidades – seria bastante rica, por exemplo, uma análise perelmeniana das técnicas argumentativas utilizadas por Bento Santiago. A teoria da audiência, em que pese seu papel fundamental para a estrutura do Tratado da argumentação, é não apenas preâmbulo para o resgate de elementos da dialética e da retórica que foram por séculos relegados a um status secundário, se muito, mas também para um estudo abrangente e inovador das técnicas argumentativas.

Encerramos em tom adequadamente modesto, à espera de estudos com ainda maior vigor e mais profunda intuição. Fazemos nossas as palavras de Bentinho/Santiago/Dom Casmurro: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Marco Antônio Sousa. A argumentação filosófica: Chaïm Perelman e o auditório universal. Belo Horizonte: UFMG, 2005. 206p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Orientador: Paulo Roberto Margutti Pinto - Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2005. Disponível em http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/894463/ A_argumentacao_filosofica_Chaim_Perelman_e_o_auditorio_universal. Acesso em: 03 jan 2015. ARNAUD, Luciana B. B. A escrita caleidoscópica: uma discussão sobre as estratégias críticas na ficção machadiana. PUCRJ, 2006. Disponível em http://www.santoandre.sp.gov.br/pesquisa/ebooks/355257.PDF. Acesso em 25 jan 2015. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Orientação pedagógica e notas de leitura de Douglas Tufano. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2006. EDE, Lisa; LUNSFORD, Andrea. On Distinctions Between Classical and Modern Rhetoric. Paper presented at the 33rd Annual Meeting of the Conference on College Composition and Communication (San Francisco, CA, EUA), 1982. Disponível em http://files.eric.ed.gov/fulltext/ED220866.pdf. Acesso em: 11 fev 2015. Frank, David A. A Traumatic Reading of Twentieth-Century Rhetorical Theory: The Belgian Holocaust, Malines, Perelman, and de Man. Quarterly Journal of Speech, 93:3, 308-343. 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/00335630701426793. Acesso em: 18 jan 2015. FRANK, David A. The New Rhetoric, Judaism, and Post-Enlightenment Thought: The Cultural Origins of Perelmanian Philosophy. Quarterly Journal of Speech, No 83, pp. 311-331, 1997. Disponível em https://scholarsbank.uoregon.edu/xmlui/bitstream/ handle/1794/10815/New%20Rhetoric%20and%20Judaism.pdf?sequence=1. Acesso em: 18 fev 2015. FRANK, David A.; BOLDUC, Michelle. Lucie Olbrechts-Tyteca's New Rhetoric. Quarterly Journal of Speech, Vol 2, No 96, pp. 141-163, 2010. Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00335631003796685. Acesso em: 25 fev 2015. -------- Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca’s “On Temporality as a Characteristic of Argumentation”: Commentary and Translation. In: Philosophy and Rhetoric, Vol. 43, No. 4, pp. 308-336, 2010. Disponível em http://muse.jhu.edu/ journals/par/summary/v043/43.4.bolduc.html. Acesso em: 11 fev 2015. FREITAS, Luiz A. P. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. JØRGENSEN, Charlotte. Interpretando o auditório universal de Perelman: Gross versus Crosswhite. Tradução de Paulo Roberto Gonçalves Segundo. EID&A: Revista

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Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação. UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, n. 3, pp. 133-141, nov 2012. LOPES, José L. A psiquiatria de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Agir, 1974. MORICONI. Dom Casmurro: o claro enigma. Matraga, Rio de Janeiro, v.15, n.23, jul./dez. 2008. Disponível em http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga23/arqs/ matraga23a05.pdf. Acesso em: 30 nov 2014. PEREIRA, Ana C. R. A natureza persuasiva de Machado de Assis e a singularidade feminina: uma leitura através dos contos. UFRS, 2011. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/29581. Acesso em: 28 out 2014. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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ANEXO UM

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ANEXO I Corpus constituído a partir das passagens de Dom Casmurro41 em que o narrador-personagem interage com seus diferentes auditórios

Cap.

Pág.

Aspectos 

Evidências do processo de deliberação íntima Correspondem ao terceiro tipo de auditório definido por Perelman (o próprio “eu”). Exemplificam a deliberação íntima propriamente dita (discussões e debates de si para si); defesa prévia da argumentação; desqualificação do recalcitrante (na deliberação íntima o orador geralmente se equipara ao auditório universal); projeção da voz (animalização de elementos do cenário) como quem cria interlocutores para quem dirigir e de quem receber argumentos.

“não achei melhor título para a minha narração” 1

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Os auditórios particulares construídos por Bento Santiago Trechos que implicam a construção de um auditório heterogêneo (leitores projetados: masculino, feminino, cúmplice, recalcitrante etc.). Estes auditórios provavelmente não encontrariam ressonância com o público leitor concreto de sua época. Sacha é a única exceção. Farta adjetivação do leitor. Sobreposição com aspectos da deliberação íntima. Uso frequente do modo imperativo.

