ADESÃO E \" POLÍTICA \" NO BAIRRO ALTO DA BRASÍLIA EM SOBRAL/CE

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______________________________________Sociologia ADESÃO E “POLÍTICA” NO BAIRRO ALTO DA BRASÍLIA EM SOBRAL/CE Caroline Silva Bezerra1 Nilson Almino de Freitas2 RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar narrativas de moradores no bairro Alto da Brasília em Sobral – CE, quando falam das práticas na cidade no que se refere à adesão a facções políticas, principalmente nos pleitos eleitorais municipais de 2008 e nacionais de 2010. O registro das memórias e a observação participante mostram que os narradores acionam lembranças que sempre procuram fazer um paralelo com um passado construído, tomando como referência o presente. Estamos explorando principalmente as barganhas cotidianas ou troca de favores, o perfil dos “políticos” e as redes de relações construídas entre moradores e não moradores que sustentam adesões e disputas, sempre na perspectiva daquele que vive no bairro considerado pelo poder público como periférico. Palavras-chave: Cultura política. Eleições. Adesão. Memória. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: HISTÓRIA DA PESQUISA Este trabalho é um recorte de uma pesquisa mais ampla de iniciação científica financiada pelo PIBIC/CNPq/ UVA, vinculada ao projeto “O bairro como marco de distinção espacial: astúcias da me1

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Bacharel em Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA e ex-bolsista do programa PIBIC/CNPq/UVA. Pós-doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor da área de Antropologia da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, pesquisador associado do pós-doutorado em Estudos Culturais do Programa Avançado em Cultura Contemporânea ― PACC da UFRJ e coordenador do projeto de iniciação científica da bolsista coautora do artigo.

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Sociologia mória”, coordenado pelo professor Nilson Almino de Freitas. É também resultante de monografia defendida pela coautora deste artigo3. O objetivo de tal projeto mais amplo é trabalhar com percepção espacial e práticas cotidianas dos moradores dos bairros da cidade de Sobral, localizada na zona norte do estado do Ceará, a 225 km da capital Fortaleza. O foco principal são bairros que abrigam a grande parte dos seus habitantes e são classificados como “populares” ou “periféricos” pelo poder público local. São espaços distintos daqueles sobrevalorizados pela política de preservação e urbanização voltada para o aprimoramento estético aplicado na cidade de Sobral a partir de 1999, quando foi reconhecida como patrimônio histórico nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ― IPHAN. A proposta nessa pesquisa é entender a cidade como um complexo que vai além da homogeneidade cultural que demarca essencialismos na consolidação da identidade coletiva que acompanhou a política de preservação. Nesse sentido, a equipe foi dividida, ficando cada bolsista responsável por um bairro. Acontece que a percepção espacial do morador, registrada em entrevistas e vivências cotidianas do pesquisador no bairro designado, mostram também práticas culturais que não se restringem ao tema do projeto de iniciação científica. A bolsista acabou delimitando um aspecto que lhe chamou atenção, relativo às práticas culturais do campo político, pois sua experiência de campo coincidiu com os períodos eleitorais de 2008 e 2010, o que culminou em sua monografia de graduação em Ciências Sociais. Foi essa experiência nos dois períodos eleitorais que levou os pesquisadores a pensarem que seria interessante discutir a percepção sobre a “política” por parte de alguns moradores selecionados pela pesquisa no bairro Alto da Brasília onde a bolsista executou atividades obrigatórias do projeto. Bairro que, segundo IBGE (censo de 2000), 3

Monografia defendida em junho de 2011 com o título "O tempo da ‘política’ no bairro Alto da Brasília em Sobral: percepções e ações". O artigo mescla o texto etnográfico feito pela bolsista de IC e a colaboração teórica e no trabalho de campo feita pelo professor.

