AFONSO HENRIQUES, D. JOÃO I E D. SEBASTIÃO: o messianismo na legitimação simbólica da Dinastia de Avis. In: VIEIRA, Ana Livia; ZIERER, Adriana (Orgs.). História Antiga e Medieval. Rupturas, Transformações e Permanências: sociedade e imaginário. São Luís: Ed. UEMA, 2009, v. 2, p. 49-74.

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AFONSO HENRIQUES, D. JOÃO I E D. SEBASTIÃO: O MESSIANISMO NA LEGITIMAÇÃO SIMBÓLICA DA DINASTIA DE AVIS Adriana Zierer (UEMA) In: VIEIRA, Ana Livia; ZIERER, Adriana (Orgs.). História Antiga e Medieval. Rupturas, Transformações e Permanências: sociedade e imaginário. São Luís: Ed. UEMA, 2009, v. 2, p. 49-74. Com a ascensão de D. João I ao governo de Portugal através do Movimento de Avis (1383-1385) iniciou-se em Portugal uma nova dinastia, que, devido à origem bastarda de D. João, necessitava construir a sua legitimação política, para garantir a continuidade de sua descendência no poder. Por tal motivo, a Dinastia de Avis utilizou elementos do messianismo, através de vários escritos, em especial das crônicas, as quais associavam a figura de D. João ao “Messias de Lisboa”, com analogias a Cristo. Esses relatos também o associavam à figura do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, a quem Cristo crucificado teria aparecido antes da vitória na Batalha de Ourique contra os mouros, conforme relatado principalmente na Crónica1 de 1419 e Crónica de Duarte Galvão, escritas no período avisino. O último monarca da Dinastia de Avis, D. Sebastião, morto tragicamente na Batalha de Alcácer-Quibir também buscou aproximar a sua imagem de Afonso Henriques, querendo como aquele, retomar o espírito guerreiro contra os muçulmanos. D. Sebastião foi desde o seu nascimento, por ser o último herdeiro da Dinastia de Avis e ante a iminência do domínio castelhano sobre Portugal, considerado o “Desejado”, aquele que traria um período de grandeza a Portugal. Após a sua morte inesperada e precoce, os elementos messiânicos associados a sua figura cresceram ainda mais, principalmente após o domínio castelhano, a chamada União Ibérica (1580-1640), quando se esperava que o Desejado viria expulsar os invasores e trazer uma nova era de felicidade. * Estudos sobre a Dinastia de Avis têm sido realizados por várias teses e dissertações do Scriptorium – Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Quanto ao messianismo, o tema relacionado a Afonso Henriques foi abordado por Ferreira (1997, 2003) e com relação à figura de D. Sebastião, estudos foram realizados por pesquisadores de outros laboratórios de pesquisa, como os de Hermann (1998) e Megiani (2003). Este trabalho, que também 1

Adotamos a grafia do português de Portugal para a palavra “crônica” quando citada em títulos de livros.

nasceu como uma das pesquisas do Scriptorium, procura dar uma contribuição ao tema, discutindo o messianismo associado a Afonso Henriques, D. João I e D. Sebastião, no tocante à legitimação simbólica da Dinastia de Avis.

Voltemo-nos agora à ascensão e legitimação do primeiro monarca da Dinastia de Avis ao poder e como os elementos messiânicos contribuíram para fortalecer a sua imagem frente à posteridade. D. João I torna-se regedor de Portugal em 1383 após a morte do rei D. Fernando, que não havia deixado herdeiros masculinos. O governo deste último havia enfrentado três guerras contra Castela da qual não fora vencedor de nenhuma. Por fim, o Tratado de Salvaterra dos Magos apontava que pelo casamento, o descendente da filha de D. Fernando, D. Beatriz e do rei de Castela, D. João de Castela, seria o novo monarca de Portugal, o que poderia levar o reino a cair nas mãos dos castelhanos. Este filho ainda não era sequer nascido e assim o trono deveria passar para a viúva do rei, D. Leonor, considerada por muitos como amante do Conde de Andeiro. Neste momento, D. João, Mestre de Avis e filho bastardo do irmão de D. Fernando, o rei D. Pedro (1357-1367), lutou contra esses dois grupos e assumiu o poder, primeiro como regedor, em 1383, e depois como rei, em 1385. Porém, como ele era bastardo, após a sua morte foi realizada a legitimação simbólica do seu governo através de vários escritos, para que a nova dinastia criada por ele se firmasse no poder. O que garantiria a legitimidade do seu governo, segundo Lopes, não era apenas uma convenção dos homens, mas um desejo divino. Por isso, o autor da Crónica de D. João I constrói a imagem do “Messias de Lisboa”, isto é o soberano escolhido por Deus para governar e “salvar” o reino português do domínio castelhano, associado pelo cronista a uma idéia de luta do bem contra o mal. O elemento que parecia confirmar definitivamente este argumento foram os resultados excepcionais das batalhas, apesar do efetivo menor do exército português, e uma série de milagres contados pelo cronista e ratificados pelas figuras de religiosos, como os franciscanos frei Rodrigo de Cintra e frei Pedro, citados no seu relato, explicando os milagres ocorridos a favor de D. João. Como Fernão Lopes, cronista de origem humilde, constrói a imagem do “Messias de Lisboa”? O final da Idade Média é caracterizado pelo medo do fim dos tempos. Fome, guerras, aumento da exploração sobre os pobres, revoltas e a Peste Negra levaram muitos a temerem a ira Divina e o fim próximo. Além disso, entre os

