Adrienne Rich em visita - Uma análise de “Diving into the Wreck”

July 6, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: American Literature, Feminist Literary Theory and Gender Studies, Adrienne Rich
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Adrienne Rich em visita - Uma análise de “Diving into the Wreck” Manuela Moreira Fevereiro de 2008

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Diving into the Wreck, da autoria de Adrienne Rich, é o título de uma colectânea de poemas, publicada em 1973, que inclui um poema homónimo, datado de 1972. O ano da escrita do poema é o mesmo em que o Congresso norte-americano faz uma emenda à Constituição do país, a qual ficou conhecida como The Equal Rights Amendment. Esta emenda consagra, pela primeira vez, a igualdade de direitos, perante a lei, a cidadãos dos sexos masculino e feminino. Pela publicação desta colectânea, é atribuído a Adrienne Rich, posteriormente em 1974, o National Book Award, galardão que a poeta rejeita a título individual, mas que aceita partilhar com Alice Walker e Audre Lorde, tendo as três criadoras subscrito uma declaração conjunta onde manifestam aceitar o prémio em nome de todas as escritoras desconhecidas. Pretendendo-se ler o poema à luz do contexto histórico e político da sua produção, é objecto deste ensaio analisá-lo e comentá-lo e, se possível, contribuir com algo de novo, no âmbito da crítica literária feminista. Afigura-se-me, pois, tarefa árdua, atendendo às leituras já feitas, quer por nomes da crítica literária feminista, quer por ensaístas de renome, que não se reivindicando feministas, o comentaram e analisaram. “Diving into the Wreck” relata a viagem do sujeito poético em busca dos despojos de um naufrágio. O poema descreve o empreendimento da acção do sujeito poético e narra as vicissitudes por que este passa ao longo da jornada. É, pois, a viagem do sujeito poético, em sentido literal e metafórico, o topos deste poema. Como já foi amplamente apreciado pela crítica, o sujeito poético inicia viagem, após ter lido o livro dos mitos:“…a book which has hitherto had no place for explorers like herself.”, nas palavras de Margaret Atwood (Atwood, 1973:281). Se, ao nível de uma leitura de superfície, como refere Atwood, o livro dos mitos não tem servido de guia a exploradores como o sujeito poético do poema em análise, dado que ninguém se terá orientado por ele, ao partir para uma expedição ao fundo do mar, quando lemos o subtexto, poderemos interpretar este “livro” como metáfora do patriarcado e dos mitos criados por este, de forma a manter a opressão das mulheres. Por outro lado, poderá entender-se “the book of myths” como alusão à mitologia greco-romana, atendendo a que a invocação e a convocação desta têm servido de temática à tradição poética masculina. Daí que Maggie Humm fale da preferência de Virginia Woolf em recorrer aos mitos do Egipto e à iconografia da deusa Isis em detrimento da mitologia grecoromana. Diz Maggie Humm acerca de Virginia Woolf: “ Virginia Woolf’s preference for the pre- Greek myths of Egypt and Isis iconography is an early example of a 1

feminist rejecting the patriarchal obsession with Greek myth and their male heroes.” (Humm,1986: 94). Embora Maggie Humm refira que a definição daquilo que constitui o mito e da sua função se mantém problemática para a crítica, ela observa, porém, que: “Women in mythology are well documented and discussed but generally from male perspectives.”(idem: 89)“. É com: “First having read the book of myths,…”, primeiro verso do poema que o sujeito poético se prepara para a jornada. Será que este “livro”, ou antes, o que ele simboliza, acompanhará o sujeito poético ao longo da jornada e contribuirá, no fim desta, para a re-visão proposta por Rich perante a herança literária e poética herdada da tradição masculina? Por ora, limitar-me-ei a colocar a questão. Confinando-me, para já, ao nível de uma leitura de superfície, o sujeito poético conta-nos como se preparou para a viagem que está prestes a encetar, isto é, para o mergulho sub-aquático, mostrando-nos os objectos de que se muniu e o uso que deles fez, vislumbrando o desconhecido, bem como a indumentária que envergou. Prossegue o poema com os seguintes versos: …………………………. and loaded the camera, and checked the edge of the knife-blade, I put on the body-armor of black rubber the absurd flippers the grave and awkward mask ………………………………