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Sociologia abriga 5,3% da população de Sobral, estando dentre os mais populosos, além de apresentar uma paisagem com habitações conjugadas, arruamento irregular e abrigando uma população com baixo nível de renda familiar. Nas conversas com alguns moradores do Alto da Brasília pôde-se perceber que em suas falas normalmente aparecia o termo “tempo da política” em referência ao período do pleito eleitoral. Palmeira (1996), em seu trabalho no sertão de Pernambuco, registrou o mesmo termo associado às eleições. Nesse sentido, o autor define que o “tempo da política” constitui um corte espaço-temporal do período que antecede as eleições, onde as relações sociais acontecem de forma diferente do restante do ano e o espaço da cidade é submetido a uma nova geografia determinada pelas facções políticas. Essas facções são construídas e consolidadas por meio de adesões, que consistem num processo de comprometimento, seja em nível individual ou familiar, com algum candidato ou com alguém ligado a ele. Vale a pensa frisar que o autor usa o conceito de facção no sentido de "quase grupo" como define Mayer (1987). Para definir o que venha a ser o “quase grupo”, o autor americano o contrapõe ao de grupo, no qual existe uma interação esperada e acordada socialmente entre seus membros e não necessariamente precisa de um “chefe” como referência central e integradora. A referência integradora é uma instituição social, com estatuto e regras definidas. O grupo manifesta uma maior segurança com relação à uniformidade e continuidade, e a própria chefia, quando há, nem sempre é vitalícia. Já o quase grupo depende de um indivíduo como foco organizador central. Em geral, neste tipo de interação as ações individuais dos que aderem à facção, aqui entendida como quase grupo, só são valorizadas quando direcionadas a uma pessoa central. O crédito das ações com outros membros do quase grupo é minimizado. Como inspira Mayer (1987), a interação é formada por um conjunto de ações inseridas em conexões sociais pertencentes a campos de sociabilidade distintos, formando redes segmentares, sempre tomando como referência central uma pessoa. Esta rede que configura uma facção fica bem clara no período eleitoEssentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia ral, não só no Alto da Brasília ou em Sobral, mas em outros municípios brasileiros e até em outros países4. Nesse sentido, o artigo pretende romper o enfoque corrente no campo das ciências sociais quando se discute política. Goldman e Sant'Anna (1996) chamam atenção que as abordagens existentes sobre as disputas eleitorais concentram-se basicamente em duas teses correntes, dando muito mais atenção ao papel dos partidos políticos do que à mecânica do voto: a tese da "desestruturação do sistema partidário eleitoral" e outra que fala do realinhamento e consolidação desse sistema. Para esses autores, quem talvez seja o primeiro a superar essa visão que centra atenção na composição dos partidos a partir de uma perspectiva exterior a eles e se dedica à questão das eleições foi Victor Nunes Leal. A ênfase desse autor é no fenômeno coronelista e suas consequências políticas na participação eleitoral por parte dos setores diretamente envolvidos na estrutura socioeconômica criada a partir dele. A concentração de renda e a forma de organização da propriedade territorial, principalmente no contexto rural, impedem a participação do eleitor de forma "adequada", segundo Leal (1997). Há uma relação quase que necessária entre a previsibilidade do comportamento eleitoral, como afirmam Goldman e Sant'Anna (1996), à inserção dos agentes no sistema coronelista, reduzindo o voto a avaliações normativas classificadas como "corretas" ou "incorretas", "racionais" ou "irracionais", falseando ou não, na avaliação dessa perspectiva, os supostos interesses "reais" dos eleitores envolvidos no processo. Essa tendência acaba fazendo ensaios normativos e propositivos de como se deve comportar politicamente. As análises correntes sobre o voto falam de motivações vistas a partir da posição socioeconômica do eleitor, interesses de classe ou falhas motivadas pela condição de subdesenvolvimento econômico. Aqueles que possuem um visão mais negativa tendem a chamar aten4

O autor citado pensa o quase grupo tendo como campo empírico relações sociais na Índia; portanto, em uma sociedade de castas. A Índia tem uma estrutura social completamente diferente da nossa e mesmo assim existe essa semelhança.

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Sociologia ção para uma certa "irracionalidade" do eleitor ou não domínio de informações necessárias para decidir sobre a forma correta de votar. Geralmente essa visão negativa chama a atenção para uma "manipulação da elite". Pode-se também falar da ineficiência do sistema partidário ou de um tradicionalismo político "atrasado", o que limita o alcance da política ao domínio institucional. Sem desmerecer as perspectivas citadas, a proposta deste artigo é um pouco diferente. Pretende-se aqui encontrar uma lógica das tramas tecidas no cotidiano para se fazer uma opção para votar. Quais os mecanismo cotidianos acionados pelos agentes que sustentam sua opção? A proposta é passar de um plano macrossociológico presente nas análises correntes sobre a atividade política para outra microssociológica onde os agentes sociais aparecem como ativos na composição de sua opção com bases em interesses que não são monolíticos e muitas vezes não são exclusivamente políticos. As variáveis levadas em consideração para votar ou aderir a um candidato são múltiplas. Aqui o eleitor é agente que mostra um processo de subjetivação contra uma visão de passividade ou opressão, demonstrando uma pluralidade de motivações para votar. Essas motivações devem ser vistas como inseridas em uma lógica sociocultural mais ampla que sustenta o voto e que é acionada de acordo com a vontade e interesse do eleitor no contexto de situação em que vota. Nesse sentido, diante da complexidade que o tema acaba tomando com essa opção teórico-metodológica, vale a pena pensar que, independentemente da delimitação espacial escolhida, a subjetivação contextual e a complexidade das motivações individuais demandam do pesquisador uma visão mais ampla que possa entender a sua delimitação territorial escolhida. Compreender não como um campo exclusivo de manifestações especiais, mas sim como contexto exemplar e cotidiano de práticas mais amplas, justamente porque é impossível fazer uma reflexão que consiga dar conta de uma visão monolítica do todo. No bairro Alto da Brasília, portanto, marco territorial escolhido para esse artigo, as narrativas registradas, a maior parte delas em Essentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia diário de campo5, sobre as práticas políticas contam os acidentes de lugar, de modo e de tempo que acompanham esses atos gerais das atividades políticas, tornando complexo o momento e espaço das composições narrativas mais gerais na cidade, no estado da federação ou até no país. Além disso, conta outras histórias esquecidas por aquelas análises que se propõem a explicar a realidade política com proposições e classificações normativas definindo o certo e o errado. As narrativas no bairro Alto da Brasília contam, por exemplo, os pormenores, as minúcias, para que determinadas práticas políticas aconteçam em Sobral de uma determinada forma. As narrativas também mostram a reciprocidade existente entre alguns moradores do bairro com os "políticos profissionais" exaltados na campanha eleitoral. Nesse sentido, tonam-se ativos no sentido de que usam do direito à cidade para legitimar a busca de seus interesses, mostrando diferentes formas de inserção na trama das atividades políticas. Não se pode crer que os narradores selecionados nesse bairro podem ser considerados como amostra significativa de uma espécie de “visão da periferia”. Não se percebeu no trabalho de campo um padrão homogêneo na forma de falar ou no uso de conteúdos de sociação6 (SIMMEL, 2006) que servem de parâmetro para a composição do voto. Percebeu-se que mostram histórias significativas que enrique5

