ADOLESCENTE E NARCOTRÁFICO NA ESFERA PÚBLICA JORNALÍSTICA Um estudo de caso de cobertura do jornalismo impresso de temas de interesse social

June 3, 2017 | Autor: Wilson Gomes | Categoria: Communication, Journalism, Newswork, Media Coverage
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“ADOLESCENTE E NARCOTRÁFICO” NA ESFERA PÚBLICA JORNALÍSTICA Um estudo de caso de cobertura do jornalismo impresso de temas de interesse social1

Wilson Gomes

1. Premissa metodológica Este ensaio é o resultado da análise de material publicado em jornais impressos do Rio de Janeiro e São Paulo sobre o tema geral «drogas». Trabalhou-se com amostragem recolhida pelos pesquisadores do projeto Avaliação do Sistema Aplicado de Proteção ao Adolescente da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, reunidos em três volumes de cerca de 500 páginas, com quase 300 matérias jornalísticas compreendendo todas as edições do Jornal do Brasil nos anos 1995-1998, O Dia no ano de 1998 e Folha de São Paulo nos anos 1995-1996. Neste universo, o foco principal da análise esteve concentrado na cobertura dos media impressos sobre «adolescentes no narcotráfico», em coerência com o tema geral do projeto onde este estudo se inscreve. O horizonte da análise esteve cuidadosamente restrito a questões atinentes ao fato especificamente jornalístico da cobertura, naquilo que pode ser reconhecido na leitura do material publicado. As perguntas que, por conseguinte, conduziram o estudo, só poderiam ter sido essas: que tipo de jornalismo é aquele que cobre este tema? que abordagens e impressões do tema esse tipo de jornalismo oferece ao seu público? quem o pauta? quais seriam as suas fontes? como se porta o texto jornalístico diante das fontes e dos seus dados? como é estruturada pelo jornalista este tipo de notícia? qual o seu alcance e eventuais limites na produção de uma correta opinião pública? O estudo a seguir será organizado a partir de dois eixos analíticos principais, que se têm revelado fecundos nas pesquisas que, de algum modo, voltam-se para a interpretação de materiais jornalísticos. O primeiro eixo diz respeito à seleção, ou, mais especificamente, aos critérios, princípios e procedimentos efetivamente aplicados pelo jornalismo na percepção e escolha daqueles que, dentre os fatos da atualidade, devem ser transformados em notícias. No nosso caso, não se trata de tematizar tais critérios, princípios e procedimentos nas rotinas produtivas do jornalismo, mas de tentar identificar os já efetivamente aplicados nas notícias publicadas. Aqui a atenção há de se voltar para dois tópicos: a) a seleção de temas operada pela cobertura jornalística no interior do universo delimitado pelas expressões «drogas» e «tráfico de drogas e adolescentes»; b) a focalização ou seleção de foco praticada pelo jornalismo sobre os temas selecionados. Com o primeiro tópico, o 1

Publicação original GOMES, W. S. Adolescente e Narcotráfico na Esfera Pública Jornalística: Um estudo de caso de cobertura do jornalismo impresso de temas de interesse social. Textos de Cultura e Comunicação, Salvador, v. 41, p. 121-130, 2000.

