Afrodite parthénos e outras questões textuais em Cáriton (7o Coloquio International de la Universidad de La Plata/AR, 2015)

July 11, 2017 | Autor: Adriane Duarte | Categoria: Aphrodite, Ancient Greek Novel, Aphrodisias, Chariton
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Afrodite parthénos e outras questões textuais em Quéreas e Calírroe, de Cáriton.1

Adriane da Silva Duarte Universidade de São Paulo - CNPq/Pq [email protected]

Resumo: A história da transmissão do romance Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodisias, preservado em apenas um manuscrito (e alguns poucos papiros), é acidentada. Apesar das boas edições dos últimos anos (Blake 1938, Goold 1995, Reardon 2004), alguns problemas textuais continuam a assombrar leitores e, sobretudo, tradutores da obra, que não se podem furtar de questionar os limites do texto com o objetivo de proporcionar uma leitura fluente e o mais acurada possível da obra antiga. Levando isso em conta, minha proposta é examinar duas passagens localizadas no início do romance (Quéreas e Calírroe, I 1.2.7 e I 1.5.21). No primeiro caso, trata-se de um termo que está no manuscrito, mas cuja supressão é aconselhada pelos últimos editores do romance; no segundo, de uma lacuna, cuja suplementação tem sido motivo de discordância filológica. Examinadas em conjunto, essas passagens iluminam-se mutuamente e lançam luz igualmente sobre a obra em que se inserem.

Questões de transmissão textual não costumam ser as mais empolgantes nos encontros acadêmicos, ficando restritas na maioria das vezes às notas das revistas especializadas. Mas vou me arriscar a tratar delas aqui. Minha proposta é discutir os limites dos textos antigos a partir da perspectiva de seus tradutores. Editores e tradutores olham diferentemente para os textos antigos e é bom que seja assim. Enquanto editores são por natureza mais conservadores e cautelosos (hesitando muitas vezes em adotar sugestões que clarificam passagens difíceis ou lacunares, ou assim deveria ser), tradutores são mais ousados, já que estão na linha de frente, respondendo diretamente ao leitor pela legibilidade da obra. Sendo assim, é muito difícil para o tradutor se conformar com as deficiências do texto, de modo a procurar muitas vezes testar os limites estabelecidos pelo editor.2 1

Conferência apresentada no Séptimo Coloquio International [Una] nueva visión de la cultura griega antigua em el comienzo del tercer milenio: perspecticas y desafios, Centro de Estudios Helénicos e Universidad de La Plata-Argentina, 23 a 26 de junho de 2015. 2 Isso pode ser observado na prática: Reardon tradutor de Cáriton adota soluções que Reardon editor de Cáriton recusa ou hesita subscrever. Cf. Chariton. De Callirhoe narrationes amatoriae Chariton Aphrodisiensis. Edição de B. P. Reardon. München und Leipzigi: K. G. Saur, 2004. Chariton. Chaereas and Callirhoe. Translated by B. P. Reardon. in Reardon. B. P. (ed.) Collected Ancient Greek Novels. Berkeley: University of California Press, 2008 (1ª ed. 1989), pp. 17-124. Note-se que a tradução de Reardon precede a sua edição e seguiu em linhas gerais o texto de W. E. Blake (Oxford, 1938). No

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É como tradutora que examino aqui algumas questões textuais do romance de Cáriton, Quéreas e Calírroe (I d.C.). Antes de me debruçar sobre elas, acho importante dizer que em meu país, muito novo e periférico (temos apenas 515 anos de história "eurocentrada", muito embora a conta recue milênios desde a ocupação indígena), é raro quem se aventure a editar textos gregos e latinos (não somos detentores dos meios de produção, i.é, papiros e manuscritos, nem temos coleções voltadas para a publicação de trabalho tão especializado, uma vez que mesmo o mercado consumidor resultaria diminuto). No entanto, tendemos a ver a tradução como parte da tarefa do helenista e do latinista, uma espécie de contrapartida, para a sociedade que sustenta nossas pesquisas nas universidades públicas, através da disponibilização do cânone clássico. Ainda assim, faltam-nos coleções de referência, como a Biblioteca Gredos, a Belles-Letres ou a Loeb, por exemplo, que se dediquem à publicação integral do que os antigos produziram. Até por isso, os romances gregos, que vêm atraindo muita atenção desde as últimas décadas do século passado, mas que não ocupam uma posição central no cânone, ainda não contam com traduções brasileiras. É importante ressaltar também, sobretudo em vista da proposta desse Colóquio, de que se examinem as novas perspectivas que o terceiro milênio coloca para os estudiosos dos clássicos, que um trabalho como o que proponho aqui não teria sido viável sem o recurso às novas tecnologias -- ou por outra, teria sido possível somente mediante disponibilidade de recursos para custear viagens para consulta a acervos e tempo para realizá-las. Hoje as edições mais antigas de Cáriton, a começar pela editio princeps de D'Orville (1750) estão disponíveis na internet, assim como a maior parte dos periódicos, sobretudo aqueles números que nossas bibliotecas latino-americanas não costumam ter em suas coleções, por serem, por vezes, mais antigos do que elas mesmas. Nesse sentido, parece que o acesso fácil a um material de consulta antes vetado a parte dos pesquisadores pode vir a oxigenar a pesquisa feita nessa parte do mundo. A história do estabelecimento de texto de Quéreas e Calírroe merece breve comentário. Quéreas e Calírroe foi preservado por meio de um único manuscrito (Códice Florentino Laurenziana Conventi Soppressi 627, sec. XIII)3 e alguns poucos entanto, ele adverte o leitor que diverge em vários pontos da leitura de Blake, adotando variantes constantes seja de seu aparato crítico seja comentários posteriores (Reardon, 2008: 19). 3 Depositado na Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença (It.). Cf. em http://www.bml.firenze.sbn.it/it/fondi.htm#Conventi : "Come altre biblioteche fiorentine la Biblioteca Medicea Laurenziana fu destinataria dell'imponente flusso dei manoscritti provenienti dai conventi i cui ordini furono banditi e soppressi dall'editto napoleonico del 1808. In particolare, la Commissione degli oggetti d'arte e scienza scelse per la Laurenziana complessivamente 631 manoscritti greci, latini, orientali,

