Afinações racionais, entonação justa, limite-primo e dimensionalidade

May 25, 2017 | Autor: Igor Livramento | Categoria: Music, Music Theory, Música, Tuning and Temperament, Afinação, Teoria Musical
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Afinações racionais, entonação justa, limite-primo e dimensionalidade Texto por Igor S. Livramento1 Tendo por base o já apresentado2, avançamos no tempo, rumando à Idade Média. #01 – Um pouquinho de história Como visto, a afinação cromática pitagórica tem todas as suas relações em extrema dependência da fundamental. Apesar dessa limitação, fora utilizada extensivamente até a Idade Média, servindo de base e modelo para a maior parte da música produzida até então. Entretanto, pelo acúmulo de exploração musical e desenvolvimento da matemática, descobriu-se que alguns intervalos pitagóricos não eram os melhores para suas respectivas relações, ou seja, não eram os mais consonantes. Mantendo-se a crença pitagórica que relações entre frequências de números pequenos são mais consonantes, descobriu-se que o quinto harmônico3 produzia um intervalo de terça maior muito mais consonante e harmonioso que a terça maior pitagórica. Sendo4 a M3p: 81/64, o ouvido não a percebe como uma relação simples tal qual a J5p de 3/2. Se pensarmos nas relações entre frequências como ritmos, temos um ritmo apenas 3:2 vezes mais rápido que a fundamental, contra outro, 81:64 vezes mais rápido que a fundamental – certamente uma relação muito mais difícil de discernir auditivamente que a anterior. Todavia, comparar M3p e J5p não é o que queremos, comparemos M3p a M3h. Sabendo que M3h é o quinto harmônico, reduzimo-lo à gama5, obtendo a relação entre frequências 5/4. Qual a diferença sonora entre os dois? Sabemos que não podemos nos guiar por diferenças aritméticas, devemos medir suas diferenças em cents6, portanto, às contas.

1200 × log 2 (

81 5 ) ≈ 407,82 cents; 1200 × log 2 ( ) = 386,32 cents. 64 4

A diferença entre ambas as terças é bastante notória ao ouvido: 407,82 - 386,32 = 21,50 cents, certamente uma diferença que chocou os estudiosos da época devido sua proximidade à comma pitagórica7. Chama-se comma sintônica. Podemos nota-la em relação entre frequências como sendo a diferença de M3p e M3h, veja-se: 1

Graduando do curso de Letras-Português da Universidade Federal de Santa Catarina. A afinação cromática pitagórica, a comma pitagórica e a medição por cents, do presente autor, disponível em: , acesso em 1º de fevereiro de 2016. 3 Rememoremos: apenas números ímpares geram tons novos na série harmônica, visto que as oitavas se constituem do conjunto de todas as formas 2n×f1, onde n é inteiro. 4 Leia-se o ‘p’ subscrito como “(intervalo) pitagórico”, ao subscrito ‘h’ como “(intervalo) harmônico”, portanto M3 : p “terça maior pitagórica”, etc. 5 A referência constante à gama (e indiretamente ao monocórdio) é necessária para simplificar as relações e facilitar as medidas, além de permitir que a nota seja tomada como tom e possa ser encontrada e tocada em uma única corda. Posto 4 < 5 < 8, e 4 = 22 (duas oitavas acima da fundamental), podemos reduzir o quinto harmônico dividindoo por 22 = 4 (descendo-o por duas oitavas). 6 Cf. nota 2. 7 Medindo 23,46 cents, a comma pitagórica aproxima-se de 1/4 do semitom contemporâneo, quase quatro vezes maior que o limiar humano de distinção – mais que suficiente para mesmo o mais leigo considerar desafinado. 2

81 64 = 81 × 4 = 81 × 1 = 81 , 1200 × log (81) = 21,50 cents. 2 5 64 5 16 5 80 80 4 Como esperado, a diferença entre as duas terças é uma comma sintônica. Na próxima sessão outras diferenças por comma sintônica surgirão. #02 – Novas relações com a terça maior harmônica Podemos reestruturar a escala maior diatônica a partir do modelo pitagórico8, substituindo a M3p pela M3h. Façamos as respectivas matrizes intervalares9 e vejamos o que pode acontecer em relação às terças: Tabela 01 (escala diatônica pitagórica) Tom/Classe

1 (fund.) 2 (seg.)

3 (ter.) 4 (qua.) 5 (qui.)

6 (sex.) 7 (sét.)

8 (oit.)