Obstáculos à formação de um auditório contemporâneo

Evidências dos esforços de cooptação do leitor

Trechos que demonstram desinteresse e incapacidade de comunicação com as gerações mais recentes; distância das pessoas de idade próxima; quase todos os amigos/ personagens/ testemunhas, mortos. Implica incapacidade de dirigir a argumentação a um auditório que desconhece, forçando-o a criar/projetar o seu próprio auditório com base em suas próprias impressões e convicções.

Marcas de interpelação do leitor com o fim específico de torná-lo coautor do discurso, mormente no aspecto argumentativo; cooptação; manipulação das lacunas com vistas ao estabelecimento da comunhão entre os espíritos (do narrador/orador e do auditório). Interseção com o segundo tipo de auditório (debate/discussão).

“A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. – Continue, disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos.” “vê se deixas essa caverna do Engenho Novo”

“E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.”

“Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém,

A numeração das páginas e capítulos segue a da edição de 2006 da Editora Moderna. O uso de algarismos arábicos para os capítulos é característica dessa edição. A grafia de algumas palavras foi atualizada de acordo com os parâmetros do Acordo Ortográfico de 1990.

100 digamos os motivos que me põem a pena na mão.”

“Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim.”

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“A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira.” “os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?” “e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários” “vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo.” “Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.” “eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas”

“Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

“É o que vais entender, lendo.”

“E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole.”

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“Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.”

“O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada

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à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que não se devem abolir as loterias.” “Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicoume um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la” “vozes assim abafadas são sempre possíveis.” “Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.” “Um coqueiro, vendome inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.” “Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado.” “Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós.” “Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente

102 tarde.” “Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Pádua. Escutai; a anedota é curta.” 16

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“Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos ruídos por eles. – Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos livros que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.” “Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me acho ridículo; a adolescência e a infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos seus privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não executar nada.” “Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos.”

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“Conto estas minúcias para que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.” “Formulei o pedido de cabeça, escolhendo

103 as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomendações de Capitu: “Preciso falarlhe, sem falta, amanhã; escolha o lugar e diga-me.” Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinhálas. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizêlas em tom que não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíramme quase súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meiotermo”. 22

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“Também se goza por influição dos lábios que narram.” “Quando tornei ao meu lugar, trazia uma ideia fantástica” “Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro.” “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.” “não tendo ela

104 rudimento algum da arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontaime a idade e a simpatia.”

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“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.” “Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa!”

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“Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs.” “Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.” “Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas.” “Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho

105 Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo.”

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“Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmá-las; mas as contradições são deste mundo.”

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“Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me chames dissimulado, chamame compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas doía-me vê-la padecer.” “Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato.” “a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que “a senhora saiu”, quando a senhora não quer falar a ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... A verdade não saiu, ficou em casa,

106 no coração”

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“Eis aqui como, após tantas canseiras, tocávamos o porto a que nos devíamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo.” “Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa.” “Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes...” “Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto.” “Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível curar-se um homem dela” “Antes, porém, e porque também eu tive o meu Panegírico, contarei a história de um soneto que nunca fiz. Era no tempo do seminário, e o primeiro verso é o que ides ler: Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!” “Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar.” “Não é que a matéria não ache termos honestos em nossa língua, que é casta para os castos, como pode ser torpe para os torpes. Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao fim, sem susto nem vexame.” “E isto é muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a possibilidade do que há de vir, as proporções dos acontecimentos e a cópia deles, fica robusto

107 e disposto, e o mal é menor mal. Também, se não fica então, não fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler o que vais ler, é provável que o aches menos cru do que esperavas.” 58

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“Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sábios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto.” “Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique.” “E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas!” “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.” “Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e vários outros. Vais agora ver o mais que naquele dia me foi saindo das páginas amarelas do opúsculo.” “Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelas? Entretanto, há muita vez no casal de chinelas um como aroma e calor de dois pés.” “Se depois jarretei o capítulo, foi porque outro músico, a quem mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! “Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. “

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Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura. Vês que não pus nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor.” “Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se.” “nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu, – e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim”

“A minha memória ouve ainda agora as pancadas do coração naquele instante. Não esqueças que era a emoção do primeiro amor.”

“trocariam flores e... E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderás” “Fiquei ansioso pelo sábado. Até lá os sonhos perseguiamme, ainda acordado, e não os digo aqui para não alongar esta parte do livro. Um só ponho, e no menor número de palavras, ou antes porei dois,

109 porque um nasceu do outro, a não ser que ambos formem duas metades de um só.”

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“Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma simples prática paroquial, se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa” “Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos, apertá-los bem, esquecer tudo para dormir, mas não dormia.” “Relendo o capítulo passado, acode-me uma ideia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever a ideia, não a havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dá todos os dias e todos os meses.” “Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no capítulo 2, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei.”

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“concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moça.” “Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite” “os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa.

110 Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos. Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir.” “Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou.”