O quarto verso, com o pronome na primeira pessoa do singular sugere-nos um tom confessional e, mesmo autobiográfico e, se Adrienne Rich, poeta, activista, ensaísta e sua autora, se insere, por opção, no feminismo radical, cujo lema assentava no axioma de que “the personal is political”, tenderá o leitor/ a leitora a ler o poema à luz da experiência do sujeito empírico, já que neste caso o sujeito poético e o sujeito empírico parecem coincidir. Acresce que, para as poetas do feminismo radical, a experiência da mulher é matéria poética. Jan Montefiore tenta definir a estética das poetas feministas radicais da seguinte forma: “Poetry is, primarily, the stuff of experience rendered into speech; a woman’s poems are the authentic speech of her life and being.” (Montefiore, 1987:3). Assim, poder-se-á identificar o sujeito poético no feminino, isto é, uma mulher que dá início a uma viagem ao fundo do mar, em busca de um naufrágio, munida de máquina fotográfica, para que tudo o que encontre no seu trajecto possa ficar registado, e que tendo experimentado o fio da navalha, estará preparada para fazer face a eventuais perigos. Ao mesmo tempo, observa-se que a indumentária que enverga, como the body 2

armor of black rubber, the absurd flippers e the grave and awkward mask lhe transfiguram o corpo e lhe dão uma sensação de algo estranho à experiência desse corpo. Ainda ao nível de uma leitura de superfície, the edge of the knife-blade, the body armor e the grave and awkward mask, sendo instrumentos de defesa, podem associar-se à guerra, esfera do domínio do masculino, símbolo do poder patriarcal e, como tal, alheio ao feminino, o que contribui para que o leitor e, sobretudo, a leitora, sinta a aspereza da jornada e se sinta inclinado/a a identificar-se com a viajante, espécie de heroína da diegese. Ao mesmo tempo, o vocábulo mask aponta para a necessidade da construção de uma outra identidade, de uma persona, recurso talvez necessário na viagem ao desconhecido e na viagem interior que se irá desenrolar na busca do eu. Por outro lado, é sabido que o emprego do pronome pessoal na primeira pessoa do singular é, em poesia, uma espécie de ficção, podendo-se justapor ao eu que se identifica com o eu do/a autor/a, fazendo com que o eu represente em si uma máscara. Retomando a leitura de superfície, lê-se, no final da primeira estrofe, que será viagem difícil, a do sujeito poético, pois, ao contrário de Cousteau, que parte para as suas expedições acompanhado de uma equipa laboriosa e atenta, aqui a viajante vai só. Escreve a poeta “I am having to do this/ not like Cousteau with his/ assiduous team/…/but here alone.” Os seguintes versos dão início à segunda estrofe “There is a ladder/ the ladder is always there/ hanging innocently/ close to the side of the schooner/…”. Surge-nos agora o referente ladder que, com valor denotativo, significa objecto que serve para subir ou descer. Sabemos, de antemão, que a navegadora vai utilizar tal objecto para descer ao fundo do mar. Descendo a escada, o sujeito poético enceta a demanda em torno do eu. A poeta apropria-se da simbologia grega do herói que usa a escada como meio para ascender ao céu e aí se encontrar com a Deusa ou com a sua alma-gémea resultando, num ou noutro caso, em revelação mística. Esta simbólica foi adoptada posteriormente pela mitologia cristã, representando a ascensão dos vários degraus, os sacrifícios que se tinham de suportar, como forma de alcançar o paraíso. (Walker, 1995:24). Ao invés de usar a escada, como forma de ascensão, a poeta utiliza-a como forma de descida às profundezas do oceano, rejeitando, deste modo, as mitologias grega e cristã, instrumentos de sustentação do poder patriarcal, mas revertendo estas mesmas mitologias em seu favor. O sujeito poético desce os vários degraus, simbolizando estes, as dificuldades com que se vai deparar, mas vislumbrando, quiçá, encontrar o éden feminino. Ao movimento em ascensão, é contraposto um movimento em descendência, 3