anos de 1378-1417 ocorreu o Cisma do Ocidente, com dois papas, um em Roma, outro em Avignon e num determinado momento por mais um terceiro papa, em Pisa. Toda essa conjuntura gerou o apego de alguns por idéias milenaristas sobre a chegada de um governante salvador ou Imperador dos Últimos Dias que lutaria contra o Anticristo e estabeleceria um período de felicidade na terra antes do Juízo Final. Essas idéias eram compartilhadas por alguns grupos como os franciscanos espirituais, favoráveis aos ideais da pobreza de Cristo, fraticelli, franciscanos radicais que se tornaram heréticos, e beguinos, comunidade religiosa suspeita de heresia. Eles se inspiravam no pensamento do monge calabrês Joaquim de Fiore (m. 1202) que pregava a existência de três Idades, a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo, sendo a última Idade considerada uma era de renovação, na qual os monges conduziriam os humanos a uma nova era de felicidade. Os escritos de Joaquim após a sua morte foram considerados heréticos, mas tiveram grande importância e o monge também falava bastante do Anticristo, que viria assolar a terra antes da era de felicidade. Assim, com base em idéias messiânicas presentes na sociedade medieval em fins da Idade Média, Fernão Lopes construiu a idéia do Messias de Lisboa, que se preocupava com os pobres, a “arraia-miúda”, chamada pelo cronista do “povo do Messias de Lisboa”. Em seu relato, Lopes enfatiza a luta entre os “miúdos”, chamados pelo cronista de “verdadeiros portugueses”, contra boa parte da nobreza portuguesa, que apoiava a vinda do rei castelhano. Ressalte-se que ainda não havia sentimento nacional em Portugal em fins do século XIV e que a maior parte da nobreza apoiava o compromisso estabelecido entre nobres, garantindo a D. João de Castela o domínio sobre Portugal. É Fernão Lopes quem elabora a idéia de um nascente sentimento nacional tido pelos apoiantes de D. João e apresenta a luta contra Castela como uma luta do bem contra o mal, sendo o soberano castelhano associado ao Anticristo, na medida em que apoiava o papa de Avignon enquanto D. João, Mestre de Avis, era fiel ao papa de Roma, na época do Cisma do Ocidente. De acordo com o historiador Nieto Soria (1988) o messianismo político está ligado a um rei escolhido por Deus, com ligações com os reis do Antigo Testamento. Segundo Soria, ele é considerado um escolhido para realizar uma determinada tarefa e por isso age como um instrumento do divino. Na obra de Fernão Lopes, a função de D. João é clara: expulsar os castelhanos que representam o Anticristo e apoiavam o “antipapa” de Avignon e levar o reino à salvação.

O monarca messiânico é esperado para realizar uma empresa há muito desejada e tem a seu favor a eleição divina. Elementos sobrenaturais estão ligados à sua figura, como as profecias e os sonhos. Um exemplo na Crónica de D. João I é o sonho de Frei da Barroca, um religioso inspirado por Deus que sonhou que D. João seria o rei de Portugal. Após o sonho e segundo o relato de Lopes, o frei vem ao reino anunciar a sua profecia. Um elemento a ser ressaltado sobre a Crónica de D. João I é a relação entre a religiosidade e a sua apropriação pelo poder político. Desta forma, através do relato de Fernão Lopes, D. João é apresentado como o Messias de Lisboa, o exemplo de bom cristão capaz de salvar o reino português do domínio castelhano, o que garantiria no futuro também a salvação espiritual dos habitantes de Portugal. Quanto a D. João de Castela, é descrito pelo cronista como mau cristão, tendo, portanto, aproximações com o diabo e personificando a imagem do Anticristo, isto é, aquele que vem destruir o reino de Deus e que na Bíblia pode ser representado por Satanás, por um dragão e por um tirano. Os termos Anticristo e Messias aparecem citados explicitamente na primeira parte da crônica de Fernão Lopes, respectivamente nos capítulos 63 e 123. Um primeiro indício da proteção divina ao eleito de Deus pode ser mostrado quando Fernão Lopes descreve o Cerco de Lisboa, realizado pelos castelhanos em 1384. De acordo com a lógica do cronista, por serem pecadores os portugueses deveriam ser colocados à prova para ver se mereciam realmente a vitória contra os maus cristãos. A cidade de Lisboa é vista como possuindo analogias com o povo português e com a Virgem Maria, e espera ser salva por D. João. Entre os milagres que apontam para a vitória dos portugueses, estão a aparição de homens com vestiduras alvas de anjos ao exército português e a chuva de cera que cai do céu (LOPES, CDJ, I, p. 213). Num primeiro momento, os portugueses rezam a Deus e parece que suas preces não são atendidas. A fome é grande entre a população, conforme pode ser visto abaixo na citação do cronista das crianças famintas pedindo pão nas casas:

Andavom os moços de tres e de quatro anos, pedimdo pam pella cidade por amor de Deos, como lhes emssinavam suas madres; e muitos nom tiinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com elles choravom que era triste cousa de veer; e se lhes davom tamanho pam come hũa noz, aviamno por gramde bem (LOPES, CDJ, I, p. 307) (grifo nosso).

Numa resposta divina, uma peste é enviada somente ao exército castelhano. E o fato de Deus estar realmente ao lado dos portugueses, de acordo com Lopes, foi o fato

