Aftermath As culturas económicas da crise em debate. Organizado por Gustavo Cardoso, João Caraça, Manuel Castells e Bregtje van der Haak - draft livro

June 4, 2017 | Autor: Gustavo Cardoso | Categoria: Sociology, Media Studies, Social Sciences, Internet Studies
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Aftermath As culturas económicas da crise em debate

Gustavo Cardoso, João Caraça, Manuel Castells e Bregtje van der Haak (organizadores)

Aftermath As culturas económicas da crise em debate

LISBOA, 2011

© Gustavo Cardoso, João Caraça, Manuel Castells e Bregtje van der Haak (organizadores), 2011 Gustavo Cardoso, João Caraça, Manuel Castells e Bregtje van der Haak (organizadores) Aftermath. As culturas económicas da crise em debate Primeira edição: Dezembro de 2011 Tiragem: 500 exemplares ISBN: 978-989-8536-XX-X Depósito legal: Entrevistas: Bergtje van der Haak Documentário: www.youtube.com/user/VPROinternational Transcrição das entrevistas: Programa Backlight, VPRO Tradução das entrevistas: Alexandra Lemos e Túlia Marques Revisão científica: Gustavo Cardoso Composição em caracteres Palatino, corpo 10 Concepção gráfica e composição: Lina Cardoso Capa: Nuno Fonseca Foto da capa: Revisão de texto: Gonçalo Praça e Helena Soares Impressão e acabamentos: Publidisa, Espanha Reservados todos os direitos para a língua portuguesa, de acordo com a legislação em vigor, por Editora Mundos Sociais Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa Tel.: (+351) 217 903 238 Fax: (+351) 217 940 074 E-mail: [email protected] Site: http://mundossociais.com

ÍNDICE

Autores......................................................................................

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Aftermath. O contexto e a crónica de uma crise em curso.............................................................................

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Gustavo Cardoso, João Caraça e Manuel Castells A crise global não global e as culturas económicas alternativas ....................................................................... Conversa com Manuel Castells, sociólogo

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A metamorfose de uma crise financeira, política e social ............................................................................... Conversa com John B. Thompson, sociólogo

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A falência do interesse próprio e o poder da pertença... Conversa com Gustavo Cardoso, sociólogo

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Não podemos ter medo do futuro ....................................... Conversa com João Caraça, físico e economista

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A China: estabilização social e a mercantilização da justiça e dos direitos..................................................

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Conversa com You-Tien Hsing, economista política A crise e o obstáculo inevitável ao progressivo avanço do capitalismo ..................................................................

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Conversa com Sarah Banet-Weiser, professora de Comunicação A América Latina: dependência e independência........... 117 Conversa com Ernesto Ottone, politólogo A identidade de resistência versus a sociedade em rede .............................................................................. 125 Pekka Himanen, filósofo A crise enquanto perturbação de um sistema em incerteza...................................................................... 135 Conversa com Michel Wieviorka, sociólogo Quarenta anos de minimização da solidariedade social .................................................................................. 147 Conversa com Craig Calhoun, sociólogo A confiança e o risco, inseparáveis na sociedade de risco global. ................................................................. 159 Conversa com Terhi Rantanen, Professora de Comunicação Progresso sustentável, sustentabilidade progressiva ..... 167 Conversa com Rosalind Williams, historiadora

Autores

Manuel Castells é director do IN3 em Barcelona e Wallis Annenberg Professor of Communications, na Universidade da Califórnia do Sul, Annenberg, nos EUA. John B. Thompson é professor de Sociologia na Universidade de Cambridge e Fellow do Jesus College, também em Cambridge. Gustavo Cardoso é professor de Media e Sociedade no ISCTE-IUL — Instituto Universitário de Lisboa. João Caraça é professor de Ciência e Tecnologia no ISEG, doutorado em Física Nuclear e director do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. You-Tien Hsing é economista-política na Universidade da Califórnia, Berkeley. Sarah Banet-Weiser é professora associada na Escola de Comunicação Universidade da Califórnia do Sul, Annenberg, nos EUA. Ernesto Ottone é cientista político na Universidade Diego Portales (Chile) e no Institute of Global Studies/MSHF (França). Pekka Himanen é filósofo e professor no Instituto de Tecnologia da Universidade de Helsínquia e na Universidade da Califórnia, Berkeley. vii

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Michel Wieviorka é Professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris e presidente da Fondation Maison des Sciences de l’Homme, também em Paris. Craig Calhoun é sociólogo na Universidade de Nova Iorque e director do Social Sciences Research Council dos EUA. Terhi Rantanen é Professora de Comunicação e Media Globais na London School of Economics and Political Science.. Rosalind Williams é historiadora cultural da tecnologia no Massachusetts Institute of Technology, nos EUA. Bregtje van der Haak é cientista política, jornalista e directora de documentários do programa Backlight na televisão holandesa VPRO.

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O contexto e a crónica de uma crise em curso Gustavo Cardoso, João Caraça e Manuel Castells

Durante os últimos três anos reuniram-se em Lisboa doze investigadores para discutir a crise iniciada em 2008. Os participantes escolheram designar esses encontros por Rede Aftermath (“rescaldo”), expressando nesse nome as suas certezas e dúvidas sobre a crise, a sua génese, as suas metamorfoses e culturas nas diferentes geografias e sociedades. Este grupo foi coordenado por João Caraça, Manuel Castells e Gustavo Cardoso e teve no apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian e no suporte do CIES-IUL as suas estruturas operacionais. A ideia fundamental que presidiu às reflexões e propostas de análise do grupo foi a de que a actual crise económica é um ponto final num certo tipo de capitalismo. Mais do que isso, é improvável que regressemos ao mesmo modelo de organização económica e social anterior a 2008, mesmo se a economia global repousar depois de um período de reestruturação. E, portanto, levanta-se uma questão fundamental: como viver num sistema económico diferente enquanto se mantêm os modelos culturais que fizeram parte de um modelo global de capitalismo alicerçado no mundo financeiro? E em particular, como viver numa cultura consumista quando os bens de consumo se tornam de acesso cada vez mais limitado à maioria da população? Haverá vida depois do consumismo? E se sim, que tipo de vida? Que tipo de cultura? Que tipo de sociedade? 9

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Aquilo a que nos propusemos não se tratou de um exercício de previsão do futuro, mas da observação das tendências embrionárias na nossa sociedade que encaixam melhor no novo contexto económico do que nos momentos triunfantes do capitalismo financeiro global e do crescimento económico impulsionado pelo consumo. Tomámos como ponto de partida o diagnóstico apresentado sobre o capitalismo (isto é, o fim desta forma de capitalismo), tendo na sua base um conjunto de trabalhos e análises que documentam esta afirmação. O trabalho foi, também, o de reflectir sobre as formas culturais alternativas que emergem na sociedade, olhando, tanto quanto possível, para diferentes sociedades. Sabemos que o capitalismo está enraizado na cultura e nas instituições desde a sua origem. E que os mercados são uma construção cultural baseada em expectativas. Tal como exemplificam o capitalismo keynesiano e a globalização sem restrições. Daí a pergunta que acompanhou o grupo ao longo de três anos de debate: que nova cultura surgirá deste actual processo de reestruturação? A questão é fundamental porque está na génese da mudança social. A revista Newsweek de Fevereiro de 2009 surgia com o título “Agora somos todos socialistas”, mas dois anos mais tarde assistíamos à discussão e implementação de medidas de reestruturação do Estado social por via da crise das dívidas soberanas europeias. Estes exemplos apontam para o facto de que havia, e há, novas regras do jogo a ser experimentadas. Que regras são essas? Estaremos a assistir ao regresso de uma lógica de relação entre uso e valor como forma de abordar e entender a sociedade? Será que poderemos pensar que evoluímos de um esquema de valores de sobrevivência para um esquema de intercâmbio de valores, usando este último como um modelo organizacional da vida humana, bem como das instituições que compõem as sociedades? Será o ambientalismo o novo paradigma? Estão os valores do movimento feminino na vanguarda na nova organização social? Está a democracia a ser ultrapassada pela ligação entre a mobilização popular, os movimentos socioculturais e

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novas lideranças carismáticas? Estas são algumas das questões e ideias que o grupo procurou explorar. A publicação das entrevistas que dão corpo ao livro que agora tem entre mãos são um complemento ao documentário realizado por Bregjte van der Haak para a estação televisiva holandesa VPRO. O documentário foi produzido em Julho de 2011 e apresentado pela primeira vez na Holanda em Setembro do mesmo ano. O que se pretende com esta publicação é proporcionar uma reflexão mais aprofundada, só possível num meio escrito, das ideias expressas nas imagens do Youtube publicadas sob o nome Aftermath of a Crisis. Esperamos que as ideias aqui apresentadas contribuam para trazer sentido às reflexões feitas por muitos sobre as razões da crise, as suas diferentes apropriações e sobre as novas culturas económicas que se estão a formar.

A crise global não global e as culturas económicas alternativas Conversa com Manuel Castells, sociólogo

Quando ficou claro para muitos que o regresso aos dias felizes do capitalismo virtual era uma fantasia, a cultura económica alternativa que antecedeu a crise económica devido à sua crítica ao capitalismo passou a fazer parte da linha da frente do debate público. Está assim construído o cenário para o confronto entre o modelo disciplinar de um capitalismo financeiro endurecido e diminuído e o aprofundamento e difusão de um modelo de economia alternativa em que uma minoria consciente se tinha atrevido a começar a viver. Trata-se de um conflito político directo cujo resultado irá determinar o mundo em que viveremos no rescaldo da crise. (Excerto de uma das contribuições de Manuel Castells para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Recorda-se do momento em que se apercebeu da crise, de estar a viver na crise? Manuel Castells Já havia sinais em 2007. Nos Estados Unidos tinham ocorrido várias bancarrotas financeiras importantes que eram imediatamente cobertas pelo governo federal que resgatava as instituições financeiras. Mas o processo acelerou, claramente, desde a segunda metade de 2007. E, na medida em que, desde há muito, 13

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trabalho sobre a insustentabilidade do modelo do capitalismo financeiro na era da informação, que é acelerado pelos modelos tecnológicos e matemáticos, comecei a seguir estes primeiros sinais. Em 2000 publiquei um livro com Anthony Giddens, Paul Volcker e George Soros, com o título On the edge, living in global capitalism, no qual escrevi um longo texto sobre a insustentabilidade do modelo financeiro. Assim, a combinação de uma análise de longa duração sobre os potenciais problemas deste modelo de capitalismo — não do capitalismo em geral, mas deste modelo em particular — e os sinais que observava em 2007 levaram-me a pensar seriamente sobre a necessidade de usar o meu tempo e a minha capacidade de investigação para compreender algo que potencialmente poderia ser muito importante para a vida das pessoas. O que é a Rede Aftermath? A Rede Aftermath surgiu da combinação das minhas reflexões sobre o que poderia ser uma nova dimensão da crise e da iniciativa do CIES-ISCTE e da Fundação Calouste Gulbenkian, que tem sede em Lisboa e é umas das mais interessantes e empreendedoras fundações europeias. Abordaram-me para apurar se teria algum projecto inovador ou interessante que estivesse interessado em liderar com total independência intelectual e com alguns dos professores e investigadores mais importantes do mundo. Pensei que seria uma boa oportunidade para combinar a minha crescente preocupação sobre a crise e, em vez de apenas me concentrar em descrições específicas da crise (que são muito importantes e que têm que ser feitas), tentar analisar mais aprofundadamente as suas causas culturais e consequências. Quando me refiro às causas culturais da crise, quero compreender como é que a crise é a expressão de uma forma particular de pensar que tem prevalecido entre as instituições, financeiras e governamentais, durante muito tempo. No caso das consequências da crise, refiro-me a como sair da crise, e a primeira coisa a fazer é pensar de forma

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diferente. Mais do mesmo modelo terá as mesmas consequências. Mais do que fazer um puro inquérito filosófico sobre o assunto, quis juntar diversidade de competências de investigação e de especialidades. Foi assim que foi criada esta rede de intelectuais e investigadores de várias partes do mundo, de diferentes culturas, tradições e disciplinas, para se reunir uma vez por ano em Lisboa, fazer investigação, pensar muito e, por fim, produzir uma análise compreensiva das raízes culturais da crise. Convidou os participantes por entender que poderiam dar contributos originais, ou pela sua diversidade? Ambas as coisas. Mas o principal é que convidei pessoas que são formidáveis do ponto de vista intelectual, que são muito independentes e que não são pagas por banqueiros ou pelos governos para fazerem o seu trabalho. São pessoas com total independência intelectual. Pessoas que não tentam ser especialistas cujo objectivo é descobrir uma fórmula para resolver a crise em 10 minutos, mas que tentam fazer uma análise mais profunda, tanto em termos das causas como dos resultados, sobre o impacto da crise nas vidas das pessoas. A outra questão é a diversidade. Originalmente, tínhamos pessoas oriundas sobretudo da Europa e dos Estados Unidos, mas decidimos que, pelo menos na última reunião, deveríamos juntar dois nós à rede, um da China e outro da América Latina, na medida em que rapidamente descobrimos que a chamada crise global não era global. Enquanto a Europa e os Estados Unidos estavam, e ainda estão em grande parte, numa das mais profundas crises económicas desde 1930, a China e a América Latina não. Por isso, pela primeira vez, a América Latina não sofreu seriamente o impacto da crise na Europa ou nos Estados Unidos. Têm outros tipos de crises, mas que são diferentes. Trata-se de uma dissociação do mundo em termos da crise e pensámos que juntar mais esses dois contributos era essencial. A rede, agora, não é totalmente global, mas é muito mais global, de forma a que se possa compreender que a crise global não é global.

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Não convidou economistas? Convidámos pessoas que têm conhecimentos de economia, nomeadamente, por exemplo, pessoas da América Latina que integram a Comissão Económica das Nações Unidas. Convidámos, por um lado, investigadores com formação em economia que estavam aptos a pensar em termos sociais e culturais e, por outro, cientistas sociais que conseguiam ter algumas noções básicas de economia. Como eu, por exemplo, que me formei em economia e sociologia em simultâneo. Contudo, não pensamos nem como economistas padrão, nem como cientistas sociais padrão. Pensamos de forma diferente. Para mim é muito entusiasmante, e como prática intelectual parece-me novidade, tentar compreender o mundo ao mesmo tempo que ele está a mudar à nossa frente. O que pensa sobre isto? Sim, acho interessante, na condição de não tentarmos prever em demasia, porque não é isso que fazemos. Tentamos compreender o presente para que isso seja útil às pessoas, que estão literalmente confusas. Um dos problemas desta crise é que a sua existência tem sido negada mais do que uma vez. Primeiro era uma crise financeira, mas de repente já não era uma crise financeira. Tornou-se uma crise industrial, tornou-se numa crise de emprego e depois numa crise fiscal, depois numa crise governamental e depois numa crise da Europa. Por isso, toda esta evolução da crise (em alguns dos nossos artigos chamamos-lhe a metamorfose da crise) exigia um trabalho analítico profundo em tempo real, para que fosse útil. E, desde que começámos, em 2009, temos realmente mudado e evoluído tal como a crise e é também por esse motivo que nos posicionámos perante a crise com muita atenção. Nesse sentido, pensámos sobre uma crise, mas também sobre a crise do pensamento sobre a crise. Tentámos inovar em resultado da necessidade de a compreendermos de uma forma muito diferente. Quão útil seria este

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processo? Todas as fórmulas, políticas e estratégias, contra a crise têm falhado. A única que parece ter sido mais ou menos bem sucedida tem sido o resgate dos bancos. Assim, para tudo o resto, precisamente porque os bancos foram resgatados, os governos faliram, e portanto não têm dinheiro e como os bancos não retribuíram o favor, emprestando dinheiro aos governos, estamos numa situação de crise. Todas as outras políticas são políticas cegas, porque se trata de uma análise errada do que se está a passar. As pessoas pensam exclusivamente em termos económicos de curto prazo e não pensam em termos sociais. A crise é social. Em última análise, a crise depende de como estão as pessoas, de como os governos se relacionam com as instituições financeiras, com a sociedade civil, com o sistema político, com as necessidades das pessoas. Trata-se de um processo social, cultural e político. Se não compreendermos isso, embora algumas fórmulas técnicas possam continuar a salvar o dia durante alguns meses, continuaremos a ter crises cada vez mais profundas e, por fim, as pessoas bloquearão qualquer saída da crise. Já estamos a assistir na Europa a sérios sinais desta tendência. Porque se as pessoas consideram que salvar os bancos — mas não o sistema de saúde, educativo e os seus empregos —, é a saída para a crise, haverá cada vez mais tensões nos sistemas sociais e políticos. Vivemos em democracias imperfeitas, mas, pelo menos, democracias que têm que ser sensíveis às necessidades e à fúria das pessoas. Na Escandinávia, já estamos a assistir às reacções e aos movimentos das pessoas em diferentes direcções, mas não necessariamente na direcção desejável. É certo que se a direcção é a desejável ou não depende da avaliação das pessoas mas, de facto, a paisagem social e política de há 10 anos atrás foi transformada pela crise. Diria que as sociedades se transformaram mais do que as economias. Assim, a crise económica, que se tornou numa crise institucional e social, exige um pensamento intelectual englobador e não apenas de algumas fórmulas económicas.

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Porque é se chama Rede Aftermath? Parece ter qualquer coisa de filme de James Bond… Como disse, o nome da rede tem algo de filme de James Bond ou de grupo de heavy metal, o que é bom em termos de comunicação, porque pensamos que será um sinal imediato para as pessoas dizerem: “Humm, o que será isto?”. Mas, falando mais intelectualmente, a noção não era de rescaldo da crise no sentido de a crise ter terminado ou ir terminar em breve. Trata-se do rescaldo da sua explosão, que ainda está a decorrer e que irá continuar a decorrer sob diferentes formas nos próximos anos. Assim, o que estamos a tentar dizer, já o sentíamos, mas agora sabemo-lo, é que se deu uma divisão histórica na continuidade das economias e das sociedades na Europa Ocidental e na América do Norte, Canadá incluído. É semelhante à divisão que ocorreu na Grande Depressão. Apesar de, felizmente, até ao momento, não ter as mesmas sérias consequências, porque havia um conjunto de amortecedores, nos quais se incluía o Estado-Providência. Contudo, o Estado-Providência foi colocado em causa pela crise. Uma das transformações é essa. Se o Estado-Providência continuar a ser diminuído porque os governos estão falidos e não podem pagar mais, um segundo estádio da crise será o que acontece sob as condições de um afundamento em massa do Estado social, que representava uma rede de segurança para as pessoas na Europa. Nos Estados Unidos existe muito menos Estado social, mas por outro lado havia um conjunto de instituições e legislação que protegia as pessoas, e o presidente Obama aumentou esta intervenção. Mas sob os cortes financeiros maciços impostos pelo Congresso esta situação também está a mudar. Assim, o rescaldo é fundamentalmente o rescaldo do fim de um modelo particular de capitalismo especulativo, a que posso chamar capitalismo informacional, porque tipicamente utiliza tecnologias de informação. Esse capitalismo informacional por um lado trouxe prosperidade à vida das pessoas, mas também transformou a sua percepção da vida,

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levando-as a pensar que poderiam continuar a consumir sem pensar muito sobre quem pagaria por isso. E o mesmo aconteceu com os bancos e com os governos. A era do crédito fácil, a era de viver à base das dívidas e de gozar o momento, o carpe diem da economia terminou. Assim, trata-se das consequências do carpe diem. Este grupo também se está a distanciar da sociedade e a olhar para a psicologia dos indivíduos. O que está a acontecer? Como é que as pessoas sentem a crise, a perda de confiança? O que acontece aos indivíduos quando assistem ao desmoronar das instituições e quando perdem a sua segurança? Esta crise tem sido, sobretudo, sobre a destruição dos mecanismos de solidariedade na sociedade porque, em última análise, é isso o que é o Estado Providência. Estabelecer a solidariedade para que as pessoas, mesmo quando são mais atingidas do que outras, continuem a ser protegidas pela sociedade através do mecanismo de redistribuição. Em simultâneo, ao longo dos últimos 20 anos, a sociedade tem-se crescentemente individualizado. As pessoas vêem-se como indivíduos. Assim, as instituições sociais eram redes de solidariedade. Em grande medida, a solidariedade entre as pessoas dissolveu-se. Quando as redes de solidariedade se dissolvem, a solidariedade institucional deixa de conseguir funcionar. E quando os indivíduos não têm o laço cultural da solidariedade e não reconhecem que estão juntos de alguma forma, então já não estamos apenas perante uma crise económica, mas perante uma crise da sociedade. De toda a gente contra toda a gente. Claro que começamos com os imigrantes, com as minorias, mas a partir daí passamos para outra coisa qualquer. Passamos para “Abaixo Portugal”, “Abaixo a Grécia”, “Abaixo os PIGS”. “Claro que se a dívida pública portuguesa é lixo, os portugueses são lixo. ” Continuamos a escalada e, como sabe, o partido finlandês Verdadeiros Finlandeses ganhou 20% dos votos com um único programa: “matar Portugal”. Assim,

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da falta de solidariedade nas sociedades nacionais direccionamo-nos para a falta de solidariedade entre as pessoas em contexto europeu, que, em última análise, também significa a possível dissolução da União Europeia. Ou, pelo menos, a redução da Europa ao clube dos ricos, ao dos pobres e ao da classe média e, por fim, ao desaparecimento do euro que une estas economias. Assim, é uma crise psicológica, mas também tem efeitos estruturais. Os seus aspectos psicológicos surgem da dissolução das instituições de solidariedade. Se não assistirmos à reconstrução dos laços e das redes de solidariedade em termos culturais e sociais, e não tanto em termos institucionais, direccionamo-nos para a individualização da sociedade, agressividade crescente e também para a concorrência destrutiva entre os estados-nação, que felizmente, até ao momento, não levou à guerra, como no passado, mas que levará ao desaparecimento de um projecto comum de viver em conjunto na Europa no momento em que a Europa se está a tornar marginal para o mundo. Rosalind Williams diz que precisamos de psiquiatras colectivos. Precisamos de construir novas redes de laços que liguem os indivíduos e os grupos sociais entre si enquanto reconstruímos as instituições da sociedade com base no que fazem as pessoas, não com base no que os governos fazem, porque esse é o problema-chave. A dissolução da confiança e da solidariedade chegou ao ponto de crise na relação entre os estados, entre os governos e as pessoas e entre os cidadãos. Ou seja, não existem laços entre os indivíduos e entre os indivíduos e o Estado. Desta forma assistimos ao desaparecimento total de qualquer possibilidade de acção conjunta, a não ser que as pessoas a reconstruam por si próprias ou a partir de si próprias.

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Muitas pessoas sentem que os políticos se preocupam mais com os bancos do que com elas. Os estudos feitos nos últimos cinco anos são claros e vão nesse sentido. Cada vez mais. Para as pessoas, os políticos preocupam-se em primeiro lugar consigo próprios. Preocupam-se com os próprios políticos, os seus salários e os seus empregos. E a segunda coisa com que se preocupam é liquidar o outro partido para poderem ter mais poder para si próprios. Essa é a prioridade para os políticos, e essa é uma percepção que é universal no mundo, mas em particular nos últimos anos na União Europeia. Em terceiro lugar, preocupam-se com os que os apoiam economicamente, que são os banqueiros. E se ainda sobrar alguma coisa, preocupam-se com os eleitores, não com as pessoas. É isto que as pessoas pensam. A ordem das prioridades dos políticos é esta: pensarem neles próprios, nos banqueiros e em como obterem votos, e depois talvez haja alguns bons rapazes que se lembrem de pensar nas pessoas. É esta a percepção que a população tem neste momento. Irá haver uma revolução? Para onde irá a raiva? Em todas as direcções. Primeiro contra os imigrantes. Bater nas mulheres depois dos jogos de futebol é também um método tradicional de expressão, em particular dos machos frustrados. Assim, em primeiro lugar, podem dirigir a sua raiva para os que consideram mais fracos. Apesar de poderem ter algumas surpresas com as mulheres. Mas, em segundo lugar, a raiva pode ser transformada em indignação. É esta a palavra, certo. Na Europa, em particular em Espanha e na Grécia, mas também em Portugal e em Itália, aquilo que ficou conhecido como o Movimento dos Indignados. A palavra surge de um panfleto de um bom amigo filósofo, Stéphane Hessel, com 93 anos de idade, que escreveu um panfleto que apela às pessoas para que se indignem e as pessoas corresponderam e disseram. “Sim, acontecem todas estas

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coisas terríveis e não estamos a fazer nada! Basta! Vamos indignar-nos!” Mas esta indignação pode ter expressões muito diversas. O que foi designado como “Movimento dos Indignados”, em Espanha, é um movimento muito altruísta, não violento, activista, que segue uma filosofia de não-violência, que tenta reconstruir as instituições da sociedade pela junção das pessoas tanto em redes sociais na internet como nas praças do país. E isto ocorreu durante quase dois meses e transformou por completo a consciência social da paisagem política em Espanha. Cerca de 84% das pessoas em Espanha apoiam este movimento. O que aconteceu em Espanha em resposta à crise? A coisa mais importante que aconteceu foi este movimento de indignação, isto é, um movimento espontâneo que começou na internet e que apelou às pessoas para demonstrarem, uma semana antes das eleições municipais, o seu protesto contra o vazio do debate eleitoral na campanha municipal dos partidos. Tanto conservadores como socialistas, e a quase totalidade dos outros partidos, estavam a falar apenas sobre os seus problemas, sobre si próprios. Todos acusavam os outros pela crise, ninguém propunha soluções e tentavam sempre encontrar slogans para cativar o voto sem, de facto, oferecerem uma verdadeira alternativa, sem realmente se auto-criticarem pelas políticas falhadas do passado. O apelo na internet, organizado por um pequeno grupo de pessoas em Madrid, que se auto-designava “Democracia real ya!” (“Queremos democracia verdadeira já!”), acabou por resultar numa manifestação em Espanha de milhares de pessoas. No final das manifestações de 15 de Maio, que é o actual nome do movimento, tanto em Madrid como em Barcelona, cerca de 20 ou 30 pessoas decidiram acampar nas principais praças das cidades para discutir o que fazer. “Ok, protestamos e o que acontece depois?” Enquanto dormiam nas praças e discutiam pela noite dentro, começaram a twittar para os seus amigos. Assim, no dia seguinte não havia dezenas, mas centenas de pessoas que também

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enviaram mensagens pelo twitter aos seus amigos. E depois chegaram milhares. E o movimento continuou a crescer. Apesar de alguns ataques e provocações policiais o movimento conseguiu continuar a ser um movimento não-violento. Na realidade existem algumas pessoas violentas em qualquer movimento, mas este movimento é em si um movimento não-violento e até têm tácticas interessantes que utilizam quando detectam algum grupo violento. Sentam-se em seu redor e começam a dizer. “Sem violência” e filmam-nos. E, como tem mostrado a experiência profissional, filmar alguém é muito intimidante. Muito mesmo. Assim, o movimento começou com uma grande premissa. O mais importante é mudar as instituições, as instituições políticas, que não nos representam. Nesse sentido fizeram eco da percepção da opinião pública de que “somos impotentes porque os nossos representantes não nos representam”. Este é o sentimento dominante por toda a Europa e presentemente também nos Estados Unidos, depois da crise de confiança em Obama. Então a ideia é “Muito bem, que tipo de democracia?” A resposta destas pessoas é: “Não sabemos. Não sabemos, apenas sabemos que não é a que temos agora. O resto temos que descobrir. ” Como? Começando por ser democrático no processo de a descobrir. O que significa que tudo é discutido em assembleias, nas quais têm que ser tolerantes, democráticos, abertos, votar; significa que se têm que encontrar todos os dias e que o que a assembleia decidir dará origem a comissões constituídas por quem quiser fazer parte delas. E, o mais importante, nada de líderes. Sem organização, sem nada. Por isso, trata-se de uma velha utopia política, a de gerir através de assembleias e de comissões auto-nomeadas. Contudo, há uma grande diferença relativamente ao velho sonho porque, desde que temos a internet, as pessoas estão em debate constante, podem ir mais além, em rede, com informação constante, ideias, propostas, debates e, por fim, com votação pela internet e, ao mesmo tempo, no espaço público. Foi assim que o movimento cresceu. Mas tudo isto é, claro, muito lento para se

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tomar qualquer decisão: 3000 pessoas a tentarem decidir e a respeitarem toda a gente. Existia uma grande faixa no acampamento em Barcelona (sabiamente decidiram suspender o acampamento antes de irritarem os transeuntes) que dizia: “Somos lentos, porque vamos longe. ” E esse sentimento, o de que se trata de um grande começo, de um novo começo, é o rescaldo. O rescaldo da crise não é apenas a devastação social, a crise política, a queda da Grécia, mas também o rescaldo em termos da re-ligaçao entre a sociedade e o sistema político. Sem querer ser demasiado idealista, isto foi o que aconteceu em Espanha e que se irá traduzir daqui a alguns meses numa enorme derrota do partido socialista, que já ocorreu nas eleições municipais, e o partido socialista será abalado até às suas fundações. E o partido conservador será eleito e seguirá mais ou menos as mesmas políticas, mas mais extremadas, com as mesmas consequências sobre as pessoas e, assim, com mais protestos. Depois, os sindicatos, que têm sido muito moderados, juntar-se-ão à indignação, opondo-se à noção de que a crise é a ocasião para cortar direitos sociais e cortar toda a protecção que as pessoas tinham, que é o que alguns dos partidos e dos grupos empresariais mais conservadores querem fazer. Querem utilizar esta situação para acabar com os sindicatos, o apoio social, tudo o que puderem. Porque vêem a crise como uma grande oportunidade. Os socialistas estão em baixa, a crise económica justifica tudo. A clareza de pensamento deste movimento, e da generalidade das pessoas em Espanha, está sintetizada noutro dos seus slogans: “Isto não é uma crise, é um truque!”. Com isto querem dizer que os banqueiros criaram, de facto, a crise com o apoio dos governos. E agora querem usar a crise para nos fazerem pagar por ela, e depois tirarem-nos os direitos e a segurança que tínhamos antes. Por isso, dizem que mais do que uma crise, se trata de um truque. Uma estratégia para regressar aos momentos nos quais as pessoas se encontravam muito mais à mercê dos banqueiros e das instituições.

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Assim, o Estado é palco de um confronto muito sério, mas não necessariamente violento, porque as pessoas compreenderam uma coisa: hoje em dia a política é feita na cabeça das pessoas através dos media. Isto é importante. E a única coisa que deslegitima qualquer acção é a violência. É por esse motivo que os governos tentam sempre provocar a violência. A polícia está instruída para provocar violência. Temos elementos que o mostram no caso de Barcelona e em outras cidades espanholas. Na medida em que ocorrem estas provocações, o movimento tem uma atitude muito inteligente para não ser arrastado para esta confrontação violenta, porque caso contrário perderá a sua legitimidade. E, ao evitarem a violência, este irá ser um movimento muito profundo que, em algum momento, acabará por vir à tona no sistema político através de diferentes formas. Não necessariamente nas tradicionais formas partidárias. Já o vimos em Itália, onde Berlusconi foi abalado pela juventude, que se está a mobilizar e a mudar o seu sentido de voto, em Milão e em Nápoles, votando em candidatos que não são membros do partido de esquerda, mas que são independentes que os partidos de esquerda terão que apoiar. O que já vimos em momentos diferentes na Europa, é a expressão política destes movimentos ter indivíduos muito respeitados, normalmente intelectuais e juízes. E são muito respeitados porque o movimento é respeitável, com personalidades respeitadas. Apoiar estas pessoas que não estão maculadas pela tradição da burocracia política será, em última análise, a única oportunidade de os partidos de esquerda terem algum poder. Esta é uma das mais importantes avenidas de mudança na Europa. Em outros países não se passa o mesmo. Vimos, por exemplo, na Escandinávia que os movimentos populistas nacionalistas da ala direita transformaram a sua raiva em encerramento das fronteiras e fechamento das mentalidades e que tentaram voltar atrás, a uma sociedade que já não existe e não globalizada. Trata-se de pura identidade nacional, num momento em que a Europa está integrada, podendo conduzir, em ultima análise, ao abandono do euro. Assim, estamos entre duas reacções muito diferentes.

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Pessoas que estão a tentar regressar ao passado e pessoas que estão a tentar descobrir o que poderá ser o futuro. O que já não funciona é o presente. Para ninguém. E esse é o caminho do rescaldo. E no meio encontra-se a maioria das pessoas? Sim, mas ao mesmo tempo, por exemplo em Espanha, a maioria das pessoas, 84%, apoia o movimento dos indignados. Dizem que eles estão certos. Não se atrevem a fazer o mesmo porque, depois dos 35 anos é difícil dormir no chão de uma rua, protestar e discutir. Mas, durante a manhã, chega todo o tipo de pessoas para discutir e mesmo que não estejam preparadas para dar o passo seguinte, envolvendo-se num debate aberto, num movimento aberto, seguem-no com simpatia. Estas pessoas, que não são jovens, têm 36/37 anos, podemos dizer que são jovens de uma determinada perspectiva, mas não o são. São pessoas que têm filhos, empregos normais, nem todos são desempregados, nem todos são estudantes, por isso trata-se de um conjunto transversal da sociedade. Trata-se mais de uma atitude do que de uma característica demográfica. Assim, o mais importante é como a maioria da sociedade se relaciona com as pessoas que ousam dizer que as coisas não podem continuar como estão. A maior parte delas concordam com isto. Aquestão é qual vai ser a relação entre os que lidam com isto de uma forma extremamente reacionária, regressando a uma identidade nacionalista básica, e os que partem à descoberta de uma nova forma de organização social. Assim, a sociedade está lá. Não é indiferente. A maioria das pessoas sabe que a vida e a economia não podem continuar assim. Odeiam banqueiros e políticos. Tudo isto está, portanto, preparado para que se estabeleça alguma união entre os que estão a tentar fazer alguma coisa e os que sentem a necessidade de fazer alguma coisa.

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E fez muita investigação sobre este tema, sobre alternativas, na Catalunha? Parte dos objectivos deste projecto Aftermath era fazer investigação. Algumas pessoas pensaram mais com base nas suas investigações anteriores mas, no meu caso, sou fundamentalmente um investigador, é o que gosto de fazer na vida. Quando descubro uma nova questão ou algo que pareça ser importante, para além de pensar ou escrever, tento ir para o terreno e observar. Em 2009, no início deste projecto, comecei um programa de investigação em Barcelona. Apesar de ter um estudante a trabalhar em questões semelhantes em Los Angeles, porque existem muitas coisas semelhantes que estão a decorrer ali, fi-lo em Barcelona. E fizemos duas coisas. Por um lado, observámos e entrevistámos durante meses pessoas que já tinham mudado as suas vidas sem esperar pela grande transformação. Não se tratava de novos hippies, ou de pessoas afastadas da sociedade, mas de pessoas que estavam a tentar consumir menos, trabalhar menos, mas trabalhar em coisas que gostavam de fazer. Pessoas que estavam a construir cooperativas de crédito, que estavam a ter uma vida agrícola, a ligar-se com cooperativas ecológicas, a organizar cooperativas de consumo. Pessoas que estavam a desenvolver todas estas novas formas de vida, sem esperar por um movimento político que viesse mudar as condições. Fizemo-lo, analisámo-lo, e descobrimos que cerca de 30. 000 pessoas já estavam activamente envolvidas nisto e que esta atitude era central nas suas vidas. Por outro lado, estudámos uma amostra representativa da população de Barcelona, 800 entrevistas, com base nas práticas de economia alternativa que tínhamos descoberto entre as pessoas que o estavam a fazer conscientemente. Fizemos uma lista de 25 práticas económicas com que confrontámos as pessoas para aferir se estavam a colocá-las em prática.

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Que tipo de práticas? Por exemplo, emprestar dinheiro durante a crise a outras pessoas que não eram da sua família, sem qualquer juro: 1/3 da população de Barcelona fez isto. Por exemplo, cultivar tomates e vegetais, num ambiente muito urbano, para o seu próprio consumo: 22% das pessoas de Barcelona fazem-no. Por exemplo, fazer a sua própria roupa ou arranjá-la: 62% também o fazem. Algumas destas práticas são o que chamamos práticas não capitalistas, que sempre existiram na sociedade, apesar de estarem abaixo do radar do que é considerado pelas economias, por isso não são consideradas relações de mercado. Mas isto é economia. Isto é consumo, produção, produção cultural. Estas pessoas produzem serviços mas não passam pela intermediação do mercado, isto é, pelo elemento de ligação tradicional entre a produção e o consumo. Não se trata de dinheiro? Exactamente. Estas práticas não são sobre fazer dinheiro ou pagar o menos possível pelos serviços. A maioria destas práticas não envolve dinheiro. E observamos que já existiam, mas que se intensificaram muito mais durante a crise económica. Entre 2008 e 2011 todas estas práticas se intensificaram. 25% da população de Barcelona reparou a própria casa ou a de outros que não faziam parte da família, mas, mais importante, reparou-a sem ser pago Uma lista completa: recolher objectos da rua que podem ser úteis em casa, 42%. Recolher restos de comida do supermercado: 20% das pessoas fazem-no. Não se trata de pessoas pobres! Barcelona não tem pobreza extrema. Tem alguns sem-abrigo, mas não é uma cidade pobre. A minha opinião é que apenas podemos compreender a emergência do movimento em 2011 se juntarmos alguns milhares de pessoas que já criticaram o seu modelo de vida, que consiste em correr constantemente, pedir

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dinheiro emprestado, viver com dívidas, consumir coisas que não têm significado, e em troca não ter tempo para estar com os amigos, não ter tempo para fazer amor ou para ter filhos, não ter tempo para nada, só para ter alguns objectos que, no limite, não têm qualquer significado. Por isso, as pessoas que tiveram este pensamento crítico já existiam na sociedade. Por outro lado, muitas outras práticas já ocorriam em grande parte entre a maioria da população, pelo menos entre 20-50% da população. Assim, quando, de repente, as pessoas com uma consciência mais crítica começaram um movimento aberto na internet e na rua, deu-se também um movimento de pessoas que, de facto, já simpatizavam com estas ideias, mas que não ousavam fazê-lo porque a vida é arriscada e não queriam ser apelidadas de elementos de contracultura. E assim se explica a fusão, a prevalência e a popularidade do movimento. E a minha opinião é que a Europa está num processo de agitação que se irá radicalizar nos próximos meses e anos. Neste processo, se não se desenvolverem movimentos de esperança, desenvolver-se-ão movimentos de ódio. E, assim, o confronto entre a cultura da esperança e a cultura da nostalgia destrutiva é, talvez, a tendência mais importante no rescaldo da crise. Concorda com a ideia de que não se trata de uma crise, mas sim de um artifício? Absolutamente. Em parte trata-se de um artifício, de um truque. É uma crise, em termos económicos, mas a crise, de facto, foi utilizada para aumentar o poder e os lucros dos grupos financeiros, que são, de facto, a elite dominante na nossa sociedade. Todos os principais bancos e instituições financeiras no último ano apresentaram lucros extraordinários. Mas agora os governos estão a passar por uma crise fiscal, os governos precisam do dinheiro, e os bancos dizem: “Para continuarmos estáveis e não voltarmos a estar numa situação difícil, não vos podemos emprestar dinheiro. E a única maneira de emprestarmos alguma coisa a alguém é

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se vocês começarem a cortar nos salários, a despedirem trabalhadores, a cortarem nos direitos sociais e a eliminar o poder colectivo dos sindicatos. ” Assim, a parte do artifício, do truque, desta afirmação parece ter apoio empírico. Na medida em que os lucros são muito elevados, alguns dos bancos espanhóis tiveram os lucros mais elevados de sempre em 2010. E, ao mesmo tempo, foram criadas as condições para se fazer um assalto ao Estado social, aos direitos sociais, ao poder dos sindicatos e, de facto, a todas as instituições que estavam a construir as vidas das pessoas no que diz respeito às suas necessidades básicas. Ou seja, não penso que se trate necessariamente de uma conspiração da classe e das organizações capitalistas, mas ultimamente tem sido utilizado nesses termos. Por esse motivo, na percepção das pessoas, trata-se de uma artimanha, de um truque. Não necessitamos de um tribunal no rescaldo, para julgar os prevaricadores? Algumas pessoas afirmam essa necessidade porque, para além do mais, temos fraude fiscal em massa, que está a ser perpetrada pelas famílias mais ricas. E, provavelmente, uma das coisas que o Movimento dos Indignados pede é que os políticos corruptos deveriam, pelo menos, ser banidos das actividades políticas, o que não tem acontecido: pode sempre regressar-se à política e ser um líder político. Exemplo disso é a forma como Berlusconi tem agido em Itália, enganando constantemente, construindo leis para sua vantagem pessoal e envolvendo-se em todo o tipo de escândalos sem sequer ser tocado porque, em última analise, iria ao Parlamento e conseguiria um voto. Trata-se provavelmente de responsabilidade legal e certamente de responsabilidade moral e ética. Assim, num dado momento, em Itália, de facto, os juízes estão a ter um papel muito importante. E o que, na minha opinião, poderia ser um desenvolvimento interessante, que já está a ocorrer em alguns casos, é a combinação de um movimento crítico que denuncie todos estes abusos e escândalos. Poderia estabelecer-se uma

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coligação muito mais poderosa entre movimentos sociais voluntários não violentos e juízes independentes e corajosos. Este poderia ser um confronto muito interessante. O tribunal do rescaldo? Sim. O tribunal do rescaldo da crise poderia ser uma nova sociedade. Mais uma questão que já mencionou, o facto de o desemprego ser muito elevado em Espanha… Sim, é muito elevado. Actualmente temos 22% de desemprego global e 41% entre os jovens. Contudo, esta não é a causa do movimento. Não é um movimento contra o desemprego. É um movimento contra a incapacidade do sistema político em criar políticas que poderiam remediar os problemas de desemprego e do Estado-Providência. As pessoas dizem: “É impossível continuar com este quadro. A economia está a desmoronar-se e o desemprego é intolerável, mas não temos representantes que consigam resolver este problema”. Assim, antes de desenharem políticas de emprego, há que mudar as instituições que, em última análise, são as responsáveis pelo desenho e implementação de políticas. Sem o instrumento adequado, independentemente do programa que possamos propor, qualquer política delineada no âmbito das instituições existentes não irá funcionar porque as mesmas pessoas irão fazer o mesmo que têm feito há muitos anos, primeiro dizendo que não existia crise e, por fim, aceitando que existia uma crise. Mas antes de sermos capazes de fazer da criação de emprego uma prioridade, temos que remover essas pessoas da classe política, não remover os partidos, como tanto um partido como o outro fazem o mesmo, é a classe política que tem que ser mudada. Em Espanha os socialistas elegeram um novo candidato, que está desesperadamente a tentá-lo. É um homem muito,

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muito inteligente. Começou a criticar os bancos e a afirmar que o Movimento dos Indignados tem coisas muito importantes para dizer. Mas também se trata de uma estratégia eleitoral alguns meses antes das eleições. Assim, poderá recuperar alguns eleitores socialistas mas, na sua maioria, as pessoas já não acreditam nesta classe política. E este é, de facto, um problema. Não fico muito contente com isto, mas a total desconfiança no actual sistema político levará à construção de um novo sistema político — tal irá acontecer, porque é inevitável. As pessoas dizem: “Os partidos não vão desaparecer…”. Acham mesmo isso? Em Itália, depois dos escândalos de Tangentopoli, nos anos 1990, desapareceram os principais partidos. Os Democratas Cristãos, o maior partido da União Europeia, desapareceu. Literalmente! E desapareceu o Partido Socialista. Tal como na Catalunha o Partido Socialista Catalão está prestes a desaparecer. De qualquer das formas, esta ideia de que os partidos são eternos, de que o sistema político é sempre o mesmo, é uma ideia auto-sustentadora para as pessoas terem medo do vazio político. Contudo, no meio do actual movimento de total desconfiança, de retracção do sistema político, está em curso a reconstrução não de novos partidos, mas de novas formas de política. Há uma longa transição histórica pela frente e podem acontecer muitas coisas perigosas nesse período. O que actualmente as pessoas deste movimento estão a tentar dizer é que, neste período, “Vamos estar juntos. Vamos gostar uns aos outros. Vamos confiar uns nos outros. Se estivermos juntos, criamos uma nova cultura e essa nova cultura económica será baseada no respeito e na confiança, tolerância e união. A partir daí, podemos esperar. Porque não precisamos das instituições para salvarmos as nossas vidas. As nossas vidas são salvas por nós próprios. E a partir daí teremos tempo para reconstruir as instituições”. É um pouco utópico mas, pelo menos, oferece uma alternativa, porque a outra alternativa é a de correr para criar um novo partido nos próximos seis meses, o que levará ao mesmo resultado porque está no mesmo

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sistema. Esse é o problema dos movimentos demagógicos, que procuram usar o momento para se promoverem na política, como assistimos na Finlândia, França, com 18% dos votos para o novo partido fascista, como vimos em Itália, e como não vemos em Espanha — porque está no interior do partido conservador. Esta é também uma forma de ilusão, de truque, uma abordagem da ala direita populista, mas a maior transformação é aquela que ocorre na mente das pessoas, é daí que surge a mudança. Qual é a visão partilhada pelo grupo sobre o rescaldo? Ontem ouvimos falar sobre o sentimento de um fim. Isto parece mais o começo. Partilha da visão de um fim? Partimos da noção de um sentimento de fim das diferentes formas socioeconómicas das sociedades europeias e norte-americanas. Foi esse o princípio do projecto e ao longo da análise e reflexão que fizemos nestes últimos três anos o que surgiu é que, para além do fim, existe também um início. É esse o rescaldo. Mas este início pode ser interpretado sob várias perspectivas e não termos uma visão uniforme. Nunca a quisemos ter. Se a tivéssemos seria prejudicial na situação actual porque não queremos ser mais um discurso coerente que resultará no consenso de Washington ou na Agenda de Lisboa. Não. O que queremos é abrir estas questões a pessoas que são honestas e intelectualmente muito competentes para tentarem oferecer diferentes perspectivas e estabelecer o diálogo. Queremos tentar construir uma ponte de interacção intelectual entre as pessoas para que o conhecimento que surja deste projecto possa ser o material para que na Europa e no mundo em geral outros possam também iniciar uma reflexão. Estamos a dar o estímulo e algum do material para essa reflexão. Em vez de encerrar o debate, abrimos o debate. Em vez de finalizar, tentamos ser parte de um novo começo.

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Mas se tivesse que nomear algo que partilhem neste grupo, em toda a sua diversidade, há alguma coisa com que todos concordem? A convicção de que o modelo do capitalismo informacional que tem dominado o mundo nos últimos 20 anos não é sustentável, que chegou ao fim, e que a reconstrução de novas formas de instituições, incluindo as económicas, passa por uma transformação cultural ligada à forma como as pessoas se sentem na vida, na política, e à sua capacidade para reconstruir as suas vidas sem aumentarem o seu endividamento. Espera que este conhecimento flua e permita às pessoas olharem para a crise de um modo diferente? Creio que sim, mas apenas se também os media cumprirem o seu papel. É irónico que o encontro esteja a decorrer em Lisboa, o local da Agenda de Lisboa. É uma espécie de coincidência, porque a Gulbenkian está sedeada em Lisboa, mas não lhe soa a repetição? A Agenda de Lisboa, na qual participei como um dos peritos que a redigiram, foi uma tentativa de reformar as estratégias económicas europeias com base na integração da tecnologia, do crescimento económico e da sociedade. O que foi significativo na Agenda de Lisboa foi o que chamámos de modelo europeu da nova economia, que incluía a dimensão social da economia e os direitos sociais e o Estado-Providência, que não era o caso nos Estados Unidos. Mas a Agenda de Lisboa nunca foi implementada. Era um conjunto interessante de documentos, para o qual contribuí com um artigo. O meu principal contributo foi uma reflexão sobre a falta de identidade europeia. Na minha opinião não existia identidade europeia e assim que surgisse uma crise, as pessoas não se sentiriam europeias, e isso iria quebrar a União Europeia. Isto constava da Agenda.

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Por isso, propus um conjunto de mecanismos e estratégias para construir a identidade europeia, para que, se ocorresse a crise, as pessoas reagissem como europeus, não como finlandeses, gregos, alemães. Nunca foram implementadas. Existiam óptimos artigos, óptimas estratégias, que nunca foram aplicadas e voltámos ao mesmo problema. Não existiam as instituições sociais para implementar as melhores ideias. Por isso, sim, é irónico que, 10 anos mais tarde, estejamos em Lisboa a analisar e oficializar o funeral da Agenda de Lisboa e a tentar perceber se conseguiríamos antes começar algo novo como com um recém nascido, em vez de o fazer com um corpo reanimado artificialmente. Surge-lhe alguma imagem que para si represente a crise? De facto, surgem-me duas. Uma é de Londres, com os bancários a passarem com os seus pertences dentro de caixas de cartão, depois de terem sido despedidos. Pouco antes estavam no topo da pirâmide, recebiam ordenados astronómicos. Antes, eram eles quem comandavam a pirâmide, e de repente ficaram sem nada, excepto as suas caixas de cartão e as suas eventuais poupanças. Embora, claro, os executivos de topo tivessem boas contas bancárias. Estas pessoas com caixas de cartão eram as que trabalhavam para eles. Esta é uma imagem. A outra, claro, é a imagem do movimento dos indignados, em Barcelona, que representa um rasgo de esperança e de debate. E há um tal sentimento de acreditar no futuro, sem depender das instituições, que somos obrigados a admitir que são as pessoas que decidem o que querem das suas vidas. Não os bancos, os governos ou os políticos.

A metamorfose de uma crise financeira, política e social Conversa com John B. Thompson, sociólogo

Onde estamos hoje? Num lugar muito incerto. Não no rescaldo de uma crise, mas no meio de uma crise cujo princípio pode ser analisado e documentado com alguma precisão, mas com um fim que não está sequer à vista e cujo resultado não se vislumbra. O que começou como crise financeira, aparentemente decorrente das práticas irresponsáveis dos banqueiros a operar num mercado financeiro desregulado, metamorfoseou-se numa crise muito mais ampla, que é financeira mas adquiriu também contornos políticos e sociais. Governos e políticos estão agora na linha da frente da crise e enfrentam enormes desafios, imobilizados pelo pacto faustiano que os amarra aos investidores privados, enfrentando ao mesmo tempo a ira dos cidadãos que se sentem injustamente tratados e traídos. E assim esta crise é agora uma crise social tanto quanto financeira e política, estando o seu futuro quer nas mãos dos cidadãos comuns e nas suas respostas aos sacrifícios que lhes são pedidos, quer nas mãos de banqueiros e políticos. O que acontece nas ruas de Atenas e de outras cidades pode ser tão importante nos meses que virão como o que acontece nos gabinetes dos governos e dos bancos em Nova Iorque, Washington, Londres, Bruxelas, Berlim ou outro lugar. (Excerto de uma das contribuições de John B. Thomspon para as reuniões da rede Aftermath) 37

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Bregtje Van Der Haak Lembra-se do momento em que tomou consciência desta crise? John B. Thompson É difícil reconstruir com precisão, mas lembro-me de alguns momentos em que, embora vagamente, tomei consciência de estarmos no meio de uma coisa séria. Um deles foi sem dúvida quando estava no centro de Cambridge, em Setembro de 2007, e vi uma longa fila de pessoas na rua e me perguntei para que seria. Depois, percebi que as pessoas estavam à porta do Nothern Rock, o banco que na noite anterior tinha solicitado ajuda ao Banco de Inglaterra para fazer face à sua situação financeira precária. E este foi o meu primeiro testemunho de uma típica corrida aos bancos, de pessoas com medo de que o seu dinheiro e os seus depósitos se pudessem perder. Faziam fila para levantar os depósitos. Foi um fenómeno extraordinário. Estava ali simplesmente parado na rua, a olhar para uma longa fila de pessoas que desejavam retirar o dinheiro do banco, já não acreditavam que as suas poupanças estivessem seguras no banco. Foi um momento em que me apercebi de que estávamos no meio de algo sério. O que sentiu? Alguma ansiedade, alguma preocupação, alguma incerteza sobre as poupanças de modo geral, incluindo as minhas próprias. Lembro-me de ter sido provavelmente o único momento na vida em que comecei a perguntar-me seriamente se não seria um pressuposto equívoco uma coisa que sempre dera como garantido — que é seguro depositar o dinheiro no banco. Admiti, de facto, que talvez não fosse seguro. Senti posta em causa um conjunto tradicional de pressupostos que todos temos, por exemplo, que instituições como os bancos são credíveis e dignos de confiança. Senti então, provavelmente pela primeira vez, ansiedade e incerteza por estes pressupostos enraizados que

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damos por adquiridos, como o da fiabilidade das instituições, serem talvez falaciosos ou estarem a ser postos em causa por uma série de acontecimentos a ocorrer em lugares distantes sobre os quais sabíamos relativamente pouco. Foi por isso que se envolveu na rede Aftermath? Não! Envolvi-me porque me pediram. Respeito os indivíduos que me fizeram o pedido, que apreciei, pois percebia tratar-se de um conjunto muito importante de questões que estavam a ser levantadas e abordadas, e penso que ninguém hoje pode ignorar estas amplas transformações que estão a ter lugar no contexto das perturbações causadas pela crise financeira e da escalada de acontecimentos que a rodeiam. Portanto, sabia que se tratava de um conjunto de assuntos importante e fiquei feliz por me envolver, porque me pareceu importante pensar nesses temas de forma sistemática. O que é exactamente a rede Aftermath? O que a torna especial? Se pudermos pôr de parte o nome por instantes — porque o nome é discutível —, penso que se trata de um grupo diversificado de indivíduos que têm em comum o interesse por um conjunto de questões, e reúnem-se para pensar e falar sobre elas, tentando, colectivamente, compreender melhor os acontecimentos que rodeiam a crise financeira de 2007-2008, e a sequência de acontecimentos a ela associados. E não uso o termo “aftermath” intencionalmente, pois como sabe é um ponto discutível. Veremos se estamos a passar por uma crise prolongada ou pelo rescaldo de um acontecimento discreto que teve lugar em 2007-2008. Tenho uma perspectiva própria sobre a questão, e sinto que de facto estamos a viver uma sequência de acontecimentos que não pode ser descrita apropriadamente como rescaldo, mas que estão ligados uns aos outros de forma complexa.

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Sente que ainda estamos na crise? Sim. Não penso que a crise tenha sido um acontecimento discreto que ocorreu em 2007-2008, que chegou ao fim com o resgate do Estado ao sistema financeiro e aos bancos no decurso de 2008 e que produziu uma série de efeitos em cascata a que poderíamos chamar de “rescaldo”. Não acredito. Penso que ainda estamos a viver no meio de uma crise que pode ser datada desde 2007-2008, apesar das condições para o seu aparecimento serem muito anteriores e de os seus contornos se terem transformado ao longo dos últimos anos, tornando-a mais abrangente e generalizada. Mas não foi um evento finalizado em 2008 que produziu uma série de tremores secundários. Diria antes que é uma crise que se metamorfoseou ao longo do tempo, que assumiu novas formas. E a forma como a experimentamos hoje é enquanto crise séria em torno da despesa pública e da sua redução e reacções criadas por esses cortes em várias cidades do mundo, vários lugares na Europa e noutros lados. Trata-se de uma expressão contínua dos mesmos elementos que subjazem à crise. A sua contribuição intitula-se “Metamorfose de uma crise”. O que é a metamorfose, resumidamente? De quê, para quê? Em que ponto da crise estamos agora? Para compreender a ligação entre as corridas ao banco Northern Rock, em Setembro de 2007 e os protestos e distúrbios da Praça Syntagma, em Atenas, no final de Junho de 2011, passados mais de quatro anos, tem que se perceber que estes acontecimentos estão ligados por um fenómeno comum — o fenómeno da dívida. Ou seja, compreendendo que no cerne da crise que atravessamos está o fenómeno da dívida, percebemos a ligação entre os acontecimentos. O que pode parecer uma série desesperada de acontecimentos é, na verdade, atravessado por este tema comum. Para compreender isto, é preciso perceber que o capitalismo, enquanto organização económica, sempre dependeu da dívida.

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Assenta numa estrutura de crédito e débito — ou seja, no dinheiro emprestado pelos bancos e instituições financeiras, bem como no fornecimento de crédito, em promessas de pagamento contínuo, etc. O capitalismo, sistema económico, depende fundamentalmente da dívida. Simultaneamente, não é apenas o capitalismo que depende da dívida, também os estados modernos sempre dependeram. Quando se olha para a formação dos estados no período moderno recente, vê-se que assentaram na dívida para financiar a despesa. E no início do período moderno, a exigência primária da despesa dos estados foi para a guerra, criação de exércitos, construção naval, etc., uma despesa enorme assumida pelos estados modernos, que tiveram que pedir emprestado grandes quantidades de dinheiro para o fazer. Pediram empréstimos através de diversos mecanismos, sendo que um deles foi a emissão de títulos de dívida pública. Estes títulos foram comprados por investidores privados e isto criou um fenómeno crescente de endividamento dos estados, que continuou até hoje. Agora, os estados contam com os investidores privados para os financiar com o dinheiro e os recursos de que precisam para a sua actividade. Por sua vez, os investidores privados exigem dos governos e estados garantias para lhes assegurar o seu dinheiro. Que garantias exigem? Exigem que os estados mantenham a inflação baixa, uma vez que os títulos de dívida pública têm juros fixos — se a inflação subir, os seus investimentos seriam lesados. E também exigem que os estados se comprometam com uma política fiscal prudente para financiamento do défice. Portanto, querem ter a garantia de que os estados são capazes de cumprir as suas obrigações de pagamento de juros de dívida e de pagamento dos empréstimos aos investidores quando os títulos vencerem. Os investidores privados exigem pois várias formas de garantias dos estados. A aliança histórica entre estados e investidores privados prolongou-se desde o início do período moderno até hoje. Mas foi uma aliança complicada, um equilíbrio delicado entre estados e investidores privados. E o maior risco para os bancos e investidores privados no início do período

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moderno foi o incumprimento dos estados, a possibilidade de não terem condições de pagar as dívidas. Por isso, foi um processo delicado e, do ponto de vista dos estados, também criou aquilo a que poderemos chamar uma espécie de pacto faustiano. Ou seja, os estados asseguram uma forma de financiamento para os seus compromissos, sejam militares ou outras formas de despesa — como a construção de infra-estruturas ou a promoção do Estado Providência —, que requerem formas de financiamento. Simultaneamente, porém, estão ligados a investidores privados e têm que estar aptos a tranquilizá-los, mantendo as despesas nacionais sob controlo, assegurando uma inflação baixa e garantindo aos investidores privados que serão capazes de cumprir os planos de pagamento das suas dívidas. Isto deixa os estados numa posição estranha, especialmente quando, com a ascensão dos modernos estados providência no século XX, enfrentaram exigências crescentes dos cidadãos para o fornecimento de serviços sociais e de saúde, educação, etc. Todas estas coisas tendem a produzir um efeito na despesa pública. No entanto, e por outro lado, os estados têm de manter essa despesa baixa e assegurar aos investidores privados que as suas finanças estão em ordem. Foi esta a tensão que os estados modernos sempre enfrentaram. O que verificamos quando avançamos até ao início do século XXI, com a série de crises que advieram da crise do subprime nos Estados Unidos, tem a ver com isto. Porque diz que agora as frentes se inverteram? Isso foi novo… As frentes inverteram- se, no sentido de que no início do período moderno, nos séculos XVI, XVII e XVIII, os bancos socorreram os estados, eram as últimas instâncias financeiras e o risco era de que os estados entrassem na bancarrota e não cumprissem, o que, naturalmente, causaria problemas aos bancos. Mas as frentes inverteram-se, pois nos séculos XIX e XX foi o Estado que se tornou na última instância de recurso financeiro para os bancos, o que significa que se os bancos falirem os estados terão

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de intervir para os apoiar. Mas para entender o que aconteceu no início do século XXI, tem de se perceber que nas décadas de 1980 e 1990 houve um processo de crescimento, através do qual o sector financeiro se tornou maior e mais significativo nas sociedades capitalistas ocidentais e os bancos, as instituições financeiras, aumentaram significativamente os seus bens — ou seja, aumentaram as suas dívidas e houve um enorme crescimento dos activos dos bancos que eram, essencialmente, as suas dívidas, o que, por sua vez, criou uma espécie de bolha financeira. O que aconteceu no período de 2007-2008 foi que começaram a verificar-se falhas, inicialmente no mercado de hipotecas, o que criou enormes problemas aos bancos e ao sector financeiro, que enfrentam agora e em alguns casos a bancarrota. E assim, os estados tiveram de intervir para socorrer e apoiar o sector bancário e financeiro, mas ao agirem desta forma deslocaram o peso da crise para a esfera política: agora, os estados estão na linha na frente da crise financeira. Aumentaram a sua vulnerabilidade financiando os bancos e o sector financeiro e com a recessão que se seguiu à crise inicial dos bancos as receitas fiscais dos estados diminuíram. Portanto, ficaram numa posição ainda mais vulnerável. As agências de notação financeira mudaram o seu enfoque para a insolvência dos estados, especialmente na periferia da Europa. Estados como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e outros foram submetidos a escrutínio pelas agências de notação, que desclassificaram os seus títulos pelo menos nalguns casos, como o da Grécia e Portugal, provocando um aumento do custo dos seus empréstimos. Quer dizer que estes estados estão agora numa posição muito vulnerável, porque lhes sai muito caro comprar o dinheiro de que precisam para se financiarem, e tiveram que recorrer a pacotes de ajuda de um ou de outro tipo, acompanhados com duras medidas de austeridade, pelo menos no caso da Grécia. E esta é a ligação subjacente entre a crise do Northern Rock, em 2007, e os protestos e a violência na Praça de Syntagma, na Grécia.

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Onde estamos agora? É do Reino Unido. O que está a acontecer lá neste momento? O que lhe parece? Bem, a crise continua e está a acontecer exactamente da forma a que aludi: quando os estados e os governos se envolvem, indirectamente, na crise financeira da forma que expliquei atrás, passam a estar expostos em três frentes. Primeiro: foram expostos à acusação de uma espécie de duplicidade, isto é, de favorecer os bancos, de os resgatar e a seguir deixá-los agir de novo sem grande controle; de os salvar dando-lhes apoio e garantias, sem os impedir de prosseguirem com uma cultura de elevados pagamentos de bónus aos seus funcionários ou de continuarem a reproduzir o mesmo tipo de cultura dentro do sistema bancário e financeiro que primeiramente desencadeou a crise. E assim, os estados tornaram-se alvos vulneráveis às críticas dos cidadãos, que percebem que os governos usaram o seu dinheiro, para socorrer o sector privado, e agora estão a ser austeros com eles. Penso que isto ainda é tudo muito abstracto. Tentando concretizar mais, para onde se dirige a raiva? Em primeiro lugar, para o ressentimento para com o governo, que não está preparado para reprimir o sector bancário e financeiro, que não está preparado para reformar esses sectores ou tomar uma decisão activa. Este é exactamente um dos debates a acontecer no Reino Unido, numa fase em que o governo é muito tímido face ao sector bancário e financeiro e as pessoas estão irritadas e zangadas com isso. Em segundo lugar, os estados tornam-se vulneráveis para responder às pressões exercidas sobre eles, uma vez que estão a cortar significativamente na despesa pública e a procurar reformar áreas dessa mesma despesa. Assim, de sector em sector, onde havia ensino superior, serviços de saúde, pensões e por aí fora, passa a haver encerramento de bibliotecas, inversão do ónus do custo do ensino superior dos

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contribuintes para os estudantes, etc. Estão a tentar reduzir a despesa pública de um sector atrás do outro. E isto está a provocar a reacção dos indivíduos cujas vidas são directamente afectadas pelos cortes. Vimos, apenas há uma semana, a maior greve desde há muitos anos no Reino Unido: meio milhão de trabalhadores do sector público entrou em greve na sequência das propostas para a reforma do sistema de pensões, que implicaria que teriam que pagar mais e trabalhar mais tempo para obter as suas pensões. Também entraram em greve por estarem zangados e preocupados com o seu próprio futuro enquanto trabalhadores do sector público, pois sabiam que os seus próprios empregos estavam em risco. É o que o governo teria, com toda a probabilidade, de fazer: cortar a despesa pública e reestruturar os sistemas de serviços públicos, despedindo pessoas ou forçando-as a mudar de um local de trabalho; consolidar dos serviços públicos de uma forma ou de outra. Portanto, os trabalhadores estavam zangados e preocupados, é uma segunda área que afecta a vida das pessoas. A mesma coisa aconteceu na Grécia, onde as medidas de austeridade forçaram o governo grego, neste caso de centro-esquerda, a impor cortes nos serviços públicos e a subir impostos para travar o défice do orçamento ou para o reduzir. Esta é então a fase em que o problema começa a interferir directamente na vida das pessoas comuns. Em 2007-2008, a crise parecia ter lugar na cidade de Londres ou em Wall Street, era tudo muito estranho, distante… as pessoas não percebiam o que se estava a passar. Porque estes instrumentos financeiros muito curiosos dos quais nunca se tinha ouvido falar — por exemplos, os credit defaults swaps (seguros financeiros contra riscos de incumprimento de crédito) —, não faziam sentido. Agora fazem, porque afectam os rendimentos das pessoas, o seu trabalho, as condições em que os seus filhos podem ser educados, as possibilidades de irem a uma biblioteca que está prestes a ser encerrada. Interfere directamente nas suas vidas. Portanto, agora percebem o que significa a crise — afecta-os directamente. A terceira razão pela qual os estados e governos se

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tornaram vulneráveis é que a crise não dá sinais de estar perto do fim. Ainda não sabemos para onde vai, mas sabemos que pode piorar. Porque os potenciais incumpridores já não são os detentores de hipotecas nos Estados Unidos. Agora são os estados. O estado grego pode entrar em incumprimento. O que aconteceria se o estado grego entrasse em colapso? O que aconteceria se os estados grego, português ou mesmo espanhol desabassem? Não poderiam honrar as suas dívidas. Não sabemos o que aconteceria. E temos de lembrar-nos de que é o sector bancário que está profundamente implicado nessas dívidas, e por isso não sabemos que implicações teria para os sectores bancários em França, na Alemanha, no Reino Unido, fortemente expostos à dívida grega. Poderiam aqueles estados voltar a socorrer os seus bancos? Simplesmente, não sabemos. Portanto, os estados estão muito expostos ao risco da dívida soberana. Trata-se, de várias formas, de um risco mais sério que aquele que enfrentaram em 2007-2008 e explica porque é que a Alemanha e a França e outros membros da União Europeia estão tão empenhados em tentar resolver a dívida grega e a tentar prevenir um incumprimento do pagamento da dívida soberana. É por estarem muito preocupados com as potenciais implicações que um incumprimento como esse pode ter nesta altura. Parece-me também que os governos perderam, ou estão em processo de perder, o apoio da população para socorrerem os bancos uma segunda vez. Exactamente, porque a crise sofreu uma metamorfose: o que era aparentemente uma crise financeira, em 2007-2008 — o congelamento da actividade bancária e a crise do crédito —, tornou-se numa crise política explosiva, porque os estados se envolveram directamente na resolução da crise financeira, sendo a carga transferida para os estados e governos. Ficou exposta a sua vulnerabilidade e, em alguns casos, tiveram de lutar para reduzir os défices orçamentais de forma a tentar prevenir um incumprimento do

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pagamento da dívida soberana, nos casos da Grécia, Portugal e outros. Em alguns casos, os estados tiveram de obter empréstimos de emergência; no caso da Irlanda, Grécia e Portugal, para prevenir um incumprimento do pagamento da dívida soberana. E portanto isto tornou-se numa crise política plena e explosiva. Mas é mais qualquer coisa. É também uma crise social, pois para responder às exigências que os estados enfrentam agora, os estados têm de aceitar um pacto faustiano — que é, como o descrevi, uma dependência dos estados dos investidores privados —, têm de satisfazer as condições que os investidores privados lhes impõem. Para fazer isto, os estados têm que limitar a sua despesa pública e tentar aumentar os impostos, o que interfere directamente na vida do cidadão comum, que sente as suas condições de vida ameaçadas. Os salários estão a ser cortados, os impostos estão a ser aumentados, as pensões alteradas, os empregos estão em risco, os filhos são chamados a acartar com os custos da sua própria educação, etc. São implicações directas na vida dos cidadãos comuns, que respondem com raiva, ressentimento, protestos. Um dos slogans mais comuns nos protestos na Grécia, no Reino Unido, em Portugal ou em Espanha, é: “Estão a pedir-nos que paguemos o preço de uma crise causada por outros”. Ou seja, “Os banqueiros causaram a crise e nós somos chamados a pagar a factura”. Isto é o que muita gente sente e por isso estão zangados e ressentidos e a mostrá-lo, entrando em greve, fazendo protestos, demonstrando de uma ou de outra forma a sua insatisfação com a forma como a sequência de acontecimentos foi gerida pelo poder. E portanto, tornou-se numa ampla crise social. Têm razão? Estão a pagar a conta dos bancos? De certa forma têm. Porque os estados tiveram de intervir para resgatar o sector financeiro e de tomar medidas para dar garantias que tranquilizassem os seus credores, os detentores das obrigações, mostrando-lhes que têm as finanças sob controlo. Ou mesmo, em casos como o da Grécia, que está a responder às

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exigências que lhe foram colocadas por aqueles que lhes concederam os empréstimos de emergência, como a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional. Portanto, são restrições impostas a estes estados por outros e as pessoas sentem-se muito revoltadas. Será justo dizer que os cortes orçamentais estão directamente relacionados com o resgate dos bancos? Depende do contexto. No caso do Reino Unido e da Irlanda há uma relação, no sentido em que o governo inglês e o governo irlandês tiveram de resgatar bancos de forma muito substancial. Mas é mais complicado do que isto, porque a pressão nas finanças públicas no Reino Unido também está relacionada com a recessão e com a crise económica que reduziu a receita fiscal, assim criando um défice orçamental crescente. No caso da Grécia, a situação é ainda mais complicada. Não houve resgate dos bancos, portanto trata-se de um conjunto diferente de condições históricas e a questão está mais relacionada com uma acumulação histórica de dívida e com um conjunto muito específico de condições em torno da sua adesão à União Europeia, em finais da década de 1990, e nas formas através das quais essa adesão criou condições para o aumento de empréstimos. Portanto, o caso grego é uma história muito complicada e bastante diferente. Não esteve directamente relacionada com o resgate dos bancos. Como vê o futuro? Isto é o fim do progresso? Espera uma revolução, violência, depressão? É muito difícil prever o desenrolar dos acontecimentos. Não espero uma revolução, penso que tal não está na agenda, mas espero a continuação dos protestos, a continuação da incerteza e penso, honestamente, que ninguém sabe como se vão desenrolar estes acontecimentos. Penso que a crise na zona Euro é muito

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séria, porque a reestruturação da dívida grega é uma possibilidade e um segundo resgate da Grécia deve acontecer - e parece que vai mesmo acontecer -, mas no fundo não resolve o problema. Na realidade, adia-o. Compra tempo. E a escalada da dívida grega é tão forte, e a sua capacidade para a reduzir é tão limitada, que não é de todo clara a forma de resolver o problema. Pode acontecer que algumas instituições tenham que absorver algumas perdas. Mas, nesta altura, simplesmente não sabemos como isso se vai desenrolar. Portanto, um incumprimento da Grécia não está fora de questão e não sabemos que implicações teria dentro da Europa, nem, de forma mais ampla, dentro do sistema financeiro global. Penso que atravessamos um momento de grande incerteza. Penso que o sofrimento vai continuar por algum tempo e espero protestos continuados. Na Grécia, em Espanha, em Portugal, no Reino Unido, penso que continuaremos a assistir a muita tensão. Mas não a revoluções? Penso que não, pois não me parece que haja uma ideia suficientemente clara do que uma revolução traria, ou de uma alternativa ao sistema que basicamente temos hoje. Parece-me que o mais provável é haver uma série de reformas de um tipo ou de outro, uma série de reestruturações das instituições do capitalismo e instituições de regulação num contexto nacional e transnacional. Veremos mudanças deste tipo. Mas estas mudanças são bastante demoradas, demoram a aparecer e a extensão da resposta política à crise tem sido limitada. Por isso, julgo que temos um longo caminho a percorrer, embora me pareça que o mais provável nos próximos anos é uma série de reformas estruturais de um ou de outro tipo e o desenvolvimento de formas alternativas de regulação das instituições financeiras e de outras. Mas não me parece que venhamos a assistir a uma ampla revolução social, não me parece que seja provável.