que representa uma transgressão da normatividade falocêntrica, reivindicando-se, deste modo, uma outra via para a utopia feminina. A terceira estrofe narra a descida em direcção ao naufrágio, ao mesmo tempo que se ilustram as dificuldades que a navegadora vai encontrando e a solidão plena em que se encontra: I go down Rung after rung and still the oxygen immerses me the blue light the clear atoms of our human air. I go down. My flippers cripple me, I crawl like an insect down the ladder and there is no one to tell me when the ocean will begin.

Como se vê nestes versos, à medida que se inicia o movimento descendente, movimento em busca de um território também ele mítico, the wreck, a viajante depara-se com dificuldades, que passam por uma espécie de mutilação do corpo, que é apresentada de forma conspícua nos versos “My flippers cripple me” e “I crawl like an insect down the ladder”. É como se a narradora se tivesse de auto-flagelar, o que nos é indicado pelo verbo cripple e, ao mesmo tempo, de se metamorfosear, podendo o movimento de descendência ser interpretado duplamente, isto é, de descer, do plano do humano para o plano do animal, e, enquanto animal, descendo ao nível mais ínfimo, ou seja, o do insecto, ao mesmo tempo que, fisicamente, se processa o movimento de descida para o mar. À semelhança do movimento de ascensão e das dificuldades para alcançar o paraíso, aqui a viajante está também sujeita a provações e terá de submeter-se a transformações, para aceder a um espaço utópico, onde o ser-mulher poderá alcançar a bem-aventurança. Os últimos três versos desta estrofe exprimem a solidão plena do sujeito poético, face ao desejo do saber, que aqui se traduz pela ânsia de conhecimento face ao desconhecido, que aqui se corporiza no oceano. Por outro lado, a solidão do sujeito poético exprime metonimicamente a condição das mulheres que, ao longo dos séculos, para acederem ao saber, o tiveram sempre de fazer sozinhas, já que, ao contrário dos homens, este sempre lhes foi vedado. A quarta estrofe convida-nos a participar das sensações que se oferecem ao sujeito poético num espaço desconhecido e estranho, isto é, o fundo do mar, espaço detentor do 4

naufrágio, the wreck, podendo este ser entendido, segundo Margaret Atwood como: “…the wreck of absolute myths, particularly myths about men and women”(Atwood, 1973:280). First the air is blue and then it is bluer and then green and then black I am blacking out and yet my mask is powerful it pumps my blood with power the sea is another story the sea is not a question of power I have to learn alone to turn my body without force in the deep element.

Nesta estrofe, o sujeito poético diz-nos como percepciona as cores do ar do novo território que começa a explorar e descreve-nos o poder que a mutação da cor exerce sobre o corpo. Como se pode constatar, estamos perante uma poética que escreve o corpo e as sensações que este sente, face à imersão em espaço desconhecido e alheio à experiência do eu, isto é, face àquilo a que Freud chamaria o uncanny 1. Com efeito, o ar/mar é primeiro azul, depois mais azul e depois verde e depois preto (black), a tal ponto que o sujeito poético se sente a desfalecer (blacking out). Esta policromia instável leva a um sentir desfalecer, apesar de a máscara insuflar o sangue de oxigénio, logo de poder, para manter o controlo do corpo. Por outro lado, a experiência de sensações face à instabilidade cromática leva-nos a pensar num eu fluido, num eu infixo, ou seja, num eu em devir. O sexto verso interrompe o processo diegético para nos convidar a reflectir sobre o poder, falando-nos do mar e de este não servir de paradigma de poder. Esta interrupção da diegese, com a alusão ao mar, representa uma pausa na narração e faz uma interpelação ao/à leitor/a de forma a pensar o mar enquanto espaço de não-poder. O mar poderá, então, representar um espaço da mulher, por oposição ao espaço do homem, a Terra. É no fundo do mar, num espaço onde não há lugar para jogos de poder, assentes em hierarquias, por sua vez conducentes a desigualdades de género, de classe ou de etnia e, por extensão, a conflitos bélicos que o sujeito poético nos diz que aí tem de aprender sozinho a virar o corpo sem força, isto é, “in the deep element”, o sujeito poético, mulher mergulhadora, metonímia do ser mulher, não carece da força para se

