Agenciamento e afeto: a máquina de guerra a partir da neurofilosofia.

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Agenciamento e afeto: a máquina de guerra a partir da neurofilosofia.

Charles Borges1

0. Introdução Guerra não é um conceito unívoco. Na verdade o conceito abrange vários tipos que levam em consideração não só fatores de nacionalidade, como território e até mesmo a noção de sociedade civil. Para efeito de delimitação, dado o escopo do presente trabalho, utilizarei a seguinte definição de guerra: conflito armado, atual, intencional e difundido entre comunidades políticas.2 Por comunidades políticas, por sua vez, caracterizarei aqueles grupos que se organizam para assumir o comando do Estado (ou seja, que têm pretensões de governar, ou mais genericamente exercer a dominação). Grupos políticos entram em guerra quando a pretensão de exercício de dominação se manifesta através da força armada. A partir deste critério, pouco importa se o conflito se dá entre Estados soberanos constituídos (o conceito clássico de guerra), ou entre grupos políticos reconhecidos como cidadãos no interior do Estado (guerra civil) ou entre Estado e grupos políticos exteriores que, infiltrados, pretendem, direta ou indiretamente, exercer a dominação. Michel Foucault propôs a célebre inversão do princípio de Clausewitz, como forma de compreender a formação do Estado como “a continuação da guerra por outros meios.” Esta inversão é a que aponta para os limites do formalismo contratualista, indicando os elementos de aparelhamento inerentes à dinâmica concreta no interior do Estado moderno.3 1

Doutorando em Filosofia pelo PPGF-PUCRS. Bolsista da CAPES. contato: [email protected] Em linhas gerais este conceito corresponde àquele fornecido pela Stanford Encyclopedia of Philosophy. Orend, B. "War". in: The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edição de outono de 2008 Edition, disponível em . acessado em 10 de outubro de 2015. 3 Este discurso histórico, da substância, das relações sociais reais, cujo melhor articulador talvez tenha sido Hegel, é exemplificado por Foucault através de um dos maiores teóricos do Terceiro Estado durante a Revolução Burguesa, o abade Siyès: “Para que haja uma nação, segundo Sieyès, deve haver, portanto, leis explícitas e instâncias que as formulem. O par lei-legislatura é a condição formal para que haja nação. Mas essa é apenas a primeira etapa da definição. Para que uma nação subsista, para que sua lei seja aplicada, para que sua legislatura seja reconhecida (e isto não só no exterior, pelas outras nações, mas no interior mesmo), para que ela subsista e prospere como condição não mais formal de sua existência na história, é preciso outra coisa, é preciso [que 2

É justamente a partir desta inversão que eu gostaria de estabelecer as coordenadas do presente trabalho. Se esta inversão possui algum fundo de verdade, restará demonstrado que o Estado contemporâneo pode ser definido como o cruzamento de uma série progressiva de tecnologias de guerra que se aplicam, com diferença de grau, não só ao inimigo externo, mas também ao potencial “inimigo interno” (não só o imigrante naturalizado ou não, mas também o cidadão nato). A partir desta perspectiva, tecnologias de guerra são aplicadas diretamente nos próprios cidadãos como parte de uma estratégia destinada a manter a coesão social, evitando contestações, dissidências, turbulências e eventuais dissoluções do corpo político: no Estado de Direito contemporâneo, “garantir a ordem” torna-se o signo que autoriza o emprego das tecnologias de guerra contra os próprios cidadãos4. O problema que gostaria de trazer para a discussão se articula a partir de três questões: como se estabelecem as relações de dominação (ou de soberania) no interior do Estado? Qual o papel desempenhado pela ciência no Estado soberano contemporâneo? E, por fim, como o conceito de guerra se torna o articulador necessário e suficiente para que se sustente um vínculo estreito entre política estatal e ciência.5