que apesar da grande ‘pestellemça’ e de serem colocados perto de castelhanos infectados, os prisioneiros portugueses não foram acometidos pela moléstia. Por fim, pelo fato de a esposa do rei castelhano ser infectada, este baixa o Cerco, o que representa a vitória portuguesa nas tribulações e seu merecimento em ser salva pelo escolhido de Deus, D. João. Este é apresentado pelo cronista como seguidor do “Evangelho Português”, sendo ele, assim como Nun’Alvares Pereira, seu comandante militar, vistos como representantes do papa de Roma e que por isso, defendiam o reino de seus inimigos e para manter esta fé “espargiram seu sangue até a morte” (LOPES, CDJ, I, p. 340). D. João é comparado no relato a Cristo e a Moisés, e D. Nuno a S. Pedro (LOPES, CDJ, I, I, p. 340 e p. 342). Desta forma, o reato deixa bastante claro a unidade entre o Mestre de Avis e seu comandante militar, capazes de, amparados um no outro, construir uma sociedade baseada em novos laços como a lealdade a um território, graças ao apoio de nobres não primogênitos, como era o caso de D. Nuno (ZIERER, 2004, p. 174). É importante lembrar ainda o papel de Moisés como aquele que levou o povo prometido de Deus à terra onde abundaria leite e mel, e portanto o de D. Nuno como condutor de Portugal às vitórias contra o exército de Castela. As tribulações enfrentadas pela cidade de Lisboa, através da fome, da sede, da guerra e da peste (embora este último tormento só tenha atingido os castelhanos) poderiam significar um curto estabelecimento da vitória do Anticristo na terra, representado pelo papa de Avignon e seu apoiante, D. João de Castela. Porém a vitória de D. João de Portugal representada pelo descerco pode ser entendida como o estabelecimento de uma nova sociedade, um novo período de felicidade na terra, governado por um rei escolhido de Deus (uma espécie de Imperador dos Últimos Dias, que combate o Anticristo) até o reaparecimento do Salvador, o Filho de Deus, separando definitivamente os pecadores dos salvos no Juízo Final. Este rei terreno pertencia, segundo a visão do cronista, também a uma dinastia eleita, a Dinastia de Avis. Portanto, Fernão Lopes consegue o estabelecimento de uma imagem positiva para D. João e sua dinastia, ancorada na religiosidade e na idéia de que D. João representa o bem, o cristianismo, o salvador de Portugal e aquele que estabelece um novo tempo, que o cronista intitula como a Sétima Idade, no qual elementos de categoria inferior seriam nobilitados (LOPES, CDJ, I, p. 350). Além disso, de acordo com o cronista, seria iniciado também um período de justiça e de atendimento aos anseios dos “humildes”. Ao contrário de outros pensadores medievais como Santo

Agostinho, Beda e Joaquim de Fiore, que vêem a sexta idade como um período de decadência próximo do fim dos tempos, o cronista apresenta a Sétima Idade como um “novo tempo” de felicidade na terra. A seguir, Lopes no seu relato atribui a uma autoridade religiosa, o frade franciscano Rodrigo de Cintra, a explicação dos acontecimentos do Cerco. O frei faz comparações bíblicas e aponta que se os castelhanos tentassem investir outra vez contra Portugal, teriam uma fragorosa derrota. Portanto, a segunda investida do exército castelhano pode ser vista como a segunda tentativa de domínio do Anticristo, que, segundo o Apocalipse, precederia o Juízo Final. De acordo com o Apocalipse, os povos de Gog e Magog viriam junto com o Anticristo para preparar o seu advento. Pouco depois, porém, são derrotados pelos santos e mártires e quarenta dias após a sua morte viria o Juízo Final e a Parusia (FRANCO JR., 1999, p. 44). O cronista convenientemente estabelece o período de felicidade com a época introduzida por D. João I. No entanto, após o estabelecimento do governo joanino, instaurando o início da Sétima Idade, não haveria nenhuma outra modificação social, pois o cronista não pretende um rompimento com a ordem estabelecida, mas sim justificar o novo grupo político que ascendeu ao poder, a Dinastia de Avis. Na segunda parte da crônica, quando D. João já foi aclamado como rei pelas cortes de Coimbra, é contado o episódio que vai legitimar pelas armas a vitória portuguesa contra Castela: a Batalha de Aljubarrota (1385). Antes da batalha, pode-se notar a preocupação de D. João na “diminuição” dos pecados dos habitantes de Portugal, proibindo práticas pagãs, como adivinhações e leitura de sortes, entre outras, além de encomendar procissões, visando agradar a Deus e receber o merecimento da vitória (LOPES, CDJ, II, p.101). Teoricamente, segundo o relato, havia a impossibilidade de vencer a batalha pelo fato de o exército português ser muito menor. Segundo a descrição do cronista, tudo no acampamento castelhano abundava: além dos homens, os armamentos, bebidas, conservas, o que indicava pelos fatos que o rei de Castela tinha todas as possibilidades para vencer a batalha. Mesmo assim, o monarca é mostrado com atitudes cruéis, como a de ter mandado decepar e cortar as línguas de homens, mulheres e crianças e de ter ateado fogo a igrejas, como a de S. Marcos, em Trancoso (LOPES, CDJ, II, p. 64). É bastante mencionada no texto a questão de que o “juízo de Deus” seria feito. O relato enfatiza ainda as rezas de cada um dos lados, os portugueses recebendo a comunhão pelo lado do papa Urbano de Roma (LOPES, CDJ, II, p.103) e os castelhanos pelo papa de Avignon. Segundo o cronista:

E dois bispos que ali vinham e alguns frades pregadores outorgavam indulgências da parte do antipapa a todos os que contra os portugueses tomassem armas ou dessem ajuda daquilo que tivessem para lhes fazer a guerra (LOPES, CDJ, II, p. 104).

Porém os portugueses fiavam-se na mãe de Deus. Por a luta ocorrer na véspera da Assunção da Virgem Maria, os portugueses rezaram e fizeram o jejum, o que demonstrava a sua devoção (LOPES, CDJ, II, p. 93). A vitória nas armas que os portugueses tiveram representa, aos olhos do cronista, o próprio milagre e a confirmação de todos os fatos precedentes da eleição divina de D. João por Deus. Segundo Oliveira Marques (1986), a vitória portuguesa ocorreu porque o exército castelhano estava desmotivado e acreditava que a vitória já era certa. Quanto ao exército português, estrategicamente se posicionou melhor no planalto, construiu uma paliçada defensiva e abriu fossos e outras paliçadas, impedindo o avanço da cavalaria castelhana. Além disso, também contribuiu com a vitória o próprio desejo dos portugueses de vencer o combate.

Elementos Comparativos do Messianismo entre Afonso Henriques e D. João I

É importante observar que Fernão Lopes ao escrever a Crónica de D. João I já possuía um modelo de rei com atributos messiânicos, construído na Crónica de 1419, o rei Afonso Henriques (1139-1185), primeiro monarca de Portugal. O cronista reutiliza o mesmo modelo, criado provavelmente por ele mesmo e o enriquece. Há indícios que Fernão Lopes tenha escrito as crônicas de todos os reis portugueses de seu tempo. Ele mesmo teria afirmado isso em seus escritos. D. Duarte, sucessor de D. João I, o teria encarregado de escrever as histórias dos reis de Portugal no próprio ano de 1418, encargo para o qual o cronista recebeu um pagamento anual. Este material, que foi perdido, talvez seja o que foi encontrado mais tarde e intitulado como Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal ou Crónica de 1419. Embora não se tenha prova cabal da autoria de Fernão Lopes sobre este documento, uma parte considerável dos especialistas portugueses de literatura medieval, como Lindley Cintra, Silva Tarouca e Magalhães Basto consideram que a autoria seria dele (LANCIANI e TAVIANI, 1993, p. 186). As três principais obras de Fernão Lopes, Crónicas de D. Pedro, de D. Fernando e de D. João I, primeira e segunda partes, correspondem, segundo os especialistas, a uma trilogia. Isto é, podem ser vistas como um conjunto maior de uma única obra que

se divide em três partes, as quais se articulam e dialogam entre si. Com relação a D. João, por exemplo, fatos mencionados na Crónica de D. Pedro ou de D. Fernando serão confirmados na Crónica de D. João I. Outras vezes o relato sobre D. João procura solucionar problemas do governo de D. Fernando, num contraponto entre rei fraco e rei ideal. Assim, por exemplo, na Crónica de D. Pedro já aparecem elementos que na Crónica de D. João I serão enfatizados. Um exemplo é o sonho do rei D. Pedro no qual Portugal se consumiria em fogo até que seu filho D. João, munido de uma vara, apagaria este fogo: (...) por que eu (D. Pedro) sonhava huuma noite o mais estranho sonho que vos vistes: a mim parecia em dormindo, que eu viia todo Portugal arder em fogo, de guisa que todo o reino parecia uma fugueira; e estamdo assi espamtado veendo tal cousa, viinha este meu filho Johanne com huuma vara na maão, e com ela apagava aquelle fogo todo (LOPES, Cr. D. Pedro, p. 196).

Temos aqui um exemplo de intertextualidade, pois uma profecia que aparece no sonho de D. Pedro, será realizada por D. João, seu filho, mais tarde, quando consegue “apagar todo aquele fogo”, isto é, expulsar os castelhanos do território português e garantir a soberania de Portugal. Afonso Henriques e D. João são apresentados em suas crônicas como escolhidos de Deus para serem reis de Portugal, agindo com o espírito de cruzada contra os infiéis. No primeiro caso D. Afonso é vitorioso contra os muçulmanos na Batalha de Ourique (1139), episódio depois conhecido como Milagre de Ourique (MEGIANI, 2003, p. 87108; SARAIVA, 1988, p. 163-165). Um elemento importante é que no relato referente a D. João os castelhanos e seu rei são equiparados à figura do Anticristo, uma vez que D. João de Castela é apresentado como “herético e cismático” e, portanto, mau cristão. Por este motivo, Deus protege D. João de Portugal e lhe dá a vitória em Atoleiros (1384), confirmada depois na Batalha de Aljubarrota (1385). A luta contra Castela tem o mesmo papel que a luta de Afonso Henriques contra os mouros, isto é, significa uma luta do povo eleito para garantir suas terras, no que é apoiado por Deus, através das vitórias militares, mesmo frente a exércitos mais poderosos. Na Crónica de 1419, num primeiro momento, o cavaleiro Egas Moniz compreende o “aleijão”, que segundo o manuscrito seria um defeito de nascença de Afonso Henriques, como fruto de seus próprios pecados, e pede ao conde Henrique, pai de D. Afonso, que lhe permita educar a criança. O conde aceita (FERREIRA, 2003, II, p. 214).

D. Egas apresenta vários aspectos do nobre ideal, que são simbolizados também na Crónica de D. João I pelo nobre Nuno Álvares Pereira. É fiel, valoroso e piedoso, fazendo qualquer sacrifício pelo futuro rei de Portugal, Afonso I. D. Egas tem o primeiro sonho que indica a predestinação de Afonso Henriques e seu papel de enviado de Deus para adotar um papel cruzadístico na luta contra os muçulmanos. Ele sonha com a Virgem Maria, que avisa quais os procedimentos necessários para obter a cura do “aleijão”, o que é feito com sucesso (Cr. 1419, p. 12-14). Fazendo um quadro comparativo das duas crônicas é possível observar que vários elementos possuem pontos em comum: 1. sonhos proféticos, o primeiro é o sonho relatado na Crónica de D. Pedro, no qual este sonha com um filho João que apaga um imenso fogo, conforme relatado anteriormente. Este sonho pode ser equiparado na Crónica de 1419 ao sonho do nobre Egas Moniz com a Virgem Maria que garante a cura do “aleijão” e afirma que Cristo faria muitas vitórias através de Afonso Henriques. 2. Profecias. Nas duas narrativas a figura de homens devotos indicam grandes feitos aos futuros monarcas portugueses. Na Crónica de 1419 é um eremita, que no período medieval está associado com homens com profunda religiosidade por se dedicarem a Deus, quem profetiza a vitória de Afonso Henriques contra um exército muito mais numeroso. Já na Crónica de D. João I igualmente um eremita, chamado Frei da Barroca, associado aos franciscanos, tem uma visão: a de que D. João e os seus descendentes seriam os reis de Portugal (LOPES, CDJ, I, p. 49). Frei da Barroca vem a Portugal contar seu sonho a D. João. As figuras do eremita e de Frei da Barroca estão próximas dos santos, que através da reclusão voluntária, do jejum e do silêncio ficam mais próximos de Deus. O combate vitorioso que exercem contra a natureza através das restrições no corporal, lhes garante um poder sobrenatural, expresso, em ambas as crônicas, no acesso ao espiritual, através de visões, sonhos e profecias, capazes de interpretar os desejos da divindade. Efetivamente tudo o que o ermitão afirma se cumpre e o papel de escolhido de Afonso Henriques fica bastante acentuado pelo fato de o próprio Deus, na figura de Cristo, aparecer diante dele. Assim, na manhã da Batalha de Ourique, Afonso Henriques: “Vyo Nosso Senhor Jesu Christo em a Cruz, pela guysa que lho jrmjtom disera. E adorou o com gramde ledise e com lagrjmas de prazer de seu coração” (Cr. 1419, p. 43). 3. Aclamação Régia confirma a eleição divina. Em ambos os casos, pode-se perceber que antes de importantes vitórias, os monarcas já haviam sido aclamados como