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Terno usado por Freud, em 1919, num ensaio intitulado “Das Unheimliche”para designar o que é nos é alheio e desconhecido, podendo inspirar horror e terror. À falta de tradução adequada em português, optei pela tradução do termo em inglês.

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equilibrar, ou seja, para aí viver, pois este é um espaço onde há paz e tranquilidade e onde é fácil esquecer o propósito da viagem, como nos diz o sujeito lírico nos dois primeiros versos da quinta estrofe, embora o facto de ser fácil esquecer, não signifique que a viajante esqueça o motivo impulsionador desta.

And now: it is easy to forget what I came for among so many who have always lived here swaying their crenellated fans between the reefs and besides you breathe differently down here.

Nos dois últimos versos, o sujeito poético atesta o ambiente de tranquilidade, característico das profundezas do oceano, referindo o facto de ser diferente o ar que aí se respira. Neste universo, o sujeito poético respira e caminha sem dificuldades, o que contrasta com o esforço manifestado aquando da entrada para o oceano, como foi acima referido. Na verdade, o fundo do mar é um território que se poderá considerar womanfriendly e, como tal, a poeta refere que o ar que aí se respira é diferente, isto é, diferente do ar da terra, domínio do masculino. Nesta estrofe, estamos ainda no início da viagem e das sensações que a mesma faz despertar na poeta. À imagem da asserção usada na estrofe anterior que considera, de forma peremptória que “…the sea is another story/ the sea is not a question of power/…”, reitera-se a forma iniciática de acesso a um outro mundo, ou seja, o carácter exploratório da viagem. É este modus operandi da empreitada que é mantido na estrofe seguinte, como se pode constatar: I came to explore the wreck. The words are purposes. The words are maps. I came to see the damage that was done and the treasures that prevail. I stroke the beam of my lamp slowly along the flank of something more permanent than fish or weed.

A poeta reafirma o motivo que a levou ao empreendimento da viagem, com o primeiro verso, e confirma-o, discorrendo sobre ele, ao dizer: “…I came to see the damage that was done/ and the treasures that prevail/…”. Ora, se se entender the wreck como Deborah Pope : “The wreck represents the battered hulk of the sexual definitions 6

