Administração Pública e Relações Raciais: uma Análise da Produção Científica entre 2011 e 2016

May 26, 2017 | Autor: Tatiana Silva | Categoria: Relações étnico-Raciais, Relações Raciais
Share Embed


Descrição do Produto

Administração Pública e Relações Raciais: uma Análise da Produção Científica entre 2011 e 2016 Autoria: Tatiana Dias Silva

RESUMO: A inserção do tema das desigualdades raciais na agenda governamental foi recentemente intensificada. A despeito da negação sistemática da questão racial no país, as últimas décadas testemunharam o fortalecimento de coalização capitaneada pelo ativismo histórico do movimento negro, que foi conquistando aliados importantes no meio acadêmico e político, nacional e internacional. Em diferentes esferas, foram desenvolvidas políticas voltadas à redução das desigualdades raciais. No entanto, o tema ainda recebe pouca atenção nos estudos organizacionais e na produção em administração pública. Para compreender esse contexto, este trabalho analisa artigos que tratam da relação entre raça e administração pública por meio de pesquisa exploratória em periódicos nacionais e internacionais na área de administração pública nos últimos cinco anos. Além de localizar os principais aspectos do debate nacional e internacional entre gestão pública e relações raciais, busca-se também identificar suas principais lacunas e indicações para futuras agendas de pesquisa. Palavras-chave: administração pública, raça, ação afirmativa, burocracia representativa. 1 INTRODUÇÃO No Brasil, recentemente o problema das desigualdades raciais tem conquistado maior espaço na agenda governamental e no debate público. A despeito da negação sistemática da questão racial no país, as últimas décadas testemunharam o fortalecimento de coalização capitaneada pelo ativismo histórico do movimento negro, que foi angariando aliados importantes no meio acadêmico e político, nacional e internacional (SILVA, 2008). Nesse contexto, além de eventos foco, como a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001, na África do Sul, seus antecedentes e desdobramentos, a mobilização política de determinados segmentos sociais e a demonstração estatística das desigualdades raciais colaboraram para consolidar e legitimar o discurso voltado para promoção da igualdade racial. Diversos pesquisadores contribuíram para crescente institucionalização, não sem embates e limitações, do recorte racial no quadro das estatísticas nacionais, não apenas na coleta, mas fundamentalmente na análise e provisão de informações para as políticas públicas (SENKEVICS; MACHADO; OLIVEIRA, 2016; IPEA e outros, 2011; PAIXÃO e ROSSETTO, 2012). Em diferentes esferas do poder público, foram desenvolvidas políticas e programas voltados à redução das desigualdades raciais. Contudo, a despeito da difusão de políticas e debates em torno da questão racial no país, o tema tem recebido pouca atenção nos estudos organizacionais e na área de administração, em geral. Diante deste cenário, considera-se oportuno aprofundar a compreensão sobre o tratamento recente conferido a esse assunto na área da administração pública. Para tanto, este estudo realizou investigação exploratória em periódicos científicos especializados. Foram analisados conteúdos sobre gestão ou administração pública em publicações nacionais e internacionais, nos últimos cinco anos. Por meio desta pesquisa, além de localizar os principais aspectos do debate nacional e internacional entre gestão pública e relações raciais, busca-se também identificar suas principais lacunas e indicações para futuras agendas de pesquisa. Para cumprir esse propósito, este texto está divido em quatro partes, além desta introdução. Na próxima seção, será discutido brevemente como o tema racial tem se apresentado no campo acadêmico e nas políticas públicas e ação governamental no Brasil. Em seguida, serão 1