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Somente duas entrevistas foram registradas na modalidade audiovisual e transformadas em acervo do Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas ― Labome, arquivo de documentos orais e visuais da Universidade Estadual Vale do Acaraú ― UVA em Sobral. Os demais depoimentos foram registrados em diário de campo da pesquisadora proponente deste artigo. Simmel (2006) chama atenção que, ao se encontrarem em reunião, os seres humanos são orientados por conteúdos resultantes de interesses e necessidades específicas. Esses conteúdos são as matérias das sociações que, por sua vez, são formas de estar com o outro e de ser para o outro, construindo a interação. Os impulsos, interesses, finalidades, tendências, condicionamentos psíquicos e movimentos são mediadores de relações, constituindo os conteúdos das sociações. Porém, são acompanhados pelo sentimento de satisfação por estarem socializados, ou seja, compartilham os valores da formação da sociedade enquanto movimento construtivo.

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Sociologia cem, servem para decifrar ou relativizar versões correntes que falam de uma coletividade unívoca ou de uma prática política homogênea. Entende-se aqui que as práticas cotidianas dos moradores da periferia de Sobral resguardam as circunstâncias das práticas cotidianas dos demais moradores da cidade. Portanto, são práticas circunstanciais, nas quais não aparecem necessariamente os políticos profissionais como exclusivamente ativos e os moradores como passivos. Aliás, nas narrativas produzidas por moradores dos bairros periféricos sobre suas práticas, os moradores passam de supostos coadjuvantes ou figurantes para protagonistas. Preservar a integridade física e moral do interlocutor é uma obrigação ética do pesquisador, e é isso que se exercita aqui. Por esse motivo os nomes dos entrevistados foram omitidos, mesmo que tenham autorizado o uso de seus nomes através de Carta de Cessão de Direitos direcionadas ao Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME (UVA/Sobral)7. Começa-se aqui explorando os critérios de adesão a um candidato. 2 CONSTRUINDO REDES E RECIPROCIDADES NO “TEMPO DA POLÍTICA”: O BAIRRO E OS MORADORES Nas primeiras visitas em campo puderam-se perceber, através de conversas informais com alguns moradores, os valores que orientam a composição de alianças e as práticas políticas dos mesmos. Um senhor disse que o presidente da Associação estava se candidatando, mas não ia ganhar; Seriam mais alguns votos para o partido, pois pobre não vota em pobre, pobre só vota quando está se beneficiando, e como ele não tinha muitos recursos, os outros [candidatos] que davam mais dinheiro é que iam ganhar. (Diário de campo, 12/08/08). 7

Arquivo de documentos orais e visuais da Universidade Estadual Vale do Acaraú UVA, que deu suporte técnico e de equipamentos para a realização das entrevistas.