1/1 – C

1/1

9/8

81/64

4/3

3/2

27/16

243/128 2/1

9/8 – D

1/1

9/8

32/27

4/3

3/2

27/16

16/9

2/1

81/64 – Ep

1/1

256/243 32/27

4/3

3/2

128/81

16/9

2/1

4/3 – F

1/1

9/8

81/64

729/512 3/2

27/16

243/128 2/1

3/2 – G

1/1

9/8

81/64

4/3

3/2

27/16

16/9

2/1

27/16 – A

1/1

9/8

32/27

4/3

3/2

128/81

16/9

2/1

243/128 – B

1/1

256/243 32/27

4/3

1024/729 128/81

16/9

2/1

Tabela 02 (escala diatônica com a M3h) Tom/Classe

1 (fund.) 2 (seg.)

3 (ter.) 4 (qua.) 5 (qui.)

6 (sex.) 7 (sét.)

1/1 – C

1/1

9/8

5/4

4/3

3/2

27/16

243/128 2/1

9/8 – D

1/1

10/9

32/27

4/3

3/2

27/16

16/9

2/1

5/4 – Eh

1/1

16/15

6/5

27/20

243/160

8/5

9/5

2/1

4/3 – F

1/1

9/8

81/64

729/512 3/2

27/16

15/8

2/1

3/2 – G

1/1

9/8

81/64

4/3

3/2

5/3

16/9

2/1

27/16 – A

1/1

9/8

32/27

4/3

40/27

128/81

16/9

2/1

243/128 – B

1/1

256/243 32/27

320/243 1024/729 128/81

16/9

2/1



Em vermelho estão marcados os intervalos que aumentaram em complexidade.



Em azul, os que simplificaram-se.



Em amarelo, os que alteraram-se sem aumento de complexidade.

8

8 (oit.)

Cf. A afinação pitagórica, do presente autor, disponível em: , acesso em 1º de fevereiro de 2016. 9 Cf. nota 8, também Propriedades das escalas diatônicas, do presente autor, disponível em: , acesso em 1º de fevereiro de 2016.

Se observarmos bem, ganhamos sete intervalos mais simples, porém perdemos quatro (e tivemos um intervalo alterado, porém de complexidade relativamente baixa). O que mais surpreendeu os estudiosos da época foram os intervalos simplificados – eles formam pares de intervalos inversos: segunda e sétima, terça e sexta. Perceberam, então, que tinham em mãos intervalos mais consonantes para construir a escala maior diatônica, ou seja, um substituto para M6p (C→A, 27/16), que aparece na M6h G→Eh, de tamanho 5/3; assim como um substituto para a bastante complicada M7p (C→B, 243/128), que aparece na M7h F→Eh, de tamanho 15/8. Com essas informações em mãos, construíram a escala maior diatônica justa, a qual reproduzimos em matriz intervalar. Tabela 03 (escala diatônica com M3h, M6h e M7h) Tom/Classe

1 (fund.) 2 (seg.)

3 (ter.) 4 (qua.) 5 (qui.)

6 (sex.) 7 (sét.)

8 (oit.)

1/1 – C

1/1

9/8

5/4

4/3

3/2

5/3

15/8

2/1

9/8 – D

1/1

10/9

32/27

4/3

40/27

5/3

16/9

2/1

5/4 – Eh

1/1

16/15

6/5

4/3

3/2

8/5

9/5

2/1

4/3 – F

1/1

9/8

5/4

45/32

3/2

27/16

15/8

2/1

3/2 – G

1/1

10/9

5/4

4/3

3/2

5/3

16/9

2/1

5/3 – Ah

1/1

9/8

6/5

27/20

3/2

8/5

9/8

2/1

15/8 – Bh

1/1

16/15

6/5

4/3

64/45

8/5

16/9

2/1



A legenda de cores é a mesma. A comparação é feita com a Tabela 01. Como se percebe pela Tabela 03, ganhamos 20 intervalos simplificados, perdendo 2

nessa troca e alterando mais 2. Uma troca que o medievo considerou altamente valiosa, especialmente relevante por aumentar a quantidade de M3 consonantes, intervalo que começava a alcançar posição de suma importância ao lado da J5 nas composições. Notemos algo curioso: a m3p D→F mede 32/27 e está uma comma sintônica (81/80) abaixo10 da m3h (Eh→G, 6/5), veja-se:

32 27 = 32 × 5 = 16 × 5 = 80. 6 27 6 27 3 81 5 Igualmente, a J5p D→A mede 40/27 e é mais grave que J5h (Eh→Bh, 3/2) por uma comma sintônica, veja-se:

10

Por ser mais grave por uma comma sintônica, a relação não é 81/80, mas seu inverso, isto é, (81/80)-1 = 80/81. A relação deve ser rememorada de textos anteriores, ver também notas 2, 8 e 9.