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propósito é verificar quais são os aspectos e as dimensões desse “universo possível” que o jornalismo decide transformar em notícias e, por conseguinte, constituir com ponto de pauta da agenda da opinião pública. Com o segundo tópico, trata-se de identificar a hierarquia de tratamento, organização e exposição dos temas no interior da seleção já praticada. De fato, os temas selecionados pela notícia tanto podem ser objeto do foco principal do texto quanto podem ter um tratamento apenas secundário e incidental na sua disposição. E como os media não apenas estabelecem grande parte da agenda da opinião pública, mas, além disso, determina as prioridades da sua pauta, a seleção de foco do seu material noticioso não pode passar desapercebida. O segundo eixo de análise diz respeito aos modos da intervenção propriamente jornalística na produção da notícia. Claro que publicar é apenas o derradeiro e definitivo ato do processo produtivo da notícia, que começa pela determinação da pauta, passando pela cobertura propriamente dita, seleção e estruturação editorial, distribuição diagramática, titulação etc. - fases todas elas decisivas para a determinação do quadro do mundo que o público terá à sua disposição todos os dias. De qualquer sorte, em todas essas fases do processo produtivo da notícia são muitos e variados os modos de intervenção solicitados pelos critérios e valores estruturadores específicos do jornalismo (os chamados “critérios de noticiabilidade” ou media values) e do profissional que trabalha rotineiramente na coleta dos materiais que poderão vir a se transformar em notícia. No caso da pauta diária, por exemplo, um certo nível de intervenção bem limitado é aquele representado pela organização do trabalho de construção das matérias em dependência dos fac-símiles provenientes das agências de notícia ou dos press releases das assessorias de imprensa, enquanto outro tipo e modo de intervenção completamente diverso é aquele dado pela atividade do jornalismo investigativo que, como diz o jargão, “corre atrás” da matéria, levantando dados, verificando-os, cruzando informações, conquistando e selecionando fontes. São as duas escalas extremas. Não há como negar o ganho de padrão na formação qualitativa da opinião pública, em termos de complexidade, capacidade de elucidação, profundidade e, sobretudo, independência, quando um jornal progride no interior de um espectro de intervenção cuja escala mais baixa seria representado por um jornalismo meramente receptivo, reprodutivo e dependente dos interesses que se geram externamente. Associado a este aspecto, outro elemento importante de avaliação de padrão tem a ver com a intensidade e a qualidade da intervenção do jornalista na sua negociação com os dados produzidos por outras fontes. Isso acontece particularmente quando a notícia se apóia em declarações ou em dados levantados por um sujeito social diferente do jornalista. À fonte interessa que a sua declaração e os seus dados se transformem em notícia através do texto jornalístico, que tal texto não apenas reproduza integralmente os dados e discursos por ela oferecidos como também que se atenha ao foco e disposição dados2. Mas o jornalista não apenas se submete aos critérios de noticiabilidade e linha editorial do órgão que o emprega, submete-se também a regras profissionais que determinam o que seria o bom jornalismo, submete-se a sua idéia da 2

Este é o caso em que a atividade jornalística se tornaria, de fato, estrita mediação entre os dados e discursos das fontes e o público consumidor de informação. Nessa outra forma da escala mais baixa de intervenção do jornalista na produção da notícia, o jornalismo neutralizar-se-ia em divulgação e o jornalista, em mero divulgador de dados.

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configuração ou identidade do público leitor do seu jornal, bem como à sua própria compreensão da matéria e dos aspectos importantes do interesse público dela. Entende-se por negociação os esforços do jornalista para dar conta das injunções a que se submete ao lidar com dados e discursos organizados segundo critérios e interesses da fonte, não necessariamente harmonizáveis in toto com aqueles do jornalismo. A qualificação do padrão informativo dos materiais que chegam à opinião pública pelas notícias, depende de maneira decisiva da capacidade do jornalismo de fazer com que nessa “negociação” o privilégio recaia sobre os critérios profissionais do bom jornalismo, mesmo que isso comporte - e por força tende a comportar - uma insatisfação dos interesses da fonte, das expectativas do público consumidor de informações ou, até mesmo, da linha editorial do jornal.

Do ponto de vista da distribuição do estudo por este texto, como o material selecionado e organizado pelos pesquisadores é circunscrito pela rubrica genérica «drogas», o movimento da análise vai do mais geral - a cobertura do fenômeno do tráfico e consumo de drogas - ao que particularmente interessa ao projeto, o tema «adolescentes e narcotráfico», que é visto de forma mais detida. Esses dois recortes permitirão a percepção de diferentes aspectos da cobertura, como veremos a seguir.

2. Tráfico e consumo de drogas como tema da cobertura do jornalismo impresso

Na medida em que se iniciou a lidar com o material jornalístico entre os diversos jornais, começou a se firmar a impressão de que havia uma considerável diferença entre eles, particularmente no que se refere à seleção temática. A cobertura da Folha de São Paulo englobada na rubrica «drogas» inclui, prevalentemente e nessa ordem de quantidade, notícias sobre a) a indústria do narcotráfico, em seu alcance local, nacional e internacional; b) o consumo de drogas na vida urbana; c) o aspecto legal e legislativo relacionado ao consumo de drogas, tendo em pauta temas como “liberalização”, “descriminalização”, “abrandamento da penalização do usuário”, “distinção legal entre vício e tráfico”, tudo isso numa cobertura muito mais nacional que local; d) a droga do ponto de vista do interesse científico (como funciona? Que usos se podem fazer?), social (medidas de trocas seringas, programas de prevenção) e humano (o drama dos dependentes em depoimentos). A respeito da seleção temática da Folha de São Paulo nota-se, antes de tudo, que o tema «adolescente e tráfico de drogas» praticamente não existe. Enquanto foco primário, a cobertura da Folha privilegia os temas que são absorvidos no universo clean e executivo dos seus leitores: negócios, política e costumes. Isso se traduz, em termos de seleção do foco, no tema “narcotráfico” - como indústria de produção e distribuição de drogas que movimenta no mundo o equivalente a uma vez e meia o total das riquezas produzidas no Brasil -, nas discussões sobre a distinção entre usuário de droga e traficante do ponto de vista legal, sobre as medidas de profilaxia do serviço público com relação aos usuários, sobre o aspecto científico do funcionamento dos entorpecentes. Somente com valor quantitativamente secundário vêm à pauta temas como o consumo de crack entre crianças de rua e o aspecto “mondo cane” do 3