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Sociologia A impressão que este depoimento passa é uma avaliação em que, em decorrência da posição social que o candidato ocupa, se ele for pobre lhe é impedida, não o voto de seus iguais, mas a vitória, pois não possuem recursos financeiros para consolidação de uma reciprocidade de interesses na qual o "pobre" ganha alguma coisa em troca do voto. Entretanto, a partir desse e de outros relatos percebe-se como ocorre, na prática, a adesão a determinados candidatos. A avaliação do depoente tem consequências benéficas para um determinado partido, apesar de o candidato não ser vitorioso. O partido não é pensado como instituição juridicamente reconhecida pela lei eleitoral, mas sim como rede de aliados individuais que formam facções no sentido já definido aqui. A partir de alianças com pessoas estratégicas, ninguém melhor do que o presidente da associação para reforçar essa rede, pois, apesar de não ganhar votos de seus iguais que lhe favoreçam o ganho de um mandato, ele tem grande influência dentro do bairro, constituise ótima forma de angariar votos para o candidato majoritário ou rede política formada para o pleito eleitoral no qual ele concorre. Esse mesmo depoente também afirma que existem três coisas que desvirtuam o homem: ter, poder e prazer. Para ele, a participação na Associação está em oposição aos seus valores, pois ou se escolhe a política ou a igreja, e ele optou pela igreja. Afirma ainda que é a fé que ajuda a vencer as dificuldades da vida, e não outra coisa. O “ter” e o “poder” parecem estar relacionados a algo que vai de encontro à ação solidária e descomprometida (leia-se “sem interesses”, de acordo com sua interpretação) próprias da prática religiosa que cultua como valor fundamental. O prazer parece ser o maior “pecado” no seu discurso e, misturado aos outros elementos, torna-se mais grave. Essa “tríade do mal” parece ser componente presente no campo político, o que deve ser afastado pela fé. Nesse sentido, parece haver uma distinção e uma posição clara que assume, se diferenciando daqueles que estão no campo político. Essa diferenciação é mediada por valores correntes no cotidiano, claramente subjetivados para mediar as suas ações individuais em oposição àquelas que não se orientam pelos mesmos valores defendidos. 192

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Sociologia Com essa e outras imagens narradas pelos moradores, passouse a prestar mais atenção em pequenos detalhes que construíam toda uma simbologia do lugar praticado politicamente: as fachadas de algumas casas que estavam pintadas com o nome de determinados candidatos, pessoas que passavam vestidas com camisas que estampavam os nomes e números dos candidatos, adesivos, “santinhos”, dentre outros detalhes, pareceram aos pesquisadores importantes pistas para se pensar as práticas políticas dos moradores do bairro. Bastava passar um carro de som fazendo propaganda dos candidatos que, a partir das reações do moradores, era possível detectar imediatamente aspectos das relações sociais, principalmente os referentes à formação de redes de adesão política. No caso pesquisado, a composição da narrativa se dá quando falam da “política”. As histórias contadas estão situadas no tempo de relações específicas que articulam redes de adesão no período eleitoral, principalmente o período que envolve a vitória de dois prefeitos que ocuparam dois mandatos cada um: Cid Gomes (1997/2004) e Leônicas Cristino (2005/2012). A seleção se justifica pelo discurso corrente de que foi o tempo em que Sobral inaugura uma “nova forma de fazer política”, tanto preservando a tradição, com a implantação de políticas de preservação do patrimônio histórico, quanto de uma chamada por eles “modernização” urbana, intervindo esteticamente no espaço. Ao contrário do discurso daqueles que venceram as eleições, que se diziam arautos da "modernidade", nesse período, principalmente meses antes, foram registradas algumas afirmações que apareceram classificando os “políticos” como aqueles que enganam a população, “comprando-a”, dando bens de consumo, fazendo favores ou simplesmente fazendo promessas em troca de votos. Esse discurso não é mérito somente dos especialistas da academia, como já explorado na parte inicial deste artigo. No cotidiano do bairro também se escuta esse tipo de análise. Nesse sentido, o morador é colocado em oposição ao “político”, ou melhor, em condição de “dominado” por alguém que não parece ser um deles no discurso. Na lógica implícita desse tipo de percepção, o político está distante e só aparece nos momentos em que precisa de votos. O lugar deles parece ser longínquo, quase inalcançáEssentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia vel e, por outro lado, não é o lugar do “não político”, que é o morador do bairro. Porém, algumas manifestações dos moradores do bairro Alto da Brasília podem servir para relativizar essa lógica da oposição entre o “político” e o “não político”. Ao relatar práticas presentes nos pleitos que elegeram Leônidas Cristino em 2008 e seus candidatos a vereador, um morador lembra-se das pessoas que são acionadas para intermediar a relação entre candidato e eleitor dentro do bairro: os “cabos eleitorais”8 ; como podemos ver nas entrevistas abaixo: [...] ele aí era só um cabo eleitoral do lado, do outro lado, do lado que já disse que era Prado e Barreto, aí ele ai foi tão sabido que ele tinha uma charanga9 de [...] música, de batucada, quando foi pra mudar de política ele achou que o lado dele ia perder né, [...] ele virou logo, aí veio com a charanga pra lá, [...] em ele ir com a charanga pra lá, já virou, e que ele virando ele já ficou cabo eleitoral também desse lado de cá, até que ele foi doente, ficou aposentado e tal, mas colocou o pessoal da família dele todinho [...], o bicho é sabido, dum lado ele ... ele ia perder, mas ele virou pro outro, e continuou empregando as filhas, parentes. (Entrevista com um morador, em 01/07/09)

Esta citação faz lembrar que a adesão a uma facção política geralmente está relacionada a uma configuração espacial e temporal que remete a uma espécie de divisão da cidade e das pessoas em lados que aparecem como opostos. Em geral, neste tipo de interação em rede proporcionado pela facção as ações individuais dos que aderem a ela Esse termo era bastante utilizado dentro da estrutura coronelista. Cf. Carvalho (1997), Leal (1997) e Queiroz (1975). 9 Charanga é uma pequena banda de música, geralmente composta por instrumentos de sopro. No caso, como o entrevistado fala de batucada, parece ser uma charanga com instrumentos de percussão. 8

