Afrorreligiosidade na mira do racismo

Share Embed


Descrição do Produto

CORREIO BRAZILIENSE / DF - OPINIÃO - pág.: A11. Seg, 3 de Março de 2014 COLUNAS/OPINIÕES

Afrorreligiosidade na mira do racismo » WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO*

Terreiros de umbanda e candomblé são alvo constante de fenômeno chamado racis mo religioso. A perseguição segue, em muitos casos, invisível. Quase 500 anos se passaram desde o início da vinda forçada de seres humanos escravizados do continente africano para nosso país. São pessoas que tiveram a identidade, a história, os laços familiares partidos na travessia do Atlântico. Lógica perversa movia o processo de tráfico de seres humanos: o racismo, entendido como conjunto de ideias e projetos de poder que hierarquizava - e, de modo levemente diferente, ainda hierarquiza - pessoas em todo o mundo para o proveito de algumas. O racismo moderno apareceu como uma das maneiras de naturalizar as relações de dominação existentes no mundo. As projeções assumiram muitas formas e, ainda hoje, passado quase meio milênio, sentimos seus efeitos de modo contundente. Os povos africanos e os descendentes no Brasil tiveram de criar modos de resistência para preservar elementos essenciais da cultura, jeitos de ver o mundo e de se relacionar consigo mesmos e com a natureza. Entre as estratégias, aparecem as religiões de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda, que cultuam a ancestralidade e a natureza, seguindo ensinamentos e procurando manter vivos elementos destruídos pela empresa colonial. Como o racismo segue existindo, mesmo quando sabemos que biologicamente não existem raças humanas, os ataques às expressões da cultura negra são constantes e colocam em risco as práticas que durante séculos mantiveram vivas as tradições e as visões de mundo herdadas do continente africano. Normalmente nos referimos aos ataques contra o candomblé e a umbanda como uma das manifestações da intolerância religiosa. Entretanto, entendemos que o nome não consegue descrever com precisão o fenômeno.

demonização das crenças religiosas de umbandistas e candomblecistas, passando por ofensas morais a esses religiosos, chegando a violências físicas e, em alguns casos, à morte de pessoas que, nos terreiros, praticam sua crença. Parte do argumento que se utiliza para a violência advém da ideia de que essas religiões cultuam o mal na forma do demônio, entidade que não faz e nunca fez parte do conjunto de crenças dos povos africanos, o que expressa profunda ignorância sobre a visão de mundo africana que se refugiou no candomblé e na umbanda. Como somos também herdeiros da tradição que vê no demônio o mal absoluto que deve ser combatido, vemos a batalha arbitrariamente transferida para as religiões de matrizes africanas, inclusive lhes atribuindo, de modo difamatório, características que não são suas, práticas que não lhes dizem respeito. É fundamental que possamos conhecer melhor essas religiões, não para que todos nos tornemos umbandistas ou candomblecistas, mas para que tenhamos noção de que essas práticas religiosas são guardiãs de parte da visão de mundo de uma população que, à custa do próprio sangue, contribuiu para a construção do país. Com isso, o respeito, valor básico de qualquer democracia, pode ser também destinado às religiões que sofrem, muitas vezes no silêncio, da invisibilidade - violências das quais muitas vezes somos coniventes, partícipes ou, simples e arbitrariamente, ignorantes.

*Professor de filosofia e bioética da Universidade de Brasília, é coordenador do Coletivo de Entidades Negras do Distrito Federal.

Os ataques são expressões tenazes de uma das manifestações do racismo, que persegue as heranças religiosas que têm influências do povo negro, trazido à força para nosso país. Por essa razão, algumas pessoas têm se referido às perseguições como racismo religioso. Essa modalidade específica do racismo engloba práticas violentas que vão da 71

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.