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papiros, datados dos séculos II e III d.C.4 A primeira edição (editio princeps) data do século XVIII (D'Orville, Amsterdam: 1750). Seguiram-se a esta outras três entre o XVIII e o XIX (Beck, Leipzig: 1783, reedição de D'Orville; Hirschig, Paris: 1856; Hercher, Leipzig: 1859)5, mas foi somente em 1938, com a edição de W. E. Blake para Oxford que o romance teve sua primeira edição crítica, uma vez que nenhum dos editores que o antecederam tiveram oportunidade de examinar o manuscrito diretamente, baseando-se em cópias desse documento. Blake apresentou assim a questão (1931: 68):

"In summary form I am presenting a strange case of an author who has passed through the hands of four editors, no one of whom ever personally consulted the single existing manuscript. It is an instructive episode in the history of classical scholarship, which may tend to weaken our faith in the authority of modern text transmission."6 À edição de Blake, seguiram-se outras três: a de Molinié para Belles-Lettres (Paris: 1979, revista por Billaut em 1989), a de Goold para Loeb (Cambridge/Ma: 1995) e a de Reardon para Teubner (München/Leipzig, 2004). Essa última tornou-se e edição de referência hoje e é dela que vou partir para o exame que proponho, embora necessariamente vá me referir às demais ou me guiar pelo aparato crítico oferecido por Reardon. Vou me ater a dois problemas que afetam

a compreensão do texto e se

encontram logo na primeira seção do livro I de Cáriton (Quéreas e Calírroe, I 1.2.7 e I 1.5.21). No primeiro caso, trata-se de um termo que está no manuscrito, mas cuja supressão é aconselhada pelos últimos editores do romance; no segundo, de uma lacuna, cuja suplementação tem sido motivo de discordância filológica. Examinadas em

miniati e membranacei provenienti, tra le altre, dalle biblioteche della Badia Fiorentina, di Santa Maria Novella, di Santa Maria degli Angeli, della Santissima Annunziata, di Santo Spirito, Santa Maria del Carmine, Ognissanti e Vallombrosa". 4 No século XX juntaram-se a F os testemunhos do Codex Tebano (do séc. VII, publicado em 1901) e três fragmentos papiráceos (Fayûmensis 1, 1900; Oxyrinchus 1019, 1910; Michaelidae 1, 1955), que juntos representam apenas cerca de 7% da obra. Remeto para mais detalhes à introdução de Goold (2005: 18-19) na edição da Loeb. 5 As edições D"Orville, Hirching e Hercher podem ser acessadas online. 6 "Em suma, estou apresentando o estranho caso de um autor que passou pelas mãos de quatro editores sem que nenhum tivesse consultado pessoalmente o único manuscrito existente de sua obra. Esse é um episódio instrutivo na história da pesquisa clássica que tende a contribuir para o enfraquecimento de nossa crebça na autoridade da transmissão de texto moderna". Blake, W. E. The overtrustful editors of Chariton. Transactions of the American Philological Association, n. 62, 68-77, 1931.

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conjunto, essas passagens iluminam-se mutuamente e lançam luz igualmente sobre a obra em que se inserem.

I. Afrodite parthénos In later antiquity, virginity was a hot spot.7

É sabido que um dos traços característicos dos heróis do romance grego antigo é a sua castidade, senão a perseverança mesma na virgindade, que se estende até mesmo para as personagens masculinas. O apego à castidade pode ser atestado pela resistência das personagens às ameaças a sua violação, quer oriundas de terceiros, quer das armadilhas do desejo, quer deles próprios, quer de seus parceiros. A vida sexual, ao menos dos protagonistas, está associada ao casamento e a uma união consagrada por Eros, que normalmente só se celebra ao final do romance. Embora Calírroe constitua uma exceção, já que se casa com Quéreas no começo mesmo da narrativa (I 1.15.71ss.) e, na sequência, contrai novas bodas com Dionísio (III 2.14.121ss.), quando seu primeiro marido ainda vive, sua virgindade é bem marcada na descrição inicial que o narrador oferece dela (Q&C I 1.1.3-1.2.7, tradução da autora): ῾Ερμοκράτης ὁ Συρακουσίων στρατηγός, οὗτος ὁ νικήσας ᾿Αθηναίους, εἶχε θυγατέρα Καλλιρόην τοὔνουμα, θαυμαστόν τι χρῆμα παρθένου καὶ ἄγαλμα τῆς ὅλης Σικελίας. ἦν γὰρ τὸ κάλλος οὐκ ἀνθρώπινον ἀλλὰ θεῖον, οὐδὲ Νηρηίδος ἢ Νύμφης τῶν ὀρειῶν ἀλλ' αὐτῆς ᾿Αφροδίτης [παρθένου]. Hermócrates, o general siracusano, o mesmo que derrotou os atenienses, tinha uma filha chamada Calírroe, uma moça (parthénou) admirável, a joia de toda a Sicília. A beleza da jovem não era humana, mas antes divina e, ainda assim, nem de nereida, nem de ninfa montêsa, mas da própria Afrodite donzela (parthénou). O traço distintivo da heroína, no entanto, é sua beleza extraordinária, comparável à de deusas, inclusive à da mais bela entre elas, Afrodite. 8 É justamente nessa comparação que reside um ponto controverso do texto de Cáriton, já que a beleza de Calírroe é equiparada à de Afrodite virgem (παρθένου), o que numa primeira leitura

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S. Goldhill. Virginity and going the whole hog: violence and the protocols of desire. In _____. Foucault's virginity. Ancient erotic fiction and the history of sexuality. Cambridge: CUP, 1995, p. 5. 8 Calírroe e Afrodite estabelecem uma relação de grande proximidade na trama do romance que remete à relação entre os heróis da épica e seus deuses tutelares. Para uma síntese da bibliografia sobre a relação entre a deusa e a heroína, cf. Tilg (2010: 28-29).

