Afinal de contas, o que é a teoria crítica?

May 20, 2017 | Autor: Amaro Fleck | Categoria: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Jurgen Habermas, Axel Honneth, Teoría Crítica, Teoria Critica
Share Embed


Descrição do Produto

Afinal de contas, o que é a teoria crítica?1 Amaro Fleck2

Todos aqueles que trabalham com teoria crítica se veem, volta e meia, em apuros diante das dificuldades que surgem quando confrontados com a espinhosa questão: afinal de contas, o que é a teoria crítica? Este problema, à primeira vista escolar, é capaz de provocar calafrios. E isto porque ele envolve toda uma série de adversidades: a escolha de uma resposta, frente a outras possíveis, significa, no mais das vezes, a exclusão de teorias que se veem a si mesmas, ou que às vezes são vistas, como teorias críticas. Mas a não delimitação, por sua vez, faz com que o termo perca sua capacidade de diferenciação: não é à toa que se encontrem usos da expressão para denotar todo ou quase todo o conjunto da filosofia continental. Não pretendo, nesta exposição, oferecer uma resposta definitiva ou exaustiva para a questão. Minha intenção é, antes, a de tecer algumas reflexões que permitam introduzir o leitor na discussão das diferentes formas de se compreender a teoria crítica, das rupturas e das continuidades de sua história, de suas supostas peculiaridades ou traços comuns, enfim, dos elementos que criam alguma espécie de “ar de família” entre as distintas trajetórias teóricas que a compõe, mas isto por um lado, pois, por outro, o meu intuito é também o de intervir em um debate corrente, mostrando as limitações e mesmo a pobreza daquilo que vem sendo considerado, nos principais meios acadêmicos, como o estágio atual da teoria crítica. Destarte, não me importa tanto estabelecer um critério capaz de justificar quando o rótulo de teoria crítica deva ser aplicado, e quando não, para uma determinada teoria; o que me importa é mostrar a multiplicidade daquilo que costuma ser assim denominado e polemizar sobre seu estágio atual. Para tentar realizar estes objetivos, divido minha apresentação em três partes. Na primeira gostaria de descrever três respostas usuais que apontam para uma peculiaridade, para uma diferença específica que seria capaz de distinguir a teoria crítica das demais teorias sociais, assim como indicar os problemas de cada uma destas tentativas. Na segunda, busco oferecer uma alternativa, a qual consiste, por um lado, em 1

Texto escrito para apresentação na V Semana de Filosofia da UFLA e no II Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, eventos ocorridos em Junho de 2017. Trata-se de uma exposição abreviada de um artigo de mesmo nome que será, em breve, submetido para publicação. Críticas, comentários e sugestões são bem-vindos: [email protected]. 2 Professor de Filosofia da UFLA. Esta exposição é parte da pesquisa realizada durante o estágio de pósdoutorado na UFMG.

2

destacar uma série de afinidades, em vez de um único traço distintivo, que daria um “ar de família” para a teoria crítica, e, por outro, em compreender o problema teórico que dá ensejo à criação da teoria crítica. Por fim, na terceira e última parte pretendo esboçar um contraste entre a proposta de teoria crítica desenvolvida entre os anos 1930 e 1970 por teóricos como Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, dentre outros, e o programa teórico crítico desenvolvido a partir de 1970 por Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rahel Jaeggi, para citar apenas alguns nomes.

Três respostas: institucional, genealógica e metodológica “Teoria crítica” é a expressão cunhada por Horkheimer em 1937 para designar o projeto ou programa teórico que estava sendo perseguido pelo grupo de investigadores que se reuniram em torno do Instituto de Pesquisa Social, primeiramente em Frankfurt, até 1933, depois no exílio americano, até o final da década de 40, e então de novo em Frankfurt, ao menos para aqueles teóricos que regressaram do exílio (caso de Horkheimer, Adorno e Pollock). A teoria crítica é um tipo de teoria social, isto é, ela tem por objeto a sociedade em seus mais diferentes aspectos, e pode ser caracterizada inicialmente por não buscar meramente compreender a sociedade, mas também transformá-la. Trata-se, portanto, de uma teoria que tem por objetivo oferecer uma explicação da sociedade que é ao mesmo tempo uma crítica dela. Mas como identificar as teorias que podem ser rotuladas ou classificadas como teorias críticas? E, mais importante, como compreender efetivamente o que significa teoria crítica, para além desta primeira explicação muito rudimentar? Na literatura sobre o assunto podem ser identificadas três respostas para estas questões. Denomino a primeira de institucional. De acordo com ela, teoria crítica é o tipo de teoria desenvolvida no Instituto de Pesquisa Social, seja ela qual for. Quem adota esta definição não precisa se preocupar com qualquer afinidade de fato existente entre os mais diferentes autores que, em algum momento, se aproximaram do Instituto. Todos eles podem ser vistos como teóricos críticos. A maioria dos relatos que falam das distintas “gerações” de teóricos críticos aceita, ainda que de forma implícita, este modelo institucional de compreensão do que seria teoria crítica. De acordo com estes, a história da teoria crítica pode ser contada por meio de sucessivas gerações de teóricos que estiveram filiados ao Instituto. A primeira geração seria aquela de Horkheimer, Marcuse e Adorno; a segunda a de Habermas, Offe e Wellmer; a terceira a de Honneth e

3

de Forst; a quarta e atual (embora a segunda e terceira geração ainda esteja viva e produzindo) composta por Jaeggi, Celikates, Saar e Stahl. O problema de adotar uma definição como esta é que esvazia completamente a expressão teoria crítica. Ela deixa de ser um programa ou projeto para passar a ser quase que uma simples formalidade geográfica. O problema é que os falantes não se referem a isto quando utilizam a expressão, de forma que é preciso encontrar algo mais substantivo que justifique seu emprego. A segunda resposta é a genealógica. Se for preciso encontrar algo de substantivo que justifique o emprego da expressão “teoria crítica”, então se deve recorrer à gênese de tal tradição e analisar o seu projeto original. De acordo com esta alternativa, tudo o que se assemelhe ao programa delineado por Horkheimer ao longo dos anos 1930 pode ser chamado de teoria crítica, o restante não. A teoria crítica, assim entendida, é caracterizada por ser uma espécie de “materialismo interdisciplinar” que busca analisar: O problema da conexão que subsiste entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e as transformações que têm lugar nas esferas culturais em sentido estrito – às quais não pertencem somente os assim chamados conteúdos espirituais da ciência, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, a moda, a opinião pública, o esporte, as formas de divertimento, o estilo de vida etc. (Horkheimer, 1997, p. 130)

O problema de tal escolha é duplo: em primeiro lugar, tal compreensão torna o programa teórico demasiado rígido, de tal modo que dificilmente algo de fecundo poderia surgir daí; em segundo, isto contradiz elementos da própria “teoria crítica original”, pois esta reconhece não apenas que a verdade tem um núcleo temporal (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 9), mas também que cabe à teoria crítica diagnosticar os problemas e as tendências de seu tempo, e que as transformações sociais em curso devem acarretar também mudanças na forma teórica capaz de apreendê-las. Para usar uma analogia externa, o uso do termo “dialética” na obra de Hegel não é menos legítimo por ele não guardar quase nenhuma afinidade com o emprego original do termo contido na obra de Platão ou de Zenão de Eleia; do mesmo modo, o uso do termo “teoria crítica” pode ser válido para designar o projeto teórico de Honneth sem com isso significar que seu projeto tenha qualquer semelhança com o de Horkheimer. Se o critério genealógico ou originário fosse o escolhido, em sentido estrito é provável que mesmo os teóricos da primeira geração só estariam fazendo teoria crítica durante um período do

4

desenvolvimento de suas obras, e em sentido lato os teóricos da primeira geração e poucos outros, provavelmente sem quaisquer vínculos com o Instituto. A terceira resposta é a mais elaborada e também a mais aceita. De acordo com ela, a teoria crítica pode ser definida por sua metodologia. Assim, o que faria de uma teoria social uma teoria crítica da sociedade é o emprego da crítica imanente, um tipo específico de crítica que não se baseia na adoção de uma norma positiva, de um ideal construído de antemão do que seria a sociedade emancipada, mas antes encontraria o seu próprio critério normativo ou bem nos discursos de legitimação da ordem social existente (a crítica da ideologia em sentido estrito); ou bem em possibilidades inerentes a esta própria ordem, sejam elas positivas (o desenvolvimento técnico, por exemplo), ou negativas (o sofrimento social que poderia ser abolido); ou ainda em potenciais de racionalidade presentes em certas práticas sociais (como a ação comunicativa ou a interação). Novamente, o problema desta alternativa é duplo: por um lado, o “método” utilizado pelos teóricos críticos varia muito, isto é, ainda que todos eles recusem uma crítica externa, transcendente, eles entendem coisas muito distintas pelo termo “crítica imanente”3, além de se comprometerem em graus distintos com este procedimento; por outro lado, os teóricos críticos não são os únicos a defenderem o uso da crítica imanente na teoria social, para mencionar apenas um exemplo, o teórico neoliberal Friedrich von Hayek (cf. 1982, p. 24) também defende seu uso, de modo que isto não pode servir como seu elemento diferenciador.

Afinidades eletivas, resistência à especialização na teoria social Mas creio que muito mais interessante do que apontar para um traço distintivo ou para uma diferença específica que permita classificar a teoria crítica é buscar compreendê-la a partir de várias afinidades que conferem a ela certo “ar de família”. Gostaria de oferecer assim um elenco provisório e incompleto daqueles elementos que tornam semelhantes as distintas teorias críticas. Para tanto, devo inicialmente desistir de qualquer pretensão de abarcar tudo aquilo que é denominado pela expressão. O elenco que descreverei vale tão somente para a teoria crítica desenvolvida entre 1930 e 1970.

3

O próprio Habermas sequer afirma que a reconstrução normativa seria uma espécie de crítica imanente. Esta é apenas uma interpretação proposta por seus leitores que tentam aproximá-lo da teoria crítica, como Titus Stahl (2013) e Luíz Repa (2016).

5

No final desta exposição devo contrastar muito brevemente este elenco com a teoria crítica feita a partir da década de 1970. O programa proposto por Horkheimer e que serve de referência ao trabalho teórico do Instituto entre os anos 1930 e 1960 está baseado no entrelaçamento de três eixos. O primeiro eixo é uma recusa consciente e deliberada pela divisão do trabalho científico então em curso. A teoria social vivia então um processo de fragmentação, de forma que parte dela passava a ser objeto da sociologia, parte da psicologia social, parte da economia e parte da filosofia. Este processo, que por um lado era positivo na medida em que permitia um maior refinamento nas investigações, era por outro lado negativo por separar tanto a pesquisa empírica da especulação conceitual quanto a explicação da crítica. A teoria crítica se insurgia contra isto precisamente propondo um tipo de pesquisa interdisciplinar, ou mesmo não disciplinar, que permitisse investigar processos sociais em seus mais diferentes aspectos e, sobretudo, em seus cruzamentos. Em outras palavras, cabia mostrar como se entrecruzavam a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e as transformações na esfera da cultura, em vez de tratar estes como campos separados e sem relação. Para tanto, era preciso vincular a pesquisa empírica com a especulação conceitual, buscando nos detalhes indícios das grandes transformações sociais. O segundo eixo é composto pelo caráter fortemente materialista da crítica social elaborada pelos frankfurtianos. Materialismo significa, então, que embora sujeito e objeto se codeterminem, que constituam a si mesmos por meio de seu confronto mútuo, o objeto tem certa prioridade. Tal prioridade é indício de que toda elucubração teórica é, em certa medida, secundária, posterior e mesmo oriunda de uma situação material. Em outras palavras, a prioridade do objeto significa que os homens teorizam a partir e por causa de suas insatisfações, de seus sofrimentos, e que a teoria, quando não fetichizada e convertida em uma finalidade em si mesma, é um instrumento que busca remediar ou abolir estas insatisfações e sofrimentos. A teoria que se sabe um esforço para remediar ou abolir o sofrimento não precisa se ocupar (e nem deveria) com modelos ou situações ideais, pelo contrário, ela parte da crítica das injustiças e dos sofrimentos sociais patentes que poderiam, dado o desenvolvimento técnico alcançado pela humanidade, ser abolidos por meio de transformações sociais. Posto que ela não necessita fundamentar a si mesma, ela pode partir diretamente da observação das tendências sociais, isto é, das transformações então em curso. Perceber a sociedade como algo em movimento é imprescindível para uma teoria que não busca apenas compreender o que está

6

ocorrendo, mas intervir neste processo, fomentando o que pode haver nele de emancipatório e resistindo ao que nele há de regressivo. Em outras palavras, o programa delineado por Horkheimer diz que a teoria deve começar pela construção do diagnóstico mais preciso possível da situação social presente. O terceiro e último eixo do projeto original da teoria crítica que serviu, em suas linhas gerais, como orientação para a teoria crítica desenvolvida entre os anos 1930 e 1960 diz respeito ao objetivo da própria teoria e aos meios pelos quais ela poderia alcançá-lo. Como já mencionado, a teoria crítica – que sempre tem por objeto a sociedade – não quer simplesmente compreender seu objeto, mas sim transformá-lo. Seu objetivo, portanto, não é ele mesmo teórico, e sim prático: trata-se de uma teoria que se vê como um instrumento para emancipação dos homens daquelas situações que o exploram, oprimem e dominam. Para tanto, a teoria crítica não deve se vincular a um grupo social supostamente oprimido, servindo como porta-voz de suas demandas. Pelo contrário, é apenas mantendo a sua própria independência que ela pode não ceder em seu teor crítico. Uma vez que a dominação se reproduz por meio destas pessoas, inclusive daquelas que se encontram nas piores situações, a teoria crítica tem por objetivo torná-las conscientes de sua situação objetiva para que não cooperem com as forças que as oprimem. Para tanto, é necessário que a teoria se confronte às visões de mundo dos concernidos, em vez de simplesmente reforçá-las. Em outras palavras, caberia ao teórico crítico mostrar como os sofrimentos e fracassos pessoais são determinados socialmente e desnecessários, ainda mais quando a ideologia insiste em privatizá-los. Nas palavras de Adorno, na medida em que “faz parte do mecanismo da dominação impedir o conhecimento dos sofrimentos que ela produz” (1992, p. 53), Um método catártico, que não tivesse sua medida na eficiência da adaptação e no sucesso econômico, deveria almejar trazer as pessoas à consciência da infelicidade, tanto da universal quanto da individual, inseparável daquela, tirando-lhes as satisfações ilusórias em função das quais a ordem execrável se perpetua nelas, como se esta já não as tivesse suficientemente em seu poder desde fora. (Adorno, 1992, p. 53)

Além disso, o teórico crítico se diferencia do tradicional por não se encontrar cindido em um teórico especializado, por um lado, e um cidadão, por outro. Sua teoria é engajada, ela mesma surge das inquietações cidadãs, de forma que as intervenções nos debates públicos é consequência do desdobramento e da fecundidade de suas investigações. Assim, a teoria crítica se caracteriza também pelo alto nível de

7

reflexividade: trata-se de uma teoria que precisa ser consciente de suas intervenções, do contexto e das relações de força em que está inserida, da divisão do trabalho social e dos males decorrentes dela. Estes três eixos, cada qual com uma série de elementos, se entrecruzam na obra de cada um dos teóricos críticos da assim chamada “primeira geração”. Aparecem com maior clareza em uns, com maior refinamento em outros, mas estão ao menos em certa medida presentes em todas as obras, em todas as trajetórias dos teóricos então vinculados ao Instituto. Por mais que tais obras e trajetórias difiram, e muito, em suas teses e argumentos, é isto que dá um “ar de família” e permite reconhecê-las como pertencentes a uma tradição ou a um mesmo modo de fazer teoria social. Com o término de

tais

trajetórias

teóricas,

tais

elementos



em

um

elenco

provisório:

interdisciplinaridade; vínculo da pesquisa empírica com a especulação conceitual; prioridade do objeto; ênfase no diagnóstico de época; ausência de fundamentação normativa (o que não significa ausência de normatividade); anseio emancipatório e radical independência teórica e reflexividade – passam a compor, em maior ou menor medida, novos programas teóricos, elas servem de inspiração para uns, são influências mais ou menos determinantes para outros, de modo que os mais distintos investigadores da teoria social podem se reconhecer como pertencentes a tal tradição e reivindicar para si o legado da teoria crítica das primeiras décadas, mas trata-se aí de outros contextos, de outros projetos. Um contraponto com a teoria crítica das assim chamadas “segunda, terceira e quarta gerações” pode ajudar a elucidar o tamanho da ruptura e das diferenças com aquilo que hoje é chamado de “teoria crítica”, sobretudo nos ambientes mais acadêmicos.

Esboço de um contraste Termino minha exposição fazendo um breve contraste entre o programa da teoria crítica desenvolvido entre os anos 1930 e 1970 e o projeto teórico-crítico feito desde então. O primeiro e principal contraste diz respeito ao mote que incita o desenvolvimento da teoria. A teoria crítica foi, dos anos 1930 aos anos 1970, uma tentativa, ao final fracassada, mas não menos fecunda e interessante por isso, de fazer frente à compartimentação da teoria social. Em outras palavras, tratou-se de uma resistência organizada contra o processo de especialização da teoria social, de sua divisão em assuntos que concernem uns à filosofia, outros à sociologia, à economia, à psicologia, etc.

8

Este era um problema geracional. Marx, Weber, Durkheim ou Simmel jamais se preocuparam com as fronteiras entre filosofia, sociologia, economia e psicologia social. Transgrediam-nas por desconhecimento ou por falta de reconhecimento, de tão mal traçadas que estavam. Horkheimer, Adorno e Marcuse não podiam ignorá-las, mas tampouco quiseram aceitá-las e se adaptar a elas. Suas próprias resistências, no entanto, só foram possíveis porque o processo de compartimentação da teoria social ainda estava incompleto, ainda não havia se consumado. Habermas, Honneth e a “nova geração” sequer podem questionar a divisão do trabalho científico, uma vez que já encontraram esta divisão inteiramente estabelecida. As próprias condições para se fazer teoria social hoje exigem a fidelidade a um compartimento, a uma especialidade. A guinada habermasiana nada mais foi do que a escolha pela filosofia em detrimento da sociologia, da economia e da psicologia social. Se o problema da primeira geração era a divisão do trabalho científico que impedia a elaboração de uma teoria social que fosse ao mesmo tempo empírica e especulativa, explicativa e crítica, o problema da segunda é inteiramente distinto. O que incita a teoria habermasiana, assim como as teorias críticas posteriores, é algo interno à filosofia, a saber, a busca por uma fundamentação normativa capaz de ancorar a crítica social. Esta é uma mudança com grandes consequências. A primeira delas é que a teoria crítica deixa de visar diretamente seu objeto para se preocupar, antes, com as condições de possibilidade desta própria teoria. Isto é, em vez de ser uma teoria que busca diagnosticar as mazelas do presente e as tendências sociais, seja na esfera econômica (com a consolidação de um capitalismo tardio caracterizado pela integração social, pelo planejamento, pelo monopólio), seja na esfera psíquica (com o desaparecimento da independência individual, com o enfraquecimento do ego, com a consolidação de uma personalidade autoritária marcada por certos traços específicos de mentalidade), seja ainda na esfera cultural (com a onipresença da indústria cultural que converte tudo em mercadorias, atrofiando a imaginação e criando novas necessidades a serem atendidas por um mercado ávido por consumidores) como foi o caso da teoria crítica em suas primeiras décadas; a teoria crítica posterior é cada vez mais metateórica, ela se ocupa com buscar reconstruir os potenciais racionais contidos em práticas sociais, como a finalidade do entendimento mútuo que é perseguida por meio da comunicação linguística ou os pressupostos necessários para que o discurso ocorra. Em outras palavras, se a primeira teoria crítica se ocupa diretamente com as mazelas sociais, ainda que se trate de um tipo de teoria altamente reflexiva (isto é,

9

consciente de si mesma, de sua função social e das intervenções que faz), a teoria crítica habermasiana, assim como a posterior a ela, opera em um nível muito mais abstrato, pois trata primeiramente de aspectos metateóricos, para então construir teorias da ação ou da modernidade (no caso de Habermas), ou “gramáticas dos conflitos sociais” (no caso de Honneth), quando não se limita simplesmente a refletir sobre problemas metodológicos internos à tradição da crítica social, como o sentido da crítica, o significado de crítica imanente, a história e defesa de um conceito (como os de reificação e de alienação), o problema da posição do teórico crítico, isto é, se ele assume a perspectiva de um participante ou se pretende de alguma forma se colocar em uma perspectiva externa à situação tratada, ou ainda simplesmente fazer história das ideias relatando (em geral de forma bastante precária e problemática) a história da teoria crítica. Outros contrastes podem ser traçados, como o abandono da dialética em prol da reconstrução. Mas gostaria apenas de concluir com duas observações. O primeiro é que há uma tendência crescente de “ensimesmamento” da teoria crítica, isto é, ela vem perdendo paulatinamente sua capacidade para analisar criticamente o mundo, para passar a ter por objeto a si mesma, os seus problemas metodológicos e a sua história. A consolidação desta tendência é a morte da teoria crítica. Ela passa com isso a ser mais um dos objetos no museu das ideias, se é que já não passou. A segunda é que um dos contrastes que precisa ser feito diz respeito ao diagnóstico de época, em especial ao papel dado à economia e à crítica ao capitalismo. Ainda que alguns dos teóricos da primeira geração possam ter se resignado perante o capitalismo, deixando de criticá-lo ao longo de seu desenvolvimento teórico – caso de Horkheimer e de Pollock – é claro que os dois teóricos que se sobressaem na década de 60, Adorno e Marcuse, servem de inspiração para a renovação do pensamento anticapitalista posterior. Isto não é um acaso: em suas teorias havia não apenas uma incisiva crítica ao capitalismo e à dominação econômica como também tentativas fecundas de compreender as mudanças em curso na própria estrutura do capitalismo. As teorias posteriores são marcadas por uma forte resignação em relação à possibilidade de superar o capitalismo, a ponto de quase abandonar o uso do termo, tratando a economia como um subsistema autonomizado que só se torna problemático quando ultrapassa os limites que, supostamente, deveria respeitar, imiscuindo-se no mundo da vida e o colonizando. Nas palavras de Nancy Fraser: “a crítica da sociedade capitalista, crucial para as primeiras gerações, quase desapareceu da agenda da teoria crítica. A crítica

10

centrada na crise capitalista, especialmente, foi declarada reducionista, determinista e ultrapassada. Hoje tais verdades estão em frangalhos” (Fraser, 2011, p. 137). Em um momento de agravamento de uma crise econômica que está celebrando seu aniversário de uma década, e que provavelmente não desaparecerá tão cedo e sem deixar estragos gigantescos, qualquer análise que se pretenda crítica da situação social atual não pode prescindir da análise não apenas da crise econômica, mas da própria natureza do capitalismo.

Referências: ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Ática, 1992. ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Jorge Zahar Ed., 1985. FRASER, Nancy. “Marketization, social protection, emancipation: toward a neoPolanyian conception of capitalist crisis”. In: CALHOUN, Craig e DERLUGUIAN, Georgi (Ed.). Business as usual: The roots of the global financial meltdown. New York University Press, 2011. HAYEK, Friedrich. Law, Legislation and Liberty. Vol. 2: The Mirage of Social Justice. Routledge, 1982. HORKHEIMER, Max. “A Presente situação da filosofia social e as tarefas de um instituto de pesquisas sociais”. In: Praga: estudos marxistas, n. 7, 1999. REPA, Luíz Sérgio. “Reconstrução e crítica imanente: Rahel Jaeggi e a recusa do método reconstrutivo na Teoria Crítica”. Cadernos de Filosofia Alemã, vol. 21, n. 1, 2016. STAHL, Titus. “Habermas and the Project of Immanent Critique”. Constellations, vol. 20, n. 3, 2013.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.