existam] outras condições. E é nestas condições que Sieyès se detém. São as condições de certo modo substanciais da nação, e Sieyès vê dois grupos delas. Acima de tudo, o que ele denomina “trabalhos”, ou seja, primeiro a agricultura, segundo o artesanato e a indústria, terceiro o comércio, quarto as artes liberais. Porém, além desses “trabalhos”, é preciso o que ele denomina “funções”: é o exército, é a justiça, é a Igreja e é a administração pública. “Trabalhos” e “funções”: diríamos decerto com mais verossimilhança, “funções” e “aparelhos” para designar esses dois conjuntos de requisitos históricos da nação. Mas o importante é precisamente que seja nesse nível de funções e de aparelhos que sejam definidas as condições de existência histórica das nações.” FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. Tradução de Maria Ermentina Galvão. 1.ed. 3.tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 262-263. 4 É importante ressaltar, de antemão, a significativa mudança nas tensões internacionais no período pós guerra fria. Se, com a divisão em dois blocos, pairava sobre o mundo a iminência de uma guerra entre Estados, o certo é que a nova conjuntura geopolítica no mundo pós Perestróica deu vazão a um novo tipo de guerra: a guerra contra o terrorismo. Os principais esforços no desenvolvimento de tecnologias de guerra (softwares de reconhecimento facial, emprego de aviões não tripulados, por exemplo) se dão no sentido de desarticular e combater os atos de terrorismo. Não são mais tão somente os outros Estados a principal ameaça à soberania, mas sim os “atos terroristas”. Frente à amplitude conceitual do termo “atos terroristas” os Estados se apressaram a aprovar “leis antiterrorismo” que se aplicam a todos, inclusive aos cidadãos do próprio Estado. As chamadas “leis antiterrorismo” geralmente possuem vários dispositivos que, além de qualificar os “crimes de terrorismo” e aplicar penas mais duras a quem os pratica, possibilitam ao Estado passar por cima de vários direitos individuais (como o direito à privacidade, por exemplo) de forma a aplicar várias tecnologias de guerra aos próprios cidadãos ( por exemplo: controlar, espionar e interferir na troca de informação, limitar acessos, conferir confidencialidade a dados e documentos oficiais, etc.). Recentemente a China aprovou uma polêmica “Lei Antiterrorismo” quase ao mesmo tempo em que o Senado Federal brasileiro aprovava, em 28/20/2015, o PLC 101/2015 que considera terrorismo por extremismo político “o ato que atentar gravemente contra a estabilidade do Estado Democrático, com o fim de subverter o funcionamento de suas instituições.” SENADO FEDERAL, Parecer n.º 940, de 2015. http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=182196&tp=1 acesso em 20/12/2015. 5 No presente trabalho o domínio específico é o da neurociência.

Se pudéssemos distinguir três domínios6 e chamá-los de individual, supra-individual e infraindividual, correspondendo o primeiro ao conjunto de tecnologias que agem sobre o indivíduo (ou sujeito), o segundo ao conjunto de tecnologias que agem sobre populações (social) e, por fim, o terceiro ao conjunto de tecnologias que agem nos vetores de formação do indivíduo (ou nível somático), gostaria de centrar minha abordagem ao terceiro nível, ou seja, ao nível infraindividual e analisar o funcionamento da relação Estado-ciência-guerra neste domínio específico7. Trazendo para a discussão estes três problemas, pretendo descrever a relação entre organização e ordem no âmbito subjetivo; descrever o papel desempenhado pelo conceito de guerra na formação desta relação; desenvolver uma análise crítica da neurociência enquanto prática de normalização que, no interior do Estado soberano, se aplica sobre os indivíduos encarregados da guerra. A hipótese deste trabalho é que é o conceito de guerra (derivado diretamente dos conceitos máquina de guerra, agenciamento maquínico) que torna possível uma intervenção no nível infra-individual dos afetos para efeitos políticos. Neste nível (infra-individual) as intervenções ou modulações operadas pelo aparelho de Estado se dão no sentido de normalizar qualquer exterioridade, de eliminar qualquer exceção que possa servir de elemento de dissenso, insurgência ou novidade não controlável a partir do interior do corpo político. Esta normalização se opera de forma endógena quanto exógena e tem como objetivo manter a “guerra por outros meios” ao mesmo tempo em que vê controlado o agenciamento maquínico capaz de instaurar uma exceção de fato e que leve à reorganização ou à dissolução do corpo político. Não podemos ir tão rápido, entretanto. Para chegar no nível infra-individual, necessito, antes de mais nada, fazer um longo desvio pelo nível social, pelo corpo político, a começar pela elucidação dos conceitos de máquina de guerra (e agência) e aparelho de Estado. 1. Máquina de guerra e o aparelho de Estado: dois estados puros.

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Sobre estes três níveis, consultar PROTEVI, J. Life, War, Earth. Deleuze and the sciences. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. p. 99-155. 7 Ainda que aplicada a limitação de escopo, o certo é que a abordagem envolve, em alguma medida, os outros dos níveis.