40 27 = 40 × 2 = 80. 3 27 3 81 2 Assim também, M6p F→D (27/16) – como antes (vide Tabela 01 – e é mais aguda que M6h (G→Eh, 5/3) por uma comma sintônica, veja-se:

27 16 = 27 × 3 = 81. 5 16 5 80 3 Por fim, a J4p A→D mede 27/20 e é mais aguda que J4h (Bh→Eh, 4/3) por uma comma sintônica, veja-se:

27 20 = 27 × 3 = 81. 4 20 4 80 3 Finalmente, se compararmos a escala diatônica com M3h, M6h e M7h (Tabela 03) à escala maior diatônica pitagórica (Tabela 01), percebemos que perdemos a uniformidade distributiva11, mas temos uma espécie de versão mais fraca, a qual chamaremos distributividade trivalente, porque cada classe intervalar (coluna) tem três intervalos específicos (linha). Também notamos que trata-se de uma estrutura constante, porque nenhum intervalo específico de uma classe intervalar ocorre em outra classe intervalar. #03 – Entonação justa, afinações racionais e limite-primo Chamamos a essa escala (Tabela 03) por Entonação Justa, pois suas relações são as mais justas possíveis, ou seja, as menores e mais simples para a escala maior diatônica. Tanto a afinação pitagórica como a entonação justa fazem parte de um conjunto maior chamado Afinações Racionais. Chamam-se racionais pois suas relações entre frequências são dadas por números racionais (positivos), ou seja, divisões de números naturais. Se observarmos de uma perspectiva matemática as duas afinações racionais que trabalhamos aqui, perceberemos que a pitagórica não possui nenhuma potência do número 5, enquanto a entonação justa possui (5/4, 8/5, 5/3, 6/5, 15/8, 16/15, 40/27 e 45/32). Mas como sabemos disso? Enquanto trabalhamos com números relativamente pequenos é fácil perceber: as relações entre frequências listadas possuem algum múltiplo de cinco, veja-se:

5; 15 = 5 × 3; 40 = 5 × 23 = 5 × 8; 45 = 5 × 32 = 5 × 9. Contudo, quando precisarmos medir relações entre frequências mais complexas, precisaremos de alguma maneira de medir simples e rápido. Mesmo para essas medições, poderíamos nos referir a elas de maneira mais elegante; para isso existe o limite-primo. 11

Cf. nota 9.

Para caracterizarmos o limite-primo precisamos, primeiro, relembrar o Teorema Fundamental da Aritmética. Esse teorema nos diz que qualquer número inteiro12 pode ser escrito como um produto de números primos. Seguem-se alguns exemplos, apenas para visualização:

154 = 77 = 7 × 11. 2 75 75 = 3 × 52 = 3 × 25; = 25 = 52 . 3

154 = 2 × 7 × 11;

2124 = 22 × 32 × 59 = 4 × 9 × 59. Podemos generalizar a decomposição13 do inteiro positivo, isto é, do número natural, dizendo: para um número natural α, há um conjunto P de números primos e um conjunto N de suas respectivas potências n, tais que α é igual ao produto dos primos potenciados. Isso não passa de uma maneira generalizada de escrever a operação de decomposição que fizemos acima. Escrevemos em linguagem matemática da seguinte maneira:

Dado: α ∈ ℕ | α ≠ {0, 1} ∃ 𝒫, 𝒩 ⊂ ℕ tais que: 𝒫 = {p0 ≤ p1 ≤ ⋯ ≤ pr }, 𝒩 = {n0 , n1 , … , nr }, n

n

n

de modo que: α = p0 0 × p1 1 × … × pr r . Diremos, então, que o limite-primo é o maior número primo presente na decomposição do número natural α. Nada mais é que pr do conjunto P referente a α. Vejamos exemplos com os números que decompusemos acima:

Lim. p. (154) = 11. Lim. p. (75) = 5. Lim. p. (2124) = 59. De que isso nos ajuda, se nossas relações entre frequências são números racionais, não inteiros, muito menos naturais? Ajuda-nos porque podemos generalizar para os números racionais positivos que são exatamente nossas relações entre frequências. Assim poderemos medir o limite-primo de qualquer relação entre frequências, como também de afinações inteiras. Para generalizarmos, basta observar que nossas relações entre frequências se constituem de divisões de números naturais. Diremos: para um número racional positivo q, há um conjunto P de números primos positivos e um conjunto B de suas respectivas potências inteiras b, tais que q é igual ao produto dos primos potenciados. Escrevendo em linguagem matemática, temos:

12 13

Para todos os fins utilizaremos sempre números inteiros positivos, portanto, números naturais. Também chamada fatoração. Os termos são intercambiáveis sem prejuízo de rigor ou entendimento.