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Sociologia só são valorizadas quando direcionadas a uma pessoa central. O crédito das ações com outros membros do quase grupo é minimizado, como sugere Mayer (1987). Esta rede que configura uma facção fica bem clara no período eleitoral. Diante dessa lógica da facção, o nome do candidato ou o nome de família de que ele faz parte, que nem sempre compõe seu sobrenome próprio, parecem ser os referenciais comuns de muitos moradores. Nos pleitos de 1997, 2000 10, 2004 e 2008, era comum se pensar as divisões pelos nomes de família como: os “Ferreira Gomes”, os “Prados” e os “Barretos”. Ou então o nome pessoal do candidato era referência (partido do Cid, do Leônidas, do Marcus Prado, etc.). A declaração pública do voto, o uso de instrumentos diversos para fazer campanha, como a charanga, por exemplo, são pensados como forma de se posicionar a favor de um dos lados. Isso pode comprometer o indivíduo para além do período eleitoral ou não, assim como pode ser ancorado em uma relação de reciprocidade onde ele é remunerado pela sua atividade. Vai depender muito do que se ganha e do que se perde ao aderir, não só no sentido material, mas também com relação a prestígio ou fundamentado em preceitos morais. O fato de mudar de lado todo tempo, por exemplo, pode ou não ser visto como algo negativo, dependendo de quem fala. Além da adesão que pode ocorrer através da manifestação pura e simples do voto ou da prática de militante, Palmeira (1996) lembra aquela mais recorrente nas áreas analisadas por ele. Para o autor, o perfil de eleitor mais procurado pelos candidatos não é o indeciso, mas o de voto múltiplo ou pessoas envolvidas em conflitos capazes de justificar mudanças de lado e que podem influenciar outros dependentes economicamente, ou afetivamente presos por determinado tipo de lealdade (familiar, religiosa, ideológica, dentre outras). Neste caso, que também acontece no bairro Alto da Brasília em Sobral, e parece estar relacionado à situação contada pelo morador, o voto passa a ser uma busca de estabelecer uma rede de compromissos partilhados por pessoas influenciadas tanto por princípios morais (lealdade, compromisso, 10

Sobre as eleições de 1997 e 2000, cf. Freitas, 2001.

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Sociologia reputação), por pressupostos pragmáticos (fortalecimento de sua posição social ou status com relação aos que convivem com ele no seu dia a dia, favorecimento econômico, dentre outros) e em alguns casos, como comumente alguns candidatos classificam, por acreditar em determinadas proposições “ideológicas” (no sentido de concepção de política geralmente baseada em preceitos defendidos por partidos de esquerda), o que não parece ser o caso aqui exposto. Portanto, o comprometimento mais sólido vai depender das negociações postas no cotidiano, quando o candidato pode, através de determinados recursos dadivosos, convencer o sujeito a mudar de lado. O mesmo depoente complementa sua fala, lembrando: […] aí ele se tornou cabo eleitoral daqui, mais ele não faz nada não, vai pra bodega dele, é comerciante [risos] só trabalhou enquanto tava na campanha de eleger ele como vereador, o Hermenegildo né, o Leônidas né... (Entrevista com um morador, em 01/07/09).

É comum acontecer um acirrado conflito, no período que antecede as eleições, entre os “lados” que se opõem. Aqueles que aderem a um dos lados se mostram bastante ativos. Porém, após as eleições o conflito pouco aparece na mídia, assim como no bairro citado. No intervalo de tempo que corresponde a uma gestão, as ações dos “partidos” e pessoas que compõem a coligação montada para administrar a cidade pouco aparecem em destaque. Vale a pena reproduzir a seguinte passagem da conversa com um morador: Aí, só no foi tempo da política mesmo, pra prefeito né, que o Leônidas andou por aqui passando né, fazendo aquela campanha né, andando de pés né, pelas casas, aí ele né, daí pra cá ele não andou né, por causa desse inverno grande quando entrou janeiro né, mais quando eles se elegem eles quase não andam, eles não andam né, eles fazem agora, 196

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Sociologia o que eles fazem, é depois disso ele fez uma inauguração daquela praça ali chamada pirulito... (Entrevista com uma moradora, em 29/01/09).