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Qual é o elemento comum das reflexões deste grupo? Genericamente, diria que há um entendimento amplamente partilhado das condições que produziram o tipo de crise que vivemos hoje. Há um entendimento partilhado de que a escala é substancial, de que a crise está em curso, de que o seu resultado não é claro, para além de não haver consenso sobre os modos de lhe responder. Penso que há diversidade de opiniões a esse respeito. Os políticos preocupam-se mais com os bancos e as instituições do que com as pessoas? Não, não creio que se preocupem mais com os bancos do que com as pessoas, mas de certa forma estão encurralados entre os dois, entre as instituições financeiras e os cidadãos a quem têm de responder. É o resultado de um duplo processo histórico. Por um lado, há o pacto faustiano, tal como descrevi, que amarra os estados aos investidores privados de forma a financiar as suas actividades. Por outro lado, com o desenvolvimento das instituições representativas modernas e o crescimento do Estado social e dos direitos dos cidadãos no decurso do século XX, como descreve T. H. Marshall, os estados têm de responder a maiores exigências dos cidadãos e populações que os elegeram para representantes. Estão portanto presos entre dois pólos, ora tentando apaziguar os credores com a adopção de políticas de baixa inflação e normas aceitáveis de financiamento do défice, mantendo os défices orçamentais sob controlo, em níveis que tranquilizem os mercados financeiros, ora respondendo às expectativas dos cidadãos. Estão encurralados entre os dois, tentando lidar com estas exigências conflituantes que lhes são colocadas, como a situação grega ilustra perfeitamente.

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Será o fim do Estado Providência? Penso que não. Muitas pessoas já se pronunciaram sobre o fim do Estado Providência, mas não me parece correcto. Penso que os cidadãos se estão a mobilizar para proteger os aspectos do Estado Providência que lhes interessam, e a capacidade dos governos para lhe pôr fim tem-se mostrado repetidamente limitada — pelo menos em muitas sociedades ocidentais onde as instituições do Estado Providência se tornaram numa das principais características dos estados modernos. Devemos também ter presente que o tipo de acontecimentos de que estamos a falar e aquilo a que chamamos crise não se expressa da mesma forma nos diferentes países. Estamos aqui a tratar de um subconjunto específico de países. Se formos para os países escandinavos não encontraremos de todo as mesmas pressões. As suas instituições sociais, que são em muitos aspectos as mais desenvolvidas, mantém-se essencialmente intactas, não foram seriamente afectadas pelo tipo de pressões de que temos estado a falar. Mesmo no Reino Unido, o Estado Providência continua a ser uma grande instituição, não há dúvidas a esse respeito. E todos os governos, qualquer que seja o seu quadrante político, afirmam-se defensores do serviço nacional de saúde, mesmo que estejam a tentar reestruturá-lo de alguma forma. É uma instituição do Estado Providência com ampla ressonância popular e é muito difícil para qualquer governo anunciar que sistematicamente encerrarão o serviço nacional de saúde porque do ponto de vista político e eleitoral seria simplesmente desastroso. A crise é um golpe deliberado levado a cabo por uma elite? Não. Não me parece. Não adoptaria uma teoria da conspiração. Penso que aquilo a que assistimos na vida social, política e económica moderna é extremamente complicado. Há muitos e diferentes actores perseguindo diferentes desígnios e objectivos sem que ninguém tenha de facto uma boa perspectiva geral de

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tudo o que se passa nem uma estratégia muito clara para afirmar a sua posição neste contexto. Portanto, o que vemos aqui é uma série de deslocações imprevistas. Muito poucas pessoas, ou nenhumas, previram de facto a série de acontecimentos por que estamos a atravessar. Neste sentido, não sou da opinião de que tenha havido uma espécie de conspiração ou esquema intencional por parte de alguns actores da nossa sociedade para desencadearem um golpe. Penso que o que se deu foi uma série de acontecimentos que ninguém verdadeiramente antecipou e uma série de deslocações que ocorreram apesar das intenções de alguns, não por causa das intenções de outros. Algumas pessoas beneficiaram mais com isso que outras? Algumas sim. Não restam dúvidas a este respeito, mas não significa que tenham manipulado a situação de forma a beneficiar as suas próprias posições. Penso que o que aconteceu foi uma série de acontecimentos que apanharam as pessoas de surpresa. Algumas terão beneficiado com isto, outras foram prejudicadas. Não há dúvidas sobre isso, mas não terá acontecido graças a uma engenharia de resultados que lhes permitisse assegurar benefícios pessoais. Alguns fundos especulam sobre o incumprimento da Grécia… Pode fazer-se dinheiro de muitas maneiras, mas pode também perder-se muito dinheiro. É um contexto muito complicado, estão a acontecer muitas coisas que as pessoas não compreendem plenamente. Por isso, não diria que houve uma elite que orquestrou esta sequência de acontecimentos de forma a beneficiar as suas próprias posições. Penso que a situação é mais complicada, e na realidade ninguém tem uma visão ampla e apropriada, ninguém compreende onde tudo isto nos vai levar.

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Considerando resumidamente a sua experiência pessoal, o que o traz a esta rede de trabalho? Sou professor de Sociologia e a minha área de interesse é a teoria social e a sociologia das instituições dos media. Trabalho especificamente na transformação de organizações dos media e ao longo dos últimos 10 anos em particular trabalhei na transformação estrutural da indústria editorial anglo-americana. Estudei como a indústria editorial passou por enormes transformações económicas e sociais, e também tecnológicas, desde a década de 1970.

A falência do interesse próprio e o poder da pertença Conversa com Gustavo Cardoso, sociólogo

As culturas que surgem da actual crise, apesar de terem nascido da experimentação das tecnologias digitais e da disseminação da internet, não estão a ser impulsionadas por uma elite profissional identificável, mas sim por uma rede de indivíduos geograficamente variada e heterogénea. São pessoas que constroem a mudança social sob a capa de uma nova cultura de relação com a propriedade dos bens, com os modelos de produção, com a distribuição e utilizando as redes sociais para a construção de identidade em rede. (Excerto de uma das contribuições de Gustavo Cardoso para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Podemos começar por nos contar qual a sua formação de base e que contributo traz ela para os encontros da rede Aftermath? Gustavo Cardoso Comecei por estudar gestão de empresas e depois enveredei pela sociologia da comunicação. Assim, ao longo destas duas últimas décadas, nas quais assistimos a mudanças extraordinárias no ambiente dos media, tenho tentado compreender como esta indústria se relaciona com a nossa vida quotidiana e também as mudanças que daí advêm. Para alguém que, como eu, 55

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nasceu em 1969 — no mesmo ano em que surgiu a internet —, tendo chegado aos 42 anos de idade, observo que metade da minha vida foi vivida sob um paradigma de comunicação que está a desaparecer. Passámos de um paradigma de comunicação de massa para um de comunicação em rede. Isto é, mudámos para algo muito diferente, mas que ao mesmo tempo não é totalmente novo. A comunicação em rede assenta nalguma continuidade, mas é suficientemente nova para nos questionarmos sobre qual será o papel da comunicação na construção dos futuros para além da crise. Falar de comunicação é falar sobre como decidimos viver as nossas vidas com os que nos são próximos, os nossos amigos, a nossa família, os colegas de trabalho, mas também com os que nos são distantes, “os outros”. A comunicação é a nossa própria vida. A nossa vida é construída sobre a comunicação e as nossas escolhas comunicativas conduzem-nos, moldam a cultura com que damos forma às nossas aspirações na construção do mundo. Assim, o meu contributo para o estudo da crise e para a rede Aftermath é tentar compreender o papel da comunicação na génese da crise e como nos pode ajudar a surfar as ondas da crise. Poderia dizer-nos qual o seu papel na rede? Fui um dos organizadores deste processo de reflexão e de interligação da rede de investigação, em conjunto com Manuel Castells e com João Caraça. Se quiséssemos usar as bases da teoria das redes, poderíamos dizer que o meu papel foi um de um nó no processo que estabeleceu as ligações com outros nós da rede. Foi esse o papel que aceitei ter na rede Aftermath. Que experiência profissional traz ao grupo? Sou investigador, como os restantes membros. A minha formação é em Sociologia e gestão de empresas. Sou professor de Comunicação, e também tenho alguma experiência política, pois

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fui durante dez anos consultor do Presidente da República de Portugal, Jorge Sampaio, que é actualmente Alto Representante da Aliança das Civilizações nas Nações Unidas. Por isso, provavelmente, estou a meio caminho entre o professor e investigador académico e alguém que tenta dar o seu melhor em termos de partilha de ideias e de perspectivas do mundo. E onde pretende chegar a rede Aftermath? Pretendem apenas reflectir sobre a crise, ou também pretendem que esta reflexão desencadeie e dê origem a novas ideias para se poder pensar esta crise de forma diferente? Creio que é impossível não pensar de forma pragmática sobre a crise. Quando começamos a estudá-la e desenvolvemos uma hipótese que permita perceber o desenrolar dos acontecimentos, estamos também a compreender como lidam as pessoas com a situação actual. Estamos a questionar como pensam que conseguirão encontrar soluções para superar o que a crise trouxe às suas vidas. Assim, trata-se de uma rede que, através das práticas e das mudanças na cultura, tenta compreender aquilo sobre o que versa esta crise, e quais os caminhos que poderemos cruzar na busca de outra vida para além da crise. Passados três anos (e aproximando-nos rapidamente da meia década de crise na Europa e EUA), já há muitas pessoas que decidiram mudar de vida e recusar as lógicas que nos trouxeram até aqui. Os movimentos de rua e praças são apenas a parte noticiável dos acontecimentos. Na vida do quotidiano constroem-se muitas mais alternativas do que as que são visíveis na televisão e jornais. Quando começámos o projecto, há três anos, chamámos-lhe “Aftermath”, tentando captar a ideia daquilo que pensávamos poder explicar o momento que estávamos a viver, mas estávamos (e continuamos) cheios de dúvidas. Na altura, não tínhamos a certeza de que “Aftermath” fosse um bom nome, pois toda a gente dizia que a crise tinha chegado ao fim, porque os governos tinham resgatado os bancos e tudo

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regressaria ao normal. Infelizmente, a realidade mostrou-nos que a crise não só não tinha terminado, como se alastrou a múltiplos outros domínios. A crise de que estamos aqui a falar é simultaneamente a crise de 2008 e já não é exactamente a mesma. Se olharmos para a Europa, para Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, Itália e mesmo para a França e para a Alemanha, compreendemos que as pessoas que estão no poder — seja no poder das ruas ou no das instituições —, ainda não compreenderam exactamente o que se está a passar. Estamos todos a tentar compreender, mas não temos certezas definitivas. A crise é um processo em construção. Deixe-me dar-lhe um exemplo da incerteza e do turbilhão de expectativas que temos de gerir. No Verão de 2011, o jornal francês Le Monde publicou uma série de ficção política sobre o fim do euro, que supostamente ocorreria em Maio de 2012. Era ficção, mas outro jornal, inglês, tomou o suplemento de Verão como notícia real e o banco francês Societé Generale, que essa ficção afirmava estar com problemas, teve uma súbita quebra bolsista. A ficção tornou-se notícia e entrou como verdadeira na esfera económica e nos blogues na internet. Para pôr cobro à desconfiança foi necessário um desmentido por parte do Le Monde, e mais declarações do Eliseu e do regulador bancário francês. Este é o mesmo tipo de realidade que convive com outras mais comuns, mas que podem neste contexto ganhar novas dimensões. Vejamos, por exemplo, os abaixo-assinados, também no Le Monde, neste caso promovidos não por movimentos sociais ou intelectuais, mas pelos quarenta presidentes das principais empresas francesas e alemãs e dirigidos aos líderes políticos europeus, afirmando que esta crise não é uma crise do euro, mas sim uma crise das dívidas nacionais. Uma crise que, segundo os empresários subscritores, tem que ser resolvida porque o euro é demasiado importante para falhar, não apenas em termos da integração europeia, mas em termos do sistema económico mundial. Quando assistimos a abaixo-assinados de protesto, já não apenas nas ruas e promovidos pelas culturas alternativas de poder, mas pelos próprios gestores líderes das empresas de

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topo, compreendemos que a crise está longe de ter chegado ao fim, que nenhum dos seus actores principais a conseguiu compreender e que ainda não estamos no seu rescaldo. Um rescaldo, na verdadeira acepção da palavra “aftermath”, é um momento em que já se deu a grande destruição, mas onde se podem esperar reacendimentos a qualquer momento e onde tudo se desenvolverá de modo diferente do que deixámos para trás no mundo pré-crise. Rescaldo é também o luto, é o não retorno à realidade anterior, porque as condições o impedem e também porque parte substancial dos actores — sejam esses actores políticos no poder ou pessoas comuns nas praças — já não o pretende. Apesar de acreditarmos que seria melhor estarmos a viver num mundo no qual a crise teria chegado ao fim, infelizmente tudo demonstra o contrário — da Grécia à China, os sinais são evidentes. Estamos a tentar compreender a complexidade da crise de um mundo interligado entre diferentes regiões e também nos seus diferentes sistemas económicos. É por esse motivo que o que acontece na China é importante para a Europa, o que acontece na Europa tem importância para os Estados Unidos, o que acontece no Brasil é importante para Portugal e o que acontece em Portugal é importante para a Alemanha. É neste mundo interligado que as ciências sociais ainda estão a tentar perceber quais os instrumentos necessários para compreender o que está a ocorrer. Mas acredito que a rede nos está a permitir dar os primeiros passos na compreensão do porquê, do quem e do quando da crise global. Crise que, a propósito, não é totalmente global, porque a Europa tende a sofrer mais do que o resto do mundo.

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No seu contributo para estes encontros e para o futuro livro da rede Aftermath, analisa a crise como oposição entre duas culturas diferentes: a cultura que conduziu à crise e a cultura que está a nascer da crise. Pode descrever resumidamente a cultura que conduziu à crise? Depois da crise dos anos 70, assistimos ao conhecido processo de desregulação para construir um mercado global com o objectivo de chegar a uma economia global. Ora, este processo não se deu sem a presença de líderes. Os líderes, como sempre, foram, por um lado, os governos nacionais, mas sobretudo aqueles que podemos designar como profissionais da gestão ou, se preferirmos, os gestores da elite global empresarial. A razão do protagonismo dos gestores é relativamente simples. O que aconteceu foi que as escolas de gestão em geral, e os MBA em particular, evoluíram para uma abordagem da economia assente numa cultura de interesse próprio, que reduziu a nossa capacidade de compreender que o lucro não é apenas propriedade dos accionistas e do gestor que os representa. O lucro é o ganho em termos do trabalho de uma empresa, mas o lucro que não toma em consideração a confiança social que a empresa deve fomentar, mina as bases da sociedade que a empresa e os seus gestores partilham connosco. Foi, em grande medida, isto o que aconteceu, uma cultura de interesse próprio que se sobrepôs à confiança social e que foi institucionalizada pelas escolas de gestão, através das suas escolhas de teorias económicas, criando na sociedade, por sua vez, modelos de comportamento culturalmente sancionados. Primeiro a universidade e depois as televisões, rádios e jornais, propagandearam a ideia de um mundo em que pudéssemos agir e pensar segundo um modelo em que “as responsabilidades são para os outros e os ganhos são para mim”. Contudo, toda esta evolução cultural passou-nos de algum modo ao lado, pois não tivemos a consciência de que era isso que estava a ocorrer. Focamo-nos nos detalhes, nas pessoas que desencadeavam acções de interesse próprio, como por exemplo

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o caso de 1995 da falência do Barings Bank, no qual Nick Leeson perdeu 827 milhões de libras em investimento, sem perceber que não se tratava de um simples episódio, mas sim uma cultura que despontava entre um grupo vasto. Essa perspectiva cultural espalhou-se por todos os MBA e escolas de gestão mas, também, pelas nossas casas e pelas nossas vidas, através dos media através dos seus comentadores de economia, gestão e mercados. De facto, vivemos um mundo onde tínhamos acesso a determinada visão da realidade, segundo a qual os mercados mundiais e o seu papel na criação de riqueza eram a única explicação para o bom funcionamento das sociedades e, simultaneamente, o objectivo a alcançar em termos da sociedade global. Esta perspectiva afastou-nos do caminho da compreensão, toldou-nos a visão e deu-nos sinais errados sobre os padrões de comportamento valorizados socialmente. As culturas de interesse próprio em rede foram validadas socialmente pelas instituições e actores que constroem as nossas molduras de referência social, isto é, os professores de gestão e economia, as universidades, em conjunto com os jornalistas e a comunicação de massa dos jornais, rádios e televisões. Todas as crises são produto de culturas económicas, e a nossa crise de 2008 foi produto dessa cultura de interesse pessoal em rede. Então estava tudo focado no valor para os accionistas e para os gestores? Sim. Uma cultura de gestão que assenta na remuneração de curto prazo dos accionistas e da valorização do interesse pessoal do gestor acima dos próprios accionistas. Uma cultura de crédito de risco e que, por inerência, levou à promoção de uma cultura de consumo de risco nas nossas sociedades. O que é fundamental compreender é que a cultura não termina nas palavras, vai muito além, influenciando a nossa forma de olhar o mundo e consequentemente enquadrando as nossas escolhas e as nossas acções. As culturas construídas a partir das acções têm, também,

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consequências muito práticas — neste caso, a consequência foi a crise global não global em que estamos envoltos. Os media tiveram portanto também aqui um papel, não é verdade? Sim, modificaram-se. Ao longo da década de 1990, a estrutura dos media acompanhou as transformações da própria cultura de gestão. A CNN, de Ted Turner, a Newscorp, de Rupert Murdoch, o grupo Bloomberg, o grupo de media de Berlusconi e todos os outros exemplos nacionais que copiaram essas estratégias criaram um mundo informativo radicalmente diferente do anterior. Assistimos a um predomínio da informação global 24 horas por dia, sete dias por semana, com toda a sua lógica de comentadores, do político ao económico, mas sempre com especial atenção ao funcionamento global dos mercados e à promoção do ideal do gestor enquanto actor e modelo de uma cultura de interesse próprio. Foram décadas de agendamento noticioso baseado no funcionamento dos mercados e no valor de rentabilidade das bolsas e acções, fazendo-nos pôr em segundo plano questões como o crescimento nacional ou o emprego nacional. Das variáveis chave em termos da condução da economia passámos a concentrar cada vez mais a atenção na valorização bolsista de curto prazo ou na avaliação de futuros — os famosos derivados financeiros. Perdemos de vista o presente, esquecemos o passado e colonizámos o futuro, ou pelo, menos o valor accionista do nosso futuro nacional. O resultado desembocou no que vemos hoje: a política destronada pela valorização da dívida soberana e os políticos substituídos por gestores tecnocratas no controle dos governos. Um momento em que se confunde a governação com seguir instruções de como fazer os nossos mercados funcionar. Ou seja, fazer as acções valorizarem-se (ou, para ser mais justo face ao momento actual, a desvalorizarem menos) e os juros das dívidas manterem-se abaixo dos 7% — um valor que parece ter-se tornado mítico, pois quando um governo o ultrapassa cai. Na sua gestão, as próprias empresas de

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e media aproximaram-se cada vez mais das outras empresas de qualquer sector económico. Se o sector financeiros teve os seus BPN, BPP e Lehman Brothers, o sector dos media teve os seus News of the World, com os escândalos das escutas no Reino Unido e outros exemplos menos propagandeados de erros, omissões e mesmo desonestidade. Ao seguirem os padrões globais da gestão, os media tornaram se apenas em mais uma aérea de negócio e como tal todos os problemas experimentados na gestão foram também transpostos para o seu interior. Só que com outras consequências, nomeadamente a obsessão do lucro e a valorização, em detrimento da busca da verdade, enfraquecendo o seu papel na sociedade e obrigando-se também a buscar um regresso à sua identidade original. Talvez possamos falar desta crise em termos da cultura de rede emergente, bem como de cultura de resistência contra a crise, cultura das alternativas. Que cultura é esta? Quais são os seus elementos? Acredita que esteja realmente a ocorrer alguma coisa? Por vezes, parece não passar de um desejo de que esteja a decorrer alguma coisa diferente. Acredito que temos pela primeira vez as ferramentas que realmente nos ajudam a construir alternativas. Essas ferramentas são o que temos vindo a designar como redes sociais — o Facebook, o Youtube, o Twitter. Todas estas ferramentas nos permitem ter um tipo diferente de envolvimento em termos sociais. Não é que de repente nos tenhamos tornado mais sociais. Sempre fomos seres sociais, sempre trouxemos a comunicação para o centro das nossas vidas, mas actualmente temos ferramentas que nos permitem reagir em termos dos movimentos globais. Desde há muito que falamos das redes financeiras globais, das redes comerciais, das redes de informação e agora temos connosco as redes sociais. Pela primeira vez temos ferramentas muito flexíveis e adaptáveis no quadro da internet e da sociabilidade. O Facebook, além de todas as dezenas de grandes redes

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sociais que percorrem o mundo, oferecem-nos a possibilidade de uma ferramenta de que nos podemos apropriar para concretizar os nossos objectivos. É algo que temos que compreender, pois trata-se de uma ferramenta de autonomia, passível de abrir caminho à concretização de objectivos pessoais ou colectivos. É a primeira vez que tal acontece, e aconteceu porque evoluímos no sentido de aproximar a tecnologia da vida que realmente vivemos. Olhemos um pouco para o passado recente. Em 1995, havia muitas discussões em torno das comunidades virtuais. Quando começou a difusão da internet, com o e-mail, os grupos de conversação, etc., tentámos usar as suas possibilidades de promover a sociabilidade, mas não ainda não tínhamos as ferramentas correctas para trabalhar com as redes sociais sem o recurso ao face a face. A partir do momento em que dispomos de ferramentas potentes que introduzem a comunicação mediada de um para muitos — como o Facebook —, tudo pode acontecer. Depende das pessoas e das perspectivas que têm sobre o que ocorre em seu redor. Nos países em que se sente a crise de maneira mais acentuada, provavelmente usa-se estas ferramentas de forma a expressar-se, organizar protestos, tentar mudar algo. Em países em que tal não ocorre, não significa que não existam pessoas interessadas em projectos de mudança, porque existem. A mudança pode querer dizer mais liberdade em busca de democracia, e não apenas mais democracia, como ocorre nos regimes democráticos. Assim, assistimos à participação das pessoas em redes globais, tentando expressar o seu ponto de vista sobre o que está a ocorrer nos locais que fazem sentido para as suas vidas — protestos sobre o local, mas em união de interesses globais. Estas redes culturais, a que podemos chamar de pertença em rede, são consistentemente diferentes das redes de interesse próprio. Não porque as culturas de interesse próprio não trabalhassem assentes em redes, porque o faziam, mas porque as pessoas encontram a necessidade de colaborar e de trabalhar em prol de um objectivo comum e não apenas do interesse próprio. E têm as ferramentas para o fazer. Não precisam

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de pertencer a determinada instituição, organização ou empresa para utilizar o poder da rede, estão a utilizar o poder da rede porque têm um problema comum com que pretendem lidar e que consideram ser importante para as suas vidas. Assim, quando observamos o que aconteceu em Espanha, Londres, Telavive, Wall Street e em Portugal, quando olhamos para pequenos movimentos de pessoas ou quando olhamos para as pessoas anónimas que tentam expressar os seus pontos de vista atacando websites ou domínios de e-mail de diferentes empresas, estamos a ver pessoas que sentem que trabalhar em conjunto para um fim comum pode ser a solução para qualquer coisa. Aquilo a que ainda não assistimos é ao que estávamos acostumados a encontrar, ou seja, um conjunto comum de ideologias, de ideias escritas que nos faria abraçar uma dada organização. As pessoas nos epicentros dos fenómenos de protesto global buscam alternativas locais. Não os vemos como parte de uma organização, vemo-los a trabalhar sob uma dada rede desde que o objectivo que se tenham proposto atingir exista, e enquanto não for atingido. Assim que o objectivo é alcançado, busca-se o objectivo partilhado seguinte, num processo sem fim. Não vemos estes objectivos a evoluir directamente para uma forma de organização. Uma das características interessantes é o facto que desde o momento que estes movimentos se tentam institucionalizar tendem a perder o interesse para as pessoas. Não se trata da velha discussão sobre política, sobre partidos políticos e sindicatos que não evoluíram de modo a manter a confiança das pessoas, não. Trata-se do que as pessoas estão a explicar através das suas práticas, isto é, que confiam nas organizações, desde que tenham um objectivo e desde que não lhes peçam que as sigam a si e às suas lideranças. A perspectiva deste conjunto de pessoas, que são hoje já parte importante da população é de que é preciso ter liberdade para poder (e querer) participar.

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No seu artigo, fala sobre as culturas de pertença de rede e dos movimentos de resistência a esta crise que surgem através das redes. Qual foi a resposta em Portugal em termos da resistência em rede? O que podemos dizer é que, pela primeira vez, tínhamos ferramentas disponíveis para que existissem relações sociais em rede e essas ferramentas foram-nos proporcionadas através da internet com o Facebook, o Twitter, o YouTube. Há a percepção difusa, ancorada num momento incerto, mas consensual nos sentimentos partilhados pela maior parte da população, de que as pessoas começaram a sentir-se frustradas pelo governo, pelos bancos, pelos partidos políticos e pelos sindicatos. Todo o tipo de instituições da modernidade parecem estar a desiludir as expectativas das pessoas. Assim, em Portugal, germinando nesse sentimento partilhado, desenvolveu-se um movimento chamado “Geração à Rasca” que tomou as ruas, mas antes de tomar as ruas, tomou as redes sociais. Este movimento pode ser fixado mediaticamente em torno do concerto do grupo Deolinda, que tocou uma música chamada “Que Parva que Eu Sou”, contando a história de uma geração de pessoas jovens com grandes expectativas, mas sem os meios reais para as concretizar. E assim, primeiro, as redes sociais possibilitaram a disseminação da música, depois alguém sugeriu “Porque não fazer uma demonstração num dado dia de Março” e depois, os media tradicionais, a televisão, a rádio, os jornais, começaram a dar atenção ao acontecimento e, no final, tivemos 300. 000 pessoas nas ruas de várias cidades portuguesas. Assim, estas pessoas que conversaram, distribuíram, participaram, comentaram, são o que podemos chamar o indivíduo em rede. Alguém que já não vive ou pensa que o significado da sua vida é o de viver sob uma rede de cultura de interesse próprio, baseada no ganho individual, na negação da necessidade de confiança social ou das necessidades dos outros, mas que pensa que o seu futuro está ligado ao de outras pessoas. O indivíduo em rede é alguém que pode estar na porta ao lado ou a viver algures em Portugal ou noutro

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local no mundo. E os laços que vinculam essas pessoas são construídos através das redes sociais. Esta é a história do nascimento do indivíduo em rede e das culturas de pertença em rede que são exactamente o oposto do que vivemos até ao momento, que eram redes de interesse próprio. Como vê o futuro? Qual a sua esperança em que esse movimento de mudança social ganhe importância e se torne em algo mais do que marginal? O que vejo é que estamos a viver um momento que não testemunhávamos desde os anos 60. Se olharmos para a Espanha e para o que aconteceu com o movimento dos “indignados”, o que verificamos é sobretudo a impossibilidade do sistema político e da comunidade empresarial compreender o que é que as pessoas nas praças estão a falar. A comunidade empresarial não compreende o que se passa nas ruas e as pessoas nas ruas não compreendem, por sua vez, o que é que aqueles que estão nos conselhos de administração das empresas e nos partidos estão a dizer. Estamos actualmente num momento de impossibilidade de comunicação entre dois grandes grupos da população. Também podemos dizer que as pessoas nas ruas e praças são as pessoas que poderiam estar no poder, porque são a próxima elite. Estão melhor preparadas para chegar a posições de liderança em termos da vida pública ou dos negócios. Mas não o podem fazer, porque a economia e o sistema político não são suficientemente abertos à transformação política, ou porque a economia está fragilizada. Assim, a geração que actualmente se manifesta nas ruas será a próxima geração no poder. Mas tem esperança? Tenho esperança, porque tudo evolui, tudo muda. Mas não será nos próximos anos que iremos assistir a esta mudança, porque ainda precisamos de ver serem testados mais instrumentos e

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lógicas de actuação, que aconteçam mais coisas, para se chegar a alternativas generalizadas face ao actual sistema político e económico. O que mobiliza a esperança é a visão clara da incapacidade, pelo menos na Europa, de que o actual sistema político e económico seja capaz de se regenerar e, ao mesmo tempo, criar riqueza. Daí que a indignação actue como uma esperança e factor de mobilização. Quando se ouve a palavra “indignados”, para caracterizar as diferentes manifestações, surge também o comentário de que são um grupo residual. No entanto, os “indignados” são a maioria da população mundial, como o demonstram os inquéritos de opinião ao longo da última década. Todos já vimos inquéritos publicados na imprensa onde as opiniões sobre os partidos políticos e sobre a democracia são, no mínimo, de desconfiança e, no máximo, de rejeição dos actuais líderes partidários ou representantes eleitos. Indignados em casa há muito que os temos, a diferença está em que, desde o rescaldo em curso desta crise que passámos também a tê-los na rua. E os indignados nas ruas têm seguido muitos tipos de protestos, desde partidos políticos como o Partido Pirata, com eleitos para parlamentos na Europa e membros de governo no Norte de África, organizações não-governamentais como o WikiLeaks, protestos como os do 15 de Outubro a nível global, a ocupação de locais públicos como a Praça Tahrir no Egipto ou a “Tent City” de Telavive. Ou ainda manifestações como a da Geração à Rasca ou dos Estudantes e Famílias, no Chile. Todas estas formas de manifestar indignação têm em comum a crise global não global. Global na desconfiança face aos sistemas políticos democráticos (e não democráticos) e, também, na crise dos mercados financeiros. Não global nas dívidas nacionais, na crise de empregos e na quebra produtiva. Na sua maioria são jovens que lideram os protestos, pois eles são as elites potenciais das sociedades, aqueles que poderiam liderar a política e os negócios, porque têm todas as condições para o fazer, mas que são colocadas em pausa pelo contexto. O contexto quer dizer diferentes coisas — contexto político quando falta a democracia, contexto económico quando

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não há empregos disponíveis. Ou seja, quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua, e este é o padrão em que estamos actualmente envolvidos. Porque quando não há esperança de mudança, acabamos sempre por tomar a mudança nas nossas mãos. Lembra-se do momento em que tomou consciência de que estava a viver numa crise? Sim, creio que sim. Foi a partir do momento em que compreendi que algo de muito errado estava a ocorrer em termos da capacidade do Estado em resolver problemas. Problemas que nos estavam a chegar a partir de uma crise no sistema financeiro geograficamente distante, isto é, nos Estados Unidos e no Reino Unido que, repentinamente, estava a chegar a Portugal. De repente, pareceu claro que o governo também teria que resgatar os bancos em Portugal, que havia pessoas que tinham o seu dinheiro lá e que provavelmente não o iriam recuperar. A tomada de consciência da dimensão da crise, para mim, ocorreu no momento em que compreendi que o Estado não possuía as ferramentas nem os recursos financeiros (pois a própria banca quando tem de optar entre si e o país escolhe-se sempre a si) para lidar com a questão e que era algo que não se podia resolver apenas em Portugal. Tinha começado algures e nós estávamos no meio da crise. Na sua perspectiva, como é que as redes de interesse próprio deram origem à crise actual? Bem, como tive ocasião de argumentar numa pergunta anterior, vivemos as nossas vidas com base em modelos e tendemos a caracterizar a nossa experiência quotidiana sobretudo a partir dos meios de comunicação de massa. O que aconteceu é que ao longo dos últimos 20 anos com as redes financeiras globais, o financiamento global da economia, e tudo o que daí decorreu na

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partilha de valores através da comunicação global, enveredámos por práticas de consumo e de empréstimo de alta perigosidade. Nós, enquanto indivíduos, mas também as organizações e os estados. Assim, a cultura de interesse próprio, que surgiu das práticas de gestão e foi potenciada pelas escolas empresariais e pelos MBA, espalhou-se por uma vasta parte da sociedade. Quando se defende que o lucro é o principal objectivo a cumprir, sem ter de levar em conta qualquer limite ou concessão à confiança social (a base da vida em sociedade e sustentação da liberdade e da igualdade), é de esperar que algo de mau acabe por acontecer. É apenas uma questão de tempo e foi uma questão de tempo, como sabemos hoje. O principio repetido à exaustão foi o de que quando — e se — existirem dúvidas, pensem no lucro, não na construção de confiança social. Foram estas as culturas que nos trouxeram até aqui, até este presente. Foram essas as culturas de interesse próprio, representadas pela elite de gestão, se assim a quisermos designar. Pensa que pode ter sido um acto deliberado das elites? Ou trata-se de um erro sistémico, uma espécie de força sem rosto? Creio que é algo intermédio, porque não se trata de um golpe deliberado. Para o ser, teria que ser algo pensado, organizado e planeado tendo em vista um objectivo concreto. Mas não foi isso a que assistimos, mas antes a algo como a aceitação de uma evangelização e a adopção de uma religião laica comum. Uma religião laica, baseada em dogmas de gestão e numa ideia não real do que é o mercado, uma religião cujos sacerdotes eram as elites da gestão e que se baseava nos ícones das grandes empresas privadas e públicas e com o apoio de enormes bancos globais. Não quer dizer que gestores e banqueiros sejam más pessoas ou maquiavélicos, na busca de um objectivo maléfico. A grande maioria são boas pessoas, não se trata de discutir se alguém é bom ou mau. Trata-se de analisar o modo como o sistema foi gerido, a crença na certeza absoluta e a falta de pessoas que

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compreendessem que existem sempre alternativas e que é preciso ver mais além. Que é necessário questionar se aquilo que estamos a fazer trará danos a outrem, mesmo que me traga benefício a mim. Acredito que foram essas as principais raízes da crise. Parece muito optimista quanto à possibilidade das alternativas e de novos pontos de vista, de novos modos de vida que estão a surgir destas redes de pertença. Em que baseia o seu optimismo? Não estarão estas redes condenadas a ser uma secção marginal da sociedade? Acredito que temos hoje um diagnóstico do que está a acontecer. O diagnóstico é que as instituições da modernidade deixaram de proporcionar lugares onde se possa questionar. Questões que, por vezes, e para algumas pessoas, podem ser consideradas questões estúpidas: “Porque é que estas pessoas estão a questionar a democracia e o modo como está a funcionar?” “Porque é que estas pessoas estão a questionar os mercados e o modo como funcionam?” “Porquê questionar os sindicatos, os partidos políticos?” Na realidade, o que as redes sociais e as praças nos mostraram é que se as universidades já não conseguem colocar as questões certas que proporcionem ideias e modelos alternativos de governação e de produção, se os partidos também não o fazem, o que resta? E a resposta é: pessoas, praças ou redes sociais. Lugares onde as pessoas se possam encontrar e colocar questões sobre a realidade que estão a viver e onde, se não aprovarem essa realidade, pensarão sobre o que podem fazer. Este é o primeiro passo em direcção à mudança e às alternativas, mas ainda não estamos perante um modelo alternativo estruturado (nem sei se algum dia o estaremos, nem mesmo se tal é importante ou não). No entanto, temos observado um conjunto de pessoas envolvidas na procura de alternativas e não são as mesmas pessoas que sempre têm estado à frente da contestação aos modelos de capitalismo ou globalização pré-2008. Não são