Dado: q ∈ ℚ+ | q ≠ {0, 1} ∃ 𝒫 ⊂ ℕ, ℬ ⊂ ℤ tais que: 𝒫 = {p0 ≤ p1 ≤ ⋯ ≤ pr }, ℬ = {b0 , b1 , … , br }, b

b

b

de modo que: q = p00 × p1 1 × … × pr r . A generalização pode parecer confusa devido à linguagem, mas os seguintes exemplos com a escala maior diatônica em afinação pitagórica e em entonação justa devem esclarecer do que estamos falando. Primeiramente, a escala maior diatônica pitagórica é derivada a partir do intervalo de J5, isto é, uma relação entre frequências de 3/2, portanto, podemos decompor J5 e ditar qual o limite-primo da afinação pitagórica da seguinte maneira:

3 1 3 3 = 2−1 × 31 = × , daí Lim. p. ( ) = 3. 2 2 1 2 Podemos fazer o mesmo com a entonação justa e todos os seus novos intervalos, a saber: 5/4, 8/5, 5/3, 6/5, 15/8, 16/15, 40/27 e 45/32. Tabela 04 Relações

Decomposição

Lim.p.(a/b)

5/4

5 1 5 = × = 2−2 × 51 4 4 1 8 8 1 = × = 23 × 5−1 5 1 5 5 1 5 = × = 3−1 × 51 3 3 1 6 2 3 1 = × × = 21 × 31 × 5−1 5 1 1 5 15 1 3 5 = × × = 2−3 × 31 × 51 8 8 1 1 16 16 1 1 = × × = 24 × 3−1 × 5−1 15 1 3 5 40 8 1 5 = × × = 23 × 3−3 × 51 27 1 27 1 45 1 9 5 = × × = 2−5 × 32 × 51 32 32 1 1

5

8/5 5/3 6/5 15/8 16/15 40/27 45/32

5 5 5 5 5 5 5

Realmente, há uma diferença fundamental que deve estar aparente: o limite-primo da afinação pitagórica é 3, enquanto a entonação justa possui limite-primo 5. Mas que diferença tão fundamental é essa? Aqui será preciso abstrair-se um pouco do pensamento cotidiano. Trata-se da dimensionalidade da afinação racional.

#04 – Dimensionalidade da afinação racional Lembremos do plano cartesiano, ou pensemos no simples ato de desenhar numa folha. Pode-se descrever, isto é, dizer onde está cada ponto na folha a partir de duas coordenadas, uma dizendo a que altura está o ponto, a outra dizendo a que largura está o ponto. Assim também funcionou com a afinação pitagórica: tínhamos as oitavas (2/1)n, bem como as quintas justas (3/2)n, a partir apenas desses dois intervalos geradores nós construímos uma afinação, ou seja, todos os outros intervalos (gerados) podem ser dados em relação à base de geradores, ou seja, alguma quantidade de oitavas e quintas para cima ou para baixo. Quando adicionamos a terça maior harmônica, isto é, (5/4)n, nós aumentamos a dimensionalidade da afinação, saímos do papel e fomos para a sala, para o espaço tridimensional. Como sabemos disso? Simples: para descrevermos todos os intervalos (relações entre frequências) da nova afinação nós precisamos dos primos 2, 3 e 5, daí sabemos quantas coordenadas temos que dar para que cada ponto se localize nesse espaço (altura, largura e profundidade). Saber o limite-primo apenas do maior intervalo presente numa afinação racional não garante saber sua dimensionalidade, é preciso constatar todos os limites-primos. Sabendo disso, podemos dizer que a dimensão da afinação ocidental atual de 12 tons equidistantes por oitava14 é meramente 1. Sim, trata-se de uma afinação unidimensional, pois todos os intervalos são dados pela forma: 12

√2x × f1 .

Podemos, portanto, determinar cada “ponto” (intervalo) em 12-equi15 com apenas uma coordenada, o que nos indica sua dimensão-1. Todavia, por se tratar de uma afinação irracional, o limite-primo não se aplica. No próximo texto avançaremos um pouco mais no tempo e descobriremos como reduzir a dimensionalidade de uma afinação16.

14

Ver Explicação geral da afinação padrão ocidental atual composta de 12 tons equidistantes, do presente autor, disponível em: , acesso em 1º de fevereiro de 2016. A utilização de f1 em vez de f0 segue a linha dos textos anteriores do presente autor, não há quebra do rigor matemático, trata-se apenas de estabilizar a nomenclatura. 15 Cf. nota 14. 16 Ainda que isso já tenha sido feito – sem utilizar essa nomenclatura – no último texto, A afinação cromática pitagórica, ver nota 2.

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