O que se vê e se ouve como realizadores de projetos do poder público são nomes de secretários municipais ou, como acontece na maioria dos casos, o nome do prefeito. As facções e partidos políticos que apareceram no período eleitoral também desaparecem, fazendo com que aparentemente o grupo político vitorioso seja o único existente. Há uma espécie de “calmaria” no acirramento peculiar ao período eleitoral, pelo menos foi que os moradores entrevistados disseram pensando o período escolhido para este artigo. Dessa forma, aqueles que aderiram a uma facção e fizeram campanha voltam a fazer o que faziam antes e usufruem, quando necessário, das benesses do compromisso firmado, quando estão interessados em cobrar. Por outro lado, no momento da "calmaria", o morador, que geralmente se entende como diferente do político, procura, do seu modo, consolidar posições de prestígio, usando, inclusive, de sua rede de relações pessoais com os políticos ou com representantes do poder eclesiástico, ou ainda com lideranças comunitárias, para demarcar uma posição proeminente no bairro. Sua filiação não é necessariamente com o partido do político profissional, mas com entidades ou instituições presentes no bairro que, por sua vez, são sustentadas por uma rede de relações que aparentemente são distantes do mundo da política, mesmo tendo como objetivo mobilizar a comunidade para a conquista dos seus interesses, independentemente do caráter polissêmico deste termo. Uma das moradoras entrevistadas disse que desde 1972, quando chegou a Sobral vinda do Piauí, participou de atividades de muitas pastorais da Igreja. O catequismo, o círculo bíblico, as Comunidades Eclesiais de Base ― CEBS, palestras promovidas por organizações internas da Igreja, dentre outras atividades, fazem parte de sua rotina. Participou do "plano de salvação", que tinha como orientação saber em cada rua do bairro o que Deus planeja para cada um dos filhos dEle. Para ela, nem todos aderiram a essa proposta, pois preservaram um Essentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia senso de competição que está contra a ideia de igualdade, prejudicando o trabalho comunitário. Foi a partir dessas atividades de catequese e do círculo bíblico que surgiu no grupo envolvido com ela a necessidade de se criar uma associação de moradores, na década de 1980. O bispo e os advogados Clodoveu Arruda11 e João Alberto12 participaram ativamente na consolidação desse projeto. Foi usando do contato direto com eles, em uma interação face a face, que a demanda foi atendida. Ao mencionar esses contatos, ela lembra de sua relação com aqueles que ocupavam o cargo de vereador, o que era o caso de um desses já citados que ajudaram na consolidação da entidade, apesar de seu comentário não se referir a ele, mas sim, a um outro que, inclusive, é de outro partido: Eu nunca me identifico para vereador. Eu voto para vereador, muitas vezes ele nem sabe como. No tempo que votei para o doutor, irmão do (...)13, eu votei para ele, aí ele "eu não sei nem se você votou para mim", "doutor" (...). Eu disse: "doutor (...), pelo amor de Deus, você é um advogado, eu achei que o senhor conhecia mais ou menos as características de alguém, porque eu conheço. Eu olhando para o senhor eu vejo mais ou menos as suas características e eu sei mais ou menos que personalidade você tem. E o senhor vem me dizer que não votei para o senhor!". "Não porque me disseram que você estava do outro lado". Eu disse: "tá bom! Olhe, pois fique você sa11Prefeito

de Sobral a partir do início de 2011, após afastamento do titular para ocupar um cargo no Governo Federal, ex-vice prefeito na gestão de Cid Gomes (2001/2004) e das duas gestões de Leônidas Cristino (2005/2008 e 2009/2012). Já foi Secretário de Cultura, Desporto e Mobilização Social na primeira gestão de Cid Gomes (1997/2000), assim como vereador no período entre 1994 e 1997. 12 Vereador de Sobral eleito em 1988, 1992, 1996, 2004 e 2008, assim como presidente da Câmara em vários períodos. Na época em que a entrevistada o procurou, ele era vereador. 13 Preferimos omitir o nome do vereador e de seu irmão citado para preservar a imagem e integridade moral deles. 198

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Sociologia bendo que você nunca mais vai ganhar eleição aqui na cidade de Sobral! Nem adianta se candidatar" (risos). (Entrevista com moradora em 24/04/2009).

Essa breve descrição das experiências da moradora mostra uma série de questões relativas ao cotidiano do bairro, que devemos levar em consideração no processo de consolidação de posições de prestígio e de adesões. Toda essa mobilização para a consolidação da Associação Comunitária serviu para mostrar que ela fazia uma distinção entre o advogado que ela procurara e a sua condição de vereador na época. Apesar de ocupar o cargo legislativo, o atendimento de sua demanda não repercute em voto necessariamente. O outro candidato que ela apoiava, por sua vez, não pode tratá-la sem confiar na sua escolha. A adesão prescinde de uma reciprocidade que inclui confiar. A desconfiança não é aceitável, principalmente quando o voto é publicizado, como é o caso da moradora. Isso provoca uma ruptura de um contrato tácito, semelhante a uma relação de amizade. A pessoalidade é que é levada em consideração, inclusive nos critérios de escolha da outra parte no contrato. Percebe-se, portanto, que alguns moradores do bairro não ficam necessariamente esperando pelo atendimento de suas demandas por parte do poder público. Muito pelo contrário, são ativos e, através de ações negociadas no cotidiano, tentam se articular com os recursos que possuem, para alcançar seus objetivos e ocupar posições de prestígio na comunidade. Por sua vez, a comunidade não é homogênea, acontecendo dissensos internos. As entidades, inclusive aquelas que parecem não ter nenhum vínculo com o campo político, como a Igreja, servem como ponte para consolidação de segmentos no bairro que se agrupam e disputam com outros aquilo que eles acreditam que deve ser entendido como o "bem comum da comunidade". Para isso, a adesão ao campo político, apesar de alguns se considerarem não políticos, é extremamente útil, envolvendo tanto uma relação pragmática com os candidatos em época de campanha e os políticos no momento da "calmaria", assim como relações de compromisso moral em que a confiança pessoal passa a ser um valor.