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soa como puro nonsense. A deusa do amor erótico já nasce sexualizada, pois que brota do mar a partir e em meio do esperma do membro amputado de Urano, o que permite supor ter sido de imediato por ele fecundada. 9 Uma Afrodite virgem sugere, portanto, uma contradição nos termos. Teria a obsessão do romance grego com a virgindade chegado a tal ponto de atribuir à deusa do amor tal atributo, característico de suas heroínas? A designação, no entanto, está lá no manuscrito. Como proceder? A partir de Hercher (1859), os editores são quase unânimes em indicar sua exclusão. No entanto Hercher justifica sua decisão não no estranhamento da qualificação, mas por pressupor uma intrusão da passagem imediatamente anterior, em que o substantivo παρθένου é aplicado a Calírroe (I.1.5, χρῆμα παρθένου e I.2.7, ᾿Αφροδίτης παρθένου).10 De fato, as ocorrências estão bem próximas no texto, o que poderia sugerir, ante o inusitado da atribuição, um cochilo do copista, que teria duplicado a palavra indevidamente. A voz discordante é a de Blake (1938), que subscreve a leitura do manuscrito, mas grafa o termo com maiúscula, sugerindo com isso tratar-se de um epíteto da deusa: Afrodite Donzela (᾿Αφροδίτης Παρθένου), no que será seguido por Molinié/Billaut.11 O problema agora é de outra ordem. Tal epíteto, associado principalmente a Atena ou Ártemis (cf.

Liddell & Scott, Pauly-Wissowa), não parece estar bem atestado em

relação a Afrodite, tanto é assim que Pirrene-Delforge, em seu L' Aphrodite Grecque (1994), não registra nenhuma ocorrência dele não obstante ter relacionado cerca de cem denominações que a deusa teria recebido no culto e na poesia. Cáriton, então, faria emprego original da qualificação. Há, contudo, um registro desse uso num fragmento hexamétrico órfico, provavelmente oriundo de um relato teogônico, citado por Proclo (V d.C.)12: μήδεα δ' ἐς πέλαγος πέσεν ὑψόθεν, ἀμφὶ δὲ τοῖσι 9

Para o nascimento de Afrodite cf. Hesíodo, Teogonia vv. 188-196. Cf. Hercher (1858: 155): "Zeile 8 (da edição de Hirching) ist παρθένου, an dem schon Dorville und Beck Anstosz nahmen, als Dittographi zu steichen". Essa informação consta do aparato crítico, bastante simplificado, como é costume nas edições da Loeb, de Goold (1995). Reardon (2004) se limita a registrar a indicação de supressão. 11 Cf. aparato crítico Reardon (2004: 1). A edição de Molinié-Billaut (1989: 50) segue a sugestão de Blake e também mantém o termo grafado com maiúscula, entendendo-o como um "epíteto de excelência, que evoca a ideia de uma beleza delicada e fugaz". Note-se que Pauly-Wissowa, no verbete parthénos, registra o uso em poesia, já que não evidência cultual, da designação para Afrodite, entre outras divindades (cf. acepção 5: Adrasteia, Actiope, Anfitrite, Afrodite, Arete, Dike, Hebe, Hécate, Íris, Nêmesis, Perséfone, Selene, Tétis), a partir de Bruchmann (1893). 12 O registro está documentado por Bruchmann em seu Epitheta deorum (1893), remetendo ao fr. 101 da edição de Abel (1885), que cito e traduzo. 10

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λευκὸς ἐπιπλώουσιν ἐλίσσετο πάντοθεν ἀφρός. ἐν δὲ περιπλομέναις ὥραις ἐνιαυτὸς ἔτικτε παρθένον αἰδοίην, ἣν δὴ παλάμαις ὑπέδεκτο γεινομένην τὸ πρῶτον ὁμοῦ Ζῆλός τ' ᾿Απάτη τε. E o membro, desde o alto, caiu no pélago; e a sua volta, enquanto boiava, branca espuma turbilhonou, de todos os lados; e, cumprido o ciclo das estações, o ano trouxe à luz uma virgem pudica, que em suas mãos receberam primeiro, tão logo nascida, Ciúme e Engano juntos. O fragmento remete ao nascimento de Afrodite Urânia a partir do membro decepado de Urano e, note-se, não diverge muito da versão hesiódica, que, citada por Sócrates no Crátilo (406c 7), dá pretexto ao comentário de Proclo -- na Teogonia, no entanto, o termo empregado para referir-se à deusa é κούρη (v. 191). O episódio, bem conhecido, tem registro na decoração arquitetônica de Afrodísias, cidade natal de Cáriton, como pode ser visto no relevo abaixo (Aphrodisias Archaeological Museum):

Menos do que uma relação direta com o texto de Cáriton, o fragmento parece indicar que a associação entre parthénos e Afrodite se não é provável, tampouco é impossível. Assim, a sugestão de Blake foi aceita por alguns tradutores do romance,

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dentre os quais o próprio Reardon, que o verteu em 1989, antes de editar ele próprio a obra (2004), quando recomendou a supressão do termo.13 Apesar da autoridade de Reardon, penso que o caso ainda está em aberto, uma vez que qualquer exclusão de termo que conste em manuscrito deve ser tomada apenas com base em fortes indícios de erro. A primeira razão que me ocorreu para Cáriton ter lançado mão do termo para qualificar a deusa do amor foi o escrúpulo com relação à reputação da heroína de seu romance. Comparar Calírroe a Afrodite poderia lançar suspeitas sobre sua condição de moça virgem. Ao associá-la a Afrodite donzela, no entanto, ele estaria prevenindo ideias indesejáveis e reforçando o que ele próprio afirmara anteriormente, que era uma moça (i.e donzela) admirável. Com isso ela estaria apta a um casamento nobre, como o que de fato virá a ser celebrado com Quéreas ainda no decorrer desse capítulo inicial. Isso me parece ainda mais significativo nesse romance em que a heroína celebrará segundas bodas grávida do primeiro marido, não obstante ele ainda esteja vivo, e, ainda mais, passando-se por παρθένος, de modo que o filho que espera seja tido por legítimo -- ou seja, nem toda moça casadoira é de fato donzela. Tomando-se apenas como referência Homero, cujas obras são onipresentes no romance de Cáriton,14 verifica-se que as comparações entre Afrodite e jovens casadoiras não são raras. Há três ocorrências nos poemas homéricos:

uma das filhas de

Agamemnon (proposta como noiva a Aquiles, Il. IX, 389), Cassandra (Il. XIV, 699) e Hermíone (Od. IV, 14).15 Note-se que, em dois desses casos, a comparação se dá num contexto pré-nupcial, que se constata também em Quéreas e Calírroe, uma vez que, quando a narrativa se inicia, a

notícia da beleza da jovem touxera para Siracusa

pretendentes oriundos de todo o mundo grego (cf. Q&C I 1.2.7-1.2.11).

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Reardon (1989, ed. 2008: 22) traduz "the maiden Aphrodite", mas justifica-se em uma nota: "'Maiden' is not, of course, the usual attribute of Aphrodite, but it is attested for her at her birth; in any event, the title can apply to the others as little qualified for it, such as Hera and Cybele". Caso a passagem que ele tinha em mente fosse a Teogonia, o termo empregado para referir-se à deusa em seu nascimento é κόρη (v.191-2: τῷ δ' ἔνι κούρη | ἐθρέφθη ). Embora possam ser sinônimos, a primeira acepção de κόρη no L&S é girl, e de παρθένος é maiden, o que parece indicar que o primeiro designa antes a menina e o segundo a virgem propriamente dita 14 Tilg (2010: 141): "One of the most conspicuous features of NAC [Narratives about Callirhoe] is the insertion of a large number of lines from the Iliad and the Odyssey. Chariton quotes Homer far more frequently than any other novelist does, about thirty to forty times depending of a definition of a quotation". Reardon (2003: 333): “The most frequent of all Chariton’s literary references are to Homer". Inclusive, o verso homérico em que Penélope é comparada a Ártemis e Afrodite é citado no romance para qualificar Calírroe (C&Q, IV.7.5 = Od. XVII 37 e XIX.54). 15 Também Briseida (Il. XIX 282) e Penélope (Od. XVII 37 e XIX 54) são comparadas à deusa, curiosamente o mesmo não ocorre com Helena, equiparada a Ártemis (Od. IV 122).

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Então, decididamente, o problema não está na comparação entre uma virgem e Afrodite, ainda mais quando a comparação se faz em contexto nupcial. 16 Note-se, além disso, que o texto de Cáriton parece buscar um espelhamento em que a beleza da jovem reflete a da deusa, e essa, a virgindade daquela. Isso nos traz de volta à questão principal, a "virgindade" da deusa. Deixando de lado a questão bizantina (parelha a do sexo dos anjos) de se estabelecer se a deusa foi (considerada) virgem em algum momento ou não, concentremo-nos em algo mais palpável: nos textos que testemunham seus esforços em aparentar virgindade, fazendose passar por moça solteira. Para ficar só em dois documentos importantes e anteriores à época de Cáriton, Afrodite apresenta-se como uma jovem virgem no Hino Homérico e na Eneida. Começo pelo hino homérico (HH à Afrodite, 81-3, tradução de Flávia Marquetti): στῆ δ' αὐτοῦ προπάροιθε Διὸς θυγάτηρ ᾿Αφροδίτη παρθένῳ ἀδμήτη μέγεθος καὶ εἶδος ὁμοίη, μή μιν ταρβήσειεν ἐν ὀφθαλμοῖσι νοήσας. Afrodite, a filha de Zeus, colocou-se diante dele (i.e, Anquises) tal qual uma virgem não submetida ao jugo, no talhe e na aparência, para que ele não temesse, ao percebê-la diante de seus olhos. O cenário é de sedução, novamente o contexto é o pré-nupcial. A deusa se apresenta diante do troiano Anquises e, para evitar que ele fosse tomado de temor reverencial, assume a aparência de uma jovem virgem (παρθένῳ). O troiano, no que é um lugar-comum nas cenas de sedução, compara sua interlocutora a diversas divindades, dentre as quais, ironicamente, "à dourada Afrodite" (v. 93: χρυσέη ᾿Αφροδίτη). É evidente que a beleza da "jovem" é excepcional e que o mortal não teria como resistir a seus encantos. No entanto é arriscado para um mortal unir-se a uma divindade. Assim, a deusa, para tentar convencê-lo de sua condição mortal, conta-lhe uma história fictícia em que figurava como filha do rei frígio Otreu e que, por desígnio dos deuses, fora transportada magicamente até a morada de Anquises, a quem deveria desposar (HH Afrod. 5, 108-142).17 16

Cf. Pirrene-Delforge (1994: 419-21). Na Teogonia, v. 205, pertencem a esfera de atuação de Afrodite "os colóquios das moças donzelas" (). 17 Cf. Bernabé, A. Los mitos de los Himnos Homéricos: el ejemplo del Himno a Afrodita. In López Férez, J. A. (ed.) Mitos en la literatura griega arcaica y clásica. Madrid: Ediciones Clásicas, 2002, pp. 93-110.

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Portanto, Afrodite apresenta-se como uma virgem (like a virgin), uma jovem em idade de casar-se, no ápice de sua beleza e poder de sedução. Essa imagem da deusa, eu sugiro, teria Cáriton em vista ao fazer a comparação com Calírroe, sobretudo pelo fato de a lenda de Eneias ecoar forte na cidade do autor, Afrodísias, na qual culto à deusa é central. Voltarei a esse ponto em um instante. Passo agora à segunda passagem que pretendo examinar. Em Virgílio, a deusa apresenta-se diante de seu filho Eneias momentos após ele ter aportado Cartago (Eneida I, 314-20, tradução de Márcio Thamos, 431-6):

Cui mater media sese tulit obuia silua uirginis os habitumque gerens et uirginis arma Spartanae, uel qualis Threissa fastigat Harpalyce uolucremque fuga praeuertitur Eurum. Na mata, ao seu encontro vem a mãe, trazendo de uma virgem as feições, de uma virgem de Esparta os trajes e as armas, ou semelhante Harpálice da Trácia quando os corcéis fustiga na corrida e deixa para trás o rápido Euro. A sequência do texto descreve como portava arco e flecha e veste curta, sugerindo tratar-se de uma caçadora. Os cabelos soltos completam o retrato. Eneias também a toma por uma deusa, Ártemis caçadora (319, an Phoebi soror?), mas se dirige a ela pelo vocativo virgem (v.327, uirgo), prova de que o disfarce é eficiente. Naturalmente, em se tratando de um encontro entre mãe e filho, o contexto de sedução está excluído, mas a menção aos joelhos à mostra e cabelos ao vento é indício da atração que ela inspira.18 É especialmente significativo que as duas manifestações de Afrodite like a virgin se deem no contexto do mito de Eneias. Isso é relevante por dois motivos. Primeiro: é sabido que a cidade de Cáriton, Afrodísias, que deve seu nome à deusa, manteve importante aliança com Roma desde os tempos de Sula (II-I a.C.) até, e principalmente,

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Para comparação de Calírroe a Ártemis caçadora por meio de símile homérica , cf. Q&C, VI.4: "Como seria ver aqui Calírroe, as vestes erguidas até os joelhos, os braços desnudos, o rosto todo afogueado, o peito arfante... Verdadeiramente tal Ártemis seteira percorre a montanha,/quer o elevado Taigeto ou o Erimanto,/deliciando-se com javalis e velozes corças (Od.VI, 102-104, sobre Nausícaa). Naturalmente, os paralelos que Virgílio traça entre Eneida I e Odisseia VI são notórios e intencionais.