explicitados os procedimentos metodológicos empreendidos na pesquisa e, em seguida, os resultados alcançados. Por fim, serão feitas considerações finais, com indicação dos limites da pesquisa e contribuições para o campo e futuras investigações. 2 QUESTÃO RACIAL NO BRASIL: ANÁLISES E POLÍTICAS PÚBLICAS 2.1 Estudos sobre relações raciais A questão racial sempre foi um tema importante nas ciências sociais e humanas brasileiras, tomando-se como referência o século passado. Especialmente, com o fim da escravidão e a república, o tema da inserção do negro na sociedade foi debatido, em diferentes perspectivas, na sociologia, na história, na literatura. Enquanto para muitas correntes, o “problema” do negro era biológico, calcado na eugenia, para outros segmentos, o problema desta população, cuja presença caracterizaria a sociedade brasileira como primitiva, iria se diluir à medida que crescia a miscigenação ou que a vinda de trabalhadores europeus era estimulada. Para outros intelectuais, o ranço da escravidão haveria de se dissipar com a emergência dos valores modernos, a prevalecer junto aos processos de urbanização e industrialização. Mais recentemente, novo conjunto de reflexões viria a reconhecer a persistência do racismo, podendo identificar seus efeitos em indicadores desiguais para populações racialmente diferenciadas. Assim, por exemplo, na área da sociologia, o debate sobre relações raciais conquanto não raro eivado de pressupostos, critérios e propósitos questionáveis, produziu inúmeros trabalhos e linhas de pesquisa estruturantes da disciplina em perspectiva nacional (OSÓRIO, 2008, GUERREIRO RAMOS, 1957; MOURA, 1972). Na área da educação, estudos que questionam a historiografia oficial sobre a participação do negro na história do país são frequentes. O reconhecimento da educação como espaço de reprodução e produção das desigualdades raciais e sociais marcou esse debate. Se por um lado, a educação formal reproduz as visões estereotipadas e negativas em relação aos negros e a outros grupos sociais, ao adotar, não raro, um pensamento único sobre a história nacional; por outro, ainda produz outras desigualdades ao vetar, ainda que por meios indiretos, a participação de minorias e filhos das classes menos privilegiadas nos espaços de maior qualidade e nas etapas mais elevadas da educação. Dado o reconhecimento desse campo como estratégico, não é coincidência que algumas das medidas afirmativas mais importantes tenham se dado em sua seara, como as cotas nas universidades ou a legislação sobre o ensino da África e da história do negro do país na educação básica (Lei 10.639/2003). Ainda que proveniente de perspectivas diferentes, a questão racial esteve presente na academia em variadas disciplinas. Se tão importante em outros campos de estudo e nas relações sociais nativas, deveria então haver repercussão do tema nas reflexões sobre o Estado brasileiro, políticas públicas e sobre a dinâmica das organizações em geral. No entanto, o que se verifica é um silenciamento do tema nessas áreas. Como destaca Conceição (2009), em levantamento realizado em quatro grandes periódicos nacionais da área da administração entre 1997 e 2008, foram encontrados apenas quatro artigos tratando de questões relativas à raça ou etnia. Esse silenciamento caracterizaria o que a autora denomina de “negação da raça nos estudos organizacionais”. Na mesma direção, Rosa (2014) alerta que, embora o tema do racismo tenha ganhado maior difusão em virtude das políticas de cotas, criação de órgãos e políticas públicas específicas, verifica-se pouca ênfase dos estudos organizacionais brasileiros ao tema racial. Ele atribui esse silêncio tanto ao caráter de “tabu” que ainda cerca o assunto, como ao distanciamento dos estudos organizacionais do acúmulo intelectual sobre relações raciais no país. Embora a sociologia brasileira tenha, nas relações raciais, eixo fundamental, a repercussão desse 2

contexto no âmbito organizacional é quase que historicamente neglicenciada quando não abordada sobre perspectivas exógenas, como no caso da gestão da diversidade nos moldes anglo-saxônicos. Rosa (2014) ainda ressalta a pouca presença de pesquisadores negros no campo dos estudos organizacionais, o que contribuiria para a ausência da temática apontada, uma vez que, para muitos pesquisadores brancos esse tema pode se apresentar como uma nãoquestão, tendo em vista a naturalização da desigualdade racial. 