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Sociologia 3 CONSTRUINDO REDES: FAVORES, RECONHECIMENTO PESSOAL E PRESTÍGIO As redes de relações que são construídas durante o período eleitoral através das “promessas” e dos “favores” estabelecem laços de reciprocidade através dos quais o eleitor negocia de acordo com uma suposta concessão de benefícios – dinheiro, empregos, tijolos, casamentos, cestas básicas, dentre outros. Diante da concessão feita, ele pode ou não se sentir na obrigação de votar em tal candidato. Os comportamentos individuais são bastante diversificados nesse sentido, mas um exemplo de uma moradora chamou atenção dos pesquisadores no bairro: [...] Fui pelejar pra casar civil, ai os políticos davam casamento, aí falei com um vereador ainda me lembro quem era [...] ele foi o primeiro vereador, meu primeiro voto aqui foi pra ele, ele disse me ajude? Ai eu disse ajudo, mas o senhor me ajuda? Ele disse em que? Eu queria uma ordem de casamento civil e ele disse: na hora! e eu vou até ao seu casamento e eu aí pensei: esse homem é muito legal, mas é porque é tempo de política todos são legal. (Entrevista realizada em 29/01/09).

Tendo como base a teoria da dádiva de Mauss (2003), nesses encontros de sujeitos socialmente situados em posições diferentes há um acordo tácito entre as partes no sentido de criar uma certa estabilidade negociada de interesses que aparecem distintos. O que se recebe e o que se dá têm significados que vão além do registro da necessidade ou da ganância competitiva do “ter mais”. Douglas (2006) também chama atenção para esse aspecto. Do lado da moradora, o que ela coloca como objeto de negociação não é um bem material. É algo que pode dar um status diante da sua condição de mulher que fugiu de sua cidade porque seu namorado não foi aceito pelos pais. Em Sobral, queria regularizar sua situação com o casamento. Isso fornece subsídios para demarcar uma nova posição dentre a variedade de classifica200

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Sociologia ções sociais que conhecem que discrimina socialmente mulheres "juntas". O prestígio a ser alcançado não é só pelo fato de estar em uma posição melhor com relação aos julgamentos morais que podem ser acionados por estar “junta”. Mas também pelo fato de se mostrar mais próxima dentre aqueles que têm prestígio e poder, como é o caso do vereador citado. Porém, não qualquer um. O fato de dizer que o candidato é “legal” nos leva a pensar um modelo de classificação e seleção do “melhor” dentre aqueles que poderiam lhe fazer o mesmo favor. Geralmente a manifestação pessoal de como lidar com os outros e a capacidade de fazer “amigos” vão ser os valores lembrados para classificar o candidato como “boa pessoa” ou “legal”. Aliás, com relação à amizade, ela pode se apresentar também como anterior, assim como pressuposto para que o pleiteante ao cargo público possa ganhar o voto do eleitor e sua adesão na campanha. Alguns sentem orgulho quando um candidato visita a sua casa, conferindo-lhe diante dos vizinhos e amigos uma imagem de poder e referência. Nesse aspecto encontra-se uma ambiguidade própria da dinâmica eleitoral. Ela, por um lado, favorece um sentimento de igualdade entre eleitor e candidato e ao mesmo tempo cria uma hierarquia social, pois, como analisa muito bem Chaves (1996), a posição que o político ocupa, quando amigo de uma determinada pessoa, lhe dá um status especial. A hierarquia também se estabelece entre aquele que “doa” e aquele que “recebe”. Porém, a relação que se estabelece não se limita a ser diádica. Tanto o eleitor forma uma rede de relações de compromissos entre eleitores no sentido de beneficiar com votos e recursos para eleição do candidato, como o próprio candidato forma uma rede de adeptos diversificados com distintas posições sociais, sempre pautados na amizade, no compromisso e no favor. Alguns eleitores entram nessa rede indiretamente sendo “amigo do amigo do candidato”, beneficiando-se de alguma forma e ocupando uma posição na hierarquia social decorrente das relações estabelecidas no período eleitoral. Isso acaba criando também uma espécie de hierarquia entre candidatos. Essentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia 4 CONSTRUÇÃO DE DIFERENÇAS, CONFLITOS E CLASSIFICAÇÕES SOCIAIS NA “POLÍTICA” Não se pode deixar de mencionar que, da mesma forma que alguns familiares, agregados e “amigos” se unem para votar em determinados candidatos, o “tempo da política” também gera conflitos. Não só entre as facções em oposição, mas também dentre aqueles que constituem a rede de adesão. Os membros da facção criam modelos de classificação social dentre aqueles mais “próximos” e os mais “distantes”, o que gera uma tensão e uma disputa entre eles. Em algumas ocasiões acabam se separando e aderindo a candidatos opostos. Há certa flexibilidade de compromisso típico da política de facção, o que favorece cisões internas que dependem dos interesses pessoais em jogo. Segundo Palmeira (1996), o caráter ameaçador da política é reforçado pelo fato de o tempo da política ser um momento de explicitação de conflitos, dos políticos em primeiro lugar, mas não apenas deles. O cotidiano da campanha, ou mesmo após a mesma, quando os “cargos” são “loteados” entre os aliados, também é feito de divisões e conflitos, mesmo quando se pensa em termos de união e “calmaria”. As redes criadas, por serem compostas por negociações que passam também pela pessoalidade, acabam favorecendo comparações entre os aliados e classificações diferentes. O depoimento de um morador comparando os dois prefeitos do período escolhido para esse trabalho diz o seguinte: O Leônidas Cristino só vai eleito por causa do Cid Gomes, ele vem com eles desde secretário de governo, passa prá deputado, passa federal, passa prá estadual, eles convidam ele e ele vai porque se ele se candidatar só ele não ganha. Eu sei que isso daí é ruim dizer mais ele não ganha não, por lá sei que ele não é muito, sei não, porque, sei não, ele tá fazendo muita coisa, mais não tem assim uma estrela. Até o povo lá do Coreaú, que ele é de lá, quiseram botar ele lá prá prefeito, só que por lá não queriam, né? Mesmo que ele não fosse, pudesse 202