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os de Augusto e seus sucessores imediatos.19 Para isso, o culto de Afrodite, com o título de Matriarca (Prometer e/ou Venus Genetrix, a mãe de Eneias, herói do qual descenderiam os romanos), teve papel simbólico importantíssimo. À época de Cáriton construiu-se um templo dedicado ao culto dos imperadores julio-claudianos e à deusa, mãe dos divinos imperadores (᾿Αφροδίτην Προμήτορα θεῶν Σεβαστῶν, inscrição em pedestal de estátua), o Sebasteion. O edifício trazia relevos em que os imperadores e suas conquistas eram retratados, mas também cenas do mito, com destaque para o ciclo troiano em vista da futura fundação de Roma. 20 Com isso, é de se supor que não apenas Cáriton, mas também os cidadãos de Afrodisias estivessem bastante familiarizados com os detalhes da trajetória do herói, se não através da tradição literária, certamente por meio do mito e de sua presença nas artes plásticas. 21 Tilg (2010:285) conclui que da mesma forma o conhecimento da Eneida fosse disseminado e que Cáriton, pela função que desempenhou, teria lido o poema, cujos ecos no romance detecta.22 19

Tilg (2010: 25): "Surely the imperial period renewed the interest in the cult of local goddess. On the one hand, we can observed general revival of local cults and traditions in Asia Minor in the first centuries AD […]. On the other hand, if the identification of the Carian goddess with Aphrodite helped spread her fame in the Greek world, the association with Venus Genetrix, the mother of Roman people, made her particularly attractive to the Romans and those who had dealings with them. This link, recognizable since Sulla, was especially promoted by Caesar and the Julio-Claudian family who claimed descend to Venus." Cf. também Tilg (2010:283-4). Cf. também A. Chaniotis (2003). 20 Cf. B. C. Ewald (2014): "In either case, the building of the Sebasteion would have been an expression of gratitude for past Roman privileges and favours, and a ‘deposit’ on future ones. It is unsurprising, then, that Roman myth-history gets its fair share in the Sebasteion reliefs (unusual in the Greek East), that they depict personifications of the Roman senate and the Roman people, and that there are structural parallels between the visual language of the reliefs and the praise of emperors (and, one could add, of gods and cities) in epideictic rhetoric (pp. 312-313)". 21 N. de Chaisemann (1997) mostra detalhadamente como referências à lenda troiana estão disseminadas nos edifícios de toda a cidade e não só no Sebasteion. 22 Para a influência de Virgílio sobre Cáriton, cf. Tilg (2010:271-91). Cáriton denomina-se no inicio de sua obra como secretário de Atenágoras, um orador, além de, obviamente, ser escritor ele mesmo (Q&C I.1.1). Anquises e Afrodite com eros alado ao colo (http://www.artofmaking.ac.uk/explore/monuments/176/). Sobre o Sebasteion: Apresentação ao prédio Sul do Propileu (em http://www.nyu.edu/projects/aphrodisias/seb.sculp.ti.htm ): "The lower storey reliefs featured a remarkable series of forty-five Greek mythological scenes. Many were arranged in broad groupings of familiar scenes of favorite figures, such as Herakles and Dionysos, but there was no single sequential mythological program. Towards the east end, however, as one approached the Temple, there was a greater concentration of sacrifice scenes and of Rome-related myths, such as those featuring Anchises and Aeneas". Ver também B. C. Ewald (2014): Sebasteion Complex: "1) A propylon that not only provided access but also mediated between the different orientations of the Sebasteion and the city grid to the west of it. This was less of a gate than a “columnar screen” (p. 26) that provided effective views of the two porticos and the processional road. It also set the tone for what the viewer was going to find inside: The propylon was richly decorated with honorific statues of the Julio-Claudian family, including Aphrodite Prometor (Venus Genetrix), Aineas, and even Augustus’ mother Atia. 2) and 3) Two (north and south) porticos flanking the processional road, each of them three storeys high and decorated with 100 or more reliefs in the upper two storeys. The north building displayed 50 ethnos reliefs (“nations of empire”) in the second storey (“B-series”), and the same number of reliefs with “imperial subjects…divinities...and universal allegories of time and place” (p. 86) in the third storey (“A-series”). The south building housed 52 reliefs depicting “gods and emperors” in the third storey (“C-series”) and 51 reliefs with “myths and heroes” in the second storey (“D-series”); the differing number of reliefs in the

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O segundo motivo é que, como já notara LaPlace (1980: 121-5), de uma certa maneira "Calírroe encarna Afrodite, mãe de Eneias". A história da heroína emula no

two stories result from a second floor window on the building’s east end. About 80 of the 203 original reliefs, and fragments of ca. 20 more, remain, most of them from the better preserved south building. 4) The (heavily spoliated) temple at the east end of the complex, a hexastyle Corinthian prostylos which was elevated above the rest by several meters; it was dedicated to Tiberius, Livia (as “new Demeter”) and Aphrodite, very likely also to “Augustus Zeus Patroos” (p. 21).

