\"Adolescente bem seguro\": a participação do jovem Machado de Assis em um periódico luso-brasileiro

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Crítica Literária em Formação

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Osmar Pereira Oliva (Org.)

Crítica Literária em Formação

Montes Claros 2014

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Osmar Pereira Oliva.....................................................

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“ADOLESCENTE BEM SEGURO”: A PARTICIPAÇÃO DO JOVEM MACHADO DE ASSIS EM UM PERIÓDICO LUSO-BRASILEIRO Alex Sander Luiz Campos............................................ 9 HISTÓRIA E LITERATURA EM INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES Cristiane R. Antunes da Silva....................................... 25 AS PERSONAGENS FEMININAS NAS NARRATIVAS DE CYRO DOS ANJOS Geuvana Vieira de Oliveira............................................ 37 NÓTULAS SOBRE A IRONIA E A METAFICÇÃO EM DOIS CONTOS MACHADIANOS Jane Adriane Gandra...................................................... 55 DIÁLOGOS COM A TRADIÇÃO LITERÁRIA: A MEDUSA CONTEMPORÂNEA DE GUIOMAR DE GRAMMONT Leonardo Rodrigues Vieira............................................. 69 O ROMANCE ACENOS E AFAGOS E SUAS ALUSÕES AO ESTEREÓTIPO MUSICAL Maria Amélia Castilho Feitosa Callado....................... 87

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HISTÓRIA DA LITERATURA, DISCURSO PLURAL: PERSPECTIVAS ESTÉTICAS E POLÍTICAS EM O FILHO DO PESCADOR, DE TEIXEIRA E SOUSA, UM ROMANCE-FOLHETIM Noêmia Coutinho Pereira Lopes................................... 109 A PENA QUE CONSTRÓI: O TEATRO LORQUIANO NA ESPANHA TRADICIONALISTA DO SÉCULO XX Thiago Lamonier Souza Gomes.................................. 133

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“ADOLESCENTE BEM SEGURO”: A PARTICIPAÇÃO DO JOVEM MACHADO DE ASSIS EM UM PERIÓDICO LUSO-BRASILEIRO* Alex Sander Luiz Campos**

Resumo: O ensaio destaca algumas das referências portuguesas na vida e na obra de Machado de Assis, centrando-se na colaboração desse autor para o periódico O Futuro (1862-1863), jornal programaticamente lusobrasileiro, em uma época de diferenciação nacionalista. Palavras-chave: Machado de Assis, O Futuro: periódico literário, presença portuguesa. Abstract: This essay highlights some of the Portuguese references in the life and works of Machado de Assis, focusing on his collaboration to the journal O Futuro (1862-1863), a programmatically Luso-Brazilian newspaper, in a time of nationalist differentiation. Key-words: Machado de Assis, O Futuro: periódico literário [The Future: literary newspaper], Portuguese presence. Com algumas poucas modificações, este texto foi apresentado no Congresso Internacional Camilo Castelo Branco e Machado de Assis: diálogos lusófonos, realizado entre os dias 19 e 21 de agosto de 2014 no Instituto de Matemática e Estatística da USP e na Casa de Portugal em São Paulo – SP. 2 Professor da área de língua portuguesa do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – IFNMG, campus Almenara. Mestre e doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 1

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A presença de portugueses na vida pessoal de Machado de Assis é um dado incontestável. Sobre o grande escritor brasileiro, Lauro Moreira, ex-embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, já disse que foi “genética, cultural e afetivamente muito próximo e identificado com Portugal”, citando o fato de que a mãe do escritor, Maria Leopoldina Machado da Câmara, e a esposa com quem viveu ao longo de 35 anos, Carolina Augusta Xavier de Novais, eram portuguesas. Quanto a algumas das principais referências literárias de Machado, o conhecimento e a admiração que demonstrou por Camões, Garrett, Herculano e Eça de Queirós são notáveis.1 No que diz respeito à vida cultural e intelectual, é preciso mencionar a convivência intensa que teve com imigrantes portugueses durante sua juventude e depois. Na década de 1860, por exemplo, dividiu sobrado com o amigo Francisco Ramos Paz, bibliófilo português, dono de um rico acervo de obras literárias portuguesas e brasileiras.2 Ainda na década de 1860, Machado de Assis participou ativamente, como colaborador, de uma publicação luso-brasileira: O Futuro: periódico literário, que circulou no Rio de Janeiro de setembro de 1862 a julho de 1863. Essa revista foi fundada e dirigida pelo poeta português Faustino Xavier de Novais, radicado no Brasil desde 1858. Era amigo de Machado de Assis e irmão de Carolina Xavier, que se casaria com o autor de Crisá-

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MOREIRA. In: CHAVES; MOREIRA; CARDOSO, 2009. p. 16. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR [1981], 2008, v. 1, p. 49; MACHADO, 2008. p. 259.

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lidas em 1869. Participando de um grupo formado em sua maioria por intelectuais portugueses radicados no Brasil, pôde o jovem Machado eleger parte de suas referências e ir formando sua sensibilidade estética. Isso, em um período da nossa história literária marcado pelo antilusitanismo, pela rejeição aos valores culturais portugueses – período em que, no dizer de Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira, “agíamos, em relação a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a dívida aos pais e chegam a mudar de sobrenome”.3 Houve, aliás, vários outros momentos de interesse no que se refere às relações de Machado com Portugal: a participação do escritor na celebração do tricentenário de Camões – para a qual escreveu a peça Tu, só tu, puro amor, representada em 1880 –, sua presença na comemoração do centenário de nascimento de Bocage e na fundação da Arcádia Fluminense (1865) e sua eleição como membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa (1904), apenas para citar alguns. Sobre O Futuro, ainda são escassas as pesquisas. Felizmente hoje, pelo menos, o acesso ao periódico e aos textos que o compõem é mais fácil. Alexandre Cabral, que na década de 1980 organizou um dicionário dedicado a Camilo Castelo Branco, relatava desconhecer a existência de coleções d’O Futuro em Portugal.4 3 4

CANDIDO [1959], 2012, p. 30. Cf. CABRAL, 1988, p. 287. Depois da redação deste ensaio, tive conhecimento, graças ao Prof. Hélio de Seixas Guimarães (USP), da 2. ed. d’O Futuro, editada pela Livraria de A. A. da Cruz Coutinho no ano de 1867. Coleção completa dessa edição encontra-se na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal.

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Depois do fundador e principal redator do periódico, Faustino Xavier de Novais, foi Machado seu principal colaborador. Para esse periódico, escreveu dezesseis crônicas, assinando-as com o próprio nome – fato incomum, dado que costumava assinar suas crônicas publicadas em outros periódicos com pseudônimos ou, no máximo, iniciais, como M.-as. n’O Espelho (18591860) e Gil no Diário do Rio de Janeiro (1861-1862). Na poesia, seis de suas composições foram originalmente publicadas pel’O Futuro: “Aspiração (A F. X. de Novais)”, “A estrela do poeta”, “Fascinação”, “O acordar da Polônia”, “As ventoinhas” e “Sinhá”. À exceção de “Fascinação”, todos os poemas foram aproveitados no primeiro livro de poesia de Machado, Crisálidas (1864). Três desses poemas permaneceram nas Poesias completas (1901): “A estrela do poeta”, com o título alterado para “Stella”; “O acordar da Polônia”, com o título abreviado “Polônia”, e “Sinhá”, o que mostra tratar-se de uma produção que Machado não renegou, mesmo na maturidade. No conto, sua contribuição compõe-se de um ou dois textos. Um deles, de autoria definida, pois traz a assinatura do escritor e foi republicado quatro anos depois, com alterações, é classificado pelo autor como “conto fantástico”: trata-se de “O país das quimeras”. Outro conto, inacabado e de autoria duvidosa, vem assinado pelo pseudônimo “S.”: intitula-se “Um parêntesis na vida: fragmentos de um manuscrito”. O Futuro possuía um caráter “programático”, devidamente expresso em “Ao público brasileiro e português”, carta-programa assinada por Carlos Reinaldo Montoro no número inaugural da revista, de 15 de setembro de 1862.

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Natural do Porto, mas desde a adolescência vivendo no Brasil, Reinaldo Montoro foi atuante no meio literário e jornalístico do século XIX. Esteve envolvido com associações lusitanas de incentivo à literatura, como a Arcádia Fluminense e o Grêmio Literário Português – agremiações que, também, seriam frequentadas pelo jovem Machado. Segundo Reinaldo Montoro, o objetivo d’O Futuro seria “tentar a realisação de um pensamento ha muito concebido por todos os que prezam as litteraturas dos dous paizes em que se falla a lingua portugueza. Estabelecer um campo commum, em que […] viessem discursar os escriptores de ambas as nações”.5 Com isso, O Futuro poderia levar, à comunidade lusófona, o conhecimento do “movimento litterario” de Portugal e Brasil, o “progresso litterario” desses países, as “imaginações ricas e pensadores elevados” que escreviam no mesmo idioma.6 Não se tratava de objetivo facilmente alcançável. Embora o Rio de Janeiro contasse com um bom número de imigrantes portugueses, que escolheram o Brasil como país de atração, a fim de aqui “fazer fortuna”7, as relações luso-brasileiras nem sempre se davam de forma harmônica. Em uma época de diferenciação nacionalista, havia a busca, por parte de muitos escritores brasileiros, por modelos literários distintos do português. Por um lado, o distanciamento desse modelo significaria, supostamente, a afirmação da desejada independência da literatura brasileira em relação à literatura portuguesa – e mesmo da “língua brasileira” em relação à tradição 5 6 7

O FUTURO…, n. 1, p. 25. O FUTURO…, n. 1, p. 25. MAGALHÃES JÚNIOR, 1958, p. 94.

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linguística lusitana –, independência que deveria seguirse à autonomia política. Por outro lado, haveria também o sentimento de que as letras francesas, inglesas e alemãs seriam superiores: segundo conta Reinaldo Montoro, para certos “maldizentes das proprias nações”, “tudo o que o Brazil e Portugal produzem é imperfeito, não tem o cunho da graça franceza, da profundidade allemã, do positivismo inglez”. Como consequência dessa propagada superioridade, a língua portuguesa seria constantemente menosprezada, tida por “barbara, pobre, desenfeitada, […] pedinte esfarrapada”.8 Machado de Assis esteve na contramão dessa animosidade contra a cultura e a língua portuguesas. Aline Cataneli, que estudou o Machado cronista d’O Futuro em sua dissertação de mestrado, defendida em 2012 na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho”, pôde notar que, em face do convívio nem sempre harmonioso entre brasileiros e portugueses que imigraram para o Brasil no século XIX, Machado de Assis esteve absolutamente na contramão da xenofobia.9 Vários fatos o provam, cito aqui apenas alguns. Machado foi incentivador do espírito associativo luso-brasileiro: participou, por exemplo, do Grêmio Literário Português e do Retiro Literário Português, sociedades que também o incentivaram no que toca à criação literária.10 No plano da língua em que vazava suas composições, não raras vezes foi acusado de “falta de brasilidade” ou “retrocesso ao classicismo lusitano”, para utilizar expressões de Ivo O FUTURO…, n. 1, p. 26. CATANELI, 2012, p. 32. 10 Cf. MIRANDA, 2010, p. 34. 8 9

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Barbieri11, numa atitude que teria contribuído para a imposição de um padrão de língua literária “conservador, castiço e lusitanizante” em nossa literatura – nas palavras de Paulo Franchetti.12 Pouco antes do aparecimento d’O Futuro, Machado fez questão de divulgar o periódico e justificar sua necessidade na crônica de 24 de março de 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro: Muitas razões pedem esta intimidade entre dous povos, que, esquecendo passadas e fatais divergências, só podem, só devem ter um desejo, o de engrandecer a língua que falam, e que muitos engenhos têm honrado. […] Não é por certo no campo da inteligência que se devem consagrar essas divisões que são repelidas hoje. Os destinos da língua portuguesa figuram-se-me brilhantes; não individuemos os esforços; o princípio social de que a união faz a força é também uma verdade nos domínios intelectuais e deve ser a divisa das duas literaturas.13

Curiosamente, a crítica literária, quando trata das referências literárias de Machado de Assis, dos “paradigmas” ou “influências” mais importantes no estudo de sua obra, dá um espaço maior, geralmente, às literaturas de língua inglesa e francesa. São notadamente representativos, nesse aspecto, os trabalhos de Eugênio Gomes – sobre as “influências inglesas”14 – e Gilberto Pinheiro Passos – sobre a “presença

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BARBIERI. In: MACHADO, 2003, orelha. FRANCHETTI, 2007, p. 85 ASSIS, 2008, p. 190-191. GOMES [1939], 1976.

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francesa”15. Ao falar das “grandes e decisivas influências” que Machado de Assis teria recebido, no que concerne tanto à sua visão de mundo quanto à forma de expressão que elaborou, Lúcia Miguel Pereira cita cinco escritores ingleses (William Shakespeare, Jonathan Swift, Laurence Sterne, William Makepeace Thackeray, Charles Dickens), quatro franceses (Michel de Montaigne, Blaise Pascal, Xavier de Maistre, Victor Hugo) e apenas um português, Almeida Garrett.16 Possivelmente, um bom argumento para essa preferência seria o grande número de obras em línguas estrangeiras encontrado no que hoje se conhece como o acervo particular de Machado. Do que sobrou de sua biblioteca, sabe-se, por exemplo, que 56,82% das obras são de livros franceses ou traduções nesse idioma, enquanto menos de um quarto do total está em língua portuguesa.17 Há de se levar em conta, entretanto, que a biblioteca de Machado que chegou aos nossos dias está incompleta, tendo sido amputada algumas vezes; além disso, o escritor foi leitor das obras do Gabinete Português de Leitura, sendo desnecessário que possuísse todos os livros que lia.18 No Gabinete e nas várias sociedades literárias de que participou, Machado de Assis entrou em contato com muitos autores portugueses – por meio de livros, periódicos ou do contato pessoal. Foi amigo ou colega de muitos deles, integrantes da equipe de colaborares 15 16 17 18

PASSOS, 1996. MIGUEL-PEREIRA [1950]. In: ASSIS, 2008, v. 1, p. 58. VIANNA, In: JOBIM, 2001, p. 125. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, 1958, p. 114 e 120.

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d’O Futuro: além dos já citados Faustino Xavier de Novais e Reinaldo Montoro, intelectuais como Augusto Emílio Zaluar, Artur Napoleão (pianista e compositor), Ernesto Cibrão, Antonio Feliciano de Castilho, entre outros. Teve bom conhecimento de muitos autores que, embora não tenham vivido no Rio de Janeiro, frequentemente enviavam colaboração para O Futuro, como Camilo Castelo Branco, Ana Augusta Plácido e Miguel Novais, irmão de Faustino. Muitos portugueses participaram da trajetória de Machado de Assis e mesmo referências de outras literaturas podem ter chegado ao escritor brasileiro por intermédio de portugueses. Antônio Feliciano de Castilho, por exemplo, foi tradutor de clássicos, como Virgílio e Ovídio.19 Já Augusto Emílio Zaluar, nome fundamental no que diz respeito à ficção especulativa produzida no Brasil, escreveria, na década de 1870, O Doutor Benignus, um dos primeiros romances de ficção científica da América Latina – feito inimaginável, não fosse ter sido Zaluar grande leitor de Jules Verne.20 Muitas das relações de Machado com outras literaturas foram mediadas pela ação de intelectuais portugueses. A presença de Zaluar entre os colaboradores d’O Futuro pode, assim, ajudar a ler uma contribuição de Machado como “O país das quimeras”. Longe de questionar o legado português, ao supostamente apontar para um débito exclusivo com as literaturas de rica produção na área do fantástico e da fantasia, o conto mostra exatamente

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MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, v. 1, p. 230. CAUSO, 2003, p. 128.

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como o convívio com portugueses foi fecundo para o escritor, abrindo-lhe as mais diferentes perspectivas. Embora a literatura portuguesa não seja famosa pela “ficção especulativa” – expressão literária compreendida, no dizer de Roberto Causo, como busca de um entendimento “aberto e multifacetado da realidade”21, abarcando gêneros como a ficção científica, o fantástico, o horror e a fantasia – foi Zaluar “intermediador” ou “divulgador” de uma nova possibilidade de criação literária. Conhecedor da tradição da fantasia e da literatura de viagens, teve importante papel na formação do autor d’”O país das quimeras”. “Inspirações diretas” ou intermediadores, não tem sido comum a presença de portugueses na definição do quadro de referências de Machado – salvo as exceções talvez mais evidentes, como Camões e Garrett. Entretanto, alguns trabalhos têm dado maior atenção ao legado português, como os de Magalhães Júnior – que estudou a convivência de Machado com Faustino Xavier em capítulo de seu Ao redor de Machado de Assis – e o fundamental A juventude de Machado de Assis, de Jean-Michel Massa. No capítulo que dedica a O Futuro, Massa esforça-se por realizar uma interpretação que dê conta da integridade da colaboração machadiana naquela revista. Assim, inicia sua leitura pelas crônicas, apontando que, na primeira delas, publicada a 15 de setembro de 1862, já seria possível visualizar uma “tomada de posição” por parte de Machado. Já contando com alguma experiência na crônica, o escritor pede a

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CAUSO, 2003, p. 50.

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sua pena que “coment[e] os fatos com reserva, louv[ando] ou censur[ando] […] sem cair na exageração dos extremos”,22 numa atitude que seria conhecida, posteriormente, como o “tédio à controvérsia” 23 . Com essa “autocrítica pelos excessos”, teria Machado escrito suas crônicas com o intuito de oferecer apreciações comedidas sobre o que chegava a sua mesa, como novos livros brasileiros e portugueses, sempre temeroso de ir além do “comentário” e negando a função de crítico.24 O “conto fantástico” que publica n’O Futuro nasceria desse mesmo sentimento de temor diante do “mundo real”: “O país das quimeras” possibilita ao jovem escritor penetrar no “reino maravilhoso da Fantasia”, defendendo, para o homem, o “direito ao sonho”.25 Em relação às poesias, Massa nota que elas exprimem, em grande medida, um sentimento de isolamento e o vazio da alma. Ao responder a “Aspiração”, poema que Machado lhe dedicara, o poeta satírico Faustino não teria conseguido contemplar isso e cai em uma discussão técnica sobre o uso do verso alexandrino.26 Como cronista dessa revista, embora tenha sido Machado, quantitativamente, seu principal colaborador, não foi o único, tendo dividido a coluna com Faustino Xavier de Novais, Antonio Moutinho de Souza, Sotero de Castro e Eduardo Lima. Certamente, muito da concepção de crônica do jovem Machado advém da leitura desses autores. Além

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ASSIS, 2008, v. 4, p. 75. MASSA [1971], 2009, p. 304. MASSA, 2009, p. 304-305. MASSA, 2009, p. 305. MASSA, 2009, p. 307.

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disso, suas crônicas dialogam reiteradamente com a vida cultural do grupo português em que se inseriu, comentando lançamentos editoriais, peças de teatro, exposições artísticas, apresentações musicais – o que faz com que, às vezes, a crônica aproxime-se da crítica literária, teatral ou de belas artes. Sem o estudo da literatura como vida social, torna-se difícil a leitura e a compreensão de muitas das crônicas publicadas por Machado na revista de Faustino Xavier. Sobre a contribuição no campo da poesia, é preciso mencionar o grande número de poetas portugueses que também escreviam para O Futuro, a começar por Faustino, seu principal redator. Com esse poeta e com Luís Delfino, Machado estabelece uma “troca de versos” que carece de investigação. Conforme lembra Antonio Candido, quando estuda a noção de “literatura empenhada”, a atividade literária, após a Independência, passou a ser vista como “parte do esforço de construção do país livre”, fazendo com que muitos escritores se sentissem “tolhidos no voo” diante do peso de um “sentimento de missão”.27 Em razão desse exigente “empenho”, foi natural que muitos escritores negassem a “dívida” com a “literatura mãe” (portuguesa), chegando, como fazem os “adolescentes mal seguros”, a “mudar de sobrenome”.28 Pensar a participação de Machado em um grupo de escritores portugueses não significa dizer que tenha ficado o escritor brasileiro indiferente ao desejo de uma “literatura brasileira”. Machado foi incentivador

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CANDIDO, 2012, p. 28. CANDIDO, 2012, p. 30.

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da produção literária nacional, defendendo “certo sentimento íntimo” como verdadeiro critério aferidor da nacionalidade na literatura, um sentimento capaz de tornar o escritor “homem do seu tempo e do seu país” ainda quando trata de “assuntos remotos no tempo e no espaço”.29 Estudar Machado como colaborador de um jornal luso-brasileiro significa, exatamente, perceber como o jovem escritor soube reconhecer a importância do legado português e do diálogo com escritores de além-mar em seu processo de criação literária, agindo – para aproveitar a imagem de Candido – como um “adolescente bem seguro”, que não vê problemas em reconhecer a “dívida paterna”. Uma década antes de escrever o ensaio “Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade”, mostrava, com sua colaboração n’O Futuro, saber que “[n]em tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”.30 Se alguma vez mudou de sobrenome – como quando assinava “Machado d’Assis”, com elisão da vogal da preposição –, fê-lo não para negar um débito, mas, justamente, para sugerir a pronúncia dos amigos portugueses, homenageando, de alguma forma, aqueles companheiros que tanto o incentivaram em seus primeiros passos na carreira literária.

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ASSIS, 2008, v. 3, p. 1205. ASSIS, 2008, v. 3, p. 1211.

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