of the past…”(Pope,1984), isto é, os mitos que sustentaram a diferença sexual e que impediram as mulheres ao acesso à igualdade, cabe agora a estas reparar o estrago e apoderar-se dos tesouros que prevalecem, atendendo a que as mesmas nunca participaram, directa ou indirectamente do desastre, ou seja, do curso da História. Elas têm se apoderar dos tesouros, pois citando Rachel Blau du Plessis: “…the treasure is knowledge: the whole buried knowledge of the personal and cultural foundering of the relations between the sexes, and a self-knowledge that can be won only through the act of criticism.”(DuPlessis, 1979: 295). Há então que construir uma nova História, um novo continente onde as mulheres tenham acesso ao conhecimento e ao poder, para definirem o rumo da História. Será que o eu lírico e, mais concretamente, Adrienne Rich estaria a pensar nas possibilidades que então se ofereciam às mulheres, à data em que o poema foi escrito, em 1972, ou seja, no mesmo ano em que é promulgado The Equal Rights Amendment? Por outro lado, está-se novamente aqui em presença do eu, do ser-mulher, mas também do eu que reflecte a experiência do ser-mulher, onde o pessoal é político, ao mesmo tempo que o eu poético, eu ficcional, reproduz, em linguagem poética, os anseios das mulheres face a uma nova realidade. E é, também, em presença de um novo momento da História que há que (re)definir e (re)formular a língua, atendendo a que esta dá forma ao pensamento e, uma vez que língua e pensamento são indissociáveis, dado que a relação entre ambos é dialéctica, há que encontrar uma outra língua. Daí que os versos “…/The words are purposes/ The words are maps/…” corporizem o novo sentido que, a partir de agora, tem de ser escrito numa outra língua, onde os objectivos para definir uma nova História se têm de desenhar em novos mapas, isto é, onde “The Cartographies of Silence”2 dêem lugar a The Dream of a Common Language, colectânea de poemas da autoria de Adrienne Rich, editada em 1978, sobre a qual escreve Joanne Feit Diehl: “Here Rich describes the dream of finding a language with the capacity to free itself from its own history, the power to escape the lengthening shadows of the patriarchal tradition of poetry in the West.” (Diehl,1980:530). Daí que seja propósito das palavras desenhar novos mapas, regidos por novas cartografias, onde se insira um novo continente, em que à mulher será dada a palavra e o direito de nomear, em vez de ter sua voz silenciada, como diz Adrienne Rich no ensaio “When We Dead Awaken: Writing as Re-vision”:“…our language has

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Nome de um poema inserido na colectânea The Dream of a Common Language.

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trapped as well as liberated us,(…)the very act of naming has been till now a male prerogative and (…)we can begin to see and name- and therefore liveafresh.”(Rich,1971:167). É importante relembrar o tempo da concepção do poema e a localização geográfica da sua autora, atendendo a que The Equal Rights Amendment acabara de inaugurar uma nova era para a História das mulheres norte-americanas, e é também relevante referir que esta emenda ainda hoje não foi reconhecida em todos os estados. Na verdade, a língua da tradição poética masculina, a língua do patriarcado terá de ser (re)inventada, (re)formulada, já que ela terá de atender a novas finalidades e terá de habitar um novo espaço a ser configurado num novo mapa, isto é, num mapa que dê lugar à experiência do feminino e que reconheça essa experiência em pé de igualdade com o masculino. Ao mesmo tempo, há que (re)inventar uma língua que, pela primeira vez, sirva a nova poesia e a nova arte, como refere Adrienne Rich num ensaio intitulado “Blood, Bread, and Poetry: The Location of the Poet” e no qual ela diz:“I felt for the first time the closing of the gap between poet and woman. Women have understood that we needed an art of our own: to remind us of our history and what we might be…” (Rich,1984:249). É, com efeito, nesta localização que Adrienne Rich se encontra, aquando da concepção do poema em análise. A estrofe seguinte debruça-se sobre o propósito da viagem e escalpeliza esse motivo: the thing I came for the wreck and not the story of the wreck the thing itself and not the myth the drowned face always staring toward the sun the evidence of the damage worn by salt and away into this threadbare beauty the ribs of the disaster curving their assertion among the tentative haunters

Como se pode constatar, a poeta reitera o motivo que a levou ao empreendimento da viagem, isto é, the wreck, ou em português, o barco naufragado, na tradução portuguesa, inserida numa antologia de poemas, ainda no prelo, sobre a poesia de

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Adrienne Rich, da autoria de Maria Irene Ramalho e Mónica Varese Andrade, intitulada Paciência Selvagem – Poemas de Adrienne Rich. Cabe agora aventar as várias possibilidades interpretativas que o sintagma nominal the wreck poderá despoletar. Para tal, socorro-me da leitura proposta por Judith McDaniel, para quem o mesmo sintagma é passível de uma interpretação a vários níveis. Diz esta ensaísta: “The wreck is a layered image: it is the life of one woman, the source of successes and failures; it is the history of all women submerged in a patriarchal culture; it is that source of myths about male and female sexuality which shape our lives and roles today.” (McDaniel, 1978). Podendo the wreck oferecer uma leitura a vários níveis, o primeiro nível, sugerido por McDaniel, aponta para a vida da autora da diegese do poema que, com seus sucessos e falhas, pretende conhecer o que está subjacente a the story of the wreck . Isto é, ela quer conhecer a verdadeira História de todas as mulheres que se viram obrigadas a permanecer silenciadas na cultura patriarcal e que, à semelhança da História de outros grupos oprimidos, não consta dos compêndios de História. Na verdade, à poeta não basta conhecer a História oficial, contada pelos até então agentes da História, os homens. A poeta quer conhecer “the thing itself and not the myth”, pois quer encontrar a explicação que presidiu à génese dos mitos sobre a sexualidade masculina e feminina, fonte de criação de papéis masculinos e femininos e, como tal, geradora de desigualdades profundas. Para aceder ao conhecimento e empreender a desmitificação, a poeta viaja agora sem máscara, ou seja, sem defesa, o que indica que ela está em ambiente favorável e não hostil, bem como preparada para descobrir o que subjaz ao mito. Assim avança em direcção a the wreck, despida, viajando apenas o corpo, em relação ao qual the drowned face, funciona aqui como sinédoque. E é o rosto afogado, de olhar sempre fixo no sol, símbolo da inspiração divina, na tradição falocêntrica, que procura a prova do prejuízo causado às mulheres, “the evidence of damage”. O rosto afogado representa o mergulho no abismo, do qual poderá resultar um novo corpo, um novo texto, uma nova História e, acima de tudo, um novo eu. Será este novo eu que surge na estrofe seguinte, um eu que não é mais indissolúvel, mas um eu em que está bem patente uma identidade dividida?

This the place And I am here, the mermaid whose dark hair streams black, the merman in his armored body.

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We circle silently about the wreck we dive into the hold. I am she: I am he

Como se verifica pela leitura da abertura desta estrofe, a viajante chega finalmente ao destino da viagem, declarando “This is the place”. Com efeito, é no lugar que alberga o barco naufragado que se processa a cisão do eu e onde se faz a descoberta de um eu identificado com o feminino e com o masculino, como nos mostram os segundo e terceiro versos desta estrofe. O sujeito poético identifica-se com a sereia e com o homem-sereia, ele é feminino e masculino num só corpo, corpo uno e indivisível, porém portador de uma mente dividida em dois géneros: o feminino e o masculino. Poder-se-á ler esta cisão do eu como a defesa da androginia, à semelhança do que pensava no início dos anos setenta Kate Milett, que via nesta o locus utópico para a integração das culturas masculina e feminina. Escreve Rosemarie Tong a propósito da concepção de androginia defendida pela Kate Millett de Sexual Politics: “For Millett (…)constructing the androgynous person consisted in identifying and then combining the most positive and masculine and feminine traits.”(apud Tong, 1995:101). Quinze anos depois de Millett, Marilyn French faz a apologia de uma sociedade andrógina como o paradigma da sociedade ideal, segundo a interpretação de Rosemarie Tong: “…the best society is an androgynous one in which the historically feminine values of love, compassion, sharing, and nutritiveness are treasured just as much as the historically masculine values of control, structure, possessiveness, and status.”(apud Tong, 1995:99/100). Também, sabendo do contributo dado pela corrente do feminismo radical que contesta a categoria de género, já que esta assenta numa construção social, poder-se-á ver o desdobramento do eu apresentado nesta estrofe como a necessidade do aniquilamento do binómio masculino/feminino e a reivindicação de uma nova identidade que reúna dentro de si as características femininas e masculinas. Sob este prisma, poderá o sujeito poético clamar e apelar para a androginia, enquanto necessidade de inserção dentro de si da visão do feminino e do masculino. Tendo em consideração o momento histórico em que se inscreve o poema, o eu poético vislumbra a utopia de uma sociedade onde o she e o he converjam num we, ou seja, onde o feminino juntamente com o masculino venham a construir uma sociedade, não mais assente no primado da subjugação da mulher pelo homem, isto é, numa sociedade não mais assente no patriarcado. Se ao mergulhar no 10

barco naufragado, o eu se dividiu em the mermaid e em the merman, mas depois se reúne num we, para logo se sub-dividir novamente num she e num he, como remata a última linha desta estrofe e assim prosseguir na estrofe seguinte, e mais à frente nessa estrofe voltar a ser we, estamos não só em presença de um eu que rejeita a dicotomia masculino/ feminino e que, a uma primeira leitura, se parece limitar a um ser andrógino, para dar lugar a um eu fluido, múltiplo que aponta para a desconstrução do eu, enquanto categoria fixa. É este aspecto bem patente na antepenúltima estrofe do poema que se mantém na penúltima: whose drowned face sleeps with open eyes whose breasts still bear the stress whose silver, copper, vermeil cargo lies obscurely inside barrels half-wedged and left to rot we are the half-destroyed instruments that once held to a course the water-eaten log the fouled compass

Porém, à luz do momento da criação do poema, a leitura do eu poético aponta para a androginia nas duas últimas estrofes acima abordadas, na esteira da mesma concepção defendida por Virginia Woolf em A Room of One’s Own, onde esta refere:“ It is fatal to be a man or woman pure and simple; one must be woman-manly or manwomanly.”(Woolf, 1993[1929]:94). Na linha de pensamento defendida por Woolf e por uma das primeiras teóricas do feminismo radical como Kate Millett, Adrienne Rich escrevera “The Stranger”, poema inserido na colectânea Diving into the Wreck e escrito em 1972, ou seja no mesmo ano de “Diving into the Wreck”. Neste poema, o sujeito poético declara“…/if they ask my identity/ what can I say but/ I am the androgyne/…”. Este enunciado reforça a tese da mente andrógina como forma de libertação e superação da dicotomia masculino/feminino, e corrobora a identidade do eu poético do poema em análise, como um eu que faz a apologia da androginia. Todavia, sabe-se hoje que Adrienne Rich vem a rejeitar tal posição posteriormente. De facto, Robert Gelpi refere que:“Rich has even said that she regrets the line ‘I am the androgyne’ in the 1972 poem ‘The Stranger’ and that she won’t use the term any more, since androgyny in practice merely masks male appropriation of the feminine.”(Gelpi, 1973:298). Maria Irene Ramalho de Sousa Santos e Ana Luísa Amaral também subscrevem que “… o 11

andrógino não é senão o masculino em que se fundiu, enriquecendo-o, o feminino.”(Santos/ Amaral, 1997:6). Por outro lado, ao situar-me eu, leitora numa outra localização diferente da de Adrienne Rich, não poderei limitar-me a interpretar a flutuação do eu à luz da androginia. No entanto, devo salientar que a androginia se oferece, ao tempo da escrita do poema como a utopia possível, como é aliás corroborado por Margaret Atwood num artigo de crítica face à publicação do livro Diving into the Wreck :“Given her view that the wreck (…)cannot be redeemed; the task of the woman, the She, the powerless, is to concentrate not into fitting the landscape but on redeeming herself, creating a new landscape…”(Atwood,1973:281). Assim, a meu ver, a flutuação do eu, apresentada nas antepenúltima e penúltima estrofes, vem de encontro a um eu localizado num tempo e numa concepção pósestruturalistas, onde todos os binómios são postas em causa. Deste modo, enquanto leitora, situo o eu deste poema num tempo de leitura e num momento em que as dicotomias, sustentáculos das hierarquias, são questionadas, e onde como diz Hélène Cixous:“ Organization by hierarchy makes all conceptual organization subject to man.”(Cixous, 1997:92). E é nesta linha de pensamento que parto para a conclusão deste trabalho com a última estrofe.

We are, I am, you are by cowardice or courage the one who find our way back to this scene carrying a knife, a camera a book of myths in which our names do not appear.

A estrofe que fecha o poema aponta para a desfragmentação da existência do eu, que se quer unir e reunir com we are e you are. Aliás, a desfragmentação da identidade do sujeito poético não se concretiza, embora esse motivo se apresente como utopia, como o abraço entre we are ( nós, as mulheres), I am (eu, poeta), you are (tu, leitora), ou seja, o abraço da sororidade feminina. Na realidade, o verso “We are, I am, you are” funciona como o referente, em relação ao qual o sujeito the one who é seguido da forma find, o que representa uma transgressão face às regras da sintaxe, visto que é quebrada a regra da concordância. Com efeito, o desrespeito pela sintaxe poderá ser interpretado 12

como uma indicação de que, apesar do desejo, não se poderá concretizar ainda a sororidade. Aliás, a leitura desta última estrofe remete-nos para a abertura do poema, pois o sujeito poético chega ao fim da viagem tal como quando partiu, isto é, “/carrying a knife, a camera/ a book of myths/”. No livro de mitos que a poeta transporta no fim da jornada, ela refere que “our names do not appear”, ou seja, os nomes das mulheres não constam desse livro, o que se pode ler como um momento da História em que as mulheres estão ainda a dar os primeiros passos como sujeitos e, por conseguinte, ainda não existem feitos que lhes sejam reputados, enquanto agentes da História. Na verdade, com The Equal Rights Amendment, as mulheres estão ainda nos primórdios da sua História, ou como se argumentaria no início da década de setenta do século passado, a mulher começava a fazer a herstory. Contudo, é de salientar que o sujeito poético ao querer convergir em the one o We, o I e o you manifesta, ao nível do desejo, a realização de uma utopia feminina, ainda não concretizada materialmente, para a qual é preciso unir esforços, e daí que o fim do poema nos remeta para o início, pois a História das mulheres não se rege por um tempo linear, mas sim por um tempo circular. E é com a clarividência desta noção de tempo, subjacente à construção da História das Mulheres, que a poeta nos quer dizer que a História das Mulheres se encontra em construção. Daí que a poeta, ao transportar o livro dos mitos com que iniciou a viagem, se mantenha com ele ao cabo desta, o que nos faz pensar na necessidade de voltar a fazer a viagem ou as viagens necessárias até que o feminino consiga viver em pé de igualdade com o masculino. Em conclusão, à imagem do movimento do poema que remete para o seu início, também eu volto ao início do trabalho e à questão colocada relativamente ao livro dos mitos e ao seu papel perante a re-visão proposta por Adrienne Rich face à herança poética e literária herdada da tradição masculina. De facto, como diz Rich no ensaio “When We Dead Awaken: Writing as Re-Vision” :“Re-vision – the act of looking back, of seeing with fresh eyes, of entering an old text from a new critical direction – is for women more than a chapter in cultural history: it is an act of survival.”(Rich, 1971:167). E é como “um acto de sobrevivência” que tive de olhar para trás, para ver com novos olhos um velho texto. À distância de trinta e seis anos, tentei ler “Diving into the Wreck” sob uma perspectiva nova, isto é, sob uma perspectiva que integrasse a génese do poema à luz do contexto histórico e político em que emergiu. Fi-lo tendo presente a simultaneidade do seu aparecimento com a promulgação do Equal Rights Amendment, 13

bem como com a corrente do feminismo radical no qual a autora deste, à época, se inseria, articulando a minha leitura localizada no tempo e no espaço que habito. Tentei, como leitora feminista, fazer uma outra leitura feminista que tivesse como pano de fundo ao texto poético as condições históricas e políticas que tornaram possível traduzir em arte a vida. Assim, dou por acabado este ensaio citando, mais uma vez Adrienne Rich em “Blood, Bread and Poetry: The Location Of The Poet”, para quem “…poetry can be ‘about’, can root iself in, politics. Even if it is a defense of privilege, even if it deplores political rebellion and revolution, it can, may have to, account for itself politically, consciously situate itself amid political conditions, without sacrificing intensity of language.”(Rich, 1984:243).

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