tráfico e consumo. Apenas de forma incidental alguma rara informação sobre o cruzamento temático tráfico-adolescente3. Além disso, a seleção temática da Folha de São Paulo se destaca por seu alcance. A cobertura nacional e internacional do tema rivaliza em quantidade com a cobertura local. O que quer dizer que é grandemente pautada pelas agências de notícias e pelo jornalismo investigativo e quase nunca pela polícia, por pesquisadores ou por agentes das instituições de recuperação. A cobertura do jornal O Dia obedece a outra seleção temática. As matérias provêm claramente, em sua quase totalidade, das editorias de polícia e cidade, concentrando-se os seus temas praticamente ao redor da exibição do submundo do tráfico e do consumo de drogas, dos momentos em que este é descoberto ou atacado pela polícia e dos acontecimentos em que invade a vida urbana. Incidentalmente, encontra-se aqui e ali uma informação sobre adolescente no tráfico, mas normalmente o que temos é uma exibição da rotina policial de apreensão de drogas, prisão ou morte de traficantes, prisão de usuários, descoberta de rotas e esquemas de distribuição, circunstâncias da vida ou da morte de traficantes, o drama de pais de filhos envolvidos com drogas ao serem estes filhos mortos ou presos e por aí a fora. Nem é preciso dizer que o alcance da cobertura é completamente local. Em suma, uma seleção temática pautada pela polícia e organizada para satisfazer a curiosidade voyeurística do público sobre o submundo e as suas emersões na vida urbana. Uma diferença enorme dos critérios de seleção temática e da escolha de foco da cobertura do Jornal do Brasil. Em contraste com a Folha de São Paulo, a seleção temática do Jornal do Brasil é mais diversificada, mais ampla e mais local, sendo evidente a diferença de importância atribuída pelo periódico carioca ao tema. Em contraste com O Dia, o Jornal do Brasil depende muito menos da pauta policial e, conseqüentemente, da exibição do submundo em chave do extravagante, bizarro, inquietante. A seleção variada do Jornal do Brasil inclui, principalmente: a) o tráfico e sua estrutura; b) o “drama” da droga enquanto fato de interesse humano; c) violência urbana e tráfico de drogas; d) participação de crianças e adolescentes no tráfico e seu envolvimento no consumo; e) divulgação de pesquisas, estudos e levantamentos sobre tráfico e uso de drogas; f) opiniões e discussões sobre causas e conseqüências do tráfico e consumo de drogas. Normalmente, os materiais estão vinculados à editoria de cidade, o que os coloca a meio termo entre a perspectiva econômica e social da Folha e a perspectiva policial de O Dia. Por outro lado, o alcance da cobertura do Jornal do Brasil é centrado no eixo Rio-Niterói-Baixada Fluminense com escassa abrangência nacional e internacional. Se fosse possível generalizar a partir apenas da leitura dos jornais, poder-se-ia pensar que o fenômeno do tráfico e consumo local de drogas é muito mais importante no Rio de Janeiro do que em São Paulo, tal a diversidade focal e de alcance entre as duas coberturas.

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Uma nota metodológica: os pesquisadores que organizaram os materiais deixaram intencionalmente de fora da sua seleção as matérias relativas ao tema “drogas” que se referiam apenas incidentalmente ao mesmo no contexto de notícias da editoria de polícia, a saber, aquelas sobre mortes, roubo, tiroteios.