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Sociologia ser mais aqui, até que aceitavam ser candidato a reeleição de novo, mais o povo “elegeram” de novo por causa do Cid, porque se não elegesse ele voltava para a outra política, aí a gente elege ele e ganhava do mesmo tanto que o Cid ganhava, a primeira eleição do Cid, a segunda, a primeira do Leônidas, a segunda, tudo com vinte e cinco mil voto de maioria, nas eleição, né? (Entrevista realizada em 29/01/09).

Em outro momento de sua fala o depoente diz que [...] o povo votaram no Cid por causa do Ciro, o Ciro já tinha sido governador, deputado estadual, prefeito de Fortaleza, essas coisas mais, ele era o chefe aí, nesse tempo...”. Por sua vez, o Leônidas Cristino só vai eleito por causa do Cid Gomes.

Essas assertivas mostram uma realidade peculiar aos agenciamentos entre candidatos na política de facção, que cria hierarquias inclusive entre pessoas que fazem parte da mesma facção, só que ocupam cargos em momentos diferentes. A dimensão da classificação apresenta-se de forma a reconhecer que, ao tempo em que os indivíduos citados têm características comuns porque fazem parte do “partido dos Ferreira Gomes”, também têm diferenças. Tanto as semelhanças como as diferenças são construídas culturalmente, de acordo com qualificações e atributos pautados em uma hierarquia de valores que se interligam aos interesses das relações entre os grupos sociais. A narrativa da construção das características do candidato não é definitiva e está sempre em curso. Com base em Santos (1997), podemos entendê-la como resultado sempre transitório de processos de identificação que escondem negociações de sentido, jogos polissêmicos, choques de temporalidade, provocando uma sucessão de configurações hermenêuticas, dando vida, corpo e lugar a uma identidade. É uma ficção necessária para quem a formula e sua eficácia mede-se pelo nível de consciência de sua necessidade fictícia. Essentia, Sobral, vol. 13, n° 2, p. 185-205, dez. 2011/maio 2012

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Sociologia Finalizando, vale a pena afirmar que todos esse jogos de classificação social que parecem representar algo mais geral das relações políticas da cidade também aparecem no bairro. Não necessariamente da mesma forma, como já dito. As narrativas registradas pela pesquisa mostram a reciprocidade existente entre alguns políticos proeminentes exaltados na "política local" e aqueles moradores da periferia que usam o direito à cidade para legitimar a busca de seus interesses, mostrando diferentes formas de inserção na trama da atividade política. REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. BARBU, Zevedei. O conceito de identidade na encruzilhada. Anuário Antropológico / 78. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p.293307. CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados [online]. 1997, vol. 40, n.2. CHAVES, Chistiane Alencar. Eleições em Buritis: a pessoa política. In: PALMEIRA, Moacir; GOLDMAN, Marcio (orgs.). Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1996. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. FREITAS, Nilson Almino de. Sobral – opulência e tradição. Sobral: Edições UVA, 2000. FREITAS, N. A. Práticas, rituais e regras de disputa no tempo da política em Sobral. In: CARVALHO, Rejane Vasconcelos Accioly de. (Org.). A produção da política em campanhas eleitorias: eleições 204

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