reis; Afonso Henriques é aclamado como rei em 1139, ano da Batalha de Ourique e D. João I é aclamado em 1385, ano que obteve uma vitória que o consolidou politicamente contra Castela, na Batalha de Aljubarrota. Antes da chamada Batalha de Aljubarrota (1385) ocorreu a aclamação de D. João como rei, o que, no plano simbólico, efetivava a aliança com Deus, capaz de fazê-lo vencer mesmo frente a um exército muito mais numeroso, tal como aconteceu com Afonso Henriques contra os mouros. 4. Milagres auxiliam vitórias militares. Na Crónica de 1419, o primeiro milagre é a cura do “aleijão” de Afonso Henriques por Deus, através do intermédio da Virgem Maria e depois o aparecimento de Cristo em pessoa a Afonso Henriques, conhecido depois como Milagre de Ourique. Outros milagres relatados neste documento são as armaduras dos portugueses que luziam, a estrela que surge no céu e touro que pega fogo antes da vitória dos cristãos em Santarém (Cr. 1419, p. 68), episódio relacionado com as vitórias de Josué no Antigo Testamento. Na Crónica de D. João I durante o Cerco de Lisboa anjos aparecem com vestiduras alvas entrando em procissão na igreja, lumes são acesos nas pontas das lanças e uma chuva de cera cai sobre os castelhanos (LOPES, CDJ, I, p. 213). Um dos milagres mais impressionantes é o fato da peste só atacar o exército castelhano (LOPES, CDJ, I, p. 309-311). Outros milagres são ainda o das crianças e depois do bebê de oito meses que aclamam D. João como rei antes das cortes de Coimbra2. No caso de D. João I, o cronista Fernão Lopes apresenta vários milagres que confirmam a eleição divina pelo “Messias de Lisboa”. 5. Nobres fiéis. Outro elemento que se repete é a presença de nobres fiéis ao rei capazes de qualquer ação para proteger o monarca e o reino, representados nos pares Afonso Henriques/Egas Moniz e D. João/D. Nuno (FERREIRA, 2003, II, p. 207-232 ; ZIERER, 2004, p. 233-235; 2007, p. 80-105), ambos os nobres dispostos a se sacrificarem pelo rei e o reino. Quanto aos discursos, eles possuem um papel relevante nas duas obras. Na Crónica de D. João I os feitos favoráveis a D. João são sancionados por uma autoridade da Igreja, que explica os milagres e os compara a feitos bíblicos, como os discursos proferidos respectivamente por Frei Rodrigo após o Cerco de Lisboa (LOPES, CDJ, I, p. 316-320) e o de Frei Pedro após a Batalha de Aljubarrota (LOPES, CDJ, II, p. 123129). Esses dois franciscanos confirmam através da oralidade o caráter messiânico que Fernão Lopes procura dar a D. João, explicando os milagres e atribuindo-os a Deus.

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Aclamação das crianças: CDJ, I, cap. 181. Aclamação do bebê: CDJ, II, cap 67.

No caso da Crónica de 1419 é o próprio Afonso Henriques que faz três discursos antes das batalhas de Ourique (Cr. 1419, p. 40-41), Sesimbra (Cr. 1419, p. 63-66) e Santarém (Cr. 1419, p. 92-93), ressaltando a importância da luta contra o infiel e da certeza de que os portugueses seriam vencedores. Este rei, imbuído pelo espírito de Deus, que lhe aparece em pessoa através da visão de Cristo crucificado no Milagre de Ourique, consegue convencer os companheiros da eficácia da fé cristã e eles efetivamente são vitoriosos nas batalhas contra os muçulmanos. 6. Comparação com figuras bíblicas: Com relação à comparação com figuras bíblicas, na crônica atribuída ao seu reinado, D. João é comparado a Cristo (LOPES, CDJ, I, p. 342) e a Moisés (LOPES, CDJ, I, p. 387) na condução do povo eleito à conquista do Paraíso. Moisés seria aquele capaz de levar o povo eleito a uma terra onde correria rios de leite e mel. Além da analogia entre Afonso Henriques com Cristo, uma vez que Ele lhe aparece antes da Batalha de Ourique para garantir-lhe a vitória, o rei também possui analogias com Josué (Cr. 1419, p. 74-75). Este último derrubou o muro de Jericó, enfrentou uma coligação de cinco reis e após a morte de Moisés levou o povo eleito a Canaã, a terra Prometida. Esta relação com Josué associada ao povo português é também lembrada na Crónica de D. João I através do discurso de Frei Pedro após a Batalha de Aljulbarrota3. Tanto Afonso Henriques quanto D. João I são apresentados nas crônicas como reis devotos. Além da preocupação com a construção de igrejas consagradas à Maria e da entrega de bens a ordens religiosas, ambos são piedosos, fator que contribui para o fato de serem escolhidos por Deus para governar Portugal. Afonso Henriques, na tomada de Santarém aos mouros, ajoelha-se e agradece a Deus ao entrar no acampamento dos mouros (Cr. 1419, p. 73). Já D. João, antes de sua aclamação como rei, ajoelha-se ao entrar na cidade de Coimbra (LOPES, CDJ, I, cap. 181), o que confirma o seu merecimento e a sua eleição pela sua qualidade de bom cristão. Como foi possível observar a partir da comparação entre os dois reis, a Dinastia de Avis construiu deliberadamente uma imagem messiânica para Afonso Henriques e D. João I, visando dar um caráter divino à realeza em Portugal, unindo a imagem dos dois monarcas.

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“Dise mais de Jesue como dera de sospeita sobre çimquo rex cõ suas gemtes, que tinhaõ cerquada a cidade de Guabacõ, e como Deus emviara pedrisco sobre eles, de que muitos mais morrerão que há espada.” (LOPES, CDJ, II, cap. XLVII, p. 124)

Quadro Comparativo de Eventos das crônicas de 1419 e de D. João I

Maravilhoso Cristão 1. Sonho Profético

Crónica de 1419 1.Virgem aparece em sonho para falar da cura do aleijão e subseqüente concretização deste ato por Deus 2. Profecia de um 2. Eremita enviado por Deus Religioso profetiza a vitória de A.H. contra mouros cujo exército é muito mais numeroso. 3. Aclamação Régia 3. Vitória contra os mouros na Confirma a Eleição Batalha de Ourique é Divina precedida da aclamação de A.H como rei de Portugal

Cron. D. Pedro/D. João I 1. Rei D. Pedro sonha que Portugal está em chamas e seu filho D. João apaga o fogo com uma vara 2. Frei da Barroca vai até o Mestre de Avis contar uma visão: ele seria o rei de Portugal 3. Vitória em Aljubarrota contra exército castelhano mais numeroso é precedida da aclamação de D. João

4. Milagres

4. Milagres durante o Cerco de Lisboa: vitória na Batalha de Atoleiros, peste que só atinge castelhanos, chuva de cera, aclamação de D. João por bebê de 8 meses

4. Cristo Crucificado aparece diante do rei como prenúncio da vitória portuguesa (Milagre de Ourique), utilização de A.H de escudo com cinco quinas

Assim como Afonso Henriques, D. João conduz o seu povo à terra Prometida, Portugal, estabelecendo, segundo Fernão Lopes, o Evangelho Português, no qual todo o povo seguia o papa tido por legítimo, o papa de Roma. Este rei também inicia, segundo Lopes, um novo período de felicidade na terra, a Sétima Idade, momento de maior justiça de acordo com a visão do cronista uma vez que elementos de categoria inferior seriam nobilitados.

Os Elementos Messiânicos de D. Sebastião e sua Atualidade Será interessante observar os elementos do terceiro dos reis de Portugal que possui aspectos messiânicos: D. Sebastião, cognominado, o Desejado. Tal aconteceu principalmente após a sua morte precoce aos vinte quatro anos anos na batalha de Alcácer-Quibir contra os mouros (1578), na qual o último monarca da Dinastia de Avis pretendeu agir como um rei cruzado na luta pelo restabelecimento do cristianismo. A idéia de obter conquistas aos mouros tal como ocorreram com o primeiro monarca de Portugal, Afonso Henriques, influenciou profundamente o monarca D. Sebastião. A derrota dos portugueses em Tânger no século XV por ocasião do governo de D. Duarte gerou um desejo de D. Sebastião de uma nova investida contra os

muçulmanos através da conquista do Marrocos. Esta conquista representava quase uma obsessão do monarca e tinha o apoio da nobreza, interessada nos saques que efetivaria sobre a região. Representava ainda a esperança de retomada do espírito desbravador e guerreiro dos portugueses desde a implantação da Dinastia de Avis e afastava o perigo da anexação de Portugal a Castela (HERMANN, 1998, p. 73). Em 1568, aos quatorze anos, D. Sebastião foi aclamado como rei e no ano seguinte André de Resende lhe deu as boas vindas em Évora nestes termos: venhais em felicíssima hora, nosso Rei, nosso espelho, em que nos revemos; nossa preciosa jóia, de que muito nos gloriamos; esperança do reino, em que para vos servir nascemos, dado a nós por Deus, pedido a Deus por nós, convosco entre a saúde, entre a prosperidade e tudo o que se pode chamar bem. (MAGALHÃES, s/d, v. 3, p. 540). (grifo nosso)

Portanto, D. Sebastião desde o nascimento era a esperança de grandes dias para Portugal e afastava o perigo de domínio da Espanha sobre este país. Em sua educação contou com a influência de seu tio, o cardeal Henrique, que era membro do Tribunal da Inquisição e que defendia uma política de retorno à conquista do norte da África, o que representava a continuidade do espírito cruzadístico contra os muçulmanos. D. Sebastião foi influenciado por escritos acerca de Afonso Henriques, como a crônica elaborada por Duarte Galvão e por narrativas de cunho cavaleiresco que enfatizavam a virgindade como qualidade superior de um guerreiro, inspiradas na novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal. A conjuntura de Portugal no século XVI levou ainda à divulgação de escritos de origem popular, que denotavam o descontentamento com uma sociedade corrompida, vista como um prenúncio do fim de um tempo e da chegada de uma nova era (MEGIANI, 2003, p. 48). É bom lembrar também que a conversão forçada dos judeus em fins do século XV no governo de D. Manuel (1495-1521) tornou o clima propício para a divulgação de narrativas sobre as provações do povo eleito e a vinda próxima do Messias. A idéia de um reino messiânico passa a circular em Portugal a partir de 1540 através das trovas de um sapateiro de Trancoso, na Beira, chamado Gonçalo Anes de Bandarra. Neste reino havia idéias bíblicas sobre a volta de um rei encoberto, o qual traria um novo período de felicidade: Este Rei tem tal nobreza, Qual nunca vi em Rei Este guarda bem a lei Da justiça e da grandeza

Senhoreia Sua Alteza Todos os portos, e viagens Porque é Rei das passagens Do mar e sua riqueza. (BANDARRA apud HERMANN, 1998, p. 65)

As trovas de Bandarra circularam principalmente entre os cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo), mas também foram muito populares entre a população em geral da região, incluindo crianças. O sapateiro acreditava teoria das três Idades, de Joaquim de Fiore, além de agregar a ela a figura do messias que iria unir cristãos, gentios e judeus. Portugal seria o Império de Cristo na Terra e o rei encoberto seria a personificação do Imperador dos Últimos Dias (HERMANN, 2000, p. 524). Bandarra foi perseguido pela Inquisição e proibido de divulgar os seus escritos, que voltaram a circular mais tarde, principalmente após a morte de D. Sebastião. O reinado de D. Sebastião é marcado por um clima favorável à retomada do espírito guerreiro português, ocorrida principalmente através da revalorização dos romances de cavalaria. Assim, em 1554 foi publicada por Jorge Ferreira de Vasconcelos a Segunda Távola Redonda, os Triunfos de Sagramor, sobre os feitos do neto do rei Artur, Sagramor. A obra foi republicada em 1567 com o título de Memorial das Proezas da Távola Redonda. Outros livros que estimularam o espírito cavaleiresco também circularam na época, como a Crónica do Imperador Clarimundo (1522), de João de Barros e a Crónica do Imperador Maximiliano, de autoria anônima. Nestas obras muitas personagens reais da história de Portugal incorporavam atributos de Galaaz. João de Barros recontava na sua crônica a história portuguesa apresentando os portugueses como provenientes de uma ascendência heróica, iniciada com Afonso Henriques. Sua crônica teve a função da Historia Regum Brittaniae, de Geoffrey de Monmouth, a qual valorizava o passado dos reis normandos, associados ao mítico rei Artur. No caso de Clarimundo seu objetivo era combater o Turco, símbolo do mal e negação da fé católica (MEGIANI, 2003, p. 66-70). No século XVI os escritos sobre a origem messiânica de Afonso Henriques circularam através da crônica escrita por Duarte Galvão (RIBEIRO, 1997, p. 61-74), a qual reelaborou os dados contidos na Crónica de 1419. A partir deste documento, D. Sebastião tomou contato com os feitos de Afonso Henriques e estava disposto a imitálos. D. Sebastião foi herdeiro do desejo de retomada do espírito cruzadístico português. Portador de uma doença crônica e misteriosa, mesmo assim empenhava-se

em preparar-se na arte da guerra, realizando violentos exercícios de caça (HERMANN, 1998, p. 82-85). Tal como Nuno Álvares Pereira, procurou em suas atitudes copiar o modelo de Galaaz em A Demanda do Santo Graal. Acreditava que a privação da prática sexual poderia fazer dele um ser superior aos olhos de Deus e de seu povo (MEGIANI, 2003, p. 64). Isto somado a sua doença levou a um desinteresse pelo casamento, motivo pelo qual após a sua morte não havia herdeiros ao trono português. Através das influências que sofreu, D. Sebastião se via como um espelho de Afonso Henriques, que retomaria os feitos guerreiros exercidos por aquele na Reconquista, iniciada com o Milagre de Ourique. Por isso, tinha total confiança na vitória em Alcácer Quibir. Quanto ao povo português, depositava toda a esperança de atingir a sua glória perdida e também de garantir a sua soberania através do jovem rei. Em Portugal havia uma idéia de “superioridade natural” da realeza, daí a preocupação com a formação e educação do rei a partir da Dinastia de Avis, o qual deveria ser preparado para uma “missão”. Este deveria ser capaz de ampliar mercados e levar ao mundo todo a verdade da fé católica (MEGIANI, 2003, p. 66). A expectativa de um rei salvador estava presente no século XVI, pois com o fim das conquistas do século XV e dificuldade na manutenção do império conquistado havia a necessidade de que um rei desejado chegasse e tivesse a devida formação. D. Sebastião preparou-se para a batalha levando teoricamente, as mesmas armas que possibilitaram que Afonso Henriques efetivasse a independência contra os reinos de Castela e Leão em 1139, as quais se encontravam no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, construído por ordem do primeiro monarca português. A crença no poder das armas indicava a proteção divina e a certeza de vitória no conflito. Assim, haveria um retorno à figura messiânica de Afonso Henriques através de D. Sebastião, que retomaria os tempos gloriosos de Portugal (MEGIANI, 2003, p. 87-108). Porém, tal fato não ocorreu. D. Sebastião morreu em batalha contra os muçulmanos na África aos vinte quatro anos. As notícias da guerra demoravam a chegar, o que gerou um sentimento de insegurança e de esperança de que o rei e muitos membros do exército retornassem. A cerimônia de quebra dos escudos, que desde o governo de D. Duarte simbolizava a queda do escudo de Afonso Henriques, significando a morte do rei, foi realizada em agosto de 1578. D. Sebastião foi substituído por seu tio, o Cardeal Henrique, que faleceu em 1580. A súbita morte de D. Sebastião, que era solteiro e sem herdeiros e a dominação de Castela sobre Portugal por um período de sessenta anos, a chamada União Ibérica

(1580-1640), criaram na população o anseio do retorno do rei morto, que assim como os reis imaginários medievais, como o rei Artur e o Preste João das Índias, construiria uma nova sociedade e um novo tempo de felicidade e harmonia antes do Juízo Final. O mito do “encoberto” está associado a personagens medievais como Frederico Barba Ruiva, morto durante a 2ª Cruzada (1190) e Frederico II, seu neto e imperador do Sacro-Império Romano Germânico, figuras que personificavam o ideal do Imperador dos Últimos Dias. Sobre as características do encoberto, Jaqueline Hermann afirma que ele emerge sempre em contextos de crise e de derrota; está profundamente marcado pela luta do bem contra o mal, e, no caso da Europa Cristã, pela expectativa de vencer o Anticristo e salvar a humanidade das garras do infiel – no caso, o muçulmano (HERMANN, 2000, p. 523).

Um dia segundo a crença, ele retornaria para estabelecer um período de prosperidade em Portugal, caracterizado pela felicidade e abundância na Terra antes da vinda do Anticristo, que antecederia o Juízo Final. No sebastianismo, “a esperança no surgimento do Encoberto se assume como o projecto nacional de um povo decadente, que ambiciona o ressurgimento” (GOMES, 1986, p. 209). O século XVII é o tempo de uma literatura messiânica e em Portugal o sebastianismo expressa a esperança portuguesa de retorno do rei, inspirado nas tradições judaica, cristã e muçulmana. Após a morte precoce de D. Sebastião em 1578, as trovas de Bandarra voltaram a ser divulgadas principalmente a partir da União Ibérica, na qual houve a unificação dos reinos de Portugal e Castela sob o domínio deste último. O sebastianismo tomou o aspecto de uma ideologia contra o domínio espanhol em Portugal. Segundo Bandarra: Já o Leão é experto Mui atento Já acordou, anda a caminho Tirará cedo do ninho O porco, e é mui certo Fugirá para o deserto, Do leão e seu bramido, Demonstra que vai ferido Desse bom Rei Encoberto (BANDARRA apud HERMANN, 1998, p. 65-66)

O rei está associado à tribo de Judá e os seus reis, representando um símbolo de força (HERMANN, 1998, p. 67). Ele também é o animal mais apresentado na heráldica por estar associado ao valor e ao poder. Já o porco é o inimigo do rei português, que é representado pelo leão, e tem o significado negativo de covardia e impureza.

Em 1603, as trovas de Bandarra foram publicadas por D. João de Castro, fidalgo português aliado de D. António, primo de D. Sebastião que não conseguiu assumir o trono. Castro fugiu de Portugal após o início da União Ibérica (HERMANN, 2000, p. 525). Opositores ao rei espanhol na sociedade portuguesa passaram a defender o retorno do ‘rei encoberto’. Quatro falsos Sebastião apareceram em Portugal entre fins do século XVI e início do século XVII. De acordo com Hermann, nenhum deles era parecido fisicamente com o rei morto e alguns eram muito mais velhos ou mais novos que ele. A idéia principal era a de que D. Sebastião não teria morrido e sim estaria escondido, criando também a idéia do rei encoberto ou oculto: Sebastião, jovem cruzado heróico, tornou-se um rei ‘perdido’ ou ‘encoberto’, como o haviam sido outrora Balduíno de Flandres, Frederico Barba Ruiva ou Frederico II. Rumores de sua sobrevivência circularam e falou-se de um príncipe perseguido e clandestino que recuperaria a sua coroa. Assim nasceu o sebastianismo. Segundo a lenda mais difundida, Sebastião havia desejado expiar suas faltas e particularmente a leviandade com que se lançara no empreendimento marroquino (DELUMEAU, 1997, p. 184).

O sebastianismo, expresso no desejo de retorno do rei representou uma resistência em Portugal à dominação, havendo vários elementos da sociedade portuguesa partidários do seu retorno, como o padre Antônio Vieira que chegou a ter problemas com a Inquisição, ficando preso por um período de dois anos, entre os anos de 1665 e 1667. Vieira também acreditava nas trovas de Bandarra. Escreveu três livros sobre o sebastianismo de aspecto milenarista. Em A História do Futuro, publicada somente em 1718 relata a implantação do Quinto Império no Mundo, um momento de harmonia e paz onde todos estariam convertidos à fé católica, por um período de no mínimo mil anos. Já a Clavis Prophetarum, escrita em latim num intuito universalista, foi a última obra da trilogia messiânica e milenarista de Vieira, que pregava a consumação do reino de Cristo na terra (HERMANN, 1998, p. 244-245). As idéias do sebastianismo se expandiram para o Brasil, inspirando os sonhos de mulheres, visionários e de movimentos contestatórios ao regime. Desde fins do século XVI as trovas de Bandarra começaram a circular no Brasil e muitos esperavam a volta de D. Sebastião. O Desejado era esperado pelas mulheres que podiam encontrá-lo em sonhos. Um exemplo foi Maria de Macedo, presa em 1666, que afirmava encontrar D.

Sebastião e sua família numa ilha encantada com as embarcações preparadas para voltar a Portugal. Segundo Ana Maria Binet (2008) enquanto em Portugal o sebastianismo está relacionado ao desejo dos tempos gloriosos de Portugal e ao retorno do poderio português, no Brasil ao se fundir com tradições indígenas e africanas, o sebastianismo está associado à distribuição de riquezas e a uma sociedade mais igualitária. Talvez por este motivo o messianismo associado a D. Sebastião teve vida longa, que se prolonga nos dias atuais. Trazido ao Brasil pelos portugueses, ele deu origem a vários movimentos de cunho contestatório por uma nova sociedade, como os movimentos da Pedra do Rodeador (CABRAL, 2004, p. 61-97) e o da Pedra Bonita, ambos ocorridos em Pernambuco no século XIX. Neste último, o Movimento da Pedra Bonita ou Reino Encantado, o sangue de seres humanos chegou a ser derramado nos rochedos na esperança do ressurgimento de D. Sebastião. Mais tarde, o Arraial de Canudos na Bahia (1863-1897), liderado pelo místico Antônio Conselheiro, também apresentou elementos messiânicos e milenaristas. Conselheiro associava a República ao Anticristo e acreditava que D. Sebastião reapareceria com seu exército vindo das ondas do mar.4 Além desses movimentos, ainda hoje se acredita que D. Sebastião habita uma ilha no Maranhão, a Ilha dos Lençóis, ligada ao município de Cururupu, e que corre nas noites de lua cheia em forma de touro com uma estrela branca na testa. Um dia, segundo a crença, quando D. Sebastião desencantar irá ocorrer também o afundamento da capital do estado, São Luís, mas das praias dos Lençóis emergirá a corte de Queluz, uma nova Jerusalém (BRAGA, 2001, p. 47). D. Sebastião também é “recebido” como entidade nos cultos afros em terreiros de São Luís, unindo as tradições mágicas sobre o retorno do “encantado” aos cultos africanos. O messianismo é um tema relevante nos tempos medievais e esteve ligado á esperança de um governante modelo e ideal. A esperança messiânica se prolongou no tempo, e ainda hoje se acredita na capacidade de um estadista perfeito trazer a felicidade dos povos. Daí a relevância de estudos sobre o imaginário político para a compreensão do passado e das suas reminiscências na atualidade.

FONTES

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D Sebastião já chegou/e traz muito regimento/Acabando com o civil/ e fazendo o casamento/ O AntiChristo nasceu/Para o Brasil governar/Mas ahi está o Conselheiro para delle nos livrar. Citado por LIBÂNIO, J.B e BINGEMER, M.C.Escatologia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 48-49.

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