Máquina de guerra e aparelho de Estado são duas coordenadas utilizadas por Deleuze e Guattari para situar o nível dos agenciamentos. Os agenciamentos8 são passionais, composições de desejo (o desejo não é “determinação natural ou espontânea”, é agenciado, maquinado) ou seja, combinações de apetites que formam as emoções básicas. Se estamos no domínio do desejo (conatus), podemos distribuir duas coordenadas: agenciamentos de guerra e regime do trabalho, mobilizando paixões de ordens diferentes (afetos9 e sentimentos) que, de modo analítico, são exteriores umas às outras. Deste modo, a máquina de guerra é algo exterior ao Estado porque, antes de mais nada é um agenciamento. O modelo do guerreiro é o nomadismo, enquanto o do aparelho de Estado é territorial. O guerreiro organiza sua trajetória e sua formação em razão da guerra (ou pelo menos do confronto). Não de uma guerra real, mas sim de um campo de batalha. A máquina de guerra se forma sempre a partir de uma estrutura estruturante, um espaço liso, formado por coordenadas relacionais que prescindem de um território fixo, enquanto o Estado age de 8 Graham Livesey resume da seguinte forma o conceito de agenciamento utilizado por Deleuze e Guattari: “Conforme Deleuze e Guattari há eixos verticais e horizontais associados com os agenciamentos. os eixos horizontais lidam com ‘agenciamentos maquínicos de corpos, ações e paixões’, bem como com um ‘agenciamento coletivo de enunciação, de atos e sentenças, de transformações incorporais dos corpos.’ (D&G 1987: 88). Os eixos verticais possuem tanto ‘perspectivas territoriais ou reterritorializadas, que as estabilizam, bem como bordas de desterritorialização que as desestabilizam (D&G 1987: 88). Através de sua multiplicidade, um agenciamento é moldado por e atua sobre uma ampla variedade de fluxos. Agenciamentos, conforme concebidos por Deleuze e Guattari, são constelações de objetos complexos, corpos, expressões, qualidades e territórios se aglutinam, por perídos de tempo variáveis, para idealmente criar novas formas de funcionamento. Os agenciamentos operam através do desejo como máquinas abstratas, ou arranjos, que produzem e têm funções; o desejo é a energia de circulação que produz conexões. Um agenciamento transparece como um conjunto de forças coalescentes, de modo que o conceito de agenciamento se aplica a todas as estruturas, desde o padrão de comportamento de um indivíduo até a organização das instituições, um arranjo de espaços e ecossistemas. Os agenciamentos emergem da transformação de um arranjo de elementos heterogêneos numa entidade produtiva (ou maquínica) que pode ser diagramada, numa temporalidade menor. O diagrama define a relação entre um conjunto particular de forças; um diagrama é, de acordo com Deleuze, o ‘mapa do destino’ (D 1988b: 36). Efetivamente, o digrama é o código ou o arranjo pelo qual um agenciamento opera, ou seja, o mapa das funções de um agenciamento; estes, por sua vez, produzem afetos e efeitos. A dimensão maquínica ressalta a objetividade, a ausência de localização específica e o papel primário (produção) fundamental do agenciamento.” LIVESEY, G. "Assemblage". In: PARR, A. The Deleuze Dictionary. Edinburgh: Edinburgh University Press , 2010, pp.18-19. 9 Felicity Colman define o conceito deleuzeano de afeto da seguinte forma: “Afeto é a mudança ou variação que ocorre quando corpos colidem, ou entram em contato. [...] Em sentido amplo, o afeto é parte do projeto deleuzeano de tentar entender ( compreender) e expressar todas as incríveis, maravilhosas, trágicas, dolorosas e destrutíveis configurações das coisas e corpos, em sua condição e de eventos temporalmente mediados e contínuos. Deleuze utiliza o termo ‘afecção’ para se referir aos processos, forças, poderes e expressões de mudança (alteração) – a mistura de afetos que produzem a modificação ou a transformação no corpo afetado. [...] O sentido deleuzeano do termo afeto deve ser considerado um conceito filosófico que indica o resultado das interações entre corpos; um produto afetivo. . COLMAN, F. LIVESEY, G. "Affect". In: PARR, A. The Deleuze Dictionary. Edinburgh: Edinburgh University Press , 2010, pp.11-12. Além deste aspecto puramente maquínico, ou melhor, como consequência deste caráter relacional, temos o aspecto emocional constituído pelas emoções de fundo, emoções primárias e emoções sociais, conforme restará esclarecido no decorrer do presente.



forma territorial estriada: por contenção, por inspeção, por lei, por decretos, autorizações permissões – o modelo do aparelho de Estado é gravitacional, pesado, euclidiano. O aparelho de Estado policia, vigia, detém. O Imperador e o Soberano não fazem guerra, pois guerra é a desordem, o caos (externo ou interno). O Imperador e o Soberano mantêm a ordem, a Lei. Isso não quer dizer que a máquina de guerra, nômade em oposição ao Estado territorial não tenha regras. Há sim um conjunto de regras de distribuição de funções, de posições, de afinidades e de correlações no interior da máquina de guerra. Entretanto, diferentemente do aparelho de Estado, a máