Afinal o que é fotografia documental? Será “O que um fotógrafo-documental disser que é”?

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Afinal o que é fotografia documental? Será “O que um fotógrafo-documental disser que é”?

Vivemos num tempo onde polémicas mais vigorosas tendem a ser vistas com maus olhos. Num tempo em que toda a gente realça a importância dos consensos. Temos de estar todos “unidos” dizem à boca cheia todos os comentadores. Esquece-se que o progresso resultou sempre no passado de lutas ideológicas frontais, muitas vezes violentas. Discussões mais acirradas são consideradas deselegantes e rapidamente consideradas como ataques pessoais e portanto coisa de gente pouco recomendável. Se compararmos as discussões politicas hoje no nosso parlamento com as discussões célebres do passado, as nossas parecem coisas de meninos de coro. Algumas polémicas recentes alicerçadas em crónica e contra-crónica nos jornais ou semanários são excepções raras que nos chamam a atenção. Se esta constatação de algum marasmo parece ser evidente no plano politico, onde o rotativismo do que se chama “as forças do arco do poder” tem resultado em governos com politicas que não se diferenciam muito no plano ideológico, ele também pode ser observado noutras áreas, nomeadamente no campo da chamada arte contemporânea. A arte, que pareceria ser por natureza um terreno fértil para polémicas e discussões acesas, como aconteceu no passado, nomeadamente no período que se costuma rotular de modernismo, tem-se vindo a transformar num terreno de silêncios e de falsos consensos, onde aqueles que porventura sentem que poderiam ter algo a dizer se calam

e quando muito resmungam impropérios nos bastidores. Esta situação paradoxal deve-se em parte ao facto de na chamada arte contemporânea terem desaparecido critérios técnicos e estéticos de avaliação da obra de arte. Quando “arte passa a ser aquilo que o artista diz ser arte” a discussão torna-se vazia de conteúdo. Se afirmá-lo, é suficiente, se esse é o argumento chave, deixa de ser possível uma discussão séria acerca da qualidade do objecto artístico. Vai-se discutir o quê? Se o artista o disse ou não disse? E na fotografia? Desde que a fotografia na década de 60 e 70, com os conceptualistas, conseguiu que lhe abrissem as portas do circuito da chamada arte contemporânea, que se colocou o problema de a valorizar perante uma fotografia que durante décadas tinha sido desvalorizada pelos “artistas”. Se para a arte bastava a afirmação do artista como selo validador do produto, para a fotografia, tão vilipendiada no passado como prática mecânica e desprovida de criatividade, tal não era suficiente. Para a valorizar, para vender esta fotografia “nova”, ela teria de ser outra coisa que a fotografia anterior nunca tinha sido. O ideal era nem ser fotografia. Para distinguir esta fotografia nova dos artistas da fotografia dos fotógrafos fabricaram-se argumentos, mais ou menos frágeis, alguns herdados do conceptualismo, muitas vezes encaixados à força em praticas fotográficas bem diferentes. Assim os artistas não seriam fotógrafos, mesmo se usassem máquinas fotográficas e fotografassem, mas sim artistas que se apropriavam da fotografia, ou quando muito utilizariam a fotografia como mera ferramenta para os seus projectos artísticos. A fotografia-fotografia dos fotógrafos versus a fotografia-ferramenta dos artistas. Foi a necessidade de alargar o campo da fotografia com direito a bilhete de entrada nos circuitos artísticos – a fotografia conceptual era já demasiado estreita - que obrigou a abandonar as visões mais restritivas daquilo que poderia ser classificado como arte ou fotografia contemporâneas e encontrar novas formas engenhosas de classificar a fotografia como arte. Tal permitiu que por exemplo na primeira grande exposição da chamada fotografia contemporânea na Tate Gallery em Londres em 2003, chamada “Cruel and Tender – The Real in the Twentieth-Century Photograph “, os curadores conseguissem juntar fotógrafos clássicos alemães e americanos como August Sanders, Albert Renger-Patzsch, ou Walker Evans a fotógrafos conhecidos do nosso tempo (contemporâneos?). Outro dos atributos difusos que temos visto a ser utilizado de uma forma recorrente para pretensamente distinguir os fotógrafos-artistas dos outros é o atributo de “fotografia documental”. Parece surpreendente pois o atributo documental pareceria ter uma leitura negativa, associado ao registo não criativo, de que por exemplo os pictorialistas tanto tentaram fugir, para serem aceites na comunidade de artistas, o que nunca conseguiram. Surpreendente é, mas nós estamos num campo fértil de surpresas. Mas para o utilizar como atributo distintivo de uma fotografia, também chamada contemporânea, da outra fotografia, o conceito “documental” teria de ser remoldado. Para nossa surpresa este documental não incluiria por exemplo o foto-jornalismo nem a reportagem fotográfica, práticas desvalorizadas. Documental seria afinal “um projecto fotográfico ficcionado a partir do real”, definição suficientemente vaga para, como facilmente compreenderemos, poder incluir todos os fotógrafos que se pretendam incluir e excluir

o que pretendam excluir. Jeff Wall seria documental, Robert Capa não. Cindy Sherman seria documental, Paulo Nozolino não. Este conceito de fotografia documental seria inspirado em Walker Evans, que teria sido o grande precursor desta atitude fotográfica. O que explica a frequência com que Walker Evans aparece associado a eventos da chamada fotografia contemporânea. Mas vejamos o que dizia Walker Evans sobre o assunto: Walker Evans was asked whether “photographs can be documentary as well as works of art.” He replied; “Documentary? That’s a very sophisticated and misleading word. And not really clear. You have to have a sophisticated ear to receive that word. The term should be documentary style. An example of a literal document would be a police photograph of a murder scene. You see, a document has use, whereas art is really useless. Therefore art is never a document, though it certainly can adopt that style.” Walker Evans, 1971 (American Suburb X, 2011) A última frase é relevante: "Therefore art is never a document, though it certainly can adopt that style". Ou seja, uma coisa é fotografia documental, outra coisa fotografia que adopta um estilo documental. Walker Evans era de facto um grande fotógrafo e era documental. Podemos, para aprofundar um pouco mais este tema, ver o caso de Jeff Wall, pois Jeff Wall seria para alguns o exemplo paradigmático dessa nova chamada fotografia documental ou documentária. Como se sabe, Jeff Wall tem uma fotografia guionada, encenada e manipulada digitalmente, recorrendo até muitas vezes a várias imagens para produzir uma imagem final que, provocando a ilusão de ser documental, seria tudo menos isso, quando muito até seria anti-documental, por questionar a forma como um pretenso documento, de facto o não é. Não se trata como é óbvio de discutir aqui a qualidade do trabalho de Wall, mas apenas o atributo de documental que algumas pessoas pretendem atribuir-lhe, apenas porque documental para a fotografia parece ser o mesmo que artístico e não se podem dar ao luxo de deixar Jeff Wall de fora. Compreende-se portanto que “documental” não pretende ser um atributo associado ao dominante aspecto-documento da imagem, mas sim um atributo distintivo, concedido por quem o pode conceder (Quem? Os mesmo que dizem se é arte? Os artistas?), e que pretende separar a fotografia artística da outra fotografia. Documental deixa de ser fotografia como registo-documento mas passa a ser um estádio artístico. Tal como vimos, e continuamos a ver muitas vezes, usar os termos “apropriação”, “fotografia ferramenta” ou “fotografia contemporânea”. Mas regressemos à fotografia de Jeff Wall. Jeff Wall cria objectos artísticos, muito mais próximos do cinema ou do teatro, do que da fotografia clássica, nomeadamente de Walker Evans, e que não são definitivamente fotografia documental, embora adoptem muitas vezes o estilo de fotografia documental (documentary style, como diz Evans). Mas vejamos o que o próprio Jeff Wall disse sobre o carácter documental do seu trabalho. Não constituindo argumento decisivo - o facto de um qualquer autor afirmar o “documentário” do seu trabalho teria sempre de ser argumento de importância relativa, quando esse atributo parece no presente ser um atributo valorizador - não deixa de ser

interessante ver o que autor considera acerca deste assunto. Numa entrevista de Jeff Wall a David Shapiro, lemos: Shapiro: Andreas Gursky and Wolfgang Tillmans are also making a sort of “monumental photography. ”WALL: I think that there there’s a lot of big photography. Photography’s gotten a lot bigger in the last ten or twelve years, because it’s become a known thing that a photograph can look great at that scale. So, now it’s become something that everybody can do. The scale of the photograph has been experimented with for decades, but it’s now become a known and popular artistic phenomenon. I worked on it; lots of people worked on it. But I think it was inherent in the nature of photography for that to happen. It was inherent in the fact that once photography got taken more seriously and was practiced in a more experimental way—a way that was more like the way people practiced other art forms—that newer elements of its nature would appear. Classic art photography, which was very much the predominant language until about the 70s, was based upon the documentary model. And it seemed to be satisfied with a small image, related to the world of book publications. There was no interest in larger-scale photography, and there were no grounds for it. Only when people came from outside the classic domain of photography and started practicing photography did some of these things that had been neglected get reconsidered. What I think is positive about that is that photography can function in the world very interestingly as art and can be experienced as art at a larger scale. It doesn’t mean anything anymore as experimentation, but it is now freely available as one of the actual capacities of the medium. The experimental work done since the 70s has unlocked many aspects of photography that weren’t really available or had been blocked in a way by the sort of perfected aesthetic of documentary-type photography. Shapiro: You don’t see yourself as a documentary photographer in any way? WALL: Sure I do. I think that all photography contains an element of reportage, just by nature, and so everybody who practices it comes into relation with that aspect in one way or another. What's interesting is that there’s no one way anymore to come into that relationship. I think in 1945 or 1955, it was clear that if you wanted to come into relation with reportage, you had to go out in the field and function like a photojournalist or documentary photographer in some way; that was expected, and everyone expected it of themselves, and there was no very clear alternative. No other aspect of photography was really taken seriously, and that was great nevertheless because classic documentary photography really is photography; it really does connect to the nature of the medium. But still, it does not cover the horizon. There are other practices that are equally deeply connected to what photography is, and as well, there is no single way to satisfy the documentary demand. There’s no one way to come into this relationship with reportage. I think that’s what people in the 70s and 80s really worked on: not to deny the validity of documentary photography, but to investigate potentials that were blocked before, blocked by a kind of orthodoxy about what photography really was.