2.2 Relações raciais na agenda governamental Por muito tempo a postura do governo brasileiro em relação às desigualdades raciais e ao racismo foi a omissão e o não reconhecimento do problema. Ilustra o fato de que, apenas em 1951, foi promulgada a primeira legislação de combate ao racismo. Quando não executando medidas com caráter racista explícito (THEODORO, 2008), o estado brasileiro reafirmava a posição de que o país tratava-se de verdadeira democracia racial, o que tornava qualquer iniciativa de análise das desigualdades raciais, segundo esta concepção, totalmente supérflua (SILVA, 2008). Cabe destacar, todavia, que a negação das desigualdades raciais e a apologia ao mito da democracia racial no país não foi privativo dos governos e correntes intelectuais. Esse imaginário coletivo era formado e cultivado por diversas instâncias sociais, perdurando, ainda que mais combalido, até os dias atuais. A prontidão em negar o racismo, relegando seus efeitos apenas às desigualdades sociais, é o recurso mais recorrente para tornar obscuro o seu efeito sobre as desigualdades presentes. Ainda assim, notadamente a partir dos anos 2000, houve significativa mudança nesse contexto. Diante de vários embates, o problema das desigualdades raciais passou a ser reconhecido pelo governo brasileiro e considerado em conferências nacionais e internacionais. Na Conferência de Durban, em 2001, o governo brasileiro se comprometeu com um plano de ação de enfrentamento ao racismo e às desigualdades raciais. Evidentemente, a ascensão desse problema à agenda pública e governamental não se deu de forma gratuita. A luta dos movimentos sociais negros, a denúncia interna e externa das desigualdades raciais, as conquistas legislativas, aliadas ao processo de democratização, permitiu que o tema tivesse maior incidência na Constituição Federal de 1988 e nas políticas que se seguiram. Todavia, foi em 2003 que o tema ganhou outro patamar ao ser criado órgão específico para seu tratamento, em nível federal (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Seppir). Com efeito, essa conquista também foi eivada de dificuldades institucionais que permearam desde a criação tardia da Seppir, sua aglutinação com outros órgãos no governo Dilma, até seu rebaixamento institucional no governo interino Temer (IPEA, 2009). Com efeito, uma série de iniciativas caracterizaram a política de igualdade racial nos últimos anos: sua difusão subnacional, criação de ações afirmativas nas universidades e concursos públicos, medidas para implementação de uma educação antirracista, direitos fundiários das populações quilombolas, reconhecimento das comunidades tradicionais, além de programas de saúde da população negra e acesso diferenciado a recursos públicos (editais) (OSORIO, 2006; JACCOUD, BEGHIN, 2002).Todavia, mesmo com a inserção mais expressiva das relações raciais como objeto de política pública, grande debate sobre racismo e desigualdades suscitado especialmente pela implementação de políticas de cotas nas universidades, além de intenso e histórico debate sobre relações raciais em outras disciplinas das ciências humanas e sociais, verifica-se ainda pouca atenção sobre o tema na academia na área da administração. Assim, tendo em vista a maior difusão e participação de políticas de recorte racial na administração pública vis a vis a pouca participação desse fenômeno no debate sobre gestão pública, este estudo pretende identificar como o tema das relações raciais tem sido tratado na reflexão apresentada em periódicos científicos da área da administração pública e correlatas. 3

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Para analisar como a produção científica em administração pública tem tratado a temática racial, notadamente em relação à população negra, foi realizado levantamento em periódicos nacionais e internacionais. Dado que, no Brasil, o tema foi alçado à agenda governamental no início dos anos 2000, procurou-se analisar os últimos cinco anos e meio de produção acadêmica (2011 a maio de 2016), período em que já deveriam ter sido suscitados estudos mais avançados sobre especificidades e resultados das políticas públicas de igualdade racial. Paralelamente, este foi o mesmo horizonte temporal para escolha dos volumes das publicações internacionais. Os periódicos escolhidos atenderam a, no mínimo, um dos seguintes critérios: publicações classificadas no sistema Qualis-Capes na área de administração em 2014 cujo título continha as expressões “administração pública, gestão pública, governo, gestão governamental” e seus contrapartes em espanhol e inglês; publicações nacionais da referida relação com avaliação A2 (maior da área para periódicos nacionais); b) periódicos reconhecidos como importantes em administração pública; revistas internacionais revisadas por pares, cujo título continha expressão “public administration”, incluídas no Portal de Periódico Capes. As palavras-chave escolhidas foram: raça, racismo, racial e afirmativa – política ou ação - e seus contrapartes em espanhol e inglês. Foram pesquisados títulos, resumos e palavras-chave (quando disponíveis) de artigos. Não foram considerados editoriais, revisão de livros; apenas artigos. Ao final, foi possível obter 56 artigos em 15 periódicos. Em outros 15 periódicos, não foi localizado nenhum artigo sobre o tema no período definidoi. Foram analisados apenas os resumos e palavras-chaves dos artigos selecionados. Procurou-se identificar o foco dos artigos, de acordo com dimensões relacionadas à atuação da gestão pública, com vista a aprofundar a compreensão sobre o escopo do conjunto dos trabalhos. Foram consideradas as dimensões da política pública, organização interna, relação com a sociedade e situação social. Essas dimensões foram delineadas a partir da compreensão do papel da gestão pública e tipos de atividades desenvolvidas. Na dimensão da política pública, estão considerados estudos que tratam dos vários aspectos relativos à formulação, implementação/execução, controle e avaliação de políticas públicas. Nesse contexto, estão incorporados à análise tanto as ações deliberadas do governo, os fatores que influenciaram as diversas etapas da política, bem como os resultados alcançados e eventuais efeitos da ação estatal. Na “organização interna”, são consideradas as políticas constituintes, como pessoal, procedimentos administrativos e contratações. Na “relação com a sociedade”, estão análises sobre percepção de stakeholders sobre o serviço e percepção de agentes públicos sobre a relação com os diferentes públicos, além da participação social na gestão pública e outras estratégias de relação com a sociedade. Por fim, na dimensão da situação social, o entorno da administração pública, qual seja a opinião pública, os debates públicos e acadêmicos, as pesquisas sociodemográficas, seus limites, resultados e parâmetros. 4 ANÁLISE DOS RESULTADOS Foram analisados artigos de 15 periódicos, dos quais oito são nacionais; os demais, concentraram-se em publicações norte-americanas, além de duas canadenses. Dos 56 artigos, 34 estão em periódicos estrangeiros. A maior parte foi publicada nos anos de 2013 e 2015. Cabe destacar o papel dos números especiais na publicação sobre o tema. Em 2015, os Cadernos Ebape promovem dossiê comemorativo aos 100 anos de Guerreiro Ramos (vol. 13, edição especial, 2015), do qual constam duas das três publicações sobre o tema identificados 4

nesta publicação. Na Revista Brasileira de Ciência Politica (RBCP), por exemplo, os artigos identificados se localizam exclusivamente em edições especiais. Dos nove artigos mapeados, quatro foram publicados em 2013, em número dedicado às ações afirmativas (n.11) e, cinco em 2015, na edição dedicada ao “Feminismo e antirracismo” (n. 16). Por meio da análise dos resumos, procurou-se identificar o tema central abordado pelos artigos. Os mais recorrentes foram burocracia representativa (9) e ação afirmativa e cotas (6). Chama a atenção o fato de que o tema da burocracia representativa aparece apenas em periódicos internacionais, enquanto as ações afirmativas são tema principal apenas em publicações nacionais. Os artigos sobre burocracia representativa analisam como o quadro de funcionários da administração pública espelha a diversidade populacional (representação passiva) e como e em que condições eventualmente atuam em favor dos grupos minoritários a que pertençam (representação ativa) (KENNEDY, 2013). A constituição de uma burocracia representativa é vista como uma maneira de suprir o deficit democrático do corpo burocrático, que atua sem delegação direta da população. As relações entre a representatividade do corpo burocrático e a implementação e resultados das políticas públicas, a relação com os cidadãos, além da percepção de seus papéis, são exploradas nos textos selecionados; ou ainda relativizadas diante do peso das rotinas e normas e da percepção interseccional da raça nas instituições públicas (WATKINS-HAYES, 2011). Os artigos sobre ação afirmativa abordam as políticas de cotas ou bônus nas instituições de ensino superior. Alguns centralizam a análise no acesso dos estudantes às instituições de ensino e analisam seus determinantes, incluindo características pessoais, familiares e do meio; impacto das cotas sociais e raciais no desempenho dos candidatos ao vestibular ou ainda comparam o desempenho de diferentes modelos de políticas no ingresso de estudantes negros ou carentes. Estes trabalhos concentram-se em um caso específico, do qual têm acesso aos registros administrativos dos candidatos e aprovados nos processos seletivos. Um dos trabalhos utiliza abordagem mais qualitativa, incluindo entrevistas com servidores e alunos, para analisar a efetividade da inclusão dos estudantes negros na universidade. Por fim, dois trabalhos sobre ação afirmativa abordam outra perspectiva: um deles amplia o debate, reivindicando atenção das políticas afirmativas para outros campos da vida acadêmica, notadamente para as relações de gênero e as desigualdades que envolvem. Outro artigo avalia a análise midiática e estratégias de publicação de matérias relacionadas ao tema da ação afirmativa nas universidades em um jornal de abrangência nacional. Além desses temas, chama a atenção textos dedicados a questões conjunturais no cenário norte-americano, como análises sobre o contexto racial e a sua influência na recuperação pósfuração Katrina, objeto de análise em dois artigos. Do mesmo modo, o pertencimento racial foi variável de destaque para avaliar a diferença na aplicação de sanções disciplinares em escolas públicas e prisões norte-americanas. Em relação ao desenho da pesquisa, 18 trabalhos informaram utilizar método qualitativo de pesquisa, 16 artigos, métodos quantitativos e quatro adotaram abordagem quanti-quali. Os demais não explicitaram essa opção no resumo ou não foi possível inferi-la das informações nele apresentadas. Entre os trabalhos qualitativos, foi indicado o uso de entrevistas semiestruturadas e em profundidade, grounded theory, observação participante e análise de discurso. Os estudos quantitativos, por sua vez, utilizaram técnicas como modelo multinível, análise geoespacial, survey e regressões. A maioria (45) dos trabalhos foi desenvolvida na forma de artigos teórico-empírico; nove como ensaios e duas bibliometrias. Dezenove artigos não se dirigiam fundamentalmente aos 5

aspectos intrínsecos à administração pública, tratando de questões mais gerais, como percepção, influências do contexto, demandas sociais, representações e estereótipos sobre a questão raciais, por exemplo. Em seguida, foi avaliado se o artigo tratava do tema racial, em relação à população negra, de modo central no estudo. Verificou-se que 24 artigos não o faziam, reportando-se ao tema como uma variável entre outras, como gênero ou deficiência. Por fim, procurou-se analisar que dimensões da gestão pública eram consideradas, prioritariamente, pelos trabalhos selecionados. Vinte e dois artigos trataram diretamente de políticas públicas. Destes, 12 se concentraram na fase de avaliação de resultados. Como exemplo, podem-se citar trabalhos que tratam dos resultados da política de cotas para ingresso de estudantes ou reformas na legislação eleitoral e efeitos para participação racial. A formulação de políticas públicas foi a fase menos contemplada, a exemplo: a análise da definição de critérios para distribuição de estudantes entre as escolas, pode ser citada como exemplo. O foco na implementação/execução de políticas públicas foi verificado em quatro artigos. A título de ilustração, um deles analisa como ocorreu o desenvolvimento da política de cotas, especialmente no que se refere à inclusão laboral e acadêmica de estudantes durante sua implementação; outro trata da influência no perfil racial de comunidades em processos de financiamento público de ações de combate à pobreza. Conquanto se considere que os processos de formulação, implementação e avaliação não são delimitados e sequenciais, a diferenciação dessas fases tem propósito didático e metodológico relevante. Neste caso, podese verificar que poucos trabalhos têm foco em processos decisórios, tanto na escolha das alternativas para definição dos parâmetros das políticas, como também sobre as decisões de como esta deve ser implementada. Os limites e avanços nessas fases também não estão sendo compartilhados nesse conjunto relevante de publicações. Sobre a dimensão de organização interna da administração pública, os artigos (7) notadamente tratavam de burocracia representativa, em questões como a percepção dos gestores sobre seu papel na burocracia, além de participação da burocracia no processo decisório, critérios de seleção de pessoal, gestão da diversidade e distribuição de tarefas. Apenas um dos artigos que focalizaram essa dimensão é nacional, ainda que não tenha foco específico na questão racial. Na dimensão Relação com a sociedade, foram identificados trabalhos (3) que tratam do modo como agentes públicos se relacionam com a sociedade, tendo como variável a questão racial, tanto dos indivíduos assistidos, como dos próprios agentes públicos vis a vis a propensão a colaboração dos indivíduos de acordo com o nível de representação identificada. Por fim, classificados na dimensão Situação Social, a maior parte dos trabalhos (24) não abordou diretamente a atuação da administração pública ou seus agentes, trazendo, no entanto, elementos importantes para seu processo decisório como formulação de cenários, análises de contexto na forma de análise de dados sociodemográficos, debates sobre representação e estereótipos sociais, demandas sociais, formas de participação política, produção acadêmica e debates teóricos na área. Além disso, abordaram dados sobre participação racial em determinadas esferas sociais, bem como o quesito raça como parte do perfil de outros grupos analisados. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve como propósito aprofundar a compreensão sobre o tratamento do tema racial na área da administração pública na academia nacional e internacional. Foram identificados 56 artigos em 15 periódicos, dos quais oito são nacionais. Nesta seleção, 34 artigos foram publicados em periódicos estrangeiros. Em alguns casos, a maior participação de artigos esteve vinculada a edições especiais voltadas à temática. Por um lado, esse achado pode 6

sinalizar a dificuldade para aceitação de “novos” temas em periódicos consagrados. Por outro lado, a elaboração de dossiês temáticos e edições especiais em revistas voltadas ao campo da administração também demonstra o reconhecimento, ainda que recente, da importância da temática, com iniciativa para estimular novos estudos. Recentemente, uma das revistas mais conceituadas na área da administração pública, Public Administration Review, lançou uma chamada de trabalhos específica para o tema: Symposium on Policing and Race. Nesta análise, salienta-se a aparente importância do tema da burocracia representativa na área de administração pública especialmente nos EUA. Vários artigos analisam a representatividade burocrática e suas relações, especialmente, com os resultados e implementação de políticas públicas e atividades exercidas por agentes públicos. Embora no Brasil a questão racial também seja estruturante para as desigualdades sociais, poucos trabalhos na área da administração pública tem se dedicado a analisar a composição racial dos agentes públicos e suas implicações. Cabe destacar que esse assunto torna-se ainda mais premente no cenário nacional com a criação da Lei federal n. 12.990/2014, que estabelece reserva de vagas para negros no serviço público - embora legislações dessa natureza estejam presentes no ordenamento jurídico nacional desde o início dos anos 2000 (VOLPE; SILVA, 2016). No contexto nacional, constata-se também ausência de estudos sobre outras políticas públicas relacionadas à questão racial, tanto na forma de outros tipos de ação afirmativa, como de políticas que tratem de combate ao racismo, educação antirracista, quilombos, ou ainda do recorte racial como conteúdo transversal em outras políticas. A concentração dos poucos trabalhos verificados apenas nas políticas de cotas para ingresso na universidade sinaliza também lacunas importantes para avanço na reflexão sobre as recentes políticas nacionais de igualdade racial. Considerando as categorias delineadas, a análise dos artigos revela que os textos que se dedicaram a analisar políticas públicas concentraram-se mais na análise dos resultados e suas conexões com relações raciais, ou mesmo no modo como o contexto racial influencia a execução de políticas públicas. Os trabalhos parecem assim adotar uma postura externa à administração pública, avaliando “de fora” ou a posteriori seus resultados. Ressente-se assim de estudos que avaliem “de dentro”, como são definidas estratégias para operação das políticas que versam sobre raça, como essas políticas são formuladas, como são estabelecidos parâmetros para sua avaliação e monitoramento, além de reflexões sobre avanços e limites dessas estratégias. A despeito da importância das análises empreendidas, ressente-se de uma investigação engajada no aperfeiçoamento dos instrumentos de políticas públicas e na crítica consistente ao “fazer” da gestão pública. A pesquisa realizada se baseou prioritariamente em resumos e palavras-chave. Análise mais aprofundada dos artigos poderá estabelecer conexões mais precisas e incorporar novos elementos. A própria seleção dos periódicos confere viés relevante. Foram selecionados, em geral, periódicos com classificação mais elevada, que tendem a ser mais competitivos e conservadores. Por sua vez, a seleção internacional resultou em um conjunto que privilegiou publicações norte-americanas. A análise de publicações de outras origens, incluindo mais o debate europeu e sul-africano, dadas suas características particulares, poderia enriquecer o espectro dos temas e perspectivas abordadas. Por fim, espera-se contribuir com o conhecimento sobre o tema racial na área de administração pública, estimular novos estudos e novas estratégias de investigação sobre assunto tão importante para compreensão da realidade brasileira. REFERÊNCIAS 7

CONCEIÇÃO, Eliane B. A Negação da Raça nos Estudos Organizacionais. XXXIII Encontro da Anpad. Anais...São Paulo, 2009. IPEA et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ... [et al.]. - 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. [ ONU Mulheres, SPM, SEPPIR]. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas Sociais - acompanhamento e análise, nº 17, 2009 (Vinte Anos da Constituição Federal - volume 3). Brasília: Ipea, 2009. JACCOUD, Luciana de Barros; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília : Ipea, 2002. KENNEDY, Brandy A. Sorting Through: The Role of Representation in Bureaucracy. J Public Adm Res Theory, 2013, 23 (4): 791-816. doi: 10.1093/jopart/mut028. MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala. RJ: Conquista, 1972. OSÓRIO, R. G. Desigualdades raciais e de gênero no serviço público civil: programa de fortalecimento institucional para a igualdade de gênero e raça, erradicação da pobreza e geração de emprego (GRPE). Brasília: [S.l.], 2006. (Cadernos GRPE, n. 2). _______________. Desigualdade racial e mobilidade social no Brasil: um balanço das teorias. Theodoro, Mário (org.). In: As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília : Ipea, 2008. PAIXÃO, Marcelo; ROSSETTO, Irene. Levantamento das fontes de dados estatísticos sobre a variável cor ou raça no Brasil contemporâneo: terminologias classificatórias, qualidade das bases de dados e implicações para as políticas públicas” [online]. Anais... 36º Encontro Anual da ANPOCS. 21 a 25 de outubro de 2012. Águas de Lindóia(SP): ANPOCS, 2012. RAMOS, Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. RJ: Editora Andes, 1957. ROSA, A. Relações Raciais e Estudos Organizacionais no Brasil. RAC, v. 18, n. 3, 2014. SENKEVICS, Adriano S.; MACHADO, Taís de S.; OLIVEIRA; Adolfo S. A Cor ou Raça nas Estatísticas Educacionais - uma análise dos instrumentos de pesquisa do Inep. Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2016. SILVA, Silvio José A. Combate ao racismo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008. THEODORO, M. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: Theodoro(org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília : Ipea, 2008. VOLPE, Ana Paula S.; SILVA, Tatiana D. Reserva de Vagas para negros na administração pública. Relatório de Pesquisa. Brasília: Ipea, 2016. WATKINS-HAYES, Celeste. Race, Respect, and Red Tape: Inside the Black Box of Racially Representative Bureaucracies. J Public Adm Res Theory - JPART 21, p.233–251, 2011. i Periódicos com artigos selecionados: American review of public administration, Cadernos EBAPE.BR, Cadernos Gestão Pública e Cidadania, Canadian public administration, Government Information Quarterly, Journal of public administration research and theory, Organizações & Sociedade, Planejamento e Politicas Públicas, Public administration quarterly, Public Administration Research, Public Administration Review, Revista de Administração Contemporânea, Revista Brasileira de Ciência Política, Revista de Administração Pública, Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental. b) Periódicos consultados, sem resultados para a busca: Administração Pública e Gestão Social, Temas de Administração Pública, Public Administration and Development, Revista do Serviço Público, Revista del CLAD Reforma y Democracia, Revista de Gestión Pública, Contabilidade, Gestão e Governança, Brazilian Administration Review, RAUSP-e, Revista Contabilidade & Finanças, Revista de Administração (FEA-USP), RP 3 - Revista de Pesquisas em Políticas Públicas, Science & Public Policy, Australian journal of public administration, Public policy and administration. c) Periódico sem sistema de busca: Boletim Governet de Administração Pública e Gestão Municipal.

8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.