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plano terreno à da deusa, cujo filho deixará aos cuidados do "pai" (Dionisio, que, embora putativo, não o desconfia) em Mileto (Ásia Menor), até que, atingida a idade adulta, faça a travessia marítima para assumir seu posto de direito em Siracusa -- ao final do Hino homérico, Afrodite revela a Anquises que terá um filho dele, cuidado na primeira infância por uma ninfa, mas depois confiado ao pai, para que o crie. Ao longo do romance, Cáriton vai reforçar a comparação inicial entre sua heroína e a deusa diversas vezes.23 São recorrentes as passagens em que Calírroe é tomada como uma manifestação da deusa e adorada como tal. Gostaria de destacar uma delas, em que penso haver uma alusão ao Hino Homérico. Trata-se de uma fala do rei Persa, em que ele divaga sobre a possibilidade de Calírroe ser uma deusa que, sob disfarce, veio a seu encontro (Q&C VI.3.5-6): τοῦτο ἴσως ἀληθές ἐστιν, ὃ λέγεις, ὅτι θεῶν τίς ἐστιν ἥδε ἡ γυνή· οὐδὲ γὰρ ἀνθρώπινον τὸ κάλλος· πλὴν οὐχ ὀμολογεῖ· προσποιεῖται δὲ ῾Ελληνὶς εἶναι Συρακοσία. καὶ τοῦτο δὲ τῆς ἀπάτης ἐστὶ σημεῖον. ἐλεγχθῆναι γὰρ οὐ βούλεται πόλιν εἰποῦσα μίαν τῶν ὑφ'ἡμᾶς, ἀλλ' ὑπὲρ τὸν ᾿Ιόνιον καὶ τὴν πολλὴν θάλασσαν τὸν περὶ αὑτῆς μῦθον ἐκπέμπει. προσφάσει δὲ δίκης ἦλθεν ἐπ' ἐμὲ καὶ ὅλον τὸ δρᾶμα τοῦτο ἐκείνη κατεσκεύασε._ Talvez seja verdade o que você diz, que essa mulher seja uma das deusas, já que a sua beleza é sobre-humana. Ela não confessa, contudo, mas finge ser grega, de Siracusa, e nisso está a prova do engano. Teme ser desmascarada ao designar uma única das cidades que nos pertencem, mas bota a sua história em terras jônias, no além mar. Veio até mim sob pretexto do julgamento e encenou todo esse drama.

O Rei imagina que Calírroe, tal qual a Afrodite do Hino homérico, assume forma humana e cria para si nova identidade, para poder circular livremente entre os mortais. Assim como Afrodite ter dito a Anquises que viera da Frígia, onde morava com seu pai Otreu, cuja ama lhe ensinara o grego, Calírroe teria alegado ser filha de Hermócrates, de Siracusa, e ter sido transportada a Mileto, não com o concurso de Hermes, mas com o de Théron, o pirata. Obviamente não há referência direta ao Hino, mas a associação estreita entre heroína e deusa e o contexto erótico (o persa está ardendo de desejo por Calírroe) permite pensar que o raciocínio do rei evocasse no leitor o poema ou, ao menos, o episódio mítico.24 23

Cf. Q&C I.14.1; II.2.6.80-1; II.3.5-6; III.2.14; III.2.16-7; V.9.1; VI.3.5-6. Em I.14.1, no afã de vender Calírroe, causando a melhor impressão possível, Theron, o pirata, solta-lhe os cabelos com o intuito de tornar mais evidentes as semelhanças com a deusa. Haveria aqui uma alusão à Eneida I? 24 Antes Dionísio fizera observação semelhante sobre Calírroe. Cf. Q&C II.4.8: "É isso! Uma das Ninfas ou das Nereidas saiu do mar. Em certas ocasiões até mesmo as divindades são surpreendidas e forçadas

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Resta ainda a hipótese de que a comparação proposta por Cáriton fosse com uma estátua de nome ou do tipo Afrodite Parthénos. É o que sugere C. Ruiz-Montero (2003:351) ao chamar atenção para as referências às artes plásticas, sobretudo de tema mitológico ("mitologia plástica"), na obra de Cáriton. Quéreas mesmo é comparado poucas linhas após à passagem referenciada com "Aquiles, Nireu, Hipólito, Alcebíades que escultores e pintores retrataram" (I.1.3: οἷον ᾿Αχιλλέα καὶ Νιρέα καὶ ῾Ιππόλυτον καὶ ᾿Αλκιβιάδην πλάσται καὶ γραφεῖς ἀποδεικνύουσι). E a descrição inicial de Calírroe a denomina ἄγαλμα, estátua -- e, vale lembrar, Dionísio consagrará uma estátua dela ao templo de Afrodite vizinho a sua propriedade (Q&C, III.6.3.394). No entanto, o Lexicon Iconographicum Mythologicae Classicae não traz referência a obra ou tipo assim denominada, restando para mim incerta a ideia. 25 Há ainda outra hipótese, de que tratarei brevemente na segunda seção desse texto, a de que Afrodite Parthénos aludisse à célebre estátua de Atena Parthénos, atribuída a Fidias e cultuada no Parthenon, em Atenas. Com isso, concluo a discussão do tópico advogando que parthénou (em minúscula, e sem valor de epíteto) seja mantido no texto para qualificar Afrodite, julgando que o termo é alusivo às manifestações mitológicas e literárias da deusa like a virgin, especialmente ao Hino Homérico a Afrodite, embora não descarte que haja referência ao seu nascimento.

2. Sob as ordens de Eros ou de Hermócrates?

O segundo tópico que gostaria de examinar traz outro tipo de problema, trata de uma passagem corrompida no texto e das conjecturas para tentar restaurar-lhe o sentido. O primeiro folio do manuscrito de Quéreas e Calírroe, cuja leitura já estava bastante comprometida, tornou-se ilegível depois que Cobet, em 1842, aplicou-lhe um composto químico com o intuito facilitar-lhe a decifração. No primeiro momento, parece que a estratégia fez efeito, mas em seguida o texto ficou severamente danificado. O teor desse pelo destino a conviverem com seres humanos. É o que nos relatam poetas e prosadores". A referência é provavelmente a Tétis. 25 A sugestão, que parece ter partido do tradutor alemão, Plepelits, faria sentido, inclusive porque os escultores de Afrodísias gozavam de renome no mundo antigo, especialmente em vista das suas estátuas de Afrodite, largamente exportadas, e dos painéis do Sebasteion. Estou convencida que Q&C I.1 faz o elogio de Afrodísias, projetada na distante Siracusa. Diante da dificuldade de identificar a obra que Cáriton teria em mente, uma possibilidade é a que ele estivesse se referindo a um tipo largamente copiado conhecido como o da Venus Pudica, por seu recato, de que a Afrodite de Cnidos, obra perdida de Praxíteles, é o protótipo.

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folio, que traz ambas as passagens que discuto aqui, é conhecido a partir de cópias (além da feita por Cobet, há outras), que subsidiaram às edições anteriores à de Blake (1938), que, como dito, foi o primeiro editor de Cáriton a examinar diretamente o manuscrito.26 Na passagem em questão se descreve a primeira aparição pública de Calírroe, no curso da qual se dá o encontro com Quéreas, arquitetado por Eros (I.1.3.11: ὁ δὲ ᾿´Ερως ζεῦγος ἴδιον ἠθέλησε συλλέξαι./Eros, contudo, quis compor a sua própria parelha.). Apesar da heroína ter entre seus pretendentes jovens oriundos das mais prestigiosas famílias de Siracusa e de outras regiões, Eros decidira uni-la a Quéreas, cujo pai era desafeto político de Hermócrates. Para isso, planejou para que os jovens se encontrassem e se apaixonassem. Segundo o narrador, "ele procurou, então, a seguinte oportunidade" (Q&C I.1.4.18: ἐζήτησε δὲ τοιόνδε τὸν καιρόν; cito Q&C. I.1.5.21): ᾿Αφροδίτης ἑορτὴ δημοτελής, καὶ πᾶσαι σχεδὸν αἱ γυναῖκες ἀπῆλθον εἰς τὸν νεών. τέως δὲ μὴ προιοῦσαν τὴν Καλλιρόην προήγαγην ἡ μήτηρ, κελεύσαντος προσκυνῆσαι τὴν θεόν. Havia um festival público em honra a Afrodite e quase todas as mulheres foram ao templo. Até então Calírroe não havia saído à rua, mas como ordenara que ela se inclinasse diante da deusa, sua mãe a conduziu para lá. O festival foi o pretexto para o encontro. Calírroe participava dele pela primeira vez, levada por sua mãe que, como as outras "mulheres" da cidade, deveria prestar honras à deusa em seu templo.27 Como fica claro no texto, a iniciativa de levar a filha ao templo não é da mãe, que o faz mediante uma ordem. De quem parte a ordem, contudo, não se pode estabelecer em vista da corrupção textual. Reardon (2004:2), no aparato crítico de sua edição, informa que a lacuna corresponde a 5 ou 6 letras (obviamente a palavra deveria pertencer ao gênero masculino, estar no singular e no caso genitivo, em vista do particípio κελεύσαντος, com o qual formaria o genitivo absoluto) e lista as conjecturas dos editores anteriores, a

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Sobre isso, cf. Reardon (2004:1, aparato crítico). Note-se que o termo empregado aqui, γυναῖκες, normalmente é empregado para designar as mulheres casadas, em detrimento das solteiras. Não fica claro se o festival excluía as solteiras, e por isso Calírroe não participara dele anteriormente, ou se sua família não autorizava sua exposição. Também não fica claro se a anuência, sem contestação aparente, da mãe em levá-la se deve ao fato de a menina ter atingido a puberdade, estando prestes a casar-se, como indica a corte de que é objeto. É esperável que as nubentes prestassem homenagem à deusa. 27

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que faço alguns acréscimos, sendo que D'Orville (1750) não suplementa, nem faz sugestões:28 a) ῾Ερμοκράτους: Hirsching (1856), Hercher (1859), também Cobet (1859); b) ᾿´Ερωτος: Gerschmann (1974, apud Reardon, 2004), adotado por Goold (1995); c) τοῦ πατρóς, com artigo, em Molinié/Billaut (1989), Blake (1938) cogita, mas por fim não suplementa (mas traduz de acordo com sua conjectura); d) πατρóς ou, com menor probabilidade, ἀνδρός (sem artigo): cogita Reardon (2004), mas não suplementa. Ao que parece, todas as sugestões podem ser reduzidas a duas, no que tange ao sentido da frase: Hermócrates (= (o) pai ou marido, a + c + d), por um lado, e Eros (b), por outro.29 No que diz respeito à forma, Hermócrates, uma sugestão de quem não viu o manuscrito, já que a palavra excede o espaço disponível (com exceção de Cobet que, no entanto, apaga-a de sua cópia, cf. Reardon, 2004:2), as demais cumprem o critério das 6 letras (no caso de τοῦ πατρóς, haveria suplementação também do artigo, não rara nas edições do romance, em vista da correção gramatical e do uso mais frequente no restante do texto). O contexto aponta de fato para essas duas possibilidades: ou o pai, Hermócrates, determina que é chegado o momento de exibir sua filha nubente aos olhos dos cidadãos (e dos pretendentes), ou Eros inspira de algum modo a mãe a fazê-lo. A opção por Eros conta apenas com a simpatia de Goold, que anota essa lição na edição da Loeb. No entanto, há indícios no texto que apoiam a sugestão. O narrador deixa claro o papel do deus para o encontro e subsequente enlace entre Quéreas e Calírroe. Ao relatar a rivalidade entre os pais dos jovens, ele nota (Q&C I.1.4): φιλόνικος δέ ἐστιν ὁ ᾿´Ερωος καὶ χαίρει τοῖς παραδόξοις κατορθώμασιν· ἐζήτησε δὲ τοιόνδε τὸν καιρόν. Eros, contudo, é amante de desafios e se compraz com êxitos incomuns. Ele procurou, então, a seguinte oportunidade.

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E um decréscimo: Reardon anota ὀνείρου, sonho, como sugestão de Gärtner, mas a referência não consta da bibliografia e nem foi adotada por nenhuma das edições do texto. 29 A sugestão mencionada na nota anterior, e descartada em vista da impossibilidade de checagem, parece remeter a Eros. Um sonho teria induzido a mãe a conduzir a filha ao templo. Como Eros planejara a ocasião de encontro entre os jovens, seria razoável supor que o sonho teria sido inspirado pelo deus. Embora sonhos premonitórios ou prescritivos sejam frequentes no romance, não me parece provável que fosse o caso aqui porque Cáriton nunca alude a sonho personificado ou em abstrato, o conteúdo é sempre descrito (ex. Theron sonha com portas fechadas em I.12) e normalmente nele se apresentam pessoas (ex. Calírroe vê Quéreas em um sonho e ele a aconselha, II.9).

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Em seguida, tem-se início o relato do festival e da presença de Calírroe nele. Daí, é possível concluir que a oportunidade ensejada pelo deus é dada pelo festival, ocasião em que uma moça poderia aparecer em público sem que sua reputação fosse comprometida. Logo após a passagem que examino, o narrador descreve como Quéreas "coincidentemente" está, naquele momento, voltando do ginásio, em sentido contrário aos que vão ao templo e, apesar do estado lacunar do texto, fica mais uma vez evidente a participação do deus no encontro (Q&C I.1.6): ἐκ τύχης οὖν περί τινα καμπὴν στενοτέραν συναντῶντες περιέπεσον ἀλλήλοις, τοῦ θεοῦ πολιτευσαμένου τήνδε τὴν ἵνα ἑκα ὀφθῇ. Quis a sorte que, vindo em sentido contrário, topassem um com o outro em uma curva estreita do caminho. Assim o deus traçou , para que avistassem um .30 Apesar dos problemas textuais, lê-se que "o deus determinou (τοῦ θεοῦ πολιτευσαμένου) que se vissem". Deus aqui remete claramente a Eros. E o emprego do genitivo absoluto, tal qual na passagem estudada (? κελεύσαντος), parece reforçar a ideia de um mesmo sujeito lá e cá. 31 Pesa contra essa hipótese a censura de Hunter (1996) que não considera o verbo κελεύω compatível com o sujeito proposto.32 Também poder-se-ia objetar que fica indeterminada a forma como o deus "ordenaria" a ação da mãe de Calírroe (enquanto isso não seria um problema caso a ordem partisse de Hermócrates, mas antes natural): através de uma visão, de um sonho, de um oráculo? Para um autor cujo texto se notabiliza pela clareza, seria de se estranhar que tal fato ficasse na sombra. A favor da primeira conjectura pesa a autoridade que é conferida ao pater familias na organização social, cabendo a ele decidir sobre as atividades da cada membro familiar e, especialmente relevante, no caso do romance de Cáriton, por se tratar de Hermócrates, líder político amplamente reverenciado na cidade e reconhecido 30

A conjectura é a de Cobet (1859:250), que teria deduzido a partir do manuscrito, antes que o produto que ele empregou o danificasse de vez. Ele anota , para a primeira lacuna, e ἑκά ἑτέρ, para a segunda. Reardon a anota no aparato crítico, mas não suplementa; Molinié/Billaut e Goold a adotam. Não vou discuti-la aqui. 31 Além de ᾿´Ερωτος, τοῦ θεοῦ poderia ser conjecturado, em vista do paralelo, não a letra excedente (Reardon estima espaço para 5-6 letras e seriam 7 aqui). 32 Cf. Hunter (1996): "A few observations on (I hope) typical problems: 1.1.5 Gerschmann's KELEU/SANTOS is unconvincing (the verb is wrong for the god). Reardon and Plepelits adopt Blake's hesitant KELEU/SANTOS". Ele não esclarece a razão de sua objeção, mas, talvez, ela resida no fato de Eros ser uma divindade da sedução e persuasão e, não, da coação.

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fora dela -- Dionísio e o rei Persa sabiam de sua fama (II.6.3 e V.8.8-9, respectivamente, e também os egípcios, VII.2.3-4). A razão para o pai determinar a ida da filha ao templo, não está dada no texto, e poderia perfeitamente estar no âmbito da piedade. No entanto, se é verdade que a menção a Afrodite parthénos evocaria a Atena Parthénos de Atenas, o festival dedicado à deusa, do qual participa a heroína, remeteria as Panateneias, cuja procissão trazia moças das famílias de elite desempenhando a função de canéforas, ou seja, seria de se esperar que Calírroe assumisse tal papel. Embora Cáriton comece e termine sua história em Siracusa, no século V a.C., o capítulo inicial parece remeter a sua Afrodisias natal que busca contrapor-se a Atenas como novo centro político-cultural de expressão grega no contexto multifacetado do Império. Hermócrates mesmo parece ter sido escolhido como personagem do romance pelo fato de estar identificado com a derrota naval imposta aos atenienses no curso da Guerra do Peloponeso pelos sicilianos.33 O deslocamento espacial (Afrodisias ou Atenas para Siracusa e Mileto; Roma para Babilônia(?)) e temporal (de I d.C. para V a.C.) encontra paralelo na estratégia de Virgílio de celebrar Roma através de Troia e Cartago remotas. Nesse sentido, nessa procissão inicial, ao templo de Afrodite, nominalmente situado em Siracusa, ecoaria o similar em Afrodisias, que nos tempos de Cáriton ganhara maior relevância com a inauguração do grande complexo arquitetônico, do qual era parte o Sebasteion, marco do vínculo entre a cidade e o centro do Império, Roma. 34 No contexto Siciliano, ou intraliterário, na qualidade de ἄγαλμα, estátuta/simulacro da deusa, Calírroe faz parte da procissão, abrilhanta-a e acresce prestígio político ao pai, que a extensa corte de pretendentes nobres testemunha (note-se que nenhum dos jovens havia visto a moça, apenas ouvido falar de sua beleza, mas todos conheciam a reputação do pai, ou seja, ser filha de Hermócrates é um dote mais concreto que a renomada beleza). Assim, tudo somado, parece mais provável a ordem para que Calírroe fosse ao festival da deusa viesse da parte do pai, ou seja, de Hermócrates. A rigor, é impossível definir com segurança um termo ilegível no manuscrito, mas do mesmo modo, é impossível deixar de suplementá-lo ao ler o texto. Cada leitor, intimamente fará sua conjectura e eu, enquanto tradutora e, portanto, primeira intérprete 33

Por trás da escolha de Hermócrates pode estar a celebração dos feitos militares de Sulla (II-I a.C) , dentre os quais está a captura de Atenas. Sulla, interessado n o apoio de Afrodísias na guerra contra Mitrídates, foi o primeiro a estabelecer os vínculos entre Roma e a cidade, impulsionando o progresso da cidade. No romance, são inúmeras as referências ao feito militar de Hermócrates a começar pela já citada aqui e que antecede a apresentação de Calírroe (Q&C I.1.1.3). Ainda no livro I, cf. também I.11. Para desenvolvimento, remeto a S. D.Smith, Greek identity and the Athenian past in Chariton: the romance of empire. Groningen: Barkuis, 2007. 34 Cf. Thommen (2012); Edwards (1991: 195), a quem devo a sugestão a cerca da Atena Parthénos..

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do texto para meus leitores, com base nessas reflexões, junto-me à maioria e opto por "pai" (πατρóς). Ou seja, Hermócrates ordena que a mãe leve a filha ao festival e, assim fazendo, concorre para o sucesso do plano de Eros (que vê na determinação uma oportunidade de pôr seu plano em marcha), num claro caso de dupla determinação da ação, humana e divina, no romance grego.

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