O que diz Wall? Primeiro afirma claramente que o foto-jornalismo e as reportagens fotograficas até aos anos 70 eram "based upon the documentary model" "you had to go out in the field and function like a photojournalist or documentary photographer in some way". Ou seja esses fotógrafos faziam e fazem fotografia documental. Depois afirma que "all photography contains an element of reportage, just by nature, and so everybody who practices it comes into relation with that aspect in one way or another". E diz mais "not to deny the validity of documentary photography, but to investigate potentials that were blocked before, blocked by a kind of orthodoxy about what photography really was." Ou seja, a fotografia que ele faz é documental, apenas na medida em que toda a fotografia pressupõe de alguma forma um documento. Quando se fotografa, fotografa-se alguma coisa, mesmo que seja uma coisa construída ou uma ilusão. Estamos em suma perante a ideia do referente de Roland Barthes. E Jeff Wall afirma ainda que procura potenciais na fotografia que não existiam antes, quando a fotografia era por essência sempre documental. Que dizer desta aparente confusão? Nada que nos surpreenda ao fim e ao cabo. Nós vivemos num tempo onde tudo parece poder ser relativizado, onde os valores perderam o valor que tinham e consequentemente deixaram de ser valores. A estes tempos alguns chamam de pós-modernidade, conceito pouco claro, que se define sobretudo por ser posterior e antagónico ao tempo da modernidade, que era caracterizado por movimentos colectivos, por grandes esperanças e utopias sociais. Nesta pós-modernidade as fronteiras entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal ou entre justiça e injustiça diluem-se. Tudo vale, em função dos objectivos, e às vezes nem isso. Tudo pode ser tudo. Por isso, também a arte se transformou em qualquer coisa que o artista diga ser arte. Ou seja, tudo pode ser arte, se o artista (em rigor os detentores do poder e não os artistas) afirma ser arte. Quando se fala de arte contemporânea este conceito tanto pode significar uma coisa como outra bem diferente. Tanto é uma arte de ruptura ontológica com a arte anterior, que questiona todos os seus fundamentos, como é um conjunto de tendências que, por uma razão ou por outra, têm a cobertura de instituições poderosas e que de ruptura nada têm. E na fotografia acontece o mesmo. Nunca se sabe rigorosamente do que se está a falar quando lemos “fotografia contemporânea”. Muitas vezes até se trata de fotografia muito clássica. Também não se sabe o que se pretende dizer quando se fala de apropriação, que em muitos casos não existe, ou quando se fala de “fotografia documental” que pode ser pura ficção. Esta diluição poderá iludir e fascinar-nos com a sua aparente “democraticidade” absoluta, pois tudo pode ser tudo. O slogan “Cada pessoa é um artista” de Joseph Beuys transformou-se em “Tudo pode ser arte”. Pareceria que poderia ser uma forma de tornar a arte acessível. De facto a arte e os espaços a ela dedicados deixaram de ser elitizados, para em muitos casos se transformarem em objectos de culto, em lugares de visita obrigatória, de divertimento e de entretenimento. Mas, de facto, essa democraticidade pós-moderna é ilusória e parece mesmo servir às mil maravilhas algum do retrocesso social e artístico a que assistimos nos dias de hoje. Por isso, evitando cair por contraposição no dogmatismo, é tão importante no presente a defesa dos valores e dos conceitos. Definir conceitos é o campo da filosofia, desempenhando assim um papel crucial no rompimento do caos em que vivemos.

Um conceito não é um conjunto de ideias associadas, como uma opinião. Nem tampouco uma ordem de razões, uma série de razões ordenadas… Para atingir o conceito, não basta mesmo que os fenómenos se submetam a princípios análogos a aqueles que associam as ideias, ou as coisas, aos princípios que ordenam as razões. Como diz Michaux, o que basta para as "ideias correntes" não basta para as "ideias vitais" — as que se deve criar. As ideias só são associáveis como imagens e ordenáveis como abstrações; para atingir o conceito, é preciso que ultrapassemos umas e outras, e que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais determináveis como seres reais. Um conceito é, pois, um estado caóide por excelência; remete a um caos tornado consistente, tornado Pensamento, caosmos mental. “Qu’est-ce que la philosophie” de Gilles Deleuze em parceria com Felix Guattari Como afirma Deleuze “Um conceito não é um conjunto de ideias associadas, como uma opinião.”. É uma criação da filosofia. É nos conceitos que se alicerçam os edifícios artísticos e científicos. Sem alicerces seguros os edifícios se não ruem é porque há cordas que os seguram, mesmo se não as vemos. A defesa dos conceitos parece portanto ser hoje uma tarefa importante de quem pensa que é necessário separar o trigo do joio e que considera que não quer fazer parte da multidão que vê rei passar, nuzinho, de pilinha de fora, e que aplaude a beleza das vestes do rei. Claro que hoje não se aplaude a beleza, palavra proibida, nos círculos de arte contemporânea, mas o caracter contemporâneo (documental?) das vestimentas. Para concluir gostaria de realçar uma vez mais que nada tenho contra a fotografia documental, não-documental, anti-documental, ou quase-documental, tal como nada tenho à partida contra a fotografia contemporânea, não-contemporânea ou anticontemporânea, contra a fotografia apropriada ou não apropriada. Tudo depende do que o projecto contiver, porque os projectos fotográficos são como os melões, só se sabe o que valem depois de abertos. © Renato Roque, Junho 2013 Nota posterior: alguns dos pontos desta nota podem ser encontrados um pouco mais desenvolvidos no livro “Fitografia e Curadoria- Queijo Curado É Outra Coisa” – editado pelo The Portfolio Project

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