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A pauta do Jornal do Brasil é dada por origens diferenciadas, sendo que as sondagens, levantamentos e pesquisas, os promotores e juízes das Varas de Infância e Juventude e a polícia, nessa ordem, são os seus provedores mais importantes. Do mesmo modo, se pensarmos nas fontes da matéria como as “vozes” que aparecem enunciadas nos textos, citadas entre aspas ou apenas mencionadas, temos uma ordem mais ou menos semelhante: pesquisadores e responsáveis por levantamentos, promotores e juízes das Varas de Infância e Juventude, polícia, traficantes e viciados, diretores de instituições de recuperação ou proteção às crianças e adolescentes, voluntários e assistentes sociais ligados às mesmas instituições ou às ONGs. Dessa diversidade de pautas e fontes, emergem diferentes modos de abordagem e estruturação da notícia. O primeiro enfoque jornalístico presente é semelhante ao do jornal O Dia e estabelece organização discursiva centrada no chocante, no extravagante, no inusitado: “bem nascido, mas bandido por opção”, “no tráfico aos 9 anos de idade”. Deve-se dizer, a bem da verdade, que tal abordagem é mais comum em O Dia que no Jornal do Brasil. Em seguida, ocupando um espaço mais importante no conjunto do jornal, temos uma disposição do discurso orientada pelo “drama” da droga. É o chamado “interesse humano” estruturado de forma dramática, a arranjar os materiais jornalísticos. Nesse caso, o tom se aproxima da crônica ou a reportagem estende-se em depoimentos que dão voz às vítimas da tragédia ou melodrama que o jornalista exibe. Voam de lá e de cá temas como “decadência e destruição dos indivíduos e da família por causa do consumo de drogas”, “a tragédia humana dos indivíduos nas desumanas instituições de punição/recuperação dos infratores viciados ou traficantes, e sua conseqüente degeneração moral”, “a exibição da fragilidade psíquica que faz com o que indivíduo mergulhe nas drogas”, “escravos da miséria e droga” e, enfim, o imperdível “drama da infância perdida”. Além do enfoque típico do jornalismo de lágrimas, temos o registro orientado por cálculos de objetividade e informação ágil, segundo o padrão das escolas de jornalismo: aconteceu x, a y, no lugar z e na circunstância b. Por trás do “profissionalismo”, o valor que justifica a sua publicação: chamar a atenção do público, se possível, inquietá-lo. E aqui temos uma variedade temática ainda maior: “aumenta a participação de menores no tráfico”, “alastra-se o vício na classe média”, “espalha-se o consumo de drogas nas escolas”, “assassinados menores ligados ao tráfico”. Exercícios de jornalismo investigativo, onde quem pauta é o jornal e onde a curiosidade e independência do jornalista é quem faz o levantamento, são raros no Jornal do Brasil no que se refere ao tema. Exceção feita a entrevistas com chefes do narcotráfico e compositores de funk, algumas poucas reportagens sobre bailes funk, em que incidentalmente se apresentava a associação entre tais bailes e o aliciamento para o tráfico, e uma reportagem sobre pais de classe média que acobertam os filhos viciados, nada mais se pode registrar. Prática de jornalismo de pesquisa são ainda mais raras, no que se refere ao tema. Uma ou outra matéria sobre o quê é o quê em matéria de drogas, sobre a estrutura do tráfico ou sobre uma ou outra “comunidade” pobre no Rio de Janeiro e nada mais.

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O Jornal do Brasil apresenta a peculiaridade de o fenômeno do tráfico, inclusive na temática «tráfico e adolescentes», ser objeto de editoriais. Isso diz muito sobre a importância dada pelo jornal ao tema, certamente maior do que aquela dada pelos outros periódicos da amostra. Por outro lado, infelizmente os editoriais não são peças de grande elaboração que apresentem qualquer idéia nova ou diferente daquelas já apresentadas pelas matérias. O descuido é tão grande que há frases de matérias publicadas anos antes repetidas, letra a letra, nos editoriais. As abordagens ao tema feita pelos editoriais não passam de reiteração desprovida de criatividade e estudo das matérias publicadas, elas, por sua vez, pautadas por pesquisadores, promotores ou juízes das Varas de Infância e Juventude. Enfim, parco trabalho especificamente jornalístico.

3. Adolescente e narcotráfico como tema da cobertura do jornalismo impresso No que se refere especificamente ao tema “adolescente e tráfico” há alterações consideráveis. Em primeiro lugar, porque o tema, enquanto objeto do foco principal, comparece em número importante apenas no Jornal do Brasil. De fato, num conjunto de quase 300 matérias, chegam no máximo a 25, quase todos no JB, as reportagens, matérias e editoriais que, de algum jeito, consideram de modo importante o envolvimento de adolescentes no narcotráfico. Por isso mesmo, o alcance do material é local e diz respeito apenas ao Rio de Janeiro e cercanias. Em segundo lugar, é notável como nesse caso os jornalistas são pautados quase que completamente pelas assessorias de comunicação de instituições que fazem pesquisas, enquetes, estudos ou levantamentos. Com efeito, quase 100% das matérias sobre o tema são na verdade divulgação e comentário, numa forma jornalística, de dados produzidos por pesquisadores ligados a instituições universitárias, pelo Ministério Público, pela Assembléia Legislativa ou, ainda mais freqüentemente, pela 2a. Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro. Os jornalistas normalmente incorporam a informação no seu texto, organizando-o segundo os princípio do lead4, incluem uma ou mais entrevista com os responsáveis pela pesquisa ou levantamento e, quando ocorre, entrevistas com adolescentes recolhidos nas Instituições Legais. De forma que, de algum modo, mais do que um levantamento de dados, através dos recursos do jornalismo investigativo, por exemplo, a prática jornalística no caso reduz ao mínimo o grau de negociação do jornalismo, fazendo com que os dados dos levantamentos cheguem até a opinião pública quase como se não passassem por qualquer intervenção. Nessa mesma linha, o texto jornalístico jamais controla, questiona ou duvida dos dados que apresenta, do quadro explicativo que os emolduram ou da preferência de