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as mesmas pessoas que sempre procuraram modelos alternativos (e que irão sempre procurar, pois essa é a condição humana) que encontramos hoje nas praças. Vemos sim um grande número heterogéneo de pessoas envolvidas na procura de alternativas para as suas vidas. Esta procura pode ocorrer nas redes sociais ou nas praças como em Madrid ou Barcelona. Estes são os locais actuais de encontro e de questionamento da realidade em que estamos a viver, onde se tenta construir alternativas ou, pelo menos, questionar que alternativas se podem escolher. Não são as universidades, parlamentos ou associações. Há alguma imagem que represente para si esta crise? Não é bem uma imagem, é uma representação de uma imagem e a antecipação de outra. Sempre que olho para um banco, penso: “Qual será o dia em que verei as pessoas a tentar levantar o seu dinheiro e não o conseguirem fazer?” Portanto, isto é mais do que uma imagem, é a antecipação de alguma coisa que significará que o sistema não foi capaz de se regenerar. E a minha maior preocupação é que os políticos — em particular, portugueses e europeus —, não sejam capazes de compreender que jogar de acordo com as regras do jogo não é suficiente para serem resgatados ou para estarem seguros na crise que estamos a viver. Esperam que tal seja suficiente. Com isto não quero dizer que deveríamos aumentar os cortes, ou desmantelar o Estado, apenas estou a dizer que se seguirmos as regras que permitam manter o défice e produzir crescimento não significa que tudo volte ao normal, como em 2007 e 2008. O estranho é que só agora, três ou quatro anos depois do início da crise, os políticos começam a compreender que seguir as regras do jogo, estabelecidas pelo FMI, pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu, não será suficiente para resolver a crise. Têm que ser mais arrojados e têm que pensar em alternativas porque não será suficiente se apenas aumentarem os cortes sobre os gastos. O mais difícil de entender para os actuais líderes não é tanto a normalização da

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desconfiança nas instituições, mas o facto de não compreenderem a cultura na génese das manifestações de indignação por parte dos cidadãos. A cultura de indignação nas ruas é o produto das culturas de pertença construídas em torno da socialização em rede, da forma diferente como se olha para a posse e propriedade em nuvem, como se valorizam as culturas de partilha (ou se preferirmos culturas de pirataria) e de como se produz em abertura sem esperar que algo tenha fim. Quando numa sociedade se muda, ainda que lentamente, a forma como encaramos a posse, a partilha e a produção, essa sociedade muda inevitavelmente (ou pelo menos tem uma grande probabilidade de gerar mudança). Mas o que quer isto dizer para os governos e instituições da democracia? Os indignados na rua e nas redes têm propostas concretas sobre muitas questões, e se os líderes e as actuais instituições da democracia querem inverter o seu rumo de declínio devem aceitar isso e começar a pensar o mundo de modo diferente. A cultura de quem está na rua (e também cada vez mais dos que estão em casa) está a ficar mais distante de quem nos representa e quem nos lidera. Os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e vitória de quem estiver na oposição. Sem que isso se traduza em algo de importância para a vida das pessoas. Este caminho só leva ao desgaste da democracia e abre o caminho às tentativas de regresso aos diferentes passados de decadência. Como vê o futuro especificamente para Portugal? Vejo um futuro brilhante para Portugal, o que pode parecer uma afirmação estranha para se fazer num período de crise. A questão actual é a de que estamos a viver na Europa nos últimos 30 anos, não apenas geográfica, mas também política, económica e culturalmente, o que nem sempre assim foi. No entanto, agora temos uma crise europeia entre mãos e estamos política e

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economicamente na Europa. A actual crise em Portugal, a crise da dívida, não é apenas uma questão portuguesa, é uma questão europeia. Portugal representa apenas a primeira parede, talvez a segunda, sendo a primeira a Grécia, que será derrubada antes de o centro ser atingido. O centro é o euro e está tanto em Paris como em Berlim. Assim, desde que a Europa decida sobreviver, Portugal também sobreviverá, mas não significa que o futuro de Portugal seja exactamente igual ao que foi nas últimas décadas. Nos últimos 30 anos decidimos fazer parte da União Europeia. Na realidade geográfica, fazemos parte da Europa, mas estamos também na confluência de quatro zonas diferentes: Europa, África, América do Norte e América do Sul. Portugal tem sido uma ponte para esses continentes. Assim, desde que continuemos a ser um nó de uma importante rede global, das redes globais da cultura, da economia e da decisão política, Portugal ficará bem. O nosso futuro pode não ser com a Europa, os futuros escolhem-se e mudam. O futuro pode ser europeu na geografia, sul-americano na política (em extrema proximidade com o Brasil) e cultural e economicamente global. Numa sociedade em rede, o papel de Portugal tem que ser maior do que um entre 27 países da UE. Portugal tem que ser um nó numa rede global de cultura, economia e política. Não lhe basta ser um pequeno país na Europa. Se assim for, não teremos um futuro brilhante. Por fim, este grupo partilha uma ideia comum? Sim, acredito que sim. Acredito que há a ideia de que apesar de ainda não vermos o fim da crise sabemos que as pessoas aceitaram que têm de procurar modos de vida alternativos. Mesmo que seja aceitar que querem viver exactamente como antes da crise, que querem ter o mesmo poder de consumo, etc., terão que o fazer de modo diferente. O que podemos partilhar é a ideia de que as pessoas estão já a tentar construir novos futuros para si próprias. E que também não partilham ainda uma qualquer

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imagem comum do que será o futuro. Nesta rede, procurámos começar a imaginar os futuros que podemos esperar. Futuros que, se não gostarmos, poderemos evitar através das nossas acções. E os futuros que acharmos que serão os melhores, que darão sentido às nossas vidas, serão os que terão o nosso investimento. Precisamos de construir ideias e imagens futuras, porque é esse o modo de sair da crise. Creio que é esta a ideia geral partilhada pelo grupo. Não podemos continuar a fazer exactamente o que temos estado a fazer, utilizando os mesmos velhos instrumentos, velhas políticas, pensando o futuro como se as ferramentas do passado fossem úteis. Não parece ter muita confiança na política convencional para contribuir para a mudança… O que observo é que as novas ideias estão a nascer fora dos partidos políticos, ou mesmo fora de organizações não-governamentais. Estão sobretudo a surgir de redes de pessoas que procuram partilhar um objectivo comum e que enquanto estão envolvidas nesse objectivo comum procuram fazer coisas diferentes, propor ideias diferentes e experimentá-las. Assim, acredito que o futuro dos partidos políticos, por exemplo, está na sua capacidade de agir como nós destas redes, não é o de tentarem ser o nó central delas. Porque se não for assim, isto apenas os fará parecer menos importantes para as pessoas porque estas irão perguntar: “Se está a funcionar aqui, porque é que nos havemos de mudar para ali?” Assim, os partidos têm que ser parceiros nesse processo. Os partidos são importantes, em parte porque são capazes de manter os objectivos depois de decididos. Os partidos surgem, assim, como um sinal que nos lembra que há necessidade de chegar a um objectivo final, mas já não como os únicos actores centrais no campo das ideias ou enquanto o único caminho para os propósitos da governação. Os partidos em rede com as pessoas e não apenas os partidos na rede com máquinas ligadas à internet. É esse o desafio.

Não podemos ter medo do futuro Conversa com João Caraça, físico e economista

O declínio de valores fortes, como os de natureza, ciência, universalidade e soberania, tem-se desdobrado numa mistura de sentimentos de angústia, visão de curto prazo, opressão e insegurança. Amanhã será pior do que hoje, e os mercados asseguram-se que hoje é o dia. O marketing e a propaganda forçam-nos a tomar decisões instantâneas. O primado do capital financeiro devido à sua intangibilidade, e portanto, a possibilidade de acumulação infinita, acelera esta tendência a um ponto sem retorno. Pela primeira vez em séculos, com excepção do período das guerras, não vemos a luz ao fundo do túnel. Tornámo-nos receosos do futuro. Quer isto dizer que o capitalismo, finalmente, matou a modernidade. Se foi de propósito ou não, não sabemos. Não podemos continuar a referir-nos a poderes divinos ou a forças satânicas para ajudar a resolver este assunto. Só podemos reconhecer que este é um momento edipiano na evolução da cultura ocidental, porque é muito difícil entender o seu significado. (Excerto de uma das contribuições de João Caraça para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Como descreveria este momento da história a que chamamos a crise? 77

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João Caraça É um momento de profunda interrogação, um momento de suspensão em que não conhecemos o caminho para seguir em frente. Um momento de grande incerteza e complexidade. E estas palavras são todas diferentes, ligadas, claro, e todas elas têm diferentes significados. Mas esta conjugação de todas estas situações faz-nos sentir um pouco angustiados em relação ao futuro. Sentimo-nos um pouco oprimidos, sentimos que os problemas a curto prazo, de hoje e de amanhã, são os mais importantes. Por isso estamos de alguma forma a ter um comportamento forçado, que não está em continuidade com o comportamento que, em geral, experimentámos no século passado. Tivemos duas guerras, duas grandes crises. Não há aqui uma ruptura, mas sim um aprofundar de uma falta de confiança colectiva, em nós próprios. Quando falo de nós próprios, estou a referir-me às sociedades ocidentais, sobretudo à Europa e América do Norte. Sente que a palavra crise é apropriada para descrever esse aprofundamento da falta de confiança? Falamos de rescaldo… Exactamente. “Rescaldo” é uma palavra genérica. Significa o que vem depois. Mas, na verdade, o que vem depois está ainda a meio, porque isto será um longo processo. No início pensámos que seria uma crise; uma crise é um momento de decisão, portanto, pensámos que era uma crise que seria resolvida com as medidas habituais, talvez soluções mais inteligentes, com medidas políticas, económicas e sociais. Agora estamos a ver que este não era o caso, que esta crise, como começou, tem fundamentos muito mais profundos, está muito mais ligada a todo o funcionamento das nossas sociedades, ao que alcançámos ou não, ao que fizemos ou não fizemos. A dificuldade na análise está em que é muito intrincada por um lado e muito complexa por outro. Intrincada significa que as coisas são difíceis de separar. Complexa significa que são impossíveis de separar. Portanto, temos, de alguma forma de ser capazes de a analisar e talvez

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precisemos de tempo. E precisamos de um bom modelo que permita alguma distância, mas não tanta distância que nos faça ignorar o pormenor. É um período realmente difícil e precisamos de um vasto conjunto de perspectivas de diferentes disciplinas, níveis, campos, para sermos de facto capazes de chegar ao cerne da questão e começarmos a olhar para a frente. Por exemplo, por vezes coisas que aconteceram no passado dão-nos linhas de orientação. O passado nunca se repete. O que repetimos são erros humanos, mas a situação é sempre diferente. Mas às vezes ajuda. Por exemplo, tivemos alturas, depois da Reforma na Europa, em que tínhamos a divisão que agora vemos claramente, entre culturas do Sul e do Norte, quer dizer, entre católicos e protestantes. A construção do edifício do mundo protestante esteve cheia de incertezas e dificuldades. E questões. Mas foi construída dessa forma e deu novas esperanças. No início, houve lutas e crises, e ninguém percebia de facto o que se passava. É provavelmente uma coisa deste tipo que estamos a viver agora e temos que descobrir formas de comportamento que conduzam à construção de novas formas de ligar as novas sociedades, porque os fundamentos sobre os quais nos baseamos foram de alguma forma destruídos, e alguns deles podem ser irrecuperáveis. Mas foram destruídos deliberadamente, ou trata-se de uma espécie de erro sistémico? Penso que essa é uma boa questão. Provavelmente, é uma mistura das duas coisas. Alguns deles foram destruídos deliberadamente. Quer dizer, a privatização foi deliberada, por exemplo. Outros foram simplesmente sistémicos, as pessoas não compreendem muito bem. É muito perigoso quando, por exemplo se começa a acreditar em imperfeições, por exemplo nos modelos económicos ou nos mercados, porque anteriormente as pessoas sentiam que havia alguma perfeição que regulava o todo. Não há nenhuma perfeição, porque as nossas relações, a

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comunicação, são o que são. Por detrás não há nenhum modelo perfeito, ninguém está a dirigir isto. Assim que se começa a falar do modelo imperfeito, há uma sensação de perfeição ao fazê-lo, isto é, convencemo-nos de que se mudarmos pequenas coisas nos modelos vamos conseguir aperfeiçoá-los e torná-los melhores, e isto é muito perigoso, convencermo-nos de que isto afinal é sempre regulado e autocorrectivo. Temos este tipo de erros sistémicos e outros não sistémicos, apenas erros, como a ganância e outras coisas do género. Portanto, trata-se de uma combinação destas três coisas, para finalizar a questão: um erro, uma acção deliberada e meras falhas humanas. A sua análise é muito, muito negra e pessimista. É quase como se a crise causasse uma espécie de depressão clínica colectiva… Para mim não é uma análise assim tão negra, porque quando olhamos para ela em profundidade temos alguma esperança de renovação. O que não podemos fazer é olhar para as coisas superficialmente e pensar que podemos sempre continuar. O que quero dizer é que temos alguns valores básicos e que, de facto, assentámos todo este desenvolvimento dos últimos 400 anos de modernidade no progresso, num pensamento sobre o futuro, separando efectivamente sujeito e objecto. Para qualquer um de nós, todo o resto eram objectos. Podíamos tratá-los como queríamos. O que quero dizer é que efectivamente este modo de olhar, esta visão do mundo, está de alguma forma a ser posta de lado, a ser substituída por outra visão do mundo que ainda não foi inteiramente criada. E isto é bom, porque ainda não fomos pelo ralo e talvez possamos deduzir uma nova visão do mundo que não pode ser a actual porque, na verdade, sabemos que esta relação sujeito/objecto não é sustentável, excepto em casos muito particulares. É sempre uma relação sujeito/sujeito. Esta é a essência da complexidade. Se não estivermos aptos a olhar o mundo desta maneira, isto será de facto muito complicado. A outra coisa é olhar para o futuro. Sempre pensámos que teríamos o

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futuro que quiséssemos escolher. Depois, a combinação com a pressão financeira de obter mais valor e mais transacções instantâneas contínuas, faz duas coisas: pensamos apenas no presente e porquê? Porque o dinheiro é imaterial, é uma convenção e por isso a única forma de as finanças obterem valor é fazendo transacções. Portanto, estas coisas passam-se o tempo todo. O que interessa é o presente. Esta é a primeira coisa. A segunda é este medo de nos prejudicarmos a nós próprios que está a ser instalado, interiorizado, e que nos causa medo do futuro. Estamos de facto a perder esta ideia de futuro. E este é o segundo elemento que nos faz sentir que esta nossa visão do mundo está, neste momento, não apenas em crise, mas a desaparecer. Então qual é a nova visão? Sabemos apenas que não é esta, mas temos que alcançar os valores fortes do conhecimento que temos, recuperar realmente e perceber que tudo o que dizemos está sempre integrado. Quando eu falo, não separo os vários aspectos da minha vida. É a minha visão. Aquilo a que temos de chegar colectivamente é a uma visão colectiva onde todas as coisas estejam integradas. Temos, obviamente de ser especializados, porque este mundo material com que lidamos precisa de especialização. Quer dizer, não aprendemos a pilotar um avião em casa, precisamos de especialização, mas também precisamos de estar abertos aos outros para compreendermos que a nossa especialização é apenas a nossa forma de lidar com parte de uma coisa ligada com outras; e portanto temos de comunicar com outras pessoas e ser capazes de integrar o que elas dizem, sentir, acreditar, mesmo se as ideias forem contrárias às nossas. Esta é a complicação do nosso tempo. Temos de integrar uma série de culturas enquanto vemos forças poderosas a tentar separá-las. Eu não tenho nenhuma teoria da conspiração, mas sinto que há forças que nos empurram para nos separar e dividir. Isto é o poder a funcionar, tenta dividir para controlar melhor. Nos nossos dias, não sabemos exactamente onde está o poder. Alguns dos participantes neste grupo de trabalho escreveram excelentes reflexões em que tratam desta ligação e relação entre política e

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finanças, etc., e talvez possamos de alguma forma compreender melhor, depois da nossa discussão, quais são as ligações críticas. Não podemos compreender o todo mas os pontos críticos e, se formos inteligentes, não acreditaremos que isso é o todo. Depois, talvez obtenhamos algumas orientações. Penso que é muito interessante ter dito que precisamos de facto de uma nova visão do mundo. É esse o desejo e a motivação que está por detrás da decisão da Gulbenkian de financiar a rede Aftermath? A decisão da Fundação Gulbenkian está obviamente ligada aos seus objectivos e estatutos. Uma fundação filantrópica privada quer sempre fortalecer a sociedade civil que a rodeia, aquela em que existem os recursos para que seja capaz de responder com mais imaginação e inovação, para a tornar mais viva. Portanto, a nossa ideia foi sempre dar enquadramentos intelectuais de longo prazo. Nós não competimos com os políticos e os economistas na vida do dia-a-dia. Trabalhamos numa perspectiva de longo prazo que permitirá tomar melhores decisões a curto e médio prazo. Portanto, a fundação sente que, enquanto instituição filantrópica, tem a obrigação de fornecer à sociedade civil e a quem quiser, claro, pontos de vista, pensamentos, que têm tipicamente uma visão de longo prazo, porque isso ajuda a organizar o nosso caminho e a tomar, esperamos, melhores decisões. Em última instância, também espera que isto chegue às pessoas e lhe permita, nas suas vidas, olhar as coisas e agir de forma diferente? Sim, porque a questão é como formamos as nossas crenças. Formamo-las porque vemos padrões, algo de muito profundo. Nas religiões, todas as nossas crenças são formadas dessa forma. Os positivistas tinham a ideia de que era uma questão de informação — se tivermos mais informação, estaremos aptos a decidir. Não é verdade, porque vivemos sempre num contexto. As

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nossas palavras estão sempre no contexto da linguagem, portanto temos de construir este contexto e ele tem que ser completo, tem que conter o passado, o presente e o futuro. Porque o futuro conduz o presente, como o passado conduz o presente. Não podemos construir nada apenas sobre a tradição, temos de construir também sobre a aspiração e sobre a capacidade de olharmos para o futuro, temos de saber para onde ir. Temos de ter alguma coisa que antecipamos, algum desejo porque, de outra forma, não vamos a lado nenhum. No mundo perspectivista há uma conhecida citação de Séneca, um filósofo estóico de Roma, que disse que o vento só é favorável se soubermos para onde ir. Isto significa que se não soubermos para onde ir o vento tanto é favorável como desfavorável. Não se vai a lado nenhum. Mas se soubermos para onde ir, mesmo o vento contrário pode ser útil, porque se pode aprender a navegar contra ele. Isto é muito importante, ter uma ideia do futuro, uma visão do mundo e isto é o que sabemos que é colectivo. E é o que ajuda a construir o contexto, se percebermos que as pessoas que estão a tentar fazer isto em toda a sociedade são pessoas credíveis. Depois, claro, estaremos aptos a acreditar em algo que acontecerá porque esta é a coisa mais importante na vida, acreditar no futuro. Esta é a minha crença mais profunda. Nós somos sistemas antecipadores, por isso, se não acreditarmos no futuro, começamos a matar-nos uns aos outros. Eu comerei o próximo imediatamente se pensar ele é o meu recurso de sobrevivência mais imediato. Por isso, temos que acreditar no futuro e todos os seres humanos têm algum tipo de sistema de antecipação. Assim, quando o capital financeiro mata a modernidade, o futuro, ou, digamos, privatiza o futuro — o que é o mesmo, porque o futuro deixa de ser um bem público —, estamos perante uma situação muito perigosa, e por isso a ideia de que futuro é algo prejudicial, que será pior do que o presente, tem que ser erradicada para nos concentrarmos em vez no presente. Este é o maior perigo, porque nos expõe a qualquer esquema de poder.

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Está a dizer que este é um momento de Édipo? O momento de Édipo é, na verdade, quando o capital mata a modernidade. Porquê momento de Édipo? Porque foi a modernidade, o espírito de 500 anos de pós-modernidade, que permitiu ao capitalismo florescer. De facto, o capitalismo, um regime baseado na acumulação de capital, foi muito impulsionado e suportado pelo nosso sistema, porque podíamos, com a expansão das nossas sociedades, acumular mais capital e houve muitas invenções para desmaterializar o sistema monetário. Usávamos dinheiro de papel e agora vemos que até as unidades de conta são electrónicas. O que é o dinheiro que temos? É uma impressão que sai do computador, um conjunto de registos numa folha de papel. O dinheiro é imaterial, já não está relacionado com metais ou alguma coisa física e portanto pode acumular-se indefinidamente, o que significa que a modernidade permitiu ao capitalismo lutar por uma coisa que avançava na verdade para o infinito. Contudo, nós não somos deuses, o mundo é finito e temos que acreditar num contexto. E vivemos momentos em que esta acumulação começou a perder sentido. Todas as bolhas que surgiram e todas as ligações mostraram que tinha que haver limites. Mas claro, estávamos tão enredados nesta construção e expansão que não vimos que era uma das falhas básicas do sistema. E claro que aqueles que estão no jogo não gostam de ser regulados. Portanto, tentaram o seu caminho. E continuam a tentar. É por isso que este rescaldo será prolongado. Estamos no processo, mas temos de o perceber. Neste sentido, a nossa tarefa, penso eu, é tentar obter uma melhor compreensão do que se está a passar de forma a podermos concentrar a nossa força e a nossa luta onde ela é realmente necessária.

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O que é que essa situação que descreve tão eloquentemente nos faz? Quer dizer, o que é que provoca dentro de nós? Também escreveu sobre medo, angústia… quase como uma depressão clínica colectiva… Exactamente, isto penetra realmente na sociedade. É muito penetrante, porque olhamos à nossa volta, para os nossos amigos, para as pessoas que conhecemos em praças públicas, para os media, para estarmos muito mais imersos na sociedade e vemos todas estas coisas… Começa a ter sentido e neste caso vejo a questão de uma visão do mundo que, para os cientistas… bem, eles não precisam de uma visão do mundo para fazer pesquisa. Mas quando começarmos a preocupar-nos com a sociedade e com o mundo, quando começarmos a pensar enquanto cidadãos, haverá uma noção, uma visão do mundo que terá todo o significado. Porque é físico de formação, certo? Sim, físico nuclear. Assisti a todo o crescimento da ciência tecnológica e ensino políticas de inovação. Para mim, também é muito importante ter uma visão clara das implicações que estas coisas têm. Acha que o papel da ciência tem perdido importância? Não, muito pelo contrário, o papel da ciência é cada vez mais importante. Temos neste momento todos os instrumentos necessários à sobrevivência, incluindo computadores que funcionam em redes electrónicas e novas fontes energéticas. Todas estas coisas derivam fundamentalmente da investigação, isto tenderá a acentuar-se no futuro. A ciência será uma disciplina muito importante para nós no futuro, mas que tipo de ciência? Quando a ciência começa a desempenhar um papel tão importante na vida social e económica, então a “velha” ciência, a dos

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últimos 400 anos, aquela que era alimentada pela simples curiosidade, começa a ser posta de parte. Esta é uma questão que me preocupa e que considero perigosa, a da ciência motivada pela curiosidade versus a ciência motivada pela tecnologia. Temos de ser capazes de gerir as duas, não nos podemos dar ao luxo de a curiosidade deixar de ser impulsionadora da ciência, seria um desastre. A pressão exercida neste sentido é imensa. A ciência que vemos hoje não é aquela patente nos nossos livros, é sim uma tecnociência, uma ciência cujo objectivo último é a produção de tecnologia. É claro que este tipo de ciência é importante e necessário, mas não nos podemos esquecer que as ideias realmente revolucionárias nasceram da mera curiosidade, apenas pelo prazer de imaginar e conhecer. É isso que temos que manter. É muito importante para o nosso futuro. Diz que vivemos num momento em que amanhã será pior do que hoje? Em que temos o sentimento de que amanhã será pior. Portanto, estamos a viver uma depressão colectiva? Sim, isso deprime-nos, faz-nos perder a vontade de acordar de manhã. É um pesadelo. Enquanto seres humanos, precisamos de olhar para as coisas. Precisamos de funcionar para desempenhar o nosso papel de antecipadores, que é comum a todos os seres vivos, plantas, animais, bactérias. Temos que ter um modelo de alguma coisa a atingir para chegarmos lá e sobrevivermos. Esta é a lei fundamental, é aí que a vida é diferente do mundo inanimado. As sociedades têm que recuperar a fé no futuro. E esta fé no futuro, esta esperança, só é possível se desejarmos alguma coisa, se, de alguma forma, criarmos e impulsionarmos um desejo colectivo para o futuro.

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Precisamos de terapia? Esta é uma boa terapia, a terapia do pensamento crítico. Mais pensamento crítico, mais crença no valor do erro porque, às vezes, naquilo a que chamamos erro que está a informação. Por isso, temos que olhar para as coisas que às vezes desconsideramos para estarmos aptos para o progresso. Para começar, não precisamos apenas de mandar alguns banqueiros para a prisão? Bem, aqueles que desenvolveram actividades fraudulentas, certamente que sim. Como todos os criminosos que têm de passar algum tempo na prisão para serem reintegrados na sociedade. Mas a maior parte destas coisas foram como que sistémicas, foram como que balanços entre economia, finanças, política, sociedade, cultura, media. Todo este reforço foi feito no sentido errado, no sentido de privatizar tudo, por o Estado ser ineficiente. O bem público é essencial para nós. Nós vivemos em comunidades globais e talvez precisemos de algo para as representar, nesta altura das nossas vidas. Uma nova espécie de governo mundial, ou qualquer coisa do género. Talvez precisemos disso. O que estamos a ver é um ajuste terrível, porque continuamos divididos por nações, fronteiras. Talvez seja isso, mas não podemos não ter alguém que represente o bem público porque isso será como regressar à selva. E a selva é muito boa, foi obviamente de lá que viemos, mas a selva é muito dura. É um jogo de vida de morte todos os dias. E nós temos evoluído, desde há 200. 000 anos, como humanos, como uma sociedade evoluída, onde o facto crucial da vida como possibilidade de ser morto a qualquer momento foi de certa forma atenuado. A civilização e a cultura foram muito importantes, nós propusemos uma ordem para o mundo e fomos bastante eficazes nisso, uma vez que começámos talvez com 10. 000 pessoas. A espécie diferencia-se, quando tem cerca de 10. 000 membros, 10. 000 humanos no início, há 200. 000 anos atrás, para

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chegar até 7 mil milhões, talvez 10 mil milhões. Ou seja, é um crescimento de 1 milhão de vezes. Não se pode considerar um mau desempenho. Não acredito que vá tudo acabar assim. Claro que se a situação mudar, se um grande meteorito cair… Mas agora temos algum conhecimento que talvez até nos permita evitar algumas dessas coisas. Quer dizer que temos mais poder intelectual do que nunca, colectivamente? Sim, colectivamente temos muito poder. Até podemos ir a outros planetas. Algo que nunca foi feito intencionalmente. Pelo menos, nunca antes tivemos esse conhecimento. E isto é incrível. Então podemos deixar o planeta para os capitalistas e seguir em frente? Ou ter alguns satélites ou meteoritos onde pomos os criminosos, como na Lagoa de Veneza, onde algumas ilhotas eram prisões, outras eram para doentes com lepra, etc. Na realidade, podemos fazer o que quisermos. O futuro está em aberto, é só questão de encontrar uma boa forma de viver no mundo que criámos. Agora parece novamente muito optimista, feliz, mas para a última questão gostaria de voltar atrás. Quer dizer, se olhar profundamente, quando leio a sua análise, pergunto-me, isso não o magoa, de alguma forma? Não é penoso? Sim, é penoso atravessar um momento como este, mas temos de o pôr em contexto. Já houve no passado vários momentos horríveis de sofrimento. As guerras do século XX, que ainda temos vivas na memória, foram momentos horríveis. Por agora não é assim, quer dizer, pode tornar-se em alguma coisa que não conhecemos como uma guerra por petróleo ou outra. Por isso é

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penoso, gostaríamos que fosse melhor, mas a vida é incerta. Por isso temos que estar preparados. E temos que tirar o maior partido das coisas boas que temos e olhar para a frente, para o futuro que é a nossa única esperança. Para acabar, posso fazer outra citação de um fantástico pregador do século XVII, António Vieira. Ele escreveu então (em pleno século XVII) uma frase muito moderna: “Para avaliar a esperança, temos que medir o futuro”. Portanto, temos que medir o futuro. Não podemos ter medo do futuro, temos que olhar para ele com instrumentos, como parte importante da realidade, como é o presente ou o passado

A China: estabilização social e a mercantilização da justiça e dos direitos Conversa com You-Tien Hsing, economista política

O que este novo regime de estabilização social trouxe foi a mercantilização da percepção dos indivíduos da justiça e direitos. No caso dos atribulados e alvos de injustiças, sejam agricultores que enfrentam a poluição industrial ou apropriação de terras, ou trabalhadores imigrantes enfrentando despedimentos ilegais ou lesões provocadas pelo trabalho, muitos deles medem o sucesso da sua procura por justiça pelo volume das compensações em dinheiro. Condicionados por um espaço político limitado, o dinheiro torna-se no objectivo da sua luta e na medida da justiça. (Excerto de uma das contribuições de You-Tien Hsing para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Pode falar-nos um pouco da sua experiência profissional e de como se envolveu na rede Aftermath? You-Tien Hsing Sou professora na Universidade de Berkeley, no departamento de Geografia. Não estive envolvida no programa nos dois primeiros anos, até que Manuel Castells, de quem fui assistente e que colabora actualmente comigo numa investigação, me falou deste projecto. Ele sentia que faltava um elemento na rede Aftermath — ou seja, responder ao que aconteceu a alguns dos 91

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maiores actores económicos mundiais, saber onde podemos encontrar os maiores exemplos de países que emergiram da crise incólumes. Acontece que a China foi um desses países e, dado que a minha pesquisa se foca na China, particularmente no seu desenvolvimento económico, Manuel Castells convidou-me para integrar o projecto. Como caracteriza esta crise? Na China, ou em geral? Diria que começou por ser de facto uma crise financeira, mas depois teve impactos muito mais abrangentes noutros aspectos da vida. É uma crise financeira, pois, por exemplo, conduziu ao desemprego, e por conseguinte tem um impacto grave sobre as hipotecas e, portanto, nas questões da habitação, bem como um grande impacto social: é uma crise financeira que levou à incredulidade dos líderes políticos. As pessoas saem à rua para protestar, e assim temos também uma crise política. Pensa então que é diferente de outras crises que o capitalismo já atravessou? Fundamentalmente, penso que há duas coisas que a diferenciam de outras anteriores. A primeira é estarmos num ambiente muito mais globalizado e, portanto, o que acontece num sítio pode viajar facilmente para outros. Além disso, esta crise viaja muito mais depressa, a conexão é muito mais estreita que em crises anteriores. E se tiver que pensar numa imagem que, para si, represente a crise? Eu diria… Começou muito pequena, num cantinho, mas depois alastrou muito rapidamente a uma área muito maior. Como numa floresta muito densa, em que as árvores estão muito próximas umas das outras, e vemos quando uma árvore está a

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arder e incendeia outras árvores. A imagem mais imediata que me ocorre é este fogo na floresta. Pensa que é uma crise global? Diria que é uma crise global, tendo em conta o sentimento de perda da ordem e a forma como este tipo de incerteza é intensamente partilhado por diferentes culturas e economias. Contudo, diria que esta suposta crise global não é sentida nem se revela da mesma forma nos diferentes sítios. Todos sentimos incerteza, alguns problemas, e se não os há já, serão realidade num futuro próximo. Mas, simultaneamente, sentimos que há diferentes interpretações e sugestões de linhas de actuação para lidar com estes diferentes tipos de crise. Mas penso que o que partilhamos é este sentimento de incerteza. Focando-nos especificamente na China, como se revela lá crise? Diria que na China não se verifica o tipo de crise financeira a que assistimos na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos desde 2008. Contudo, na minha comunicação argumento que há uma crise — uma crise financeira em curso, mas que não está declarada nos balanços oficiais. As pessoas ainda não a sentem, por isso há consenso generalizado de que a China emergiu incólume desta crise. Contudo, há também uma preocupação quanto à forma como é sentida política e socialmente. Mesmo não havendo por agora crise financeira, entendo que crise financeira adiada está simultaneamente de facto a adquirir contornos sociais. Constatamos actualmente uma crise social na China, resultado da deslocação dela do plano político e económico para o plano social. Como descreveria a crise social da China? Essa é uma grande questão. Para começar, uma das razões para o sucesso económico da China — a capacidade de evitar em

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larga medida a actual crise financeira —, deve-se de facto à sua capacidade de construir consensos políticos para concentrar recursos e reunir um enorme pacote de incentivos ao investimento em infra-estruturas, e para gerar mais emprego num momento de crise global. No entanto, tal concentração de recursos nas mãos do partido do governo não significa que não haja assimetrias sociais. Temos agravado as assimetrias e as desigualdades sociais, temos um altíssimo coeficiente de Gini e verifica-se também uma significativa escalada de protestos sociais, em toda a parte. Mas não é disso de que falo quando me refiro à crise social. A disparidade de rendimentos ou o aumento da frequência e da violência dos protestos é apenas o início da história da crise, pois a questão é de facto a de saber como é que o Estado lida com estes protestos, com esta agitação, com estes tumultos. Isso faz a crise. Como é que o Estado responde? O Estado começou com o processo de reformas. Para fazer face à situação, para permitir que as queixas das pessoas tivessem voz, iniciaram uma reforma legal desde finais da década de 1980 e também estabeleceram todo um sistema burocrático para permitir às pessoas levarem as suas queixas às agências governamentais especificamente designadas para transmitir às entidades oficiais o que correu mal, como foram vítimas de injustiça, etc. Contudo, passados os 10 primeiros anos desta experiência de reformas legais, que permitiram às pessoas processar o governo ou levar as suas queixas a agências governamentais especificamente designadas para as receber, concluiu-se que não funcionou, por diversos motivos. O desenvolvimento mais recente é o estabelecimento de um regime de manutenção da estabilidade social, o que significa um novo conjunto de burocracias do Estado para lidar com este aumento da frequência e violência dos protestos. Esta nova acção governamental (que é apenas uma ajuda financeira baseada na negociação entre estas entidades governamentais e

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os agitadores) para lidar com estes problemas e protestos, com esta instabilidade, tem contudo, um problema; na medida em que, os agitadores, na sua luta por justiça, de facto têm um objectivo em mente que não é verdadeiramente a procura de justiça ou a obtenção de direitos, é sim perceber quanto dinheiro podem ganhar na negociação com o governo. Portanto, todo o significado e perspectiva de justiça e do que são os direitos dos cidadãos estão a ser mercantilizados, no sentido em que as pessoas negoceiam por dinheiro. Onde é que isto nos vai levar então? Qual será o resultado desta desresponsabilização do Estado? O Estado está, na verdade, a perder a sua legitimidade. Descrevo isto como estado ansioso versus sociedade agitada, o que significa que o Estado estará muito ansioso a tentar lidar com esta sociedade cada vez mais zangada. A violência nunca está longe das suas opções, recorrendo também a acções paramilitares para intimidar. Estas pessoas sabem quando queixar-se, quando fazer acções de protesto. Sabem que a alternativa a recusar a oferta financeira do Estado é enfrentar a sua violência. Neste quadro, estão prontos a aceitar o acordo com o Estado e sabem também que esta negociação faz parte da rotina. Quando se refere ao Estado, refere-se também ao Partido Comunista. Pode falar-nos um pouco sobre como o partido realmente usa o capitalismo ou o sistema económico para permanecer no poder? É uma bela questão. A característica das reformas do mercado chinês é o partido usar a força do mercado para reforçar, para fortalecer o seu controlo sobre o Estado, controlando os recursos, não apenas incorporando-os e colaborando com o capitalismo, mas transformando-o no capitalismo mais formidável, focando o seu controlo nos sectores estratégicos, fundindo grandes empresas

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estratégicas detidas pelo Estado em aglomerações, grandes grupos de empresas, etc., em sectores estratégicos como a energia, telecomunicações, para não falar na defesa, entre outros. Portanto, com estas formas de concentrar os recursos económicos com a estratégia de desempenhar o papel mais importante e dominante num mercado em expansão, o Estado encontrou uma forma de integrar os interesses das elites políticas e económicas que assim, são, simultaneamente muito mais leais ao Partido Comunista. O partido tem uma organização racionalizada para garantir que as pessoas mais jovens e mais talentosas continuam interessadas em servir o Estado e também partilham o interesse e o objectivo do Estado em continuar com a expansão económica. Então esta crise social é o resultado de uma acção deliberada da elite chinesa? Pode dizer-se que sim. No entanto, parece-me que não se trata de uma acção assim tão deliberada, mas quase inevitável. O resultado disto é a expansão económica, apoiada por esta estrutura política que integra fortemente as elites políticas e económicas, sob organização e coordenação do Partido Comunista Chinês. Retomando uma perspectiva mais global: como é que os chineses olham para a luta pela sobrevivência económica dos Estados Unidos e da Europa? Há um romance interessante publicado em 2010, The Era of Prosperity, uma espécie de sátira que retrata muito bem como é que o Estado-nação chinês, o Partido Comunista e também os representantes do Estado se vêem a si próprios como novo modelo de desenvolvimento. Quando os líderes chineses vêem o que acontece especialmente na Europa e nos Estados Unidos, consideram que finalmente encontrámos a nossa posição no mundo, como novo modelo, não apenas enquanto líderes, mas mostrando de facto às pessoas um ponto de viragem no desenvolvimento. Não

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temos a certeza de que este seja realmente um caminho alternativo, mas dá de facto ao governo chinês — e, portanto ao seu nacionalismo — um grande estímulo e uma imagem de autoconfiança. Por isso, os chineses dizem: “Bem, viram o que aconteceu aos Estados Unidos e à Europa, e nós ainda nos mantemos firmes e podemos mostrar ao mundo o que conseguimos e podemos fazer”. Esse tipo de imagem, retratada sobretudo pelo Estado, foi muito apoiada por bastante gente na China e ajudou o Estado chinês a prosseguir com a sua estratégia. Também do que percebemos a partir de outras comunicações apresentadas nesta conferência, parece que a Europa e os Estados Unidos estão a perder a sua fé no progresso. E a China? É uma boa pergunta. A China não. Bem pelo contrário; sinto que esse tipo de optimismo ainda é muito forte. As pessoas ainda sentem que o futuro será melhor que o presente, continuam a acreditar no futuro. Não é muito diferente do tempo em que os Estados Unidos atravessaram o seu período de grande expansão. É por isso que o investimento imobiliário manteve o valor. O valor da propriedade aumentará sempre, é uma poupança para o futuro. A ideia da bolha não é… As pessoas falam disso nos jornais, os economistas também, mas de certeza que os pessimistas têm uma voz muito mais fraca que os impulsionadores do crescimento. Com uma distância mais académica, como vê o futuro da China? Estou muito preocupada. Para começar, com a questão da actual situação financeira, da sustentabilidade para continuar com estes projectos de investimento em larga escala, assentes em dívidas enormes. E estou ainda mais preocupada com o lado social das coisas. A distribuição é um problema, este expansionismo baseado no deslocamento de pessoas, também usando a pobreza, a terra tirada aos agricultores como garantia, mais empréstimos bancários

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para financiar este tipo de projectos expansionistas. Não vejo mesmo como será socialmente sustentável, como financeiramente sustentável. E se social e financeiramente isto é um problema, pergunto-me como é possível sustentá-lo politicamente. E esta é a preocupação central do Partido Comunista Chinês. E pessoalmente, como experiencia a crise? Eu não vivo na China, a minha família está em Taiwan, onde trabalho como investigadora. Muitos amigos meus estão lá. Sempre que lá vou, reparo que os apoios para investigação que recebo da minha universidade americana parecem ter encolhido. Os fundos não conseguem acompanhar a inflação que se verifica na China. Cada vez que lá vou, a minha conta de hotel aumenta. Quando compro livros, viagens, bilhetes de avião, para todas essas coisas muito simples, é como se o dinheiro tivesse encolhido. Mas isto não é nada, comparado com muitas outras pessoas que realmente sentem a crise. Sobre a rede Aftermath, qual lhe parece ser a noção comum, entre todas as comunicações apresentadas nesta conferência? Penso que há a percepção de como os intelectuais têm não apenas curiosidade sobre as mudanças que acontecem à nossa volta, mas também um sentido de responsabilidade. O que podemos fazer, como podemos compreender isto melhor? Quer sejamos ouvidos ou não, claro que é uma preocupação, e devemos pelo menos tentar compreender melhor, talvez fazer algumas sugestões sobre o que aconteceu. Quais são os mecanismos que nos conduziram a onde estamos? E depois, esperemos, poderemos sugerir possíveis maneiras para lidar com a situação. Sinto que o sentido de responsabilidade intelectual é muito forte entre os participantes.

A crise e o obstáculo inevitável ao progressivo avanço do capitalismo Conversa com Sarah Banet-Weiser, professora de Comunicação

Interessa-me ver como a publicidade tenta fazer um rebranding da crise como obstáculo inevitável ao progressivo avanço do capitalismo, um obstáculo que os indivíduos são chamados a vencer, por obrigação moral e nacional. Recentrar a narrativa desta imagem de marca no papel individual dos cidadãos da nação, em vez de uma narrativa da crise enquanto forma de destabilização, é uma maneira de reafirmar o controlo cultural. Apublicidade é um veículo central e particularmente rico para o fazer. A crise económica de 2008 tem a ver com muitas coisas, uma das quais a falência das marcas. No rescaldo da crise, o esforço das empresas atingidas não foi apenas uma tentativa de reconquistar a confiança dos consumidores em automóveis ou calças. Tornou-se mais importante saber como restaurar a confiança nas marcas, no mercado, na verdade, no próprio capitalismo neoliberal. Que melhor forma para os Estados Unidos restabelecerem a confiança dos consumidores do que posicionar esta crise como marca? Uma marca que tem a ver com a América, com o consumo dos cidadãos, com o inevitável triunfo do capitalismo. (Excerto de uma das contribuições de Sarah Banet-Weiser para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Pode, antes de mais, explicar o seu papel na rede Aftermath? Qual é a sua formação? 99

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Sarah Banet-Weiser Sou professora de Comunicação, não sou socióloga, e desenvolvo estudos de análise cultural e economia política sobre indivíduos e comunidades como comunidades de género, raciais, etc. O meu papel é o de alguém que escolhe uma abordagem cultural em vez de social e o meu enfoque é nos meios de comunicação. Trato de como reagem os media à crise económica, como foram parte dela, como se conjuga isso tudo, etc. Portanto, em vez de uma abordagem social ampla, a minha é mais específica, de análise cultural. Como caracteriza esta crise? Que tipo de crise é esta? Diria que não há uma forma única de caracterizar esta crise. Não pretendo dar uma resposta simplista, mas poderemos dizer que se trata de uma crise financeira versus económica, o que já muitas pessoas disseram. Faz bastante sentido, porque tratou-se realmente do colapso do sistema financeiro global. Mas um sistema financeiro global nunca existe no vácuo, nunca existe por si próprio, nem a economia, nem a cultura. Portanto, é uma crise cultural. Uma crise social, financeira e dos indivíduos, no sentido em que o tipo de ambiente de política económica em que vivemos está tão centrado no indivíduo e na identidade individual que isso se tornou numa espécie de crise de identidade para os indivíduos situados neste contexto. Portanto, é tudo isto, profundamente inter-relacionado e multi-nivelado. O que significa para si “aftermath”? Provavelmente já ouviu muitas coisas sobre como tentámos pensar num nome que definisse o nosso grupo. E pensámos em “aftermath”, porque queríamos pensar um pouco sobre o estado da cultura depois da crise económica de 2008. Mas é preciso que fique claro que “rescaldo” não significa “pós”. Não significa que acabou, que nos podemos sentar, olhar para o que aconteceu e

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para as suas repercussões e impactos. Não sabemos que repercussões virão. Elas mudam todos os dias. Não sabemos que impactos terão. Portanto, para mim, “rescaldo” é algo de dinâmico, representa um olhar para as coisas que mudam todos os dias, em vez de olhar para elas como se já tivessem acontecido. O momento continua a acontecer. “Rescaldo” é o facto de o momento continuar a acontecer e de termos que pensar nessas mudanças todos os dias, em vez de partir do princípio de que sabemos o que são. Na sua comunicação, citou alguém que afirmou que “a publicidade é a forma do capitalismo dizer ‘amo-te’ a si próprio”. Depois, fala sobre como esse amor é re-imaginado. O que quer dizer com isso? Cito o sociólogo e estudioso da comunicação Michael Shedson, que há 30 anos escreveu sobre publicidade e sobre o que ela faz e não faz. O seu argumento era essencialmente que a publicidade não leva necessariamente as pessoas a comprar coisas; o que faz é estabelecer uma espécie de ethos ou ideologia do capitalismo. Vende o capitalismo. É por isso, como a descreveu, uma mensagem de amor do capitalismo para si próprio. Acho interessante é que actualmente — 30 anos depois de se ter escrito isto —, a publicidade não é tanto o capitalismo a dizer que se ama a si próprio, mas antes uma tentativa de estabelecer e criar relações com os consumidores e produtores, uma espécie de relação amorosa em que os consumidores também são envolvidos na dimensão afectiva e emocional com os anúncios. Portanto, depois da crise, pelo menos nos Estados Unidos, o que a publicidade precisava de fazer era restabelecer esta ligação emocional; e trabalhou arduamente para restabelecer esse amor. Já não era apenas o capitalismo a dizer que se amava a si próprio, era o capitalismo a dizer aos consumidores que os ama e os consumidores a corresponderem. Era um caso de amor, e não apenas uma compreensão narcisista do amor.

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E como é que as marcas nos Estados Unidos usaram a crise na sua publicidade? Como fizeram as marcas americanas? A publicidade respondeu diversamente nas diferentes crises económicas. Na Grande Depressão dos Estados Unidos, nos anos de 1930-40, houve toda uma movimentação para os anúncios falarem sobre austeridade, sobre ser poupado e não ser faustoso, etc. Durante as recessões dos anos de 1970-80, os anúncios responderam de forma diferente. Agora, no século XXI, penso que o que as marcas fazem é mais do que anúncios. Vão para além dos anúncios, para estabelecer o facto de que a crise foi algo inevitável. Por outras palavras, que foi apenas um momento no grande progresso do capitalismo. Portanto, o que os consumidores precisam de fazer é de, individualmente, descobrir um caminho — sem a ajuda dos governos ou de outros, mas individualmente —, uma forma não só de resgatar a crise, mas de se resgatarem a eles próprios dela. É assim que estas marcas passaram a usar a crise, como momento de oportunidade para reconquistar a confiança e lealdade no capitalismo. Esta crise é a morte do capitalismo? Alguns disseram… Certamente que as grandes marcas dos Estados Unidos e as marcas globais não querem que seja. Não vejo isto como a morte do capitalismo. Vejo como forma em que os anúncios — e penso nos anúncios da Levi’s — recorrem a uma espécie de tom apocalíptico, uma espécie de sentimento de zona de guerra na estética do anúncio, que sugere que deveríamos estar cansados. Que não deveríamos simplesmente continuar como sempre fizemos. É uma espécie de “puxa por ti próprio com o teu próprio esforço, adopta um tipo de capitalismo mais magro”. Não é de todo sobre a morte do capitalismo, não para estas empresas, nem poderia ser, porque depois não teriam porque existir. Mas eles também sabem que não podem simplesmente continuar como antes de 2008.

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Portanto, a retórica dos anúncios no pós-2008 é sobre o capitalismo, mas sobre uma forma de pensar o capitalismo que mudou, que se foca no indivíduo, no trabalho e no trabalhador. É uma espécie de versão mais simplificada e austera do capitalismo. Pode descrever o anúncio da Chrysler, no Super Bowl? E como se debruçou sobre ele? Que é que pensou quando o viu o anúncio? O anúncio da Super Bowl foi um anúncio da Chrysler, em Fevereiro de 2010. Só para contextualizar: nos Estados Unidos, os anúncios exibidos durante o Super Bowl são os mais vistos todos os anos, porque o Super Bowl tem mais audiências de televisão que qualquer outra coisa. São inacreditavelmente caros e muito criativos. Não sou fã de futebol americano, mas faço estudos de media e dou aulas sobre publicidade, e por isso assisto ao Super Bowl para ver os anúncios, como muita gente faz. Portanto, vi o Chrysler Super Bowl quando assistia ao Super Bowl. O anúncio é uma homenagem a Detroit. Apresenta o cantor de hip hop Eminem e a sua canção “Lose Yourself” e é uma espécie de ícone, uma canção sobre Detroit, retirada de um filme e álbum que ele fez sobre a cidade. E o anúncio era totalmente sobre o rebranding de três coisas: da cidade de Detroit; da marca Chrysler (que é uma das três maiores empresas de automóveis e foi uma das primeiras a pedir ajuda financeira ao governo dos Estados Unidos); e do capitalismo, imaginado nestes anúncios da forma que já descrevi, mais magro e mais austero. Temos então este tipo de comunhão: é um bonito anúncio, em que se encaixam imagens nostálgicas de Detroit e uma mensagem a dizer que Detroit não é uma cidade de ostentação. Diz explicitamente “Isto não é Sin City”, referindo-se a Las Vegas, ou “Isto não é Nova Iorque”, referindo-se à opulência e à riqueza de Nova Iorque. E diz: “Esta cidade não é a esmeralda de ninguém”. Portanto, fazem este gesto muito específico no sentido de mostrar uma cidade onde não há ostentação, que não é rica. E depois dizem que esse é o motor da cidade, é o que fazem. O anúncio é sobre

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trabalho, numa espécie de tempo mais simples. Faz o rebranding do capitalismo nesta moldura nostálgica, dizendo que isto é o que temos que fazer agora. E teve a cobertura dos media americanos, foi quase ele próprio um evento televisivo, por ser tão cativante, e tem até agora 12 milhões de visionamentos no YouTube. Captou o interesse da imprensa, as pessoas escreveram sobre ele na blogosfera, atraiu de facto a atenção nacional para Detroit. Porquê tanto sucesso? Penso que terá sido em parte porque os cidadãos dos Estados Unidos estavam muito conscientes do facto de as três grandes empresas automóveis, ou a própria indústria, terem dado os primeiros sinais da crise, com os seus fracassos. A General Motors revelou a dimensão deste problema. Esta empresa de automóveis foi a primeira a enfrentar a eminência da bancarrota e a pedir ajuda financeira federal. Quando a indústria automóvel fracassou de forma tão espectacular, sentiu-se que era o fim de alguma coisa, e era de facto. Também foi o início de algo: da crise económica global. Mas este anúncio teve sucesso por ter pegado numa dessas empresas e no que toda a gente sabe: é uma cidade cercada de problemas — sempre foi, ao longo de muitos anos —, a cidade que em determinado momento foi a cidade motor, onde Henry Ford abriu as suas fábricas, a cidade MoTown. Dançando nas ruas. Tem todas estas referências históricas e agora está extremamente deprimida economicamente, é uma das cidades economicamente mais deprimidas dos Estados Unidos. O sistema escolar está em completa desordem, a tensão racial é um problema em cada zona da cidade. O governo e as instituições governamentais não estão a funcionar, a taxa de desemprego é mais elevada do que em qualquer outro lado, há casas abandonadas por toda a parte, de certa forma, parece uma cidade fantasma. No imaginário dos Estados Unidos, Detroit corresponde à ideia de uma cidade mais ou menos muito deprimida. Aparece então este

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anúncio, muito bem filmado, a mostrar imagens do passado, como a dos murais de Diego Rivera, a avenida Woodward, o teatro Fox… Mostra todas estas imagens nostálgicas e diz: “Estamos de volta”. De volta a um tempo simples, podemos fazer isto, reconquistar a confiança. Não temos que estar Las Vegas, Nova Iorque, Los Angeles. Somos apenas a pequena e velha Detroit e “Somos pessoas de trabalho, trabalhamos no duro. As pessoas que escrevem sobre nós e dizem que estamos de rastos, nunca cá estiveram”. O anúncio diz que estas pessoas não percebem do que estão a falar, que não sabem o que se sente estando em Detroit. Por isso, foi eficaz a nível emocional para os americanos, mesmo não sendo de Detroit. É a quintessência da mitologia americana. A história de Horacio Alter: erguer-se a si próprio pelo esforço, encontrar a sua própria saída. É isto que somos - trabalhadores -, e temos uma cidade industrial para o demonstrar. E o anúncio serviu-se do Eminem, que é muito popular, e tocou na ferida, na paranóia em torno da deslocalização do trabalho para fora dos Estados Unidos, pois o slogan “Importado de Detroit” atinge-nos a vários níveis, emocionais e afectivos, que tocam os sentimentos de insegurança e nervosismo com esta crise. Mas porque é que as pessoas acreditam nisto? Sabem que Detroit está em apuros, perderam os seus empregos, as casas desvalorizaram-se… Porque é que o anúncio funciona? É tão espantoso! A questão é como é que funciona, mais do que porquê. Não penso que alguém vá comprar aquele carro. Nem sequer sei que carro é… Ou melhor, sei, porque escrevi sobre isto. Não é um carro particularmente bom. Não acho que as pessoas pensem que o devíamos comprar, apesar, devo dizer, de as vendas da Chrysler terem aumentado depois do anúncio, segundo a própria empresa. Mas não penso que a questão tenha a ver com comprar produtos, nem sequer penso que tenha a ver com comprar o anúncio. Estamos em 2011. Os públicos sabem lidar

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relativamente bem com os meios de comunicação e criam os seus próprios anúncios permanentemente. São consumidores que, graças ao do it yourself, geram conteúdos. As pessoas estão a criar os seus próprios media. Não precisamos de anúncios, não têm o poder de nos persuadir que já tiveram. Então porque é que este funciona, neste momento particular? Penso que os anúncios têm uma qualidade efectiva quando as pessoas se sentem vulneráveis. E os americanos, como praticamente toda a gente no mundo, estão a sentir-se inacreditavelmente vulneráveis neste momento. Por todo o país, os americanos perderam a confiança num presidente que lhes prometeu esperança e mudança. Mas não temos visto muita mudança, estamos a perder a esperança, a recessão económica continua… Sim, vislumbra-se que as coisas começam a voltar ao que eram, mas é um sentimento muito ténue. Os preços das casas estão baixos. Ou seja, estamos muito vulneráveis e este anúncio foi apenas como que um registo, a um nível afectivo, desta espécie de deserto estético do pós-crise com que nos podemos identificar e ser conquistados. Portanto, para a questão de como é que funciona, não estou certa que haja uma resposta. Não sei como funcionou. Mais de 12 milhões de pessoas viram-no no YouTube. Nestes meses que decorreram desde que escrevi esta comunicação até agora, juntaram-se mais dois milhões a esse número. Não está a diminuir. As pessoas deparam-se com coisas que por sua vez vão desaguar noutras, como se fosse tudo uma espécie de efeito onda, e este é um sentimento — especialmente agravado pela crise — que os Americanos não querem sentir. Não é cínico uma empresa que escapou da falência graças ao resgate de 15 mil milhões de dólares vindos do bolso dos contribuintes gastar 9 milhões num anúncio que, de certa forma, celebra a crise? Sim, é cínico e hipócrita. Não apenas por terem gasto 9 milhões neste anúncio, depois de terem pedido ajuda de 15 mil milhões, mas também porque a indústria automóvel em Detroit, em

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geral, desincentivou a diversificação da economia na cidade, o que foi uma das razões para ninguém ter emprego quando deixaram de funcionar. Não havia outra indústria, ou havia muito pouca, para as pessoas encontrarem emprego. Para além do mais, a maioria da empresa Chrysler não é detida pelos Estados Unidos. A outra campanha publicitária de que falei, a da Levi’s, faz um apelo semelhante aos americanos e aos produtos americanos, mas a Levi’s não tem sequer uma fábrica nos Estados Unidos. Portanto, de uma série de formas, estes anúncios e a sua retórica entram em contradição. Laboram na contradição, sempre foram hipócritas; sempre soubemos, ou deveríamos saber, que por comprar um Ferrari vermelho não conquistamos a mulher mais bonita do mundo, ou que se usarmos Axe as raparigas não vão começar a cair aos nossos pés porque somos maravilhosos. Sabemos isto, os anúncios não são feitos para nos convencerem a acreditar nesta retórica. Este também não funciona dessa forma. Mas toca numa espécie de paranóia mais vasta, na insegurança, na vulnerabilidade. E as suas imagens e música, a sua narrativa, funcionam no sentido de tentar tranquilizar essa vulnerabilidade. Teria funcionado se em vez de um Chrysler 200 de luxo tivesse sido usado um carro pequeno, económico, amigo do ambiente? Como um Prius? É interessante. Porque o carro, do meu ponto de vista, não é um carro que cause grande impressão, mas no anúncio parece impressionante: muito preto, muito brilhante e surge na imagem descer a Woodward Avenue com imponência, como se fosse a dizer “não te metas comigo”. Não é um Prius. Não é um desses carros amigos do ambiente que devíamos comprar, isto admitindo que compramos carro sequer. É grande, imponente, musculado. O anúncio é sobre músculos, afirma que Detroit é cidade de músculos e de trabalho duro. O trabalho nos Estados Unidos. O anúncio explora de forma interessante a classe trabalhadora americana, de uma forma que

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historicamente os anúncios nunca usaram muito, pois têm sido muito mais sobre a classe média. Este é mesmo sobre o trabalhador, a classe trabalhadora, e encara esse aspecto recordando às pessoas que o caminho pelo qual vamos sair desta confusão é o do trabalho. Considerando outras campanhas que estudou, como a da Levi’s, essa é mesmo sobre os trabalhadores, correcto? Sim, a campanha da Levi’s também foca de certa forma uma cidade, mas sem a especificidade de Detroit. Foca-se numa cidade, na Pensilvânia, que foi historicamente uma cidade movimentada pela indústria do aço. Perdeu 90% da sua população desde 2008, desde que a indústria do aço desabou nos Estados Unidos. Portanto, trata-se também deste tipo de esforço, de luta pela revitalização de uma cidade. Nos primeiros investimentos da Levi’s nesta campanha, foi usada a poesia de Walt Whitman. Ou seja, este produto americano por excelência, que carrega historicamente uma grande dose de nostalgia, liga-se a um poeta americano de excelência. E o anúncio é montado com uma locução em off, que se assemelha a uma gravação nostálgica da música “Oh pioneers”, para provocar ou activar uma espécie de sentimento de… O próprio poema di-lo: “Isto é o que fazemos. Apoderamo-nos do mundo. Isto é o que fazemos, saímos e trabalhamos, sem medo, fortes, poderosos”, e usa isto. Curiosamente, algumas pessoas acharam que a ideia de usar o Walt Whitman foi demasiado cínica, excessiva, que foi um esforço para transmitir sinceridade de uma forma despropositada. Então, no anúncio seguinte a Levi’s foi mesmo a Braddock, na Pensilvânia, filmou pessoas reais e usou-as no anúncio, em vez do Walt Whitman e do Eminem, como forma de focarem a classe operária dos Estados Unidos, os trabalhadores de colarinho azul. A indústria do aço representa o trabalho de colarinho azul, a classe operária nos Estados Unidos.

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Na história do anúncio da Levi’s, quem leva com as culpas da crise? A narração do anúncio da Levi’s é feita por uma criança, o que imediatamente evoca inocência, pureza, esse tipo de alegria e admiração infantil. No anúncio, a criança diz que alguma coisa se estragou e que é preciso arranjá-la. É impressionante na sua abstracção. Não foi a ganância das empresas, não foi a falência dos bancos, não foram os bancos a enganar a classe operária. Foi apenas alguma coisa que se estragou. O anúncio abstrai completamente a crise de qualquer tipo de culpas individuais, institucionais ou do Estado. Diz que alguma coisa se estragou e imediatamente a seguir que temos que a consertar. E depois invoca a linguagem da fronteira. As pessoas dizem que já não há fronteiras, mas há fronteiras a toda a nossa volta. É o que a voz do narrador diz. Portanto, usa a crise económica como outra fronteira. E uma vez mais na ideologia, na história e na mitologia dos Estados Unidos, a imagem e o conceito de fronteira continuam actuais. E isso é alguma coisa, é do que se trata nos Estados Unidos, nesta mitologia. O anúncio usa então essa ideia para reformular e dar nova imagem à crise. E era a América, o símbolo da América que se afundava? Sim, um dos anúncios começa com um sinal de néon — a que chamaremos o sinal da América —, que falha, acende-se e apaga-se, porque está avariado. Nesse sinal, que, literalmente, se afunda numa piscina de água, lê-se “Estados Unidos da América”. Esta é a abertura do anúncio. No fim, vê-se o sinal de néon fora de água, bem iluminado, aparentemente reparado. Portanto, uma vez mais, é um esforço da Levi’s não apenas para relançar a marca. A Chrysler também não estava apenas interessada em relançar a sua marca depois do colapso. Trata-se de dar uma nova imagem à própria crise, como coisa que não tem a ver com culpar os bancos ou o Estado. A ideia é dar à crise uma nova imagem, marcá-la como oportunidade, uma

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espécie de caminho que podemos percorrer enquanto cidadãos e salvar-nos a nós próprios, a nação e o capitalismo. Uma tentativa inteligente e deliberada de o fazer? Não sei se é uma tentativa deliberada e inteligente. Voltando à questão anterior, é impossível para mim dizer se os anúncios funcionam ou não. Porque funcionam a um nível ideológico. Certamente que existem movimentos alternativos e estilos de vida diferentes no pós-2008, mas, em geral, a população está de facto preparada para relançar o capitalismo. E para regressar ao momento em que sentia que os bancos e o Estado a tratava bem. E a forma que estes anúncios sugerem para alcançar esse desejo é o trabalho individual, o empreendedorismo individual. Uma vez mais, desvia as atenções de qualquer tipo de sistema social ou Estado, ou governo. Este esforço de imprimir uma nova marca, uma nova imagem, põe o seu enfoque nos indivíduos. Resolver o problema é uma obrigação nacional e moral para os indivíduos. É este o rescaldo da crise na América? O regresso do capitalismo com grande pujança e a crise como pano de fundo, um palco montado para histórias individuais heróicas? Certamente que é um resultado para o qual eu diria que os branders, as empresas de branding, marketing, relações públicas e publicidade empresarial estão a trabalhar arduamente. Estão a tentar assegurar esse resultado. Não é o regresso furioso do capitalismo, é o regresso do capitalismo sem fúria. Os anúncios da Levi’s são quase assustadores, a iluminação é difusa, escura, recorrem a uma câmara não profissional para evocar uma espécie de amadorismo, os cenários não são profissionais, ou seja, é o capitalismo dessa forma. Usa o medo e uma espécie de estética de zona de guerra para recordar a América de quão receosa deveria estar do capitalismo neoliberal não regulado. Portanto,

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não se trata do regresso pujante do capitalismo, mas do regresso de um capitalismo mais simples e mais austero. Isto podemos aguentar, em vez desta espécie de confusão desregulada que ninguém sabe como aconteceu. Mas aconteceu, e por isso agora vamos corrigi-la. É o que nos dizem estes anúncios. Em alternativa, podemos dizer que a Levi’s está a sentir o espírito dos tempos e a pressentir a chegada da revolução? Sim, penso que podemos. A revolução, como a revolução no capitalismo? Não, mas também há um discurso em crescendo sobre violência, lutas… É assustador, porque essa sombra de violência também paira sobre a sociedade… E as pessoas, como disse, estão tristes e deprimidas, mas também estão zangadas. E penso que isto também está implícito na mensagem da Levi’s, que poderá haver uma espécie de erupção. Sim, e penso que essa mensagem implícita é uma tentativa da Levi’s alcançar a autenticidade. Eles trabalham muito para serem uma marca autêntica em tudo o que fazem, não só nestes anúncios. Portanto, eles não querem suavizar a raiva das pessoas ou o medo, pois obviamente temos esses sentimentos por muito boas razões. Portanto, penso que tem razão: eles estão a sentir o espírito dos tempos, vêem a raiva e o medo e em vez de nos darem anúncios ridículos com animais fofinhos a cantar por cima das nossas cabeças exploram esse espírito, esse medo, essa raiva. Mas lembremo-nos que no fim do anúncio o sinal da América ergue-se. No fim, aparece música em crescendo e uma criança a dizer que as fronteiras estão em todo o lado. E as imagens mudam de edifícios abandonados, postes telefónicos austeros e um comboio de mercadorias percorrendo um campo vazio, para pessoas que se abraçam, crianças que saltam na cama dos pais. Imagens de esperança. Ou seja, nestes anúncios estão a

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jogar com as imagens, fazem render a “desolação chique” do pós-crise, o medo e a raiva dos cidadãos, mas ao mesmo tempo oferecem uma mensagem de esperança. A artimanha, o truque, é que esta mensagem de esperança, de recuperação se dirige ao trabalhador individual e a mais ninguém. Não é dirigida a uma revolta ou reforma institucional, nem a uma reforma do Estado, mas aos indivíduos. É a eles que cabe a tarefa de recuperação. Esta mensagem é muito clara nos anúncios. Sempre um final feliz? Sim, e que aponta para o indivíduo. Sempre um final feliz, mas que só pode ser alcançado através do indivíduo. Não através da comunidade, nem mesmo através da nação, mas através do indivíduo empreendedor. O que virá depois do rescaldo? Não penso que seja o sinal da América brilhante e iluminada, erguendo-se da água. É impossível prever o que vai acontecer. Do que sabemos com a participação neste grupo, há muitos pontos de entrada na crise. Globalmente. Diferentes nações, comunidades, políticos, têm diferentes maneiras de debater a questão e de pensar no impacto que terá. Como disse, duvido que as notícias que a imprensa se apressou a publicar proclamando o fim do capitalismo tenham algum fundamento. Tenho esperança que a própria crise proporcione oportunidades aos cidadãos de pensarem sobre a mudança social e processos de justiça de forma diferente da que tinham antes de 2008. Algumas pessoas do grupo falam dos “media sociais” como instrumento que permite exercer a cidadania, e por aí adiante. A minha opinião sobre este assunto é de que a forma como os Estados Unidos se posicionam no mundo está a mudar, tenho a certeza. Não estou segura do efeito que essa mudança terá, mas não será certamente o regresso ao tipo de poder que detinha na economia global antes da crise.

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É por isso que esta crise é diferente? Esta é uma das razões porque penso que esta crise é diferente para os Estados Unidos, em comparação com outras. Há mais razões, mas voltando à sua primeira questão — que tipo de crise é esta —, penso que é porque esta crise abrange muitas áreas da vida: social, cultural, individual, financeira, económica… É diferente na sua amplitude. É diferente no sentido de que estas camadas estão tão profundamente inter-relacionadas umas com as outras que não podemos realmente prever como é que algo que acontece na área financeira vai afectar a área cultural. Sabemos apenas que afectará. Há alguma ideia comum a emergir de todas as reflexões deste grupo tão diverso? Fazendo uma análise cultural da crise, existe alguma coisa com a qual concorde? Concordamos em que há uma crise. Penso que uma das coisas com que todos concordamos é que é muito vasta, global, que é algo com múltiplas camadas, que há muitas abordagens possíveis e penso que cada um de nós, para não ser redutora, tem um ponto de vista mais optimista ou mais pessimista sobre o que acontecerá. Mas, em geral, proporcionamos não apenas uma tentativa de explicação dos diferentes aspectos da crise, como também olhamos para práticas específicas que emergiram dela, como a prática de construir imagens sobre ela no meu caso ou as práticas da comunicação social, no caso de outros. Portanto, olhamos para ambas as explicações e práticas que daqui emergiram. Para si, que imagem simboliza a crise? Se pensar numa imagem que para si represente a crise, que imagem seria? Estou a pensar nos anúncios que vi, porque são imagens em que me foquei nos últimos meses. Para mim, não é tanto porque

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representam a crise, mas pela forma como as vejo, com a ideia de branding da crise, a imagem do néon “América” caindo na água e no fim reerguendo-se. Este tipo de trajectória: o trabalhador e a forma como ele é posicionado entre estes dois pontos. É de facto emblemática a forma como a publicidade está a marcar esta crise. Então porque não estamos a erguer-nos? Porque não há revolução neste momento da história? Não seria este o momento? Sim, pode ser o momento, e penso que em parte há múltiplas razões para perguntar porque não há uma revolução. E eu estou zangada, como muitas outras pessoas, pela ausência de uma revolução, e com o que se passa, e porque é que não nos revoltamos, mas penso que uma das razões é a crise não ter sido certamente o início deste foco implacável no indivíduo enquanto agente de mudança. Isto tem acontecido nas culturas ocidentais ao longo dos últimos 30 anos de capitalismo neoliberal. E portanto, essa ideia de que pode haver uma abordagem colectiva à mudança social, ou uma procura colectiva de justiça social, é mais difícil de ser apreendida pelos indivíduos, porque a ética é a de individualismo total e do indivíduo enquanto agente de mudança. Há formas pelas quais as pessoas estão a contestar isto, as pessoas estão revoltadas. Mas são esforços pequenos, mais concentrados. Não é a revolta ou revolução generalizada de que falava na sua questão, porque em tempos como este é muito mais difícil pensar em termos colectivos. Estamos nas trincheiras do neoliberalismo. Os tunisinos podem fazê-lo… Sim, é verdade. Não podemos certamente generalizar, houve diversos grupos que o fizeram. Nos Estados Unidos, durante muito tempo, não tivemos cultura de protesto. E penso que isso se deve em muito a limitações impostas aos indivíduos e a uma

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retracção das obrigações do Estado ou da sua responsabilidade de cuidar dos seus cidadãos. Nesse contexto, um grande protesto colectivo não faz para as pessoas o mesmo sentido que fazia

A América Latina: dependência e independência Conversa com Ernesto Ottone, politólogo

A América Latina enfrentou um desafio enorme na consolidação do desenvolvimento sustentável e em conseguir chegar a uma forma positiva e sustentável de integração no processo de globalização. Mas há algo novo: pela primeira vez, a actuação desta região face à crise global foi relativamente autónoma e bem-sucedida. Poderia dizer-se que estamos a deslocar-nos, ainda que apenas um pouco, da dependência para a independência. Existem motivos para pensar que a América Latina se poderá transformar num protagonista nos assuntos mundiais. (Excerto de uma das contribuições de Ernesto Ottone para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Professor Ottone, esta é uma crise mundial ou uma crise do Ocidente? Ernesto Ottone Começou como crise global, mas depois de 2008 vimos que em muitos países emergentes a crise passou depressa. É o caso da América Latina que, em 2009, sofreu uma contaminação da crise que se reflectiu na quebra da economia em -1,4%. Contudo, em 2010, o crescimento económico na América Latina era já de 6% e em 2011 e 2012 será de cerca de 4, 2 ou 4, 7%. Assim, podemos falar de uma crise global no início, mas actualmente o efeito da crise não é totalmente global. No início tratava-se de 117

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uma crise global, mas hoje em dia podemos observar que a crise decorre sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, e os países emergentes estão a passar por algumas dificuldades, mas não estão a viver uma crise. Porque é que estes países estão a ser bem-sucedidos a lidar com a crise? No caso da América Latina, por exemplo, a contaminação não foi financeira. A América Latina sofreu com o impacto da crise sobretudo a nível laboral, porque gerou mais desemprego, menos investimentos, em particular menos investimentos financeiros internacionais, e o mercado de exportações decresceu. Mas não se tratou de uma contaminação financeira, por isso não teve origem nos produtos tóxicos nos sistemas financeiros. Falando em termos de rescaldo, qual é o rescaldo da crise na América Latina? Se considerarmos que a crise decorreu em 2008, o seu rescaldo é a situação actual. Hoje em dia a América Latina está a crescer. O problema do desemprego foi superado. Temos o mesmo nível de desemprego que tínhamos antes da crise. No caso da América Latina, colocam-se dois problemas. Em primeiro lugar, se a situação dos países desenvolvidos, em particular dos Estados Unidos e da Europa, se agravar, irá afectar o desenvolvimento e o crescimento da América Latina. Em segundo, a América Latina terá que aproveitar o período positivo que está a viver para resolver alguns dos seus problemas estratégicos — por exemplo, o da indústria de transformação. A América Latina ainda é uma região que exporta sobretudo matéria-prima, e o valor das matérias-primas é, actualmente, muito elevado. Mas ninguém pode assegurar que continuará a ser. Assim, para que este processo seja sustentável, é necessário atribuir valor à produção. Há ainda outros problemas, como o da desigualdade e dos níveis de pobreza, que são muito elevados.

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Mas se olharmos para a desigualdade, consegue imaginar essa situação na Europa? As desigualdades na Europa poderão ser piores do que na América Latina? Não. Para mim é difícil imaginar, porque historicamente a América Latina sempre foi uma região de muitas desigualdades. Alguém afirmou que é a região com maiores desigualdades de distribuição de rendimentos. Não é bem assim, na medida em que a África subsaariana tem muito mais desigualdades. Contudo, a América Latina continuou a ser uma região muito desigual em termos da distribuição de rendimentos. Está muito distante da situação vivida na Europa. O coeficiente de Gini da Europa é de 0.34, enquanto o da América Latina é de 0.50. O que é o coeficiente de Gini? É um coeficiente no qual o 0 corresponde à igualdade completa e o 1 à desigualdade completa. Na Europa, este coeficiente ronda os 0.3 pontos percentuais, na América Latina 0.5. Está ligado aos salários, mas sobretudo à existência do Estado social. Na Europa, há muitos outros factores que contribuem para diminuir a diferença de salários. Poderia explicar como olha para a actual crise na Europa e nos Estados Unidos, da perspectiva da América Latina? Sente pena ou prazer? De maneira nenhuma. Não sinto qualquer prazer, na medida em que estamos muito ligados à Europa e aos Estados Unidos, tanto económica como culturalmente. Definitivamente, não olho para esta crise com prazer. Também não a encaro com pena, porque estamos muito longe do desenvolvimento. Hoje somos uma região de médio rendimento. Temos países com 15. 000 dólares per capita e outros que são muito pobres, como o Haiti. Por isso, ainda estamos muito longe dos países desenvolvidos. Alguns países

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aproximam-se do processo de desenvolvimento, mas outros ainda estão muito distantes. Não se trata, assim, de um problema de pena ou de prazer, mas de um problema de preocupação pelo que está a decorrer nesses países. Qual é essa preocupação? A nossa preocupação é a de que não podemos continuar com este tipo de sistema financeiro e este desenvolvimento da globalização sem regras. Foi a inexistência de regras que criou esta crise. Trata-se de uma espécie de economia de casino, como foi designada por Lord Cains. É uma economia na qual os jogadores estão a jogar sem que se esteja a desenvolver uma verdadeira economia no centro, mas na qual apenas se criam fortunas financeiras. Esta situação relaciona-se com a actual arquitectura financeira no mundo, que é completamente insuficiente. A falta de controlo, as empresas que estão a criar um movimento de fluxo financeiro, a ausência de sintaxes dos fluxos financeiros, enfim, um conjunto de questões que já foram mencionadas pelas Nações Unidas e pelos G20. Mas, até ao momento, não houve vontade política para colocar estas medidas em prática. Porque é que não há vontade política? Porque existem muitos interesses. Existem muitos interesses. Conseguimo-nos aperceber destes interesses neste contexto. Alguém está a ganhar. Alguém, algures, está a ganhar. Quem está a ganhar? Os capitais financeiros. Os bancos criaram uma situação péssima para os países europeus e para os Estados Unidos da América. Mas criaram uma situação de tal ordem que acabou por afectar também os cidadãos.

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Considera que esta crise resulta de uma acção deliberada levada a cabo por alguma elite financeira, ou trata-se de um erro sistémico? Quando se está a jogar sem regras, em benefício próprio, e se pensa que se é tão poderoso que os estados nunca nos hão-de abandonar — o que acabará por acontecer, porque os estados não o poderão continuar a permitir —, chegamos a este resultado que está a gerar um grande problema de coesão social. Hoje em dia, na Europa, em países como a Grécia, Portugal, Espanha e também Itália, existe um grande problema de falta de coesão social. O problema começou por ser geoeconómico e actualmente está a tornar-se num problema geopolítico e, claro, geo-social. Assim, dado que a América Latina teve êxito a lidar com a crise, o que é a Europa poderia aprender com a sua experiência? O que aprendemos na América Latina foi que nas primeiras fases da globalização sofremos muito, porque os nossos países estavam muito dependentes dos ciclos económicos. Quando se vivia um ciclo positivo no mundo da economia, crescíamos e gastávamos muito. Contudo, nos ciclos negativos, perdíamos imenso e tínhamos que cortar despesas. Vivíamos um contexto económico histérico. Passámos pela crise da Tequila, na segunda metade dos anos 1990, depois tivemos as crises na Ásia, na Rússia e na Turquia. Sofremos muito. Com excepção do Chile e, em parte, do Brasil, que tinham algumas políticas de contra ciclo. Não estaremos a cometer o mesmo erro na Europa, com estas políticas de cortes severos? O problema é que, em algum momento, teremos que cortar nos orçamentos. No entanto, se continuamos a cortar no orçamento até ao ponto em que a economia não consegue recuperar, temos de novo um problema. Não estou certo de que as actuais propostas e atitudes da União Europeia sejam as mais indicadas

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para os países que estão a passar por maiores dificuldades. Mas o que posso dizer é que, na América Latina, aprendemos que o sistema financeiro tem que ser controlado por regras, regras públicas, implementadas pelo Estado e é por esse motivo que desta vez não fomos contaminados. Assim sofremos muito nos anos 1990 mas, felizmente, aprendemos como lidar com esta situação durante o século XXI. No seu artigo, afirma que a América Latina se poderia tornar num novo protagonista nos assuntos mundiais. O que quer dizer com esta afirmação? A região, como um todo, pode desempenhar um papel muito importante num novo mundo com outras regras e outros tipos de globalização. Porque é que digo isto? Porque, pela primeira vez na nossa história, temos sistemas democráticos em praticamente todos os países da América Latina. Há democracias frágeis e com alguns problemas, há alguns países que têm democracias eleitorais, embora com alguns elementos de autoritarismo no governo, e outros países que estão muito avançados na implementação da democracia. Em segundo lugar, porque depois de muitos anos de discriminação, temos algum apreço pela nossa mistura cultural. Não temos o problema da religião. A América Latina tornou-se independente muito cedo, no início do século XIX, e a separação entre o Estado e a religião estabeleceu-se há muito tempo. Hoje, não temos religiões em confronto na América Latina. Existem, assim, muitos elementos que poderiam representar algum tipo de contributo. Um outro exemplo na área dos problemas ambientais. A América Latina produz pouco CO2. Por outro lado, tem a maior diversidade mundial e tem a Amazónia. Por isso é, sobretudo, parte da solução e não do problema. É por esse motivo que afirmo que actualmente a América Latina está em melhores condições históricas para ser parte activa do mundo. O problema é: em que mundo?

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A América Latina é então um dos vencedores da crise? Não falemos de vencedores, porque também sofremos o efeito do problema durante 2009. Mas, pela primeira vez, a região conseguiu derrotar a crise, o que é algo histórico para nós. Nunca tinha acontecido, por isso estamos muito felizes. Mas não significa que não tenhamos a consciência de que ainda temos muitos problemas. Sabemos que temos que utilizar este período positivo, enquanto o valor das matérias-primas se mantém elevado, porque a nossa riqueza não resulta da revolução técnica ou científica. Estamos muito distantes dessa revolução. Por isso, temos que aproveitar este momento para progredir na educação, nas políticas sociais e na indústria transformadora. Se não o fizermos, a situação favorável que estamos hoje a viver poderá, a breve trecho, tornar-se num período de prosperidade nostálgico e com muitos problemas no futuro. Há alguma imagem específica que poderia descrever esta crise? A imagem mais importante é a de que a humanidade não progride continuamente. A Europa estava numa situação muito forte — e continua —, mas actualmente está a sofrer. A imagem mais importante para mim é a de que muitos jovens na Europa pensam que as suas vidas irão ser piores do que as dos seus pais. E esta é uma questão muito séria para o sistema económico, social e político. Porque as pessoas têm medo do futuro. As pessoas têm medo do que está para vir. E, claro, esta é uma perspectiva pessimista. E na América Latina é diferente? Na América Latina as pessoas são diferentes. A juventude também tem problemas. Também querem mais. Querem uma vida melhor e com mais qualidade. Mas creio que acreditam que a sua vida será melhor que a dos seus pais. Dou o exemplo do

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Chile, o meu país. Em 1990 havia 200. 000 estudantes com o ensino superior num país de 17 milhões de pessoas. Hoje há mais de um milhão de estudantes no Chile. Sete em cada dez estudantes que frequentam o ensino superior são a primeira geração de estudos superiores nas suas famílias. E são estes que protestam, e têm razão em protestar, porque agora exigem um ensino superior de muita qualidade. Por isso também se trata de um protesto. Também estão indignados, mas é uma indignação diferente. Querem mais. Como disse um sábio francês no século XVIII: “Quando as pessoas têm mais, sentem o que lhes falta”. Mas este tipo de luta é diferente da luta que se está a viver na Europa. E quando olhamos para a conferência Aftermath e para todos os contributos dos seus participantes, que perspectiva partilham? Creio que a atmosfera é a melhor que se pode imaginar, porque se olhar para os artigos, em geral, pode ver que são muito críticos em relação a toda a situação, mas propõem mudanças. E a primeira mudança é a de que temos que imaginar que este tipo de globalização, este tipo de organização da economia mundial ou do sistema político, não pode ser considerado estanque. Temos que pensar em mudá-lo, e é possível fazê-lo. Podemos ter outro tipo de globalização e este debate centra-se nesta questão. Creio que é muito importante. Não se trata de uma visão nostálgica de que o passado era melhor, também não se trata apenas de uma visão pessimista. Trata-se de uma visão crítica, mas uma visão com novas propostas, e acredito que estas propostas são muito positivas para o debate de que necessitamos no mundo das ciências sociais e no mundo dos sistemas políticos e económicos.

A identidade de resistência versus a sociedade em rede Pekka Himanen, filósofo

A identidade de resistência atingiu a população em geral, que é mais e mais fortemente contra o actual modelo de desenvolvimento para uma sociedade global, que nos conduziu a esta crise, e no entanto está a ser usado como forma de sair dela. Um número crescente de pessoas discorda deste modelo de desenvolvimento e pede uma alternativa. Podem não ter elas próprias respostas, mas a situação não se resolve ignorando-as, o que é simplesmente uma forma de fortalecer as identidades de resistência contra a sociedade em rede. (Excerto de uma das contribuições de Pekka Himanen para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Lembra-se do momento em que pela primeira vez tomou consciência desta crise? Lembra-se de quando percebeu que esta crise estava a acontecer? Pekka Himanen Claro que sabia e tinha ouvido falar do Lehman Brothers e de outras coisas que estavam a acontecer, mas para mim a escalada desta crise tornou-se muito clara no Fórum Económico Mundial, em Davos, onde a maioria dos participantes tinham sido efectivamente atingidos pela crise, que começou a evoluir de 125

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crise financeira para crise económica e depois para crise política e social. Acha que esta crise é diferente de outras anteriores? Há aqui várias coisas, e a primeira é que esta crise é comparável à Grande Depressão de 1929 e década de 1930. Prefiro chamar-lhe a Grande Recessão, pois não é apenas económica e financeira. A grande questão em torno desta crise — e o que diferencia de muitas outras — é a sua enorme componente política e social. Se olhar para o que está a acontecer agora no Sul da Europa, verá países à beira do colapso, mas também centenas de milhares de pessoas que manifestam a raiva nas ruas e praças das principais cidades desses países. Não foi assim nas crises anteriores? O que se passa é que o que vemos aqui é um questionamento maior e mais profundo do modelo de desenvolvimento, porque anteriormente, quando tínhamos uma crise, a ideia era: “Bem, resolvemos a situação imediata e depois voltamos ao caminho do crescimento”. Aqui, há um sentimento muito profundo de que todo o modelo de desenvolvimento chegou a um beco sem saída. Este pensamento generalizado e a sensação de que o caminho a seguir não pode continuar baseado no mesmo modelo de desenvolvimento são o que faz esta crise diferente. Para si, que imagem caracteriza esta crise? Para mim, é mesmo a imagem das manifestações da Praça Syntagma, em Atenas, e outras imagens semelhantes de Espanha e de Portugal. Porque esta crise passou claramente de uma questão financeira para uma questão social.

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Será também porque essas imagens representam a resistência contra a crise? Sim, essa é a parte muito importante e muito interessante da crise. Teoricamente falando, temos um choque real entre o modelo actual de sociedade em rede e a identidade. Portanto, não se pode compreender a reacção na Grécia, em Espanha e em Portugal a não ser como uma identidade de resistência contra a crise de legitimidade da entidade do modelo actual de desenvolvimento. O desafio é que, até agora, este protesto não foi suficientemente longe. O que quero dizer com isto é que este é um protesto um pouco paradoxal: opondo-se à sociedade global em rede, esta identidade de resistência também não é nacional. Também é um movimento transnacional contra o transnacionalismo ou um movimento global contra a globalização. Esta é portanto, a primeira parte do conceito de rede social global. Mas é um movimento que também está ele próprio a usar as mesmas ferramentas da sociedade em rede, contra a sociedade em rede. Por fim, há um terceiro paradoxo, que é o de ser um movimento social que não quer ter nada a ver com a sociedade. Portanto, um movimento político que não quer ter nada a ver com política. Estes são os três grandes paradoxos do movimento. O desafio será mover-se desta identidade de resistência para um novo projecto de identidade que crie de facto uma alternativa ao desenvolvimento da sociedade em rede, com um modelo mais sustentável, menos assente na dívida sistémica. Qual entende ser a proposta e o objectivo da rede Aftermath? É uma combinação muito especial de pessoas com experiências muito diferentes, e isto parece-me ser a maior riqueza do grupo. Temos um grupo, uma mistura de pessoas que não é habitual ver-se no mundo académico, o que nos dá a possibilidade de criar múltiplas perspectivas para a compreensão desta crise, de

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uma forma que realmente nos força a todos a ir mais longe nas nossas próprias abordagens para a compreender. Pensa que isso é necessário? Temos visto que as formas tradicionais de criar entendimentos não têm sido muito eficazes nesta crise, porque habitualmente provêm do mesmo modelo de desenvolvimento. O medicamento que propõem para esta doença está na verdade a contribuir para matar o paciente. São necessárias é abordagens que não venham de dentro do actual modelo dominante. Neste sentido, julgo que o facto de não sermos um grupo de economistas directamente envolvidos na crise já nos dá, em grande medida, uma perspectiva diferente. Tem esperança de que o que está aqui a ser feito, que as ideias que saem deste grupo influenciem de facto a realidade e o pensamento de outras pessoas? Claro que a nossa principal característica é sermos académicos e estarmos a tentar perceber o que se passa, mas penso que estes elementos que discutimos são realmente importantes. Se olhar para as manifestações nos diferentes países, verá que expressam em grande medida um forte protesto contra o modelo actual, mas por enquanto não dizem muito em relação ao que gostariam que fosse. Portanto, mesmo que se trate de um movimento em crescimento, na verdade o que tem de muito interessante é estar a desafiar pessoas de outros países europeus a juntar-se a ele. Isso começou, por exemplo, com os manifestantes em Espanha a dizer: “Silêncio. Os gregos estão a dormir” e os gregos reagiram em Atenas, colocando uma faixa em frente à embaixada de Espanha dizendo: “Os gregos acordaram. Que horas são? É hora de sair”. Depois exibiram mais cartazes que diziam “Silêncio! Ou acordam os italianos”, ou “Silêncio. Os franceses estão a dormir, estão a sonhar com o Maio de 68", a desafiar os franceses

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e italianos. E nós estamos a tentar pensar no que será necessário para avançar a partir deste ponto de protesto. Então, quais são as condições para a construção de uma alternativa? Concretamente, qual é o contributo da sua experiência para esta discussão? Que pontos de vista acrescenta? A minha abordagem liga esta forte identidade de resistência com a questão de como é possível desenvolver um projecto de identidade a partir daqui. Porque o que vemos agora é um círculo vicioso em que os países reagem cortando o investimento público, o que leva a uma redução do crescimento económico, que volta a reduzir as capacidades futuras de investimento público. Ou seja, tornou-se num círculo vicioso, para a economia e para o Estado Providência. A questão que levanto é a de como poderíamos formar um círculo virtuoso nesta crise, de modo a que investimentos adequados na educação, investigação e desenvolvimento pudessem criar condições para o futuro desenvolvimento da economia e isso pudesse continuar a financiar os investimentos públicos. Mas não apenas ao nível de uma ideia teórica, porque quero ser bastante empírico e portanto não quero analisar apenas qual é a resistência actual, mas também alguns casos da vida real em que alguns países reagiram à crise de forma alternativa. Portanto, reformulo aquilo a que no livro com Manuel Castells, A Sociedade de Informação e o Estado Providência, chamámos o “modelo finlandês”, que assenta nesta ideia de que se formarmos um círculo virtuoso… O que é o modelo finlandês? O modelo finlandês é a ideia de formar um círculo virtuoso entre desenvolvimento de tecnologias de informação — isto é, o crescimento da economia baseado na inovação, que criou coisas como a Nokia e muitas outras —, relacionando-o com o desenvolvimento humano ou do Estado Providência — que cria inclusão e

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também segurança básica. A economia da inovação torna possível o aprofundamento dos fundamentos do Estado social, também é um investimento que produz de facto pessoas com educação superior e boa saúde, com o sentimento de segurança, para continuar o sucesso da economia. Os tempos de crise são especialmente reveladores, porque o que acontece, se não se tem uma espécie de confiança na ligação entre estas duas dimensões, é uma reacção muito forte. Mas, por exemplo na Finlândia, continuou-se a investir fortemente na educação, particularmente aumentando o financiamento das universidades, ao mesmo tempo que outras coisas tiveram que sofrer cortes. Agora não há mais dinheiro para gastar, por ter sido gasto com os bancos? Num momento de dívida pública e défice orçamental, têm sempre de criar-se algumas políticas de cortes da despesa, mas ainda assim não pode ser indiscriminadamente, é necessário ser muito cauteloso, para não eliminar as condições de crescimento futuro, que estão especialmente na educação, investigação e desenvolvimento. Este investimento deve ser mantido. Não é expectável que a adopção de uma abordagem indiscriminada que apenas corta cegamente resulte em crescimento. Recomenda então o modelo finlandês como cura para esta crise? Tento ser muito cuidadoso para não me tornar normativo e quando uso o termo modelo — não é uma coisa que tenha que ser seguida. Mas o que o modelo finlandês mostra é que há formas alternativas de reagir a esta crise e de apostar na economia e na criação de bem-estar. Penso que a questão central que o modelo finlandês coloca para todos os países é a de como poderão criar a sua própria versão de um círculo virtuoso, e não vicioso.

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Como é que o modelo finlandês conseguiu resistir durante a crise? O modelo finlandês resistiu relativamente bem durante a crise. É verdade que a economia finlandesa também se retraiu em 2009, mas recuperou rapidamente e o crescimento está novamente acima dos 3%, o desemprego não explodiu — é de 7, 7% este ano —, e não tivemos crise dos bancos. O impacto para a Finlândia veio pelo colapso do mercado global das empresas finlandesas. Mas o investimento no modelo finlandês continuou de diversas formas, incluindo com investimentos na inclusão social, por exemplo, aumentando as prestações mínimas do apoio social em 100_ ou reformando o sistema fiscal para haver ainda mais inclusão e igualdade. Como explica a ascensão dos Verdadeiros Finlandeses, do partido nacionalista? Fundamentalmente, há duas formas de identidade resistente contra a actual crise global. Uma é o movimento que se chama a si próprio de “indignados”, no Sul da Europa, e o outro é a identidade nacionalista, que abrange todo um conjunto de movimentos, desde o Le Pen, na França, aos Verdadeiros Finlandeses. Portanto, na verdade, a questão mais importante é que, embora também haja xenofobia na origem desta reacção, o apoio aos Verdadeiros Finlandeses nas eleições parlamentares de há quatro anos chegava aos 4%. Agora, quatro anos depois, obtiveram 19% dos votos e tornaram-se no terceiro maior partido. Não chegaram ao governo, mas alguma coisa provocou o enorme crescimento da sua base de apoio entre 2007 e 2011 e, de facto, isto esteve muito ligado ao protesto contra a crise da Zona Euro e as coisas que estavam a passar-se em Portugal naquela altura, tal como antes haviam ocorrido na Irlanda e na Grécia. Portanto, percebe-se que há um protesto violento contra o desenvolvimento da sociedade global em rede, que pode adquirir muitas formas.

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Porque é que o protesto na Finlândia tem esses contornos, enquanto no Sul da Europa assume formas diferentes, como os “indignados”, um tipo de resistência mais orientado à esquerda? A questão principal é que depende da identidade dominante antes da crise. Na Finlândia, o paradoxo foi que primeiro se estava prestes a ligar a identidade finlandesa a este edifício da sociedade em rede ou sociedade da informação. Mas este projecto de identidade escondia a sua origem, que era uma identidade de resistência, porque se desenvolveu muito como identidade de sobrevivência. Portanto, tudo depende do tipo de identidade que liderava o desenvolvimento, antes da crise. Para a Finlândia, a Nokia era muito importante na construção desta identidade? Diria que a sociedade de informação se tornou no projecto de identidade nacional, ou seja, construir a nova versão moderna da Finlândia, que é uma sociedade de informação liderada por grandes empresas como a Nokia, ao mesmo tempo diferente de Silicon Valley ou de outros locais, porque ainda mantém o seu Estado Providência e uma ênfase no desenvolvimento humano e na inclusão social. Diria que esse foi o projecto que pôs em marcha o desenvolvimento finlandês. Como está a Nokia agora? A Nokia tem decididamente vindo a ser desafiada, isto é, o ambiente competitivo que se vive lá é completamente diferente do que vive a Google ou a Apple e muitos outros. Agora, já não se trata apenas de engenharia associada a telemóveis, mas também de criar e desenhar experiências para os utilizadores desta tecnologia e as ditas “aplicações”. A Nokia mudou definitivamente. Não sabemos o que daí virá — veremos nos próximos anos —, mas na Finlândia, este desenvolvimento das tecnologias da informação

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também se expandiu a outros campos para além da Nokia e por isso a Finlândia não está tão dependente da Nokia como estava, digamos, há dez anos. Foi pessoalmente tocado por esta crise? Fui pessoalmente tocado através dos meus amigos e pelo que lhes aconteceu, claro. Na Finlândia, o mundo universitário tem sido muito protegido mas, quando deixei o país até a população universitária experimentava a situação de forma muito forte. Lembro-me, a título de exemplo, do que se passou em Berkeley, sítio onde passei algum tempo; quando lá estive, assisti a fortes manifestações de estudantes e a situação é quase uma preocupação diária dos estudantes e também dos professores. Como vê o futuro? Para mim, o desafio é que agora temos a crise do actual modelo de desenvolvimento da sociedade global em rede, mas também esta manifestação é uma expressão dessa crise, portanto não nos estamos propriamente a movimentar para o que virá a seguir. Para mim, a grande questão é mesmo aquilo a que chamo a Grande Recessão, como a Grande Depressão. Para a Grande Depressão a solução que acabou por surgir foi o New Deal. E, em última instância, penso que teremos que construir um novo projecto de identidade, um contrato social que garanta uma vida mais digna, uma forma mais sustentável de desenvolvimento, da economia ao ambiente, ao bem-estar das pessoas, porque o que a indignação está realmente a questionar é o modelo que não está dirigido a todas estas questões, mas não estão a indicar soluções. Por isso, o que prevejo é um novo projecto de identidade que criará de facto este círculo virtuoso com mais dignidade.

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Há entendimentos comuns, neste grupo? Mesmo vindos de diferentes experiências académicas, e também de países diferentes, uma coisa surpreendente é que é clara a ligação a este tema e penso que concordamos que, em última análise, a dimensão social e cultural é crucial para a compreensão do que está de facto a acontecer — e está de facto a acontecer agora mesmo —, especialmente na construção de um caminho a seguir. Qual é a sua formação? É dupla: uma combinação de filosofia e ciências sociais.

A crise enquanto perturbação de um sistema em incerteza Conversa com Michel Wieviorka, sociólogo

Numa crise, a desordem e a rigidez andam enroladas. Mas a crise, na medida em que está sujeita ao desconhecido, acaba por deixar espaço para manobras, estratégias individuais ou a acção de uma minoria activa. A crise é uma perturbação de um sistema no qual surgem algumas incertezas, mas onde também existem novas oportunidades. A perturbação é dupla. Opera tanto na esfera da realidade social e no nosso conhecimento. Abre novas perspectivas na acção e na aprendizagem. (Excerto de uma das contribuições de Michel Wieviorka para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Lembra-se do momento em que se deu conta de que existia uma crise? Michel Wieviorka Claro que sim. Foi no momento em que o banco Lehman Brothers concentrava a atenção da imprensa e, simultaneamente, a ministra francesa da economia, actual presidente do Fundo Monetário Internacional, garantia que não estávamos numa recessão, que a palavra recessão era muito forte. Por isso, lembro-me muito bem desse período, porque muitas pessoas estavam enganadas. Compreendi aí que era muito importante discutir o que se estava a formar. 135

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O que pensou? Pensei que sou um cientista social. Não gostaria de ser como aquelas pessoas que estavam no salão de baile do Titanic e que dançavam no momento exacto em que o barco se afundava. Compreendi que era importante, que tinha que fazer alguma coisa. O que podia fazer? Ao longo de mais de um ano organizei um seminário para o qual convidei várias pessoas da área da indústria, dos bancos, dos sindicatos, da sociedade civil, os meus estudantes, etc., para desencadear a discussão sobre o que estava a ocorrer. Como é que se envolveu com a rede Aftermath? Sou um velho amigo do Manuel Castells, mas antes disso fui estudante em Paris, nos anos de 1970. Mantivemo-nos sempre em contacto. Um dia, ele decidiu organizar esta rede e propôs-me que fizesse parte dela, e eu aceitei, com muito prazer. Não se trata de uma conferência convencional, é algo diferente. É uma rede, um pouco secreta. O que tem de tão especial? A vida intelectual deveria ser mais vezes assim. Algumas pessoas, que pretendem lidar seriamente com uma questão importante, decidem encontrar-se para discutir o que escrevem. É uma óptima fórmula que utilizo para discutir outras questões. A decisão de discutir seriamente e com alguns colegas, alguns amigos, sem ter que se perder tempo ou fazer outras coisas que não se relacionem directamente com ideias intelectuais ou com a produção científica deveria acontecer mais frequentemente. O que espera que saia desta rede? Novas ideias, novas maneiras de abordar a crise, compreender melhor o que está em jogo e talvez compreender melhor o que poderia ser feito para além dela, ou para a ultrapassar.

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No seu artigo, afirma que a Sociologia tem estado, de certa forma, distante da análise da crise, o que já aconteceu na crise de 1929. Há poucos artigos de Sociologia sobre o tema. Porquê? Porque é que a Sociologia é tão hesitante em lidar com a crise? Em primeiro lugar, nos anos 1930 não havia tantos sociólogos como hoje. Talvez possamos esperar que hoje muitas pessoas possam lidar com a crise. Mas o problema é que a crise é uma surpresa, chega até nós sem a esperarmos. As pessoas não se apercebem de que a crise está a chegar e, de repente, têm que a enfrentar. Os sociólogos precisam de tempo para o seu trabalho e quando a crise está a chegar estão a trabalhar noutros temas. Assim, se estiverem a preparar um livro sobre religião, sobre as desigualdades sociais ou outro tema, de repente surge algo de novo, mas têm que concluir o que têm entre mãos. Apenas depois se podem dedicar a novos temas. Por isso, não há tantas pessoas disponíveis para o fazer. É por isso que este projecto é tão interessante. Todas as pessoas que estão envolvidas neste projecto estão dispostas a fazê-lo? Claro. O que é que esta crise tem de particular? Na sua perspectiva, o que é que a diferencia de outras? Em primeiro lugar, nos últimos 20 ou 30 anos, tivemos muitos anos de crise, incluindo crises financeiras ou económicas. Tivemos a Crise da Tequila, no México, a crise no Japão… Mas esta parece-me ser, numa primeira análise, uma crise global. Uma crise mundial. Por vezes, é global, por outras não é. Isto é fascinante. Por exemplo, a América Latina, a China e a Índia não estão tão preocupadas com a crise. A América do Norte e a Europa dizem que se trata de uma crise global, o que significa que

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talvez tenha algo a ver com enormes mudanças ao nível geopolítico. Significa qualquer coisa como se, devido a processos internos e à história, devido a processos internos, tanto nos Estados Unidos como em países como a Espanha, surgisse uma mudança mundial naquilo que até agora podia ser descrito como a hegemonia americana. Está a surgir algo de novo e é fascinante. É uma relação entre os problemas internos e a transformação geopolítica mundial do mundo global actual. Vivemos num mundo em que a América Latina, hoje, talvez amanhã a África e, claro, a China e a Índia serão os grandes centros. Não vivemos uma hegemonia americana ou europeia pura. Este é um dos aspectos muito importantes desta crise. Outro aspecto é que se compararmos esta crise com a Grande Depressão a solução será muito diferente. Na Grande Depressão houve duas soluções principais: por um lado, e simplificando, o New Deal, nos Estados Unidos; por outro lado, na Itália e na Alemanha, o fascismo e o nazismo. Claro que assistimos ao desenvolvimento de movimentos nacionalistas, claro que ouvimos algumas pessoas dizer que queremos retroceder no tempo, mas o que é muito importante é que temos novos movimentos sociais, actores que dizem, por diferentes motivos: “Queremos trazer algumas respostas diferentes para esta crise”. Isto também é muito importante, é a importância da cultura na resposta e talvez na origem da crise Esta manhã, Manuel Castells começou com o resumo do que foi dito ontem e mencionou a ideia de um sentido do fim, algo que Rosalind Williams também mencionou. Partilha desta imagem, do sentido de um fim? O que para mim é claro é que hoje muitas pessoas sentem que não sabemos para onde vamos. Não é como no passado, quando existia a ideia de um progresso enorme para a humanidade. Tínhamos a ideia de que os nossos filhos iriam viver num mundo melhor do que o mundo em que vivíamos, que iriam ter uma

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condição social melhor do que a nossa, que teriam acesso a mais estudos, melhor saúde, melhor habitação, etc. Hoje não sabemos. Muitas pessoas sentem que os seus filhos poderão viver em condições muito piores. O que está a acontecer é que estamos a perder todos estes elementos que dão algum sentido às nossas vidas. Algumas pessoas dizem: “O mundo está a chegar ao fim e não tenho nenhuma ideia”. Outras dizem: “Tenho uma ideia: a minha nação!” e tornam-se fortemente nacionalistas. Outras ainda dizem: “Tentarei encontrar em mim os recursos para construir uma nova vida através da minha própria subjectividade”. Temos diferentes respostas num momento em que é verdade que muitas pessoas sentem que algo está a chegar ao fim. Isto é verdade nos Estados Unidos, na Europa, hoje em Portugal ou na Grécia, por exemplo. Mas não é verdade na China, no Brasil, no Chile. Por isso, temos que estar cientes de que não é igual em todo o lado. E se pensarmos na “responsabilidade” pela crise. Trata-se de um golpe da elite? É claro que algumas pessoas estão a ganhar com a crise, outras estão a perder. Ou trata-se de um erro sistémico? É uma questão muito interessante e temos estado a discuti-la. Pessoalmente, não partilho a mesma opinião de alguns dos meus amigos. Não me agrada a ideia de que o sistema se está a desmoronar e de que não sabemos o que ele é, de que é algo abstracto. Não. Temos pessoas, actores, banqueiros, pessoas que vivem da finança, pessoas que organizam o sistema financeiro. Não afirmaria que o sistema é um sistema abstracto e que se está a desmoronar. A verdade é que não está, de todo, a desmoronar porque recuperou muito rapidamente. Creio que deveríamos tentar ver quem são os actores, os actores dominantes, os actores que estão a dirigir. Não tenho ideias muito claras sobre o assunto. E que relações existem entre estes actores, o Estado, o poder nas grandes empresas e por aí fora. É necessário e é muito importante fazer esta análise.

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Talvez também investigar? Sim, tem razão, quando digo analisar refiro-me a investigar. Como o trabalho antropológico sobre os bancos? Em primeiro lugar, não conhecemos muito bem as pessoas que trabalham nos bancos. Não temos uma imagem clara de como é que estas pessoas fazem dinheiro, o que querem, o que esperam da vida. E quem são estas pessoas? Como vivem? Sim, a antropologia poderia dizer-nos como vivem estas pessoas. Seria muito interessante perceber como funcionam, qual a sua concepção da vida? Sabemos muito pouco. Sabemos mais sobre quem protesta. Os “indignados”, em Espanha — sabemos muito mais sobre eles, sobre o que dizem, sobre quais são os seus valores, quais são as suas relações com o trabalho, etc. Pouco sabemos sobre os dominantes e talvez seja por esse motivo que lhes chamemos o sistema. Quando não sabemos exactamente quem são os actores, damos um nome muito abstracto e geral ao que fazem. Assim, a minha postura é a de que deveríamos transformar a imagem de um sistema na imagem dos actores. Quem está ligado, quem constrói o sistema? Mas, na minha opinião, o sistema não é nada de abstracto. Quem são os perdedores da crise? Em primeiro lugar, poderia chamar aos perdedores “vítimas”, porque os perdedores são as pessoas que tinham alguma coisa, mas perderam-na. Se visitar os Estados Unidos, é bastante fácil ver que muitas vezes as pessoas perderam as suas casas, foram obrigadas a abandoná-las porque não as conseguiam pagar, e mesmo que as devolvam serão obrigadas a pagá-las o resto da vida, porque têm dívidas. Existem muitas pessoas com dívidas enormes e não conseguem pagar qualquer tipo de alojamento. Vivem em caravanas. Estas pessoas são as primeiras que perderam as suas

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coisas, são as primeiras vítimas. Depois, há muitas pessoas que estão a perder os seus empregos, em muitos países. E também aqueles que estão com um nível de vida baixo, muito mais baixo, porque o seu rendimento já não é muito elevado — é o caso da Grécia, onde as pessoas não perderam necessariamente os seus empregos ou as suas casas, mas o seu nível de vida é muito baixo. Há muitos problemas como os que descrevi, por isso diria que não que há apenas perdedores, mas também pessoas que são vítimas destas mudanças. Se estas pessoas perderam muito dinheiro, também há outras que estão a ganhar muito, e por isso não gosto da ideia de um sistema abstracto. Para si, que imagem representa a crise? É uma questão muito difícil. No nosso encontro vimos fotografias que nos mostravam pessoas a ir ao banco levantar o seu dinheiro. Foi a primeira imagem. Depois, vimos outra fotografia de pessoas num local famoso, na Praça Syntagma, em Atenas, pessoas furiosas. Ou seja, não há uma imagem única. Se virmos a televisão, muitas imagens de pessoas que não sabemos exactamente o que fazem — por exemplo, as pessoas que pertencem ao sistema bancário, as pessoas que trabalham em Wall Street —, são também parte importante das imagens para compreender, ou para ter uma ideia do que está em jogo. Qual foi a resposta à crise em França? A França é um país com um Estado muito sólido. Este é talvez um motivo pelo qual a França não sofreu tanto. A França é diferente de outros países europeus, porque em comparação com Espanha, Itália ou a Grécia, no momento em que surge a crise, tem duas dimensões políticas diferentes. Tem organizações de esquerda com muitas pessoas que as seguem e também uma ala de esquerda que se está a preparar para as eleições presidenciais. Por isso, é muito diferente o que podemos observar num

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determinado país. Podemos afirmar que há alguma esperança política, e se existe esperança política não podemos afirmar que a política é totalmente má e que não temos nada a ver com ela. Assim, em primeiro lugar, em França existe alguma esperança na política. Como afirmei, ainda existe um Estado forte, o que significa que ainda existe algum Estado Providência, para a saúde, para as pessoas que são realmente muito pobres, etc. De outra perspectiva, também muito francesa, é a que a França é uma nação muito antiga e numa primeira reacção à crise surge também o apoio a um partido nacionalista. A Frente Nacional francesa é sólida e é muito importante revelar o que este partido político afirma: “A Europa não é boa para nós. É preciso terminar com a União Europeia. Precisamos de pôr fim ao euro e, claro, não gostamos de tantos imigrantes…”. Claro que não o dizem desta forma, mas está implícito. Não há assim tantos imigrantes em França, mas a primeira resposta é o nacionalismo. A segunda resposta é aquilo que poderia designar como indignação virtual. Se formos a Espanha, vemos muitas pessoas na rua, em Itália também, mas em França, não. Quando Stephen Hessel escreveu o famoso livro Indignai-vos, venderam-se muitas cópias, talvez um milhão ou mais. As pessoas compraram o livro e não fizeram nada. É muito interessante. Não temos assim tantos novos movimentos culturais, ou pelo menos não são visíveis. Temos uma espécie de indignação virtual e muitas esperanças políticas. Em Espanha e em Itália as pessoas vão para as ruas. As coisas são diferentes de um país para o outro. Qual é a sua expectativa ou estimativa quanto às redes culturais de pertença ou sobre as novas alternativas culturais em rede? Acredita que conseguirão utilizar a crise para expandir o seu alcance e para promover as suas ideias? As redes são para todos os grupos sociais, não apenas para as pessoas que menciona. Considero que estamos num mundo e em sociedades cuja base está cada vez mais em rede. É por esse

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motivo que aprecio tanto as ideias e o trabalho de Manuel Castells. As redes são o centro. É claro. Não tenho opinião positiva ou negativa. Apenas lembro que Manuel Castells costumava dizer que a internet, hoje em dia, é como a electricidade no passado. O que fazemos? Dizemos alguma coisa sobre a electricidade? Não, utilizamo-la como parte da nossa vida e isso permite que as pessoas se liguem entre si e construam redes e temos muitas redes. Mas o que é muito importante é que a rede não pode ser apenas virtual ou por telefone… Para mim, a sociedade em rede não significa menos encontros reais. Significa que as pessoas se encontram na Praça Syntagma, na Grécia, ou na Praça da Catalunha, em Barcelona — existem momentos em que as pessoas se encontram. Façamos uma comparação com a campanha eleitoral de Barack Obama. Quando ele era candidato, as pessoas diziam: “Oh, ele faz tudo através da internet, redes”. Não propriamente: usou muito a internet para possibilitar que ao nível local as pessoas se encontrassem e para ter alguma coisa para lhes dizer, para ter explicações para lhes dar e um modo de fazer perguntas. O que significa que a tecnologia permitiu às pessoas construírem redes, mas que há momentos em que temos que transformar em verdadeiras relações interpessoais as possibilidades tecnológicas para comunicar. E isto para mim é a sociedade em rede. Nas reuniões, salientou que a cultura da crise é também a cultura dos empreendedores. O que quer dizer? Não é uma ideia minha, mas é verdade que quando temos que fazer algo que o Estado não está a fazer por nós, quando precisamos de fazer alguma coisa, porque não se tem um emprego ou por outro motivo, talvez a única solução seja tornar-se num empreendedor. Mas este facto não está necessariamente relacionado com esta crise. Está relacionado, mais genericamente, com as dificuldades que algumas pessoas têm em aceder ao trabalho. Dou-lhe um exemplo da França, onde encontramos muitos jovens imigrantes, ou filhos ou netos de imigrantes, que são

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vítimas do racismo e que não conseguem encontrar um trabalho porque as pessoas são racistas e não lhes dão trabalho. Por isso dizem: “Está bem, vou criar o meu próprio trabalho” e tornam-se empreendedores. Ou seja, sim, há um bloqueio, há uma crise, há dificuldades, mas não é apenas a crise que explica que existam tantas pessoas que se queiram tornar empreendedores. Consegue imaginar uma explosão de violência em resposta à crise? Muitas pessoas pensam espontaneamente assim. A crise irá conduzir automaticamente à violência. Talvez um dia tenhamos violência, mas os processos são sempre muito mais complexos. Há um livro muito famoso para os sociólogos, escrito no início dos anos 1930, sobre uma pequena cidade na Áustria, Marienthal. Esta pequena cidade tinha uma indústria muito importante e um forte partido político social-democrata. Mas quando se instalou a crise muitas pessoas perderam os seus empregos. Não se tornaram violentos, mas ficaram incapazes de fazer qualquer coisa, muito cansados. Anos depois — e isto não consta do livro —, alguns deles tornaram-se nazis. Assim, a violência pode ocorrer, mas não é necessária. Não há determinismo automático entre a crise e a violência. As pessoas têm muitas formas de comportamento. Uma depressão clínica colectiva? Por exemplo. Mas também pode haver pessoas que se queiram tornar empreendedores, ou outras que dizem: “Está bem, não serei violento, mas confiarei num partido nacionalista”. Hoje em dia, na Europa, estes partidos são muito fortes, mas não são violentos, talvez por causa da imagem: na medida em que querem parecer respeitáveis, querem chegar ao poder através das eleições, não podem dizer que querem violência nas ruas. Assim, a violência não será necessariamente a consequência da crise, mas também poderá ocorrer.

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Revolução? A ideia de revolução tem mudado muito. No passado, a revolução seria a Revolução Francesa ou a Revolução Soviética. Seria uma revolução política e hoje em dia tem muito a ver com as ideias de esquerda. Depois veio o Irão e a Nigéria. A revolução tornou-se religiosa. Por isso é diferente. Depois, mais recentemente, temos todos estes movimentos nos países árabes e muçulmanos que as pessoas consideram ser também revolucionários. Sem qualquer violência. As pessoas dizem querer a democracia e que são contra a violência. Assim, o que é a revolução? Não é fácil uma resposta. Podemos, pois, chamar a novos movimentos sociais democráticos e culturais uma revolução, talvez possamos considerar que a revolução é feita por um conjunto de pessoas. Mas não vejo, hoje, em lugar algum, uma revolução como a que houve em França há dois séculos ou na Rússia há um. A crise atingiu-o pessoalmente? Afectou os seus rendimentos? Bem, pessoalmente sim, mas não como descreve. Não mudei a minha vida pessoal. Talvez tivesse que ajudar um pouco a minha família, mas isso não é tão importante. Mas mudou a minha vida, porque mudou as questões com que estou a lidar na minha vida intelectual. Decidi tentar analisar este novo fenómeno, por isso não estudei outra coisa. Esta foi a principal alteração e também sou da opinião que as ciências sociais devem estar ligadas à política. Não para serem conselheiros directos do poder, mas para exercer alguma influência sobre a vida política. Por isso, também mudou a minha vida, claro, pois não temos as mesmas ideias quando existe uma crise e quando não existe. Por fim, que ideia comum está a emergir deste grupo? Muitas coisas estão a emergir deste grupo. A ideia de mudanças a um nível geopolítico. A ideia de que a crise não é apenas

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financeira, nem mesmo económica. A ideia de que a crise tem dimensões sociais e culturais muito importantes, que foi o início da ideia. A ideia de que temos diferentes respostas para a crise. A ideia de que o mundo não está preocupado do mesmo modo com esta crise. Não pensamos exactamente da mesma maneira, mas há uma forte convergência entre as nossas análises. O futuro, o que sente para o futuro? Em geral? Considerando que está actualmente numa crise. Para mim, é muito claro. Considero que a crise é o contrário do conflito. Um conflito é uma relação entre actores. Social ou cultural. Assim, uma crise é quando não sabemos onde estão estes actores e não existe qualquer acção ou relação. Por isso, para mim, o futuro é quando tivermos cada vez mais actores sociais e culturais a afirmar que estão a protestar, negociar e que querem que ocorram mudanças, através de novas relações sociais. Para mim, o futuro é isto. Hoje não temos assim tantos actores, não em número suficiente e, quando existem, são actores numa crise. Isto é, actores que tentam reagir às mudanças na sua situação. Irão decorrer conflitos nos quais não iremos ter actores perante uma situação, antes actores perante outros actores. Por isso, espero que passemos rapidamente de uma crise para o debate e para o conflito. Para mim, esta é a maneira mais optimista de responder à crise.

Quarenta anos de minimização da solidariedade social Conversa com Craig Calhoun, sociólogo

A crise financeira de 2008 chegou como a apoteose da experiência de quarenta anos de minimização da solidariedade social. É uma dimensão fundamental das tentativas neoliberais não só de diminuir o poder do governo, mas também de promover a propriedade e a iniciativa individual à custa das instituições sociais. Por vezes, o neoliberalismo fez-se acompanhar pelos conservadores sociais, que valorizavam a família, a comunidade, as nações e outras formas de solidariedade, o que mascarou parcialmente as suas implicações. Ironicamente, para o capitalismo financeiro, o apelo aos proprietários, ansiosos com as suas hipotecas, e aos nacionalistas, preocupados com a imigração, conquistou o apoio populista. Apesar de tudo, não se tratou apenas de um ataque conservador ao Grande Governo; teve resultados muito mais vastos sobre as instituições sociais e, na realidade, sobre a própria ideia do público e do bem público. (Excerto de uma das contribuições de Craig Calhoun para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak O que é a rede Aftermath? Craig Calhoun É um grupo de pessoas que tentam compreender a crise em que 147

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fomos envolvidos durante alguns anos, mas também o que pode ser o futuro, o que pode acontecer depois da crise. E porquê focar-se no rescaldo da crise? Compreender a crise é o início, mas os termos em que se compreende a crise abrem possibilidades para o futuro, ou talvez as fechem. O objectivo é ter uma visão global que diga que a crise não cabe apenas às agências de rating ou à Goldman Sachs ou às grandes empresas, antes cabe à cultura e à sociedade decidir qual deve ser a maneira de responder, de construir um novo futuro. Qual é a sua formação pessoal e como se envolveu na rede Aftermath? Sou um sociólogo e historiador que foi convidado pelo Manuel Castells e pela Fundação Gulbenkian. Esteve entusiástico, desde o início? Sim, de imediato, porque pensei que a abordagem da crise pelos media, e também pelos académicos, era insuficiente. Dizia-se que a crise tinha começado repentinamente em 2007, 2008, 2009 e que seria marcada por uma espécie de regresso à normalidade. Depois de um ou dois anos de crise, tudo estaria bem. E nessa altura senti que não poderia ser assim, que tínhamos que aprofundar mais a análise. Era necessário observar que transformações ocorriam neste contexto, e para o fazer precisávamos de juntar pessoas diferentes e com perspectivas de diferentes disciplinas. Que tipo de crise é esta? Na minha perspectiva, começa com a crise financeira. E temos que compreender que a crise financeira está alicerçada em 35 ou

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40 anos de financiamentos, mercados financeiros crescentes, novos tipos de bens, cada vez mais comércio e dívida, o tipo de globalização que se baseia na organização da dívida, para que tenhamos a China como o maior credor dos Estados Unidos ou a Autoridade de Investimento de Abu Dhabi. Assim, a partir do momento em que temos mercados de crédito globais, mudámos muito o mundo. Quando temos mais e mais riqueza organizada em termos de bens financeiros e não em indústrias que criam mais postos de trabalho, em particular na Europa e na América do Norte, voltámos a mudar o mundo. Mas esta é apenas a primeira crise, a crise financeira. Claro que se relaciona com a crise da democracia, da cultura e do Estado social. Assim, abre-se a porta a uma variedade de assuntos para além dos estritamente económicos. Na reunião de ontem, afirmou que os bancos e os estados estão demasiado interligados para falir. O que significa isto? A expressão utilizada frequentemente é “grande de mais para falir”. Assim, por exemplo, no Reino Unido, nos Estados Unidos e noutros locais, os governos resgataram os grandes bancos que estavam em perigo de desmoronar. A ideia era a de que toda a economia dependia de se conseguir manter estes bancos fortes e com solvência económica e assim as pessoas concluíram: “grande de mais para falir”. Mas o que estou a dizer é que é, de algum modo, estão demasiado interligados para falir. Uma economia poderia suportar a bancarrota de uma instituição que fosse mais ou menos autónoma e distinta. O que aconteceu, durante este período de financiamento, foi a disseminação das interligações. Por exemplo, um banco pede emprestado a outro banco que, por sua vez, empresta a outros, negocia com empresas de seguros que utilizam estes novos derivados exóticos — os credit default swaps e toda a espécie de estruturas — para construir interligações no mundo financeiro. O objectivo original era gerir o risco, mas acabou por se criar um risco muito maior

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ao nível do sistema como um todo. Se observarmos a situação da Grécia ou de outros países, vemos que a Grécia não é “grande de mais para falir”, mas que está “interligada demais para falir”. O que preocupa os credores mundiais é o impacto que o colapso da Grécia teria sobre o resto da Europa e em toda a economia global e não a dimensão do país. Que efeitos tem esta interligação sobre a confiança dos cidadãos nos estados? Tem relações complicadas sobre a confiança, mas diria que agora o mais importante é a preocupação dos cidadãos com que os estados dêem resposta às instituições financeiras globais. Os estados estão a responder aos bancos de investimento, às empresas de seguros, aos mercados de crédito, às agências de notação, como a Moody’s, mas não estão a dar resposta às necessidades dos cidadãos comuns. Existe, assim, uma desconfiança generalizada e que tem outras origens. Já havia problemas, mas esta desconfiança aprofunda-se quando os cidadãos pensam que o Estado não os está a colocar em primeiro lugar, aos seus empregos, aos seus cuidados de saúde, educação ou oportunidades, mas está a pensar nos mercados de crédito. No seu artigo, escreveu que esta crise poderia ser vista como a apoteose de 40 anos de minimização da solidariedade social. O que quer dizer? Quero dizer que desde 1970 tem havido muitas transformações no mundo. Desde o final da Segunda Guerra Mundial até 1970 existiu, nos Estados Unidos e na Europa, uma economia crescente baseada na produção de emprego e no crescimento do Estado social, por um lado, e numa sociedade de consumo, por outro, que proporcionava às pessoas uma variedade de novos produtos — o número proprietários de carros aumentou, bem como o número de pessoas com televisão, etc. A crise dos anos

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1970 foi marcada por uma mudança, na qual as pessoas continuaram a comprar estes produtos, mas cada vez mais estes eram produzidos na Ásia ou noutro local do mundo. Os países ricos, na Europa e na América, começaram a negociar bens financeiros, acções, troca de bens, começaram a construir booms de mercado imobiliário e de casas para segunda habitação em Espanha, em Portugal ou na Costa da Dalmácia. Durante este período, a economia mudou por completo. O resultado foi um boom financeiro, que marcou o aparecimento destes instrumentos de crédito e da nova economia, mas representou um declínio, na medida em que existia emprego e motivou uma nova pressão sobre os governos para cortarem os serviços que ofereciam. O Estado social foi, assim, diminuído e assistimos ao que denominamos neoliberalismo, com as suas várias pressões, a afirmar: “Não devíamos gastar tanto dinheiro no sistema de educação ou nos cuidados de saúde. Essas despesas deveriam ser da responsabilidade dos indivíduos”. Assim, começando pelo Chile, onde se deram as primeiras experiências neoliberais, continuando com Margareth Tatcher, no Reino Unido, e com Ronald Reagan, nos Estados Unidos, deu-se um movimento para dizer aos indivíduos e às famílias que deveriam colocar todo o risco sob a sua responsabilidade. Os cidadãos não deveriam depender dos governos, o Estado social deveria ser reduzido, deveria produzir menos serviços. As pessoas deveriam adquirir no mercado as suas necessidades, não as obtendo a partir de um qualquer Estado social. Esta postura minou a solidariedade, mas não se trata apenas de uma questão dos governos, pois foi também o momento em que as grandes empresas deixaram de oferecer empregos seguros e reformas. Antes deste período, tendo um bom emprego no sector empresarial podia esperar-se que fosse para o resto da vida, e podia esperar-se uma reforma com uma boa pensão. Mas à medida que as próprias empresas começaram a ser comercializadas neste mercado — compradas e vendidas, fundidas e separadas —, ficaram sujeitas ao mesmo tipo de pressões que os estados. E começaram a dizer: “É

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demasiado caro manter estes planos de pensões!” Ou, por vezes, entraram em bancarrota e os planos de pensões desapareceram e, mais uma vez, as pessoas tiveram que suportar os riscos de viver numa sociedade contando apenas consigo próprias ou com a sua família. Esta perda de solidariedade é o principal determinante do rescaldo da crise? Qual a sua opinião? Não diria que é o determinante principal, diria que é um dos factores. O factor principal das consequências da crise é as pessoas sentirem que não têm os recursos de outros e que o Estado tem muito com que se preocupar. Por isso, têm que encontrar alguma solução. E algumas destas pessoas tentam recuperar algo disto. Constroem movimentos sociais. Os sindicatos têm enfraquecido desde 1970, mas ainda existem. Por outro lado, também há todo o tipo de grupos de cidadãos ligados através da internet e os movimentos sociais juntam-se para tentar criar alguma forma de solidariedade social para uma resposta popular. Mas o desafio é a solidariedade ter sido minada nos últimos quarenta anos, e por isso haver muito a reconstruir para tentar criar aquele tipo de solidariedade. Outras pessoas tentam recriar a solidariedade nas comunidades locais. Criam novas formas de cooperativas ou pequenos mercados onde trocam bens, sem terem que depender do sistema financeiro global. Mas isto é feito a uma escala relativamente pequena. A grande questão é sobre o Estado e se o Estado é uma fonte de solidariedade que ajuda os cidadãos, ou se está sobretudo organizado para apoiar o sistema capitalista global. E comparando as consequências da crise nos Estados Unidos e na Europa? Como seria essa comparação? Em termos financeiros e económicos, a primeira conclusão é a de que nos Estados Unidos a resposta tem ido muito mais no

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sentido de renovar o crescimento económico no país, efectuando um tipo de investimento governamental a apostar na construção de estradas e pontes e outro tipo de infra-estruturas na sociedade que ajudaria a restaurar o crescimento económico. Na Europa, na maioria dos casos, a estratégia foi oposta. A Europa está a tentar impor uma estratégia de implementação de programas de cortes e de austeridade, o tipo de políticas de ajustamento estruturais que foram impostas nos países do Terceiro Mundo há 20 ou 30 anos atrás. A situação da Grécia é o caso mais extremo, mas no Reino Unido e em outros países há o desejo de fixar os desequilíbrios através do corte das despesas, em particular através dos cortes das despesas dos apoios sociais. E a ameaça é a de que estas medidas possam bloquear o crescimento futuro e minar a recuperação da economia na vida dos cidadãos comuns, apesar de se conseguir obter uma boa classificação de taxa de risco da Moody’s. E comparando as reacções dos cidadãos? Este é um dos motivos por que há manifestações de grande dimensão nos países europeus. Estamos a assistir às maiores greves das últimas décadas no Reino Unido, na Praça Syntagma, na Grécia, Los Indignados, em Espanha — um conjunto de movimentos de cidadãos —, porque existe uma acção governamental directa que está a ameaçar as suas vidas, ao retirar alguns tipos de serviços e de apoios e insistindo nos cortes. Os empregados do sector público são ameaçados com despedimentos e com a perda de empregos. Nos Estados Unidos a crise financeira foi tão severa como na Europa. Eram grandes a ganância, as fraudes e os roubos por parte dos líderes dos grandes bancos, mas não havia movimentos de protesto de grande escala. Um contraste interessante é nos Estados Unidos não existir nada que se compare aos protestos dos cidadãos europeus. Muitos cidadãos europeus sentem que foram traídos pelos seus governos, que estes fizeram parcerias com a União Europeia, com as agências

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de crédito e com os mercados financeiros globais. Não com eles. Nos Estados Unidos, creio que há uma grande confusão sobre estas questões. É muito menos claro. Ainda há uma esperança maior na renovação da economia. Existe uma maior crença, mais fé na possibilidade de regresso do crescimento. No seu artigo, identificou a necessidade de inovação cultural. Como é que isto pode acontecer? Podemos começar por um qualquer nível. Creio que não estamos só a assistir a uma crise técnica, que poderia ser resolvida por técnicos financeiros que inventassem um novo mercado de seguros ou um novo tipo de instrumento de derivado financeiro. É algo que assenta, sobretudo na cultura. Precisamos de novas ideias sobre como organizar a vida económica, como organizar as relações uns com os outros. Um exemplo: durante muito tempo, expandimos a escala de tudo para que se tornasse global. Nesse sentido, deveríamos organizar tudo, desde a produção dos carros à circulação do crédito, a uma escala global. No meio da crise, as pessoas envolvem-se na tentativa de inventar relações locais para dar resposta às suas necessidades e às da sua família através de relações directas com outras pessoas nas suas comunidades, não confiando nos mercados globais. E para isto é preciso inovação cultural -pois como é conseguimos fazê-lo? Como é que montamos, por exemplo, um sistema local de trocas que não dependa do sistema de crédito global? Precisamos de novos hábitos, de novos modos de continuar, novos modos de trabalhar em conjunto. E está optimista quanto a esta possibilidade? Já está a acontecer, por isso estou optimista de que irá acontecer. A questão é se será a uma escala suficientemente grande para se dar uma transformação da economia de modo geral. E não acredito que aconteça. Não acredito que a renovação destas instituições

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locais seja suficientemente rápida para as pessoas poderem continuar com vidas estáveis, para que sintam que estão seguras enquanto perdem alguns dos apoios da economia global. Por isso, ainda é importante a acção política. Tentar mudar a forma como o Estado responde. Criar uma resposta colectiva de grande escala. Ao mesmo tempo que as pessoas criam uma resposta comunitária, isto é, muito local e inovadora, também precisam de se envolver na política para mudar o Estado. Ainda algumas perguntas sobre a sua experiência pessoal: quando tomou consciência da crise? Creio que foi em 2008. Tal como muita gente, comecei por pensar sobre o que estava a ocorrer cada vez mais como uma crise. Mais ou menos ao longo de um ano, tinha estado a ler relatórios sobre problemas do mercado de habitação nos Estados Unidos e estes problemas estavam a ter impacto no mercado obrigacionista, pois o financiamento das hipotecas estava ligado a isto, etc. Mas pensei que seria uma coisa pequena e muito específica: “Pode causar alguns problemas a algumas pessoas”. Em 2008 tornou-se claro que era algo muito maior. Mesmo antes da grande quebra da bolsa em Março. Em Janeiro e Fevereiro já era claro que seria problemático. Lembro-me de em Janeiro ter pensado: “Não deveria ter todas as minhas poupanças para a reforma na bolsa. Deveria protegê-las”. Não foi nenhuma ideia brilhante, porque algumas pessoas já tinham começado a falar desta questão. Os jornais económicos só começaram a falar disto a partir de Março, mas quem estava por dentro do mercado já o tinha começado a fazer. E, não sendo especialista do mundo financeiro, isto significava que mesmo meses antes quem trabalhava nestas grandes empresas, estava a mudar o seu comportamento económico. E hoje sabemos que assim era, que estavam a tentar levantar os seus bens, proteger-se, mesmo se continuavam a vender ao público em geral estes produtos. Assim, em meados de Janeiro de 2008, tornou-se claro para mim que estávamos a viver uma crise.

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E a crise afectou-o pessoalmente? Claro. Afectou-me a mim, como a tantas outras pessoas, porque os planos de pensões e as poupanças foram reduzidas, etc., bem como os preços das casas. Sou proprietário de uma casa nos Estados Unidos que após a crise do mercado imobiliário passou a valer menos dinheiro, por isso existe este tipo de impacto pessoal. E depois, claro, decidi concentrar a minha atenção académica na crise e pensar sobre a questão dos futuros possíveis e tentar mobilizar cientistas sociais para esse efeito. Assim, passei algum do meu tempo de trabalho a concentrar-me na crise e a mudar a visão dos académicos que normalmente não respondem a grandes acontecimentos correntes, que concentram as suas agendas de investigação em questões de longo prazo e que não mudam facilmente. Tentei juntar as pessoas para lhes dizer que é preciso dar atenção a estas questões agora. O subtítulo do seu artigo é “As consequências do progresso”. De que forma foi afectada a sua ideia de progresso? Foi abalada. Cresci nas décadas de 1950 e 1960, numa era de progresso, durante a qual me tornei um dos críticos da guerra no Vietname, me preocupei com as desigualdades, mas com a crença subjacente de que se trabalhássemos arduamente conseguiríamos resolver tais problemas. Reduziríamos a desigualdade, o racismo e eliminaríamos esta espécie de guerras neocoloniais. Essa fé já tinha sido abalada, porque nos 30 anos que se seguiram aos anos 1970 tínhamos mais desigualdade e uma variedade de guerras. Mesmo depois do final da Guerra-fria desencadearam-se uma série de novos tipos de conflitos e, por fim, os ataques de 2001 e a invasão do Afeganistão e do Iraque. Por isso, já estava mais pessimista sobre a ideia de progresso. Mas depois a crise foi um sinal, para mim, de que algo de fundamental tinha mudado. Na minha opinião, a crise tem muitas consequências possíveis e estão abertos muitos futuros possíveis. Mas um

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futuro que não é possível é o regresso ao padrão de desenvolvimento e de progresso anterior. Já antes da crise o fim do boom do pós-guerra tinha marcado uma espécie de fim das lutas sociais pelo progresso nos países ricos do mundo. Há uma mudança do momento e agora a China está a crescer, a Índia está a crescer. Ainda existirão lutas pelo progresso de vários modos, mas na Europa e nos Estados Unidos, assistimos ao declínio do movimento sindicalista, de muitos tipos de coligações para tentarem mudar a sociedade para melhor. Creio que agora somos obrigados a confrontar-nos com esta transformação. E ao fazê-lo veremos que o progresso não é impossível, mas que o velho modelo, que durante muito tempo afirmou que iríamos ter uma crescente economia capitalista e que iríamos resolver os nossos problemas financeiros através do crescimento desta economia capitalista, deixou de funcionar. Teremos que pensar noutros modos de resolver os nossos problemas. Uma última pergunta sobre a rede. Que ideias partilha a rede Aftermath? O que pensa sobre isto? Começámos com uma ideia clara do rescaldo da crise: “Houve uma crise, o que vem a seguir?”. Depois, creio que todos nos apercebemos que tínhamos que olhar para esta crise mais aprofundadamente, que não era tão simples quanto isso. Assim, como fazemos parte desta ideia partilhada da rede, temos que compreender a crise resultante deste padrão de financiamento e os problemas gerados pelo modo como o sistema maior estava a ser organizado. Não poderia ser um acontecimento a curto prazo ou uma espécie de acaso. Neste contexto, a rede Aftermath concentrou-se no que está a acontecer com os movimentos sociais, o que está a acontecer com o Estado, o que está a acontecer com a própria democracia e as suas expectativas. Creio que a visão partilhada é a de que ainda persistem as velhas relações, mas enfraquecidas. E as novas relações entre os movimentos sociais, entre os países, entre os actores de vários tipos ainda não são claras.

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Assim, a rede Aftermath está a observar uma situação que aparenta ser muito fluida, na qual parece já não existir a possibilidade de simplesmente confiar nas instituições tradicionais para assegurar a solidariedade social e o Estado-Providência. No entanto, não é muito claro que novos tipos de instituições podem ser eficazes, por isso dão-se os protestos. Mas a pergunta importante é como iremos construir algo novo. Creio que é sobre isto que o grupo se está agora a concentrar.

A confiança e o risco, inseparáveis na sociedade de risco global. Conversa com Terhi Rantanen, Professora de Comunicação

Uma das principais características da sociedade de risco global é que confiança e risco se tornaram inseparáveis, como dois lados de uma mesma moeda. A espiral de confiança responde ao risco, e se este se torna maior surge a confiança e a desconfiança. Pode argumentar-se que as pessoas aprenderam a viver sem confiar particularmente em nenhuma das velhas instituições, e que nem sequer usam o conceito de confiança para descrever as suas relações com elas, mas que ainda precisam de acreditar em alguma coisa e não podem perder a sua confiança, ainda que abstracta, em todas as instituições, de uma só vez. Defendo que a globalização económica progrediu a uma velocidade tremenda, mas os políticos e os media permaneceram primários e nacionais. Ou, usando os conceitos de Appadurai, podemos dizer que o paradigma financeiro actual evoluiu de forma mais rápida do que os princípios teóricos vigentes no que concerne aos conceitos de confiança/desconfiança. Em consequência disto, assistimos a um desfasamento entre os dois paradigmas, que está a levar a um crescimento significativo do nacionalismo em muitos países. (Excerto de uma das contribuições de Tehri Rantanen para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Como caracterizaria esta crise? Porque é que ela é diferente? 159

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Tehri Rantanen Penso que a primeira questão deveria ser se há uma crise! Há? Gostaria que houvesse uma resposta breve para isso. Penso que sim, mas é muito mais complicada do que antecipámos. Falamos de crises globais, de crises financeiras, e agora perguntamo-nos que tipo de crise é esta. Esta crise tem vindo a acontecer desde há algum tempo. Não sabemos quando terminará — se alguma vez terminar —, e por isso temos uma série de questões. Há uma crise, mas é uma crise muito complicada. De que forma? Penso que é global e, simultaneamente, muito nacional. Já sabemos que o dinheiro se movimenta através das fronteiras e que o capital e as finanças sempre foram globais, mas as estruturas que temos neste momento são internacionais ou nacionais. Tome-se o exemplo da União Europeia. É uma organização entre estados que representa os estados-nação. Portanto, de certa forma, estas organizações nacionais e internacionais movem-se sempre mais lentamente que o capital ou as finanças. Ou seja, temos este género de capital global e temos organizações nacionais e internacionais que estão a tentar responder a esta crise, apanhadas pelo momento do capital global. E como é que isso afecta as pessoas? Que significado tem na noção de confiança? Penso que a confiança está posta em causa e as pessoas desconfiam destas organizações, vêem claramente que estas organizações são incapazes de resolver a crise. Os políticos e os governos oferecem soluções nacionais para problemas globais e as pessoas apercebem-se disso. Também não há uma espécie de memória global, há uma memória nacional, uma memória colectiva. E do que as pessoas se recordam é de algo ligado ao nacionalismo. Mesmo que não confiem nas organizações nacionais, reconhecem o que é o

A confiança e o risco, inseparáveis na sociedade de risco global.

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nacionalismo e os políticos são muito espertos: jogam com o conceito de nacionalismo. E os jornalistas fazem o mesmo. Portanto, enquanto há uma crise global, os media enquadram-na como se houvesse estados-nação uns contra outros, como na Primeira e Segunda guerras mundiais. E assim temos um género de guerra semântica em que a Grécia tem sido rotulada de preguiçosa pelos finlandeses, que se acham melhores, e a culpa é sempre de terceiros. Não é a “nossa” culpa, mas a “vossa” culpa. Penso que a retórica, neste momento, é bastante desagradável. Porque se culpam outras nações? Porque não se culpam os bancos? É demasiado abstracto. As pessoas não percebem o que são os bancos e de que forma trabalham globalmente. Não sabem o que é um investimento bancário, sabem das suas poupanças e dos seus bancos, mas até isso se tornou abstracto. As pessoas estavam habituadas a pensar que tinham que poupar e que não podiam ter crédito. Agora, todas têm cartões de crédito e tudo se tornou tão abstracto que as pessoas não conseguem entender. Mas o que percebem, e o que lhes tem sido ensinado ao longo de décadas, é o nacionalismo. Isso elas já sabem: é sempre culpar o outro, culpar o outro que não é como nós. Penso que é por isto que o nacionalismo é tão popular, e é interessante que o nacionalismo seja tão popular, mesmo quando as instituições nacionais não o são. Os media deveriam ser a instituição que pode ajudar as pessoas a perceber este fenómeno abstracto? Seria bom, se não fossem também instituições nacionais. Penso que para eles é praticamente impossível quebrar isso. Assim sendo, temos, por um lado, instituições como a CNN, o Financial Times ou a BBC, mas há muito poucas organizações de comunicação social que sejam globais. A maior parte delas são nacionais e têm uma audiência nacional. Querem assinantes. Os media estão frequentemente em crise, os jornais estão a morrer. Já não precisamos

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de papel para as notícias, podemos ter notícias sem papel. Os media estão desesperados para manter as suas audiências e que melhor maneira para isso que dizer que defendem os nossos interesses? Dou o exemplo da Finlândia: “Nós somos verdadeiros finlandeses, somos contra os gregos ou portugueses preguiçosos, somos melhores”. E as pessoas sentem-se seguras, porque é uma coisa que reconhecem. Quem poderá então repor a confiança? É uma pergunta muito interessante. Penso que os media têm um papel a desempenhar na construção da confiança das pessoas, mas repito o meu argumento: a questão está de facto naquilo que as organizações são intrinsecamente, nacionais ou internacionais. Estão a tentar resolver estes assuntos que são tão complicados e as pessoas sentem-se perdidas. Talvez regressem a comunidades, às suas próprias localidades ou estabeleçam as suas próprias comunidades, troquem impressões na internet ou usem as redes sociais, por sentirem que não há organizações que, neste momento, representem os seus interesses. Portanto, neste aspecto, estou um pouco pessimista. Pensa que o antídoto para o nacionalismo pode estar em exemplos como o destas redes de pertença? Esse é um dos perigos. Temos o capital global, a finança, e depois as pessoas nas suas próprias comunidades. Depois há o Estado-nação e as organizações internacionais no meio, tentando fazer o seu trabalho. Penso que o perigo está nesta distância que os separa. E as pessoas que estão a tentar a mudança podem sentir que apenas a fazem em localidades — mas então como poderão travar a crise global, se apenas trabalham na sua própria localidade? Podem dizer “Isto é o que somos capazes. Então quem está a tratar desta crise financeira global, ou do que quer que seja esta crise? Em quem podemos confiar?”

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Já disse que está um pouco pessimista. Como vê então o futuro? Como será o futuro? Esperemos que melhor. Mas penso que teremos de nos preparar para uma situação em que as coisas se agravem. E também para o facto de o centro do mundo já não ser a Europa ou os Estados Unidos. O centro do mundo deslocou-se e isto afectar-nos-á a todos. E pessoalmente? Também perdeu a confiança? Em quê, ou em quem? Sou como toda a gente. Não confio nas organizações, confio nas pessoas que conheço. Mas, ao mesmo tempo, vivo em Londres, onde cada bairro é diferente do outro. Falam-se centenas de línguas. Portanto, de certa forma, confia-se no vizinho, independentemente de onde ele ou ela vem. A minha experiência de vida e de trabalho em Londres fez-me perceber que esta espécie de comunidade cosmopolita é possível. É possível confiar numa pessoa sem que ninguém pergunte de onde vem. Ninguém me perguntou de onde é que eu vim e toda a gente parte do principio de que vimos de outros lados. Por isso, sou uma grande crente nas cidades cosmopolitas. Falando um pouco sobre este encontro e sobre a rede: pode contar-nos qual é a experiência profissional que traz a este grupo de trabalho? Fui jornalista quando era nova. Venho de uma família de jornalistas, tornei-me académica na área de comunicação e media para ser diferente dos meus pais. Sou professora de Economia e Ciência Política na London School of Economics (LSE) e dirijo o programa de mestrado em media internacionais. Esta é a minha área, mas é verdade que o grupo nos incentiva a deixar o nosso campo específico para falar sobre assuntos mais abrangentes —

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é mesmo isto que é bom neste grupo. Portanto, interessei-me muito pelas áreas de outras pessoas, pelo simples facto de conversar com elas. Penso que o que estamos a tentar fazer é atravessar fronteiras artificiais entre as diferentes disciplinas. Depois deste encontro, qual lhe parece ser a ideia partilhada, a base comum de todos os membros do grupo de trabalho? Não penso que tenhamos uma base comum, penso que estamos a tentar trazer diferentes entendimentos sobre o que se está a passar no mundo. Nós vimos de países diferentes, temos experiências académicas diferentes, mas em conjunto tentamos dialogar para perceber que crise é esta. E isso é o mais importante. Penso que o que queremos fazer é mostrar que há diferentes formas de pensar a crise e ainda assim ter este diálogo entre pessoas que não pensam da mesma maneira. Estando na London School of Economics e conhecendo os meios de comunicação social, como avalia o papel dos economistas nesta crise? Bem, é London School of Economics and Political Science, escola de Economia e de Ciência Política. Eu não sou economista, e os economistas estão sempre a recordar-nos que é LSE e Ciência Política, ou seja, a Ciência Política é como que uma coisa secundária, no contexto da Economia. Primeiro é a LSE, escola de Economia. Este é como que o nosso complexo de inferioridade. Mas, por favor, faça a sua pergunta. A questão é que trabalha na LSE. Qual tem sido o papel dos economistas nesta desconstrução da confiança? E qual será o papel deles na crise? Penso que os académicos em geral querem reivindicar a posição de observadores em vez da de actores… Qual é o papel dos

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economistas nesta crise? É uma excelente questão e penso que os académicos em geral quererão responder que exploram e estudam estes assuntos, mas não estão pessoalmente envolvidos. Penso que não é verdade e que os economistas, eles próprios, têm sido muito activos, pois são eles que têm sido entrevistados pelos media e é a eles que tem sido pedido que expliquem o significado da crise. Simultaneamente, muitos deles trabalham como consultores nos bancos e nas grandes empresas globais. Ou seja, mesmo reconhecendo que os economistas sabem mais de economia do que nós, também estão envolvidos. Toda a gente está. Vê mudanças a este nível? Não me parece. Talvez os académicos ainda sejam mais confiáveis que os banqueiros. Mas não são completamente inocentes. Ainda outra questão: há alguma imagem específica que para si represente a crise? Confusão. Perda de confiança. É muito difícil dizer o que o futuro trará. Não sabemos se será melhor. As pessoas perderam provavelmente a sua visão e não têm certezas quanto ao que acontecerá a seguir, por isso há uma espécie de incerteza e não temos uma ideia alternativa, como as pessoas tiveram no passado, independentemente do que fosse aquilo em que acreditavam. Penso que esta é uma das questões. Neste momento, é muito difícil perceber o que o futuro trará. Parece que a maior parte das pessoas vive as suas vidas sem confiar em qualquer das velhas instituições que já foram consideradas os pilares do Estado-nação

Progresso sustentável, sustentabilidade progressiva Conversa com Rosalind Williams, historiadora

Estamos em Lisboa pelo terceiro ano consecutivo, a ouvir-nos a nós e aos tristes lamentos do fado. À medida que contemplamos o Outono da crise de 2008, nada é mais rotineiro do que a crise do capitalismo. É uma crise devastadora, mas em termos intelectuais é aborrecida. Pouco nos diz sobre o que é novo no capitalismo, na sua essência, apenas sobre os detalhes de como funciona o mundo financeiro nesta década, em contraste com as anteriores. Porque deveremos então dar especial atenção a esta crise? Porquê reunirmos um grupo para explorar as suas implicações, se não para além da perspectiva de gostarmos de estar na companhia uns dos outros? Proponho que a nossa consciência para o fazer foi um sentimento do fim. Um sentimento de que esta crise não é uma rotina, mas uma de muitas, cujas interacções reforçadas estão a remodelar historicamente a vida no mundo. A crise já não representa um ponto de viragem na história, mas uma condição eminente da história. É parte do seu funcionamento normal. Indistinguível das suas próprias consequências. Nesse caso, a crise de 2008 teve a dimensão cultural de intensificar e acelerar nada mais do que a emergência de uma nova consciência histórica. O ”mundo" histórico que emerge no início do século XXI parece ser de persistência de esperança no progresso, misturada com uma crescente ansiedade sobre as crises que se intersectam. Neste “mundo”, o progresso define-se cada vez mais como mudança material, que 167

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acelera incessantemente, enquanto o progresso social parece mais lento do que nunca. Em simultâneo, continuam a dar-se crises, reforçando-se e mudando nas mesmas consequências sem fim, que são difíceis de distinguir das crises originais. No trabalho que estamos a desenvolver em Lisboa, deciframos o nosso tempo ao mesmo tempo que o estamos a viver. Profetizando enquanto o deciframos, enquanto estamos todos muito cientes de que o fim está à nossa volta. (Excerto de uma das contribuições de Rosalind Williams para as reuniões da rede Aftermath)

Bregtje Van Der Haak Como introdução a esta conversa gostava de lhe perguntar do que trata a rede Aftermath? Rosalind Williams A rede Aftermath é um grupo de pessoas que gostam de vir a Lisboa anualmente, desde há três anos, para discutir algo para o qual não temos um nome comum: a crise financeira de 2008 e o “rescaldo” da crise quer dizer apenas que continuamos a vivê-la. Continuamos, após três anos, a fazer essa análise. Lembro-me muito bem de como iniciamos estes encontros e do convite de Manuel Castells que organizou a rede. Tinha ido visitá-lo a Los Angeles, na Primavera de 2009, os mercados bolsistas estavam em baixo, e todos se preocupavam se iriam ter trabalho e se conseguiriam continuar a pagar as suas contas. Foi durante essa visita que Manuel Castells me convidou para me juntar ao grupo, para reflectir sobre esta crise, e recordo-me de naquele momento ter pensado que era um alívio haver um grupo com quem conversar e tentar compreender o que se estava a passar: reflectir sobre a crise e tentar perceber se poderíamos fazer alguma coisa construtiva em resposta.

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Sentiu que esta crise pudesse ser diferente de outras crises? Penso que existiu uma resposta instintiva, sim. Era obviamente uma crise económica, financeira mas, já na altura, parecia ser também uma crise política. Ocorria no contexto do início do século XXI, em que continuavam a existir guerras e ninguém sentia, pelo menos nos Estados Unidos, que as coisas fossem muito previsíveis. Por isso, penso que era claro, desde o início, que não iria ser um acontecimento simples ou bem definido, pois já surgia num contexto em que se sentia o desconforto e a incerteza. Lembra-se do momento em que tomou consciência da crise? É engraçado, pois estava em Lisboa por outro motivo. Foi no Outono de 2008 e participava no encontro anual da Sociedade para a História da Tecnologia. A minha experiência da crise é estar sentada num hotel em Lisboa, em Setembro ou Outubro de 2008, a tentar ouvir as notícias do que se estava a passar nos Estados Unidos, sobre a queda do mercado bolsista, o desemprego, as eleições presidenciais e senti-me muito distante, confusa e seguramente muito assustada. A experiência foi muito clara para mim e o facto de estar em Lisboa nessa altura foi apenas uma coincidência, mas nesse momento a minha casa parecia estar muito distante. Pareceu-lhe ser qualquer coisa de diferente, que tinha que ser analisada com mais atenção? Como disse o Manuel quando me convidou para fazer parte da rede: “Somos intelectuais. O que fazemos é pensar”. Muito bem, pensamos, investigamos e escrevemos. É esse o nosso trabalho, pensarmos, de facto, sobre o que se está a passar, porque precisamos de o compreender. Num momento em que nos sentimos confusos — e sei que, tal como eu, muitas pessoas o estavam —, ter sido convidada para pensar e compreender pareceu-me ser o

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mais correcto. É um dos nossos deveres enquanto cientistas. Por isso, fiquei contente por integrar a rede Aftermath. Qual era a sua experiência profissional específica? Sou historiadora, designo-me como historiadora da tecnologia. Estudo história cultural da tecnologia — que é não é o mesmo que focar-nos no hardware —, e em particular trato da mudança tecnológica. Quando o Manuel me convidou para integrar o grupo, pediu-me que o fizesse da perspectiva da história, visto que os restantes participantes eram na sua maioria cientistas sociais. A minha função era a de olhar para a crise, enquanto historiadora, tendo como tópico o que se desenrola no tempo. Hoje em dia os cientistas sociais já o fazem, e a história é também uma ciência social, mas o seu enfoque sobre o tempo, a mudança e continuidade é diferente. Por isso, foi-me pedido que olhasse para a crise em primeiro lugar como historiadora, e em segundo como historiadora cultural. Sou especializada em literatura, arte e em maneiras de obter provas e perspectivas sobre a história a partir das pessoas, em particular, daquelas que lidam com a linguagem. Por isso é um ângulo ligeiramente diferente de outros historiadores. É isto que faço e foi por este motivo que fui convidada para fazer parte deste grupo. Como evoluiu a forma como o grupo enfrentou a crise à medida que esta se desenrolava? Essa era parte do problema e também parte da oportunidade, quando se está a conscientemente a tentar estudar alguma coisa que ainda está a decorrer e ainda não se sabe como irá terminar. Nunca sabemos o final de algo se o levarmos suficientemente longe. Contudo, não é como a queda do Império Romano ou como a Revolução Francesa, em que se tem um sentimento de fim. Por isso, o facto de a crise estar em aberto dificultava a análise, mas também significava que os investigadores da rede

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Aftermath estavam muito conscientes, desde o início das nossas leituras, reflexões e conversas com as pessoas. Desde o início do projecto que estamos muito atentos ao que sentimos enquanto vivemos a crise, dizendo o que sentimos, o que pensamos, como é que a crise tem mudado o nosso pensamento. Tem sido um trabalho constante, dois anos e meio de auto-avaliação, o que é muito interessante. É muito interessante perguntar-nos sobre o que está a acontecer historicamente. E ainda está a decorrer, mas creio que foi um hábito muito positivo. Na sua opinião esta crise pode ser apelidada de um momento histórico? Essa é a grande questão, porque a poria de outro modo e diria: “Sim, penso que é um momento histórico, mas o que é que isto significa?”. Interessa-me saber se outras pessoas, em particular nos Estados Unidos, mas também noutros países, olham para esta crise como momento histórico e, se assim for, o que é que está nas suas cabeças quando dizem: “Sim, isto é histórico”. Há acontecimentos correntes, coisas que acontecem a todo o momento, todos lemos jornais e vemos notícias, mas penso que temos uma espécie de concepção subjacente do que é histórico como o contrário de algo que acontece, do que é corrente, que faz parte das notícias. Neste sentido, pergunto informalmente aos meus filhos ou aos seus amigos — interesso-me em especial pelos jovens — coisa como: “Desde que nasceste ou nos últimos dez anos, o que aconteceu que consideras ser histórico? Dá-me um exemplo”. Nos Estados Unidos, se colocar esta pergunta actualmente, a resposta vai ser quase sempre, “A eleição de Barack Obama”. Isso é história. Todos concordam que um homem negro tornar-se presidente nos Estados Unidos é algo histórico. Se fizer esta pergunta a alguém na Europa, poderão ter uma resposta diferente, mas estou muito interessada no que se entende por momento histórico. O 11 de Setembro será também considerado um acontecimento histórico…Nos anos de 1990, lembro-me de fazer a pergunta

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aos meus filhos, porque na altura as coisas estavam tranquilas. Estavam muitas coisas a acontecer, mas não se notava. E então perguntei-lhes o que achavam que era histórico nas suas vidas. E a primeira coisa em que pensaram foi na explosão do vaivém espacial Challenger. A explosão causou forte impressão. Podemos dizer que há acidentes a todo o momento, mas aquele pareceu revelar qualquer coisa de mais importante no programa espacial. Por isso, é um bom exemplo de como a história é profundamente simbólica e não só material. Assim, dizer que temos uma crise, um rescaldo da crise, é história, mas nunca é apenas um acontecimento material. É algo que tem significado. Estou interessada em perceber de onde vem o significado. Neste sentido, esta crise financeira não é apenas financeira. Representa um conjunto de pessoas a concluírem um conjunto de coisas sobre o mundo moderno, o governo moderno. As suas implicações parecem ser muito maiores do que apenas um problema económico. Qual é o objectivo dos encontros da rede Aftermath em Lisboa? Onde estão a tentar chegar? Quando perguntam aos investigadores o que fazem, sabe-se que normalmente escrevem alguma coisa, falam, comunicam a partir das investigações que fizeram. A resposta à sua pergunta é: queremos produzir alguma forma de comunicação que, provavelmente, será uma mistura de imagens e de vídeos como este, e artigos e talvez outras coisas, que dê os frutos da nossa investigação e das nossas reflexões sobre este acontecimento ao tentar compreendê-lo, para nós próprios e para outras pessoas. É sobretudo isso que tentamos fazer. É a nossa profissão. Algumas pessoas fazem sapatos, nós fazemos livros, artigos, apresentações e, dado que estamos a analisar eventos que ainda estão a ocorrer, não é fácil dizer o que é isto. Suspeito que à medida que o evento se desenrola o nosso trabalho continuará de alguma forma.

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É em Lisboa porquê? Penso que seja sobretudo pela generosidade da Fundação Gulbenkian, que nos disponibilizou os recursos e, pelo que percebi, o Manuel Castells também deu o mote para os encontros. Dito de outra forma, foi a Fundação que quis que um grupo de investigadores se juntasse e pensasse sobre estas questões. Não sei muito bem como é que foi negociado, mas a sede da fundação, aqui em Lisboa, tomou a iniciativa. Pediram ao Manuel Castells que desenvolvesse um grupo para pensar sobre a crise. É por esse motivo que aqui estamos. Queria abordar a sua perspectiva pessoal sobre o tópico. Para si, que imagem caracteriza a crise? Comecei com uma imagem que posteriormente verifiquei não ser a certa. Passo a explicar. No início, pensei que gostava de olhar para uma instituição que seria afectada pela crise. O dinheiro é escasso. Os salários são baixos, os impostos são baixos. Como é que as instituições respondem? Escolhi a Universidade da Califórnia, em Berkeley. Assim, a minha reflexão foi sobre a falta de dinheiro em geral e, em particular, sobre a resposta institucional. Neste sentido, acompanhei os acontecimentos na Universidade da Califórnia, em Berkeley, desde o início de 2009 e, de facto, o apoio à universidade, em particular por parte do Estado da Califórnia, decresceu drasticamente e ainda está a decrescer. Esperava desta forma encontrar resposta para aquele problema no campus, que era direccionada para uma crise económica mais vasta. Descobri é que há uma história mais ampla na Califórnia, que não se encontra no campus. A grande história tem a ver com onde os eleitores da Califórnia decidiram gastar o dinheiro dos impostos, e o que agora se recusam a pagar; e portanto surgiu uma nova história relacionada com o voto destes eleitores. Estava perante uma história de eleitores que ia muito para além do campus, mas trata-se apenas de uma conclusão da

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minha outra história. Quanto à imagem da crise, penso que o motivo pelo qual há tanta confusão é que a maioria de nós cresceu com a visão da história como progresso. Normalmente, o progresso significa progresso tecnológico: as câmaras tornam-se mais bonitas e elegantes, os chips tornam-se mais pequenos. Assim, na tecnologia conseguimos ver o progresso muito claramente, o que não acontece com o progresso social. Contudo, gostamos que pensar que as coisas se tornam mais justas, mais humanas, toda a espécie de progresso social em que ainda acreditamos. Penso que a imagem da história como linha que se torna melhor, que sobe, coexiste actualmente com outra imagem. Como se estivéssemos junto de um tanque e atirássemos uma pedra para o seu interior e cada pedra representa um problema. Poderia ser um sistema que não está a funcionar ou algo a derreter-se, poderia ser um tremor de terra, um tsunami, um derrame de petróleo no Golfo do México, um tipo qualquer de catástrofe natural ou outra forma de desastre económico, ou a falta de água, todo o tipo de episódios que costumam ocorrer, sejam económicos, políticos ou ambientais e que não melhoram. Há apenas círculos que se alastram e intersectam com outros círculos que alastram a partir de outras áreas problemáticas. Esta é outra visão da história, quase como uma rede de crises. Não é que estejamos perante o fim do mundo — não estamos a falar do fim —, mas é como se existisse sempre um conjunto de problemas que podem melhorar, mas que não desaparecem. Penso que esta visão da história, como rede de crises que se intersectam, é partilhada por muitas pessoas que a têm como uma espécie de modelo nas suas cabeças, mas também não desistiram de acreditar no progresso. Assim, consoante a situação, optamos por um ou outro modelo de história. Mas se nos sentimos confusos penso que seja pelo facto de pensarmos como é que a história está a funcionar actualmente. A pergunta é a de como irá funcionar nos próximos dez anos — isto é, se será a crise ou o progresso a dominar. É o que todos tentamos adivinhar.

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E é algo de novo? Porque podemos afirmar que desde sempre assistimos a crises e a redes de crises… Uma coisa que é nova é o facto de estarmos mais cientes das crises, dado que os media as noticiam. Há uma razão pela qual não se trata apenas de uma percepção — é a de que estamos a viver num planeta com muitos mais milhares de milhões de pessoas do que tínhamos há 50 ou 100 anos. Assim, há uma mudança objectiva na condição humana, que é a combinação de um maior número de pessoas com mais consumo e produção. O habitat humano, que também é o palco da história da humanidade, é diferente. É muito mais populoso, acontecem muitas mais coisas, gasta-se muito mais energia e são usados e descartados muitos mais recursos. Estamos portanto numa situação diferente. Dou um exemplo, do Thomas Friedman, escritor e comentador muito lido nos Estados Unidos, que publicou há alguns anos o livro O mundo é plano. O livro refere-se à globalização como uma coisa positiva. Afirma que o mundo passou a ser “plano” e que todos estamos em contacto uns com os outros. Trata-se mais ou menos de uma visão progressista da história. Mas recentemente, escreveu outros livros, como o The world is flat, hot and crowded. E, mais recentemente ainda, The world is full. Todos estes títulos são verdade. O mundo está plano e cheio. Ou seja, o Thomas Friedman é um exemplo de uma mesma pessoa que num minuto vê a história como progresso e noutro como crise em rede. Volto a salientar que penso que é o mundo que está diferente e não apenas as nossas cabeças. O que também me parece muito interessante é a sua comparação da crise com um derrame de petróleo… Não sou só eu. Neste caso, estava a ler artigos de jornal sobre o colapso financeiro que o comparavam a um derrame, a um desastre nuclear ou a um tsunami. Todas estas imagens de catástrofes naturais estão a ser usadas para escrever sobre a economia e a

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política, mas penso que há mais consciência de que actualmente as catástrofes naturais também não são inteiramente naturais. Por exemplo, um derrame de petróleo no Golfo não é um desastre natural, em que o petróleo decidiu explodir naquele local, antes ocorreu porque o petróleo ali estava a ser extraído. O mesmo aconteceu com o Japão e o problema das centrais nucleares. Como se pode culpar uma crise financeira, ou como se resolve uma, através de despedir professores e bibliotecários? Não faz sentido. Com a análise de John Thompson, que mostra como a crise se desenrolou da economia para a política e para a sociedade em geral, continua a não fazer sentido logicamente, mas pelo menos faz sentido em termos da sequência. Em todo o caso, estávamos a pensar nas imagens dos desastres a alastrar. É interessante, pois os desastres podem ser explosões — ou seja um acontecimento isolado —, mas penso que a imagem é muito mais de algo que continua a ocorrer, não termina num momento de devastação. No meu artigo, refiro-me à crise como um apocalipse que continua a acontecer, não acontece e termina. Permanece nas nossas vidas. O terramoto no Japão é o exemplo clássico, uma coisa que parece não ter responsabilidade humana, como os terramotos e os tsunamis. Contudo, se tivermos construído uma parede nesse local pensamos que nos poderá manter seguros e não é isso que acontece. Quando há um terramoto somos mesmo arrastados juntamente com a parede. Contudo, continuamos a ter a coragem ou a arrogância de construir centrais nucleares num local com aquelas características. E isto é natural? É construído pelo homem. Penso que agora todas as pessoas compreendem que quando falamos de uma crise raramente será apenas humana ou não-humana. Será uma mistura. Mais uma vez, é este o mundo em que vivemos. Não se trata apenas de existirem muitas pessoas neste planeta, mas o facto de estas pessoas terem construído um conjunto de coisas que precisam de manutenção e não a recebem, ou que têm efeitos literal ou figurativamente a jusante, que têm que ser resolvidos, ou todos estes feitos da humanidade não funcionam como

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deviam. Será que isto produz o sentimento do fim que menciona? Trata-se da citação do título de um livro de um crítico literário que morreu há menos de um ano. Foi ao ler o seu obituário, sobre o fim, que me apercebi de que tinha que trazer este livro para a discussão. Porque na literatura, na vida, é no fim que temos um sentimento de encerramento e onde também se tem algum sentimento do que se era antes. Assim, se não tivermos qualquer sentimento sobre para onde nos dirigimos, é muito desconfortável para os seres humanos. A maior parte dos seres humanos precisam de construir para si próprios um sentido do fim, caso não tenham nenhum. E, mais uma vez, pode ser implícito, pode não ser muito consciente, qual é o fim disto? Assim, o fim do progresso da história, no qual continuamos a misturar a natureza não humana e a agir como humanos? Ou serão estas crises alguma sugestão do que parece ser o fim? São tantas as crises que esmagam a capacidade humana de responder. Penso que esta é a pergunta que muitas pessoas se colocam. Outra forma de pensar sobre o fim é a de que não é uma coisa que só existirá no futuro, pois as coisas estão sempre a terminar. Pensando historicamente, penso que o nosso mundo de mudança é, por definição e inevitavelmente, um mundo de perda. Quando mudamos as coisas, estamos a perder o modo como as coisas são. E podemos pensá-las como progresso, mas muitas das mudanças que são progressivas também representam uma perda. Qualquer pessoa se consegue recordar daquele terreno da sua infância que hoje está cheio de construções. Podemos vê-lo na paisagem. Ou dos hábitos sociais que as pessoas costumavam ter e que estão a desaparecer, ou do facto de as instituições não durarem para sempre. Vivemos com todo o tipo de perdas. É a condição humana, mas o mundo mudou, tem muito mais gente e deu-se uma aceleração enorme da mudança, que se pode registar. Quando as mudanças aceleram, também aceleram as perdas. Actualmente, as

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pessoas vivem uma vida na qual as perdas se dão no mundo, não são apenas perdas pessoais ou familiares. Estas perdas ocorrem cada vez em maior número. Sempre foi dito às pessoas que deviam gostar das mudanças, que as mudanças são boas. As pessoas não gostam de muitas mudanças. Algumas são boas, mas penso que a acumulação de perdas traz um sentimento de fim à nossa vida e não é fácil viver com esse sentimento. Como é que vivemos com ele? Na maior parte das vezes, não falamos sobre este sentimento, ou então, mesmo numa sociedade de progresso, como os Estados Unidos, não se espera que façamos o luto por um prado que é transformado em parque habitacional. Penso que estas coisas ainda são sentidas e penso que este é o caso em que o sentido da história, enquanto mundo vivo, ainda existe na sociedade, embora as pessoas não falem sobre isso. Portanto, trata-se de uma perda pessoal e se as pessoas não falarem sobre ela não percebem que se trata de uma perda partilhada por outros. Parte do que tento fazer enquanto historiadora é trazer à consciência que isto é um efeito do nosso “mundo tecnológico” e que é necessário reconhecê-lo. Gostaria de acrescentar aqui as discussões ambientais, na medida em que normalmente são mencionadas para legitimar a discussão do sentimento de perda. Nas discussões sobre o ambiente, temos que encontrar uma mudança química ou material no mundo, que seja de alguma forma prejudicial ou destrutiva, mas as mudanças imateriais também podem ser dolorosas. Penso que temos que trabalhar no sentido de encontrar um vocabulário para trazermos para a mesa esta questão, sem as pessoas responderem que é por nostalgia ou que não gostamos de mudanças. São comentários destrutivos e que quanto à experiência humana simplesmente não são verdadeiros.

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Poderemos então dizer, em suma, que assistimos a uma espécie de convergência entre desastres naturais e desastres resultantes da intervenção humana? A aceleração da mudança, da perda, das catástrofes, produz uma nova espécie de consciência histórica que nos obriga a aceitar que a história já não é sinónimo de progresso? A história nunca foi sinónimo de progresso. O quero dizer é que a ideia da história enquanto progresso sempre foi muito forte. A mudança nos padrões de vida e na esperança de vida nos últimos 300 anos foi formidável. Não quero afirmar que não existe progresso. Ainda temos progresso de muitas maneiras, mas também estamos a acumular problemas que não são sinónimo de progresso, que são difíceis de enfrentar e que se intersectam. E isto cria um mundo onde é muito mais difícil deixar que o progresso ocorra, segundo o conceito que temos vindo a utilizar, sem uma multiplicidade de efeitos secundários quem podem ser perturbantes, destrutivos, ou as duas coisas ao mesmo tempo. O que retive do seu contributo no encontro do ano passado é o facto de que costumávamos viver a história como algo que estava fora do mundo natural, no qual, nós, enquanto humanidade, deixávamos marcas. Actualmente esta situação está a reverter-se, isto é, é o sistema que está a marcar a humanidade. Tem algum significado, isto? Se o tivesse que resumir numa frase, mais do que nunca a humanidade construiu o seu próprio mundo. Claro que ainda existe o mundo natural não humano. É extremamente poderoso. Mas o equilíbrio entre o que a humanidade construiu e o mundo natural foi modificado. É interessante aperceber-nos que, do ponto de vista histórico, não há uma palavra ou conceito para designar essa mudança de equilíbrio. Chamo-lhe o império humano — o triunfo do império humano. É uma frase de Sir Francis Bacon, que a usou na Nova Atlântida, no século XVII, quando parecia ser bom ter mais conhecimento e mais poder para estabelecer o

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poder humano na Terra. Penso que conseguimos obter esse conhecimento e esse poder e, tal como acontece com qualquer império, é difícil de gerir. Não se gere por si próprio. Mas, enquanto espécie, dominamos o mundo como nunca o fizemos no passado. Portanto, diria que esse acontecimento tem cerca de 100 anos e pode ser observado através de qualquer gráfico que mostre a utilização dos recursos, da energia, do crescimento do consumo, da produção e da população. Em todos estes registos os indicadores sobem. Isto é, o mundo em que vivemos e o mundo que existia não têm nada a ver um com o outro. Trata-se de um terreno completamente novo. Por isso o mundo humano, o mundo construído, o império humano, é o nosso mundo histórico actual e ainda estamos a tentar compreender como agir nele. Em resumo, o que é o rescaldo? Tecnicamente, é como quando se corta o relvado ou um prado e a seguir ele volta a crescer. Depois de se ter cortado não se faz nada, apenas se espera para ver o que acontece. Tivemos muitas discussões nestes encontros sobre o rescaldo e diria que a maior parte de nós conclui que não se encaixa nesta situação, que implicaria haver uma crise — que representa o corte —, e depois o rescaldo, a recuperação. Contudo, neste caso, não parece ser um novo estágio, não parece ser um estágio de recuperação, não me parece ser o que está a acontecer. Por isso, ainda nos estamos a debater com esta questão. Espero que no livro que iremos publicar possamos dizer mais qualquer coisa e optarmos por rejeitar ou por redefinir a ideia ou, em todo o caso, torná-la utilizável. Faz parte desta nova consciência histórica o sentimento de que somos menos capazes de influenciar o mundo? Não sei responder. Talvez sim. A Renascença pensou-se como um renascimento. Tinha existido a Idade Clássica, os clássicos foram redescobertos, retraduzidos e recuperados. Este é um

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outro modo de olhar para o que está a acontecer. Na história, regressámos à ideia de progresso, mas agora de forma diferente. Temos que quase que nos propor inspirar profundamente e descobrir o que significa o progresso num mundo que também está cheio de crises. Mas penso que esta é uma óptima questão a que não posso responder, pois é o tipo de coisas sobre as quais espero que discutamos mais, não apenas no grupo, mas para além dele. E espero que este documentário e outras imagens do acontecimento possam ajudar a manter a discussão e a disseminá-la. Sugeriu-me um pequeno filme. Porque é que o escolheu? Sugeri-lhe um pequeno filme do realizador brasileiro Guilherme Marcondes, que mora em Nova Iorque. Há alguns anos, enviou-me um e-mail a dizer que tinha lido um livro meu sobre o metropolitano. Disse-me que tinha gostado e desde aí temos trocado correspondência. O Guilherme tinha feito um pequeno filme baseado num poema de Willliam Blake, “Tiger, tiger burning”, escrito durante a Revolução Francesa, nos primórdios da Revolução Industrial. Este poeta escreveu num período em que a história parecia estar a passar por uma grande agitação. O filme mostra um tigre artificial — é uma marioneta — e os seus manipuladores. Trata-se claramente de uma criação artificial, mas este animal que está a ser manipulado por pessoas passeia pelas ruas do Rio de Janeiro e, à medida que passa, tudo o que parece humano transforma-se em formas naturais. E então perguntamo-nos: o que é natureza e o que é humano? Há uma metamorfose contínua entre o que é natural e o que é feito pelo homem. E creio ser essa mensagem do filme que me tocou. Seria essa a linha que existe entre o que a humanidade faz e o que é o mundo? Simplesmente, não podemos desenhar uma linha. E também o sentimento de ameaça deste animal, com os seus grandes dentes, animal assustador, mas as pessoas estão a fugir dele ou a manipulá-lo? Será natural ou feito pelo Homem? Há um sentimento de ameaça e de medo,

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contudo as pessoas estão sempre presentes no filme. É um trabalho brilhante. Esta manhã, disse que um dos resultados do grupo, caso conseguissem, seria encontrar colectivamente um nome para esta crise, certo? Sim. Precisamos de novas palavras? De uma nova linguagem? Penso que precisamos de novas palavras, não apenas para esta crise. Seria útil se todos pudéssemos utilizar uma palavra e sabermos, pelo menos em termos gerais, sobre o que estamos a falar. Tem sido muito interessante seguir a evolução das pessoas a experimentar novas linguagens ao longo destes dois anos e meio. Precisamos de pensar o que é uma crise de um modo mais geral. O conceito de uma crise que se desloca lentamente, cuja consequência ainda é a própria crise. Penso que quando estamos perante o que um querido amigo e mentor, Leo Marx, denominou de vazio semântico. As coisas estão a ocorrer num contexto onde não temos linguagem para as designar. Esse é um momento importante na história porque nessa altura a linguagem tem que acompanhar a realidade. O exemplo, utilizado de forma brilhante por Leo Marx, é o da tecnologia. Não conseguimos estar cinco minutos numa conferência académica sem ouvirmos a palavra tecnologia. Mas esta palavra, pelo menos em inglês, começou a ser usada apenas no século XX, a seguir à Segunda Guerra Mundial. O que é a tecnologia? O que faz a tecnologia? São perguntas em torno da palavra. Por isso, penso que estamos numa situação semelhante, na qual vamos ter que inventar a linguagem e depois interrogar-nos sobre o significado destas palavras. Outra palavra é o capitalismo, de que falámos hoje. E todos sentimos que o capitalismo se está a transformar num novo tipo

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de capitalismo. Mas de que se trata? De que linguagem iremos precisar para o descrever? Precisamos de uma nova palavra para “progresso”? Gosto sempre de afirmar que existem progresso social e progresso tecnológico e que ambos não se podem confundir. Mas isso é juntar um modificador. Os adjectivos são coisas maravilhosas! Uma última questão. Sente que está a surgir uma ideia partilhada por este grupo? Apesar de todas as diferenças, há alguma coisa em que concordem? Há uma visão partilhada subjacente a surgir no grupo? Não sei se há visão partilhada, mas penso que existem conclusões partilhadas, nomeadamente quanto a pensar a crise como algo mais do que uma crise económica. Para além disso, penso que surgiu claramente a ideia de que temos que olhar para a crise como algo muito mais geral do que o sector bancário, imobiliário, etc. Penso que iremos trabalhar sobre uma linguagem comum. Iremos fazer algumas propostas nesse sentido. Os nossos artigos ressoam claramente uns nos outros nas conclusões sobre a importância da consciência, bem como sobre o mundo material e a sua compreensão. O que tem estado a acontecer. Assim, é muito compensador ver um grupo de pessoas a agir como um comité e a trabalhar bem em conjunto. Na minha opinião, é isto que ocorre muitas vezes. Reunimos pessoas, que pensam conjuntamente, e de facto dá-se a convergência. Deveria haver mais oportunidades para esse tipo de discussão, em particular em Lisboa. Observamos muito negativismo, populismo, xenofobia… Faz tudo parte da mistura e será o que irá ocorrer nos próximos cinco a dez anos. Como é que será essa mistura? O que irá acontecer? Tanto a falta de esperança como a ruína iminente fazem

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parte do que estamos a viver na história na actualidade. Suspeito que irão coexistir por muito tempo. Também se trata de uma viagem pessoal para si? Tem impacto na sua vida? Tenho filhos e netos. Não é tanto a minha viagem pessoal. O que me assusta é pensar muitas vezes que vou morrer antes de acontecer alguma coisa. Seja o que for. Mas os meus filhos estarão vivos e os meus netos também. Estou muito preocupada, mesmo tendo eles a melhor das educações, etc. Dou por mim mais preocupada do que gostaria. É por este motivo que é muito pessoal. Este grupo está a ajudá-la a lidar com essa questão? É de algum modo uma terapia? Sim, e não é assim tão estranho, pois o simples facto de se falar sobre o assunto já é terapêutico. E também penso que falar com os meus filhos sobre este grupo é uma maneira de falar sobre as suas preocupações e as minhas. Quando me pediram para pensar em imagens, as primeiras pessoas que me lembrei foram os meus filhos. Porque pensei, em primeiro lugar, que estão muito mais vocacionados para a imagem do que eu, estão de facto muito em contacto com aquele mundo. Perguntei-lhes por imagens e foi muito esclarecedor. Aprendi muito sobre eles apenas por fazer a pergunta. Não me fez sentir melhor, mas penso que também os possa ajudar a eles, a mim e ao meu marido, enquanto pais. Num dado momento, apenas queremos ser realistas sobre o mundo. Não queremos ser super-pessimistas ou optimistas. Por isso, penso em termos de uma conversa que nos conduza a um sentimento de realidade. A realidade é sempre uma coisa boa, ter consciência da realidade. Penso que as conversas são úteis.

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Partilho a sua preocupação como mãe. Tenho um filho mais novo com oito anos, mas por vezes penso que não posso fazer nada de melhor por ele. Tentamos fazer o nosso melhor, mas ao mesmo tempo sentimos… Estávamos a falar sobre a história como pais. O movimento das mulheres dos anos 1960 afirmava que a esfera pessoal era política e vice-versa. A esfera pessoal também é histórica. E pensando no meu caso, historicamente: nasci nos Estados Unidos da América, no final da Segunda Guerra Mundial, por isso vivi num período indiscutivelmente rico e poderoso, tanto em termos de cuidados médicos, como de riqueza e de esperança de vida. Os 30 anos gloriosos não ocorreram apenas na Europa, mas também nos Estados Unidos do período pós-guerra. Por isso, como mãe, tenho a certeza de que não será o mesmo período em que os meus filhos irão viver. O seu tempo histórico será diferente e não será tão favorável. E, como disse, não podemos fazer nada de melhor pelos nossos filhos. Apenas podemos falar com eles sobre a situação histórica que estamos a viver. Mas não podemos remendá-la por eles. Penso que se trata de um sentimento de incapacidade parental, por a história ser muito maior do que nós. Não é algo que possamos ajustar ou mudar e as forças são muito mais fortes do que nós enquanto indivíduos, o que é sempre difícil de admitir, sobretudo num mundo em que o instinto é fazer as coisas e torna-las melhores. Isto é difícil de aceitar e penso que os pais poderão ter dificuldades em encontrar as palavras certas para discutir isto. Mas todos os pais que conheço têm o mesmo sentimento: “Espero que os meus filhos tenham uma vida com perspectivas tão boas como eu tive”, sabendo que não será assim. Por isso, é algo profundamente pessoal, familiar e geracional. Só digo isto porque penso que as pessoas estão a tentar pensar a história como algo que se aprende na escola mas, de facto, trata-se da nossa experiência de vida pessoal.

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O que disse é muito penoso. Muitas pessoas são pais. Se pensarmos colectivamente, representa um grande fardo… Recordo-me de uma ocasião em que o antigo presidente Paul Grey se encontrou com um grupo de alunos do MIT. Estavam a dizer isto nos anos 1990 e já na altura diziam que o mundo já não era o que era. Como é que se educam alunos nesta universidade para lidarem com um mundo no qual tanta coisa está a mudar? Já não estamos no mundo do pós-Guerra. Paul Grey, cheio de confiança, respondeu: “O propósito da educação é preparar para a vida, e é isso que fazemos aqui no MIT. Seja qual for o problema, vamos dar aos estudantes as ferramentas para lidarem com ele”. E isto parece ser o melhor que podemos dar aos nossos filhos. Não posso fazer do mundo um local mais seguro ou mais previsível, mas tomem lá algumas ferramentas que vos podem ajudar. Façam o vosso melhor. E agora estão a construir as ferramentas? Bem, a linguagem é uma ferramenta. O ensino superior está a sufocar… Há a educação formal e a educação informal. Recordamos muito melhor a educação informal que recebemos dos nossos pais e da nossa família do que a que aprendemos na escola. Uma coisa que acho muito interessante no seu artigo é o facto de a palavra sustentabilidade fazer parte deste novo momento histórico. Porque essa palavra também confronta o facto de a maneira como vivemos agora e como temos vivido não ser sustentável. Foi também uma das palavras sobre as quais pensei: “Sim, é mesmo uma palavra do nosso tempo, não é coincidência”. Podemos definir progresso social e sustentabilidade material. Mas o modo como o progresso foi definido para a maioria das

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pessoas tem mais a ver com o consumo material. Penso que a palavra progresso é um problema, porque depende muito de como é pensado. E como é que mudamos para a sustentabilidade sem progredirmos? É um pouco aborrecido, não é verdade? Ficamos na mesma. Não é algo que nos agarre, que nos faça querer sair ou querer… Por isso, temos um problema com a linguagem. Porque a ideia é absolutamente necessária, mas para a tornar realmente desafiante e excitante, algo em que as pessoas encontrem significado… Temos que trabalhar nisto, porque as palavras não nos estão a ajudar. Progresso sustentável, sustentabilidade progressiva.

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