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“Se achares neste livro algum caso da mesma família, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda edição; nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a ideias brevíssimas.”

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“Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a última vez que o empreguei. A crise em que me achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo.”

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“Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j’écris; c’est moi, c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo.” “Nem perderás em

111 esperar, meu amigo”

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“Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os espectadores vão dormir.”

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“Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu!” “A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo que ele me lembra outros que não quisera lembrar por nada.”

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“as dores daquela quadra, a tal ponto de espiritualizaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros.” “Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe.”

“Aqui chego a um ponto, que esperei viesse depois, tanto que já pesquisava em que altura lhe daria um capítulo. Realmente, não cabia dizer agora o que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, melhor é acabar com ele. É grave e complexo, delicado e sutil, um destes em que o autor tem de atender ao filho, e o filho há de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a verdade.” “Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e de fé pura que as animava. Nem ignoras que a minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo está contado oportunamente.

112 Outrossim, sabes que, para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares.” “Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o céu e a terra, por modo idêntico ou análogo. O céu e a terra acabam conciliando-se; eles são quase irmãos gêmeos, tendo o céu sido feito no segundo dia e a terra no terceiro.”

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“Dois homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres a graça de um vestido; mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturais dirão outra coisa que não seja de si mesmos.” “Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe.” “Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. Quis responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um gesto para fugir. Não era medo; noutra ocasião pode ser até que entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver um defunto ao voltar de uma namorada... Há coisas que se não ajustam nem combinam.” “Não culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era o filho. Mas também não me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante

113 era Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo.” 85

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“Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória.”

107 “Amai, rapazes! e, principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!”

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“Parei no degrau. Refleti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro... Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da condução.” “acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao seminário, e podia fazer outra visita a Capitu, um tanto mais demorada. Eis aí o que era. A lembrança do carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal e imediata foi aquela.” “se parei, foi só um instante, ainda mais breve que este em que vo-lo digo. Se me não engano, andei até mais depressa” “O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta.” “Minha mãe agradeceulhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita polidez, ainda que um tanto atado, como se

114 carecesse de palavra pronta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes.” “Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal.”

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“Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.” “Que ele casou, adivinha com quem, – casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chama a esta a “sua cunhadinha”. Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.”

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“Uma fada invisível, desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.” – E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me. – Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado. – Ouviu o quê? – Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz? – É boa! Você mesmo é que está dizendo... Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada” “Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor peque em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte;

115 casemo-nos.” Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

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“Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um exseminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura.” “Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.”

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“Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alma.” “Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor.” “Não é mister pecado efetivo e mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina da rua faz com que metamos Sírio dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distância e no tamanho, mas a

116 astronomia tem dessas confusões.”

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“Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos” “Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha mãe e de Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e noites.”

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“Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver.” “Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem vivo, um só e único, imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou”

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“A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.” “A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça.”

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“Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar a totalidade do silêncio, mas também porque havia

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naquela ação do gato e do rato alguma coisa que prendia com ritual.” “três cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi matá-los” “Ao leitor pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não me quis atribuir perfídia ao gesto, e entregou-seme. A conclusão é que se livrou.” “Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei.” “Viste que eu pedi (cap. 110) a um professor de música de S. Paulo que me escrevesse a toada daquele pregão de doces de Matacavalos. Em si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto mais dois; mas há matérias tais que trazem ensinamentos interessantes, se não agradáveis. Expliquemos o explicado.” “me deu na gana experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque os sonos quando são pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração.” “Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o

118 mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita.” “Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo.”

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“E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto.” “O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa.” “A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar a cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechálo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.” “Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente.” “O que isto me custou imagina. Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas o que não sabes nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro estranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido: – Então, fale. Era o discurso. Queriam o discurso.” “Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não,

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senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o silêncio.” “Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.” “Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca.” “Supõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!”

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“D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimálo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha,

120 não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma coisa, e é ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do céu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas, come piante novelle, Rinovellate di novelle fronde. O resto em Dante.”

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“...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido poucas semanas antes, dois meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este, antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois a narração seguirá até o fim.” “Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente.” “o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos” “Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu.

121 Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida, como um marujo contaria o seu naufrágio.”

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“A vida é tão bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.”

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“Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano; bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e, para em tudo imitálo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos sentimentos do filósofo para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros.” “Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico.”

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“deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.”

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“que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me contou isso acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela.”

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“Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido o gosto à morte. A morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la. Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça.” “Acaso haveria em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto.” “No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato da mulher, parecido com Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças inexplicáveis...” “Procura no cemitério de S. João Batista uma sepultura sem nome,

123 com esta única indicação: Uma santa. É aí.” 143

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“Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?” “Hão de perguntarme por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu.” “Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro.” “Parei e perguntei calado: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?” Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.” “Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece.” “Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até a esquina, espiava, consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço,

124 entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, um guache, e também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão...” “tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.”

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“uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntandose e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.”

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