O “lead” no jornalismo é um topos, um “lugar” do texto noticioso onde está posto aquilo que se considera o essencial do fato que se noticia. Decorre de um princípio que se tem como fundamental nas rotinas produtivas da notícias, um princípio de estruturação do texto segundo o qual este deve se organizar de tal forma que a singularidade do que é noticiado deve ser posto no topo do texto, resolvendo as perguntas sobre quem fez o quê a quem e quando. 4

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foco de quem os produziu5. É uma cobertura estabelecida sobre um sólido consenso (ou preguiça, desinteresse, ignorância), que permite ver, ademais, uma tranqüila harmonia de opinião e interpretação entre o produtor dos dados e o jornalista que os transforma em matérias para o consumo do público. O consenso é tão forte que certos textos podem ser reutilizadas praticamente idênticos de maneira serena e convicta, anos depois, sem qualquer constrangimento. Um exemplo: “Pobreza, baixa escolaridade, desestruturação familiar e tráfico de drogas compõem o quadro sombrio...” (JB - 1995) “Morar em área carente, ter baixa escolaridade, pertencer a uma família pobre e desagregada. Esta é a receita...” (JB - 1997) “Violência, tráfico de drogas, alcoolismo, desagregação familiar e precariedade no atendimento básico em saúde e educação formam o retrato atual...” (JB - 1998)

As matérias sobre os estudos, levantamentos e pesquisas trabalham com a reiteração, ao longo dos anos, de algumas poucas teses que funcionam como quadro interpretativo a emoldurar as cifras e percentuais dos números disponibilizados pelos pesquisadores. As principais teses relativas ao tema “adolescente e tráfico de drogas” são as seguintes: 1. constatação de base: o envolvimento de adolescentes com o narcotráfico está aumentando; 2. explicação 1: pobreza, baixa escolaridade e desagregação familiar são a causa do envolvimento dos adolescentes no tráfico; 3. explicação 2: dinheiro fácil e status social são a causa do envolvimento dos adolescentes no tráfico; As mesmas teses têm a sua forma invertida, passando do ponto de vista do adolescente, como acima, para o ponto de vista do tráfico: 1’. constatação de base: o uso de adolescentes pelo narcotráfico está aumentando; 2’. Explicação 3: a ausência de punição legal dos adolescentes são a causa do seu uso pelo tráfico; Dentro desse quadro formado por 5 teses, distribuem-se os números e dados e organizam-se praticamente todas as matérias e editoriais do jornalismo impresso sobre adolescentes no narcotráfico. A reiteração é tão grande, nesse ambiente de tanta

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Não se está sugerindo que faça parte da normalidade do trabalho jornalístico o conflito com a posição da fonte. Não deixa, porém, de ser surpreendente um caso de cobertura jornalística em que o jornalismo reproduz de maneira absolutamente harmoniosa as posições de suas fontes. Para verificar o contraste, basta que se pense na cobertura jornalística daquilo que é considerado a parte nobre do jornal, a saber, os fatos de política, economia, finanças e cultura.

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serenidade e convicção, que a impressão do leitor é que está sempre lendo a mesma matéria, onde sempre se lhe dá o que ele já sabe e se reforça o que ele já espera. Exceção feitas aos editoriais, que obviamente não dependem diretamente de uma reportagem, todas as matérias em análise têm como origem um conjunto de dados reunido por alguém que não é o jornalista. A instituição que com os seus dados mais consegue pautar os jornalistas é a 2a. Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, com dados apresentados pelo seu juiz titular, depois vêm o CRIAM e DPCA, o Ministério Público e enfim a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadores, principalmente quando as suas pesquisas são ligadas a instituições públicas. Nessa perspectiva, é interessante notar como o texto jornalístico está de tal maneira “colado” à fonte dos seus dados que a própria designação dos jovens muda: são «adolescentes» ou «garotos» se a fonte dos dados é de um ambiente psicológico, sociológico ou político, são «menores» se a fonte é jurídica ou policial. O tema central das matérias e editoriais, que normalmente vai parar nas manchetes e títulos, é dado pelas constatações de base indicadas acima. Ou se constata que o tráfico está usando cada vez mais garotos ou garotos cada vez mais jovens, ou se constata, numa outra perspectiva mas ainda o mesmo, que há uma assombrosa escalada dos menores rumo ao tráfico, que o envolvimento de menores com o narcotráfico está atingindo patamares elevados, que aumentou a participação de crianças no tráfico de drogas, que o número de menores envolvidos com o tráfico cresce em proporções alarmantes. Afirmada a tese, trata-se de demonstrá-la com números. Estes são o objeto dos levantamentos e estudos que pautam as coberturas e caberá ao jornalista distribuí-los com destaque e adjetivos pela sua matéria. São importantes, porque, afinal, são a única coisa que realmente se altera nas matérias ao longo dos anos e são aquilo que dão veracidade e justificativa à reportagem. Uma vez feita a constatação de base, uma cobertura típica do tema adolescência e tráfico precisa oferecer ao leitor os quadros explicativos. Estão a postos os responsáveis pelos dados para oferecer também as explicações correspondentes. Explicações que são invariavelmente as mesmas. O primeiro caminho consiste numa esquema de causalidade que parte da “falta”: o adolescente pobre vive numa situação de falta e vai ao tráfico. Faltam-lhe recursos financeiros, capital cultural, capital afetivo-psicológico, recursos sociais ou, se preferirmos, é pobre, tem baixa escolaridade, tem uma família desagregada, mora num ambiente violento e miserável. Eis o “quadro sombrio” que estaria inexoravelmente levando ao tráfico o adolescente que nele se insere. O segundo caminho é menos antigo e parece algo mais sofisticado que o primeiro. Trata-se de um esquema de causalidade alternativo, às vezes usado de forma suplementar, que, ao invés de partir daquilo que ao adolescente falta, parte daquilo que o adolescente deseja: o menor deseja chegar à situação x, a que o tráfico permitirlhe-ia chegar. O adolescente deseja recursos financeiros e deseja posição social, ou, em outros termos, quer “grana” e status, coisa que o tráfico pode lhe oferecer. Seguindo os autores dos estudos e levantamentos, as matérias se preocupam em elencar, então, os “fatores de atração dos jovens pelo narcotráfico”: possibilidade de 8

fazer parte de um negócio em que circulam milhões, possibilidade de ganhar importância hierárquica nesse negócio, possibilidade de desfrutar de poder, reconhecimento e projeção social, prestígio e respeito. Este esquema de causalidade apoia-se certamente na teoria dos usos e gratificações. O adolescente teria à sua disposição certos modelos e contra-modelos e seria levado, numa perspectiva de maximização das gratificações, a tomar um modelo a ser seguido. No quadro de indigências em que se situa, os pais e vizinhos trabalhadores, explorados e empobrecidos, participantes do jogo diário do “isso não é vida!”, são o modelo a ser evitado; o traficante “que tem mulher e dinheiro” é evidentemente o modelo a ser seguido. A gratificação de ganhar mais do que os próprios pais que trabalham honestamente é decerto um fator determinante de escolha dos riscos da atividade do tráfico. Certamente, os dois esquemas utilizados, e que chegam à opinião pública por meio dos jornais, não são excludentes. Para que o narcotráfico se ofereça como modelo de gratificação é preciso que os modelos alternativos menos arriscados de trabalho e ascensão social de fato não sejam percebidos como possíveis - caso contrário todo mundo seria traficante e não apenas alguns garotos pobres. Portanto, há também aqui a tematização de uma carência inicial. A diferença dos dois tipos de causalidade consiste no fato de que o primeiro, ao enfocar a “falta” como categoria explicativa oferece um esquema de vitimização: o narcotráfico estaria em continuidade linear com a carência inicial do adolescente. Entretanto, com o reconhecimento do extraordinário alcance econômico do narcotráfico e do seu significado social no interior das comunidades de morros e favelas ao qual se agregam valores positivos de posição e projeção, o tráfico de drogas pode ser visto em radical descontinuidade com pobreza, autoestima em baixa, ausência de chances - pelo menos do ponto de vista estritamente econômico e socio-psicológico. Provavelmente dessa percepção nasce a concepção, cada vez mais presente nas matérias jornalísticas, de que o esquema de vitimização poderia ser alternativo a um esquema de gratificação. Uma parte do material jornalístico reflete ainda um terceiro tipo de explicação, que na verdade tenta responder à questão “por que o narcotráfico usa adolescentes e crianças?”. Esse é um tipo de quadro interpretativo presente apenas nas matérias cujas fontes são da justiça ou da polícia ou em editoriais que assumem essa perspectiva. Placidamente, a responsabilidade pela preferência do narcotráfico é posta no código legal e, alternativamente, no sistema correcional. Primeiro, e principalmente, a Lei: “A bíblia da marginalidade é o Código de Menores: permite aos jovens integrar quadrilhas, traficar, matar e depois se esconder debaixo da saia do Juizado. Formouse toda uma casta de criminosos jovens acima da lei e da ordem, mas ainda sem idade para responder pelos seus crimes” (Editorial do Jornal do Brasil, 1995). “O Estatuto da Criança e do Adolescente, em quase sete anos de vigência, abriu a brecha pela qual as quadrilhas de drogas entraram. Sediados em sua maior parte nas favelas, traficantes usam menores como aviões para distribuir droga, sem perigo de prestação criminal de contas. (...) Está aberto o caminho para a delinqüência sem freio” (Editorial do Jornal do Brasil, 1997).

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Depois, o aparato correcional do Estado. Os traficantes preferem “usar” menores não apenas porque eles não são processados, também preferem-nos porque se forem apanhados e encaminhados às Instituições eles facilmente fogem. “Alguns já passaram mais de 30 vezes pelo Ministério Público” afirma uma matéria citando estudos de promotores. Fugindo ou não, afirma o discurso jornalístico, os adolescentes ganham rapidamente a liberdade, gerando a sensação em todos de que o tráfico é um negócio que oferece poucos riscos legais para os muito jovens.

4. A modo de conclusão

Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, o jornalismo de divulgação não é a forma mais objetiva, isenta e socialmente útil de prática jornalística. Se nos colocarmos do ponto de vista do pesquisador ou daquele que faz sondagens ou levantamentos que gostaria de ver o resultado do seu trabalho exposto na esfera pública, da maneira mais fiel possível, através da tela do sistema informativo, poderemos até imaginar que quanto menos mediações entre os nossos dados, enfoques e interpretações e o público leitor melhor será. Por outro lado, entretanto, há de se pensar no jornalismo contemporâneo como o grande produtor dos temas que municiam a esfera do debate público e propiciam a formação de uma opinião pública qualificada. Esfera pública e opinião pública que justamente resultam ser as duas instituições fundamentais da sociedade civil para pressionar e conduzir as instâncias deliberativas legislativas e executivas, para demandar e conseguir o estabelecimento de políticas sociais adequadas e, enfim, para criar os imprescindíveis climas coletivos de favorabilidade a agendas socialmente relevantes. Nesse sentido, o funcionamento da rotina produtiva do jornal, obedecendo mormente a critérios normativos referentes ao bom jornalismo, é imprescindível para um debate público e uma opinião pública qualificados. Obedecer a tais critérios específicos do jornalismo significaria a implementação de, pelo menos, dois cuidados no trabalho jornalístico. O primeiro deles é a contextualização dos dados e discursos em quadros mais amplos de questões, relacionando-os a outros fenômenos e a outras informações provenientes de outras fontes. O jornalismo de divulgação de levantamentos permanece limitado, se muito, ao alcance da contextualização que a fonte é capaz de identificar a partir dos seus próprios objetivos. Entender o fenômeno que se relata como uma ocorrência, encontrar a família de fenômenos onde situar a ocorrência em questão, situá-la em recortes sociais, econômicos, políticos mais amplos e mais precisos, esta é a norma do bom jornalismo, também quando se trata de um tema tradicionalmente relegado a partes hierarquicamente inferiores do jornal, como o assunto “drogas”. Estabelecer contextos é um esforço sobretudo de produzir mais informações do que aquelas oferecidas pelas fontes, de conhecer os caminhos pelos quais elas podem ser obtidas e, especialmente, de possuir um estoque de saberes sobre o tema. Em sentido oposto, é razoável afirmar que o fato de um tema nos media ser tratado prevalentemente numa rotina produtiva de jornalismo de divulgação de levantamentos, como é o caso em análise, é reflexo da pouca importância que o meio 10

de comunicação dá a esse tema, da indigência da informação que o jornalista dispõe sobre o assunto e do tempo de trabalho que o processo produtivo considera adequado para a sua cobertura. Por conseqüência, fornecerá uma impressão muito nítida da parca qualidade da opinião e debate públicos que será capaz de gerar. Nem é preciso concluir a inferência dizendo que opinião e esfera públicas de baixa qualidade têm como conseqüências mais grave a desmobilização da sociedade civil e a inação política. O segundo cuidado decorrente da aplicação dos critérios especificamente jornalísticos da cobertura seria o exame cuidadoso da perspectiva e dos quadros interpretativos dos dados e discursos das fontes, a busca de quadros alternativos e pontos de vistas diferentes de forma a fornecer ao público um conjunto o mais amplo possível de perspectivas. Há um método do trabalho jornalístico como há um método de qualquer atividade interpretativa conseqüente, científica ou não. A aceitação imediata e acrítica dos dados e da interpretação primeira, seja ela do político, do promotor, do delegado de polícia ou do pesquisador acadêmico, pode servir aos interesses da fonte, não aos interesses da opinião pública ou do próprio jornalismo. Em primeiro lugar, porque uma ceticismo inicial, em que o jornalista retarda o próprio juízo sobre o dado e sobre a interpretação oferecida para um momento posterior, quando tiver reunido mais elementos, sempre fez parte de qualquer manual de ética do jornalismo. Além disso, há o fato, extremamente importante para ser desprezado, de que uma formação qualificada da opinião pública se dá quanto o jornalista põe à disposição do público um leque amplo e diversificado de interpretações sobre o mesmo fenômeno. Consensos e unanimidades construídas sem exame e crítica, por mais que pareçam consolidados - como é o caso do “sistema” explicativo sobre adolescentes no narcotráfico apresentado acima - refletem muito mais a preguiça como metodologia de levantamento de dados e a desimportância como princípio orientador da rotina produtiva do que a qualidade dos tais consensos e unanimidades. No interior desse quadro de avaliação, é coerente afirmar que a cobertura dos fatos relacionados ao tráfico e consumo de drogas, em geral, e ao tráfico e adolescência, em particular, decididamente não é de boa qualidade. Claro, não se pode desprezar a importância social do fato de que exista tal cobertura e do fato de ela incluir até mesmo um recorte mais especializado como esse do envolvimento de crianças e adolescentes no narcotráfico. Isso não obstante, visto por critérios jornalísticos ou sociais, a cobertura deveria melhorar muito para chegar a patamares adequados. A abordagem rebarbativa, pouco criativa e reiterativa da mídia impressa impede a formação de uma opinião pública mais profundamente informada, preparada para quadros de análises mais sofisticados e para intervenções sociais do mesmo padrão. Por outro lado, ao falarmos da Folha de São Paulo e do Jornal do Brasil estamos nos referindo a dois dos órgãos de imprensa que praticam, em geral, o melhor jornalismo do país. Conhecem perfeitamente os critérios de um jornalismo de qualidade e os dominam em alto padrão nas suas rotinas produtivas em geral. Por que razão, então, a cobertura dos temas que estamos analisando deixa tanto a desejar? O motivo talvez deva ser encontrado na importância dada ao tema na hierarquia que orienta o processo produtivo dos jornais. Se esse jornais são excelentes na prática do jornalismo informativo, no cuidado com a contextualização, com a exposição crítica de diferentes pontos de vistas sobre os fatos, na atenção às negociações com os interesses das 11

fontes, na agucidade e abrangência das suas seleções temáticas com relação a política, economia, finanças e, de um certo modo, cultura, por que não fazem o mesmo com relação a importantes temas na pauta social como adolescentes/crianças e narcotráfico? A resposta há de ser simples: não o fazem porque a maior parte da pauta social, inclusive esta, está muito longe de ocupar um lugar importante na hierarquia do jornal, recebendo, portanto, menor atenção, menor cuidado, menor dedicação de tempo e energia. Certamente é já muito que a pauta de interesse social venha se deslocando da editoria de polícia para outras editorias, mas é certamente ainda pouco que seja tratado como um fato social de terceiro nível. Essa constatação resulta ser mais grave se admitirmos nós também o fato, hoje em dia consensual na pesquisa em comunicação social, de que há uma dependência crescente, que tende a ser exclusiva e aparentemente insuperável, da esfera e opinião públicas do sistema informativo dos mass media. Isso equivale a dizer que as possibilidades de intervenção da sociedade civil e a conseqüente produção de climas de pressão sobre o poder público há que contar com esse obstáculo suplementar e considerável que é a relativa desimportância com que os jornais cobrem os temas de interesse social.

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