Adoção e seleção

June 1, 2017 | Autor: Jose Coimbra | Categoria: Adoption, Psicanálise
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Adoção e seleção1

Eis aí dois significantes que não nos deixam indiferentes. Quem pode dizer o que é preciso para ser pai, para ser mãe? A qual gozo secreto satisfaz o ‘selecionador’ senão aquele do fantasma? Escolher a adoção é ser capaz de responder por sua escolha. Com efeito, é optar por um modo de filiação particular - ainda que seja muito antigo. Como tudo que é diferente, estranho, pode, em alguns, suscitar a curiosidade e com ela os fantasmas, por vezes, as paixões: “As crianças adotadas têm tantos problemas!...Muitas delas são psicóticas...Desde a adolescência querem encontrar seus verdadeiros pais...É comprar crianças de pessoas na miséria: é colonialismo”. Existem aqueles que se lhe opõem, existem os que lhe são favoráveis: “Adotar uma criança é oferecer a ela uma família, é fazer um infeliz a menos”. Adotar uma criança é, portanto, expor-se permanentemente a essa curiosidade, essas questões, esses fantasmas: é dar a ver um modo diferente de gozar do parentesco. O parentesco, sendo o fundamento da cultura, implica a todos nós. Esse outro modo de filiação reenvia à questão das origens com a qual a criança importuna seus pais com todos seus “por quê?” O romance familiar é o sonho secreto da criança de ter pais mais dignos, um pai verdadeiramente à altura. Freud o sublinha: a criança “se separa do pai tal qual ela a conhece agora para se voltar para aquele no qual ela acreditou nos primeiros anos de 1 Brunin, Jean-Pierre. “Adoption et Sélection”. L´enfant et la famille, Paris, n.5, sep. 1992, pp. 63-5. Tradução: José César Coimbra [Atualizada em julho/2016].



sua infância, e esse fantasma não é senão a expressão do lamento de ver desaparecer

esse

tempo

feliz

2

”.

A

criança

adotada

pode,

assim,

desencadear polêmicas. Por sua vez vítima e privilegiada, nascida o mais frequentemente em um país pobre, abandonada, ela representa os excluídos do progresso sobre os quais se apiedam as boas almas. Escolher a adoção é se mostrar capaz de um pouco de recuo diante dos preconceitos, poder responder a eles sem se sentir constantemente agredido: logo, saber viver, saber fazer com esse significante, domesticá-lo de algum modo, a fim de que para a criança que vai herdá-lo, essa não seja uma carga demasiadamente pesada, um ponto de fixação obrigatório. Tão logo a criança dê um passo em falso, seu estatuto de adotada arriscaria facilmente ser tomado como causa. O anúncio aos familiares sobre a decisão de adotar, o momento do Édipo do adotado, a crise da adolescência, a escolha do parceiro sexual, o encontro da família do cônjuge...serão ocasiões de confrontação entre a criança do sonho e aquela que está ali, bem real. Se eu não retenho senão o saber-fazer dos candidatos com este significante ‘adoção’, é porque parece-me impossível, sobretudo em referência à psicanálise, selecionar pais e mães. É o caso de cada sujeito particular dizer só-depois se ele foi uma mãe, um pai e qual. É também porque os sujeitos são precisamente imprevisíveis. Para a psicanálise, a questão do bem não se coloca, que cada um encontre sua fórmula. Da felicidade, ainda menos. De todo modo o destino do sujeito, qualquer que seja, se ordenará nesta escolha: 2 S. Freud, “O romance familiar dos neuróticos”, Neurose, psicose, perversão.

psicose, neurose ou perversão, conforme a ‘função do pai’ terá ou não operado. Essa escolha sendo, por uma parte, determinada pelos significantes familiares, de outra parte, pela decisão insondável desse sujeito que a psicanálise faz a hipótese para escapar ao puro determinismo sociobiológico. Certamente, já que somos todos adotados de um desejo que nos fez viver e reconhecer-nos filhos de humanos, falar da adoção, de seus fantasmas, é dizer sua história a um terceiro que ouve, obriga a se lembrar aí onde havia brancos, mentiras, que a criança a vir pode interrogar [...]. Mas, quanto a isso, nenhuma ilusão para o ‘selecionador’: “em uma hora de entrevista obrigatória, que posso eu saber?...” A experiência mostra que não existe uma ‘patologia’ significativa do adotado. Sua educação não reclama, pois, nenhuma competência especial. Certamente, o abandono é um real como tal traumatizante, sobretudo se ele é tardio. Ele pode tornar o sujeito mais vulnerável a toda perda ou ausência súbita. Do mesmo modo, a esterilidade dos pais é um real, uma ferida que as questões da criança e dos mais próximos arrisca reviver. Como os candidatos podem falar, responder a isso? Seria preciso que eles estivessem mais contentes

do

que

os

outros

com

estes

significantes:

sexualidade,

fecundidade?...No momento do Édipo, ou na sua retomada na adolescência, como responder à criança que interroga sobre o sexo, o casamento, suas origens? Não são as explicações biológicas, nem os elementos de seu prontuário que podem responder a isso que ela visa, a saber: o desejo que a fez nascer de seus genitores, o desejo de seus pais adotivos que a fez seu

filho. Como então lhe falar desses casais? Como nomeá-las? Já que geralmente nada sabemos ou quase, o mais sábio não seria deixar a criança fabricar suas respostas? Isso será com efeito a particularidade de seu romance familiar: ter tido “dois papais, duas mamães”. Abandonado de um lado, desejado excessivamente do outro, ela precisará se arranjar. Inútil enganar-se em uma pesquisa real para descobrir o semblante dos genitores: nem monstros, nem deuses, humanos certamente. Hoje ela está aqui, sua vida presente, é isso. Seu futuro, ela decidirá. Os candidatos seriam eles capazes de considerar essa criança tão jovem seja, como um pequeno sujeito que tem, como todos, sua palavra a dizer? Ou não podem apreendê-la senão como o objeto que lhes falta para ornamentar suas dificuldades, tal como se estivessem brincando de papai e mamãe quando eram crianças? Na medida em que eles não se tomem como a ‘superfamília ideal a tornar felizes os deserdados do terceiro mundo’, que não tenham mais uma imperiosa necessidade de crer em Papai Noel, isso se transmitirá à criança, que construirá sua história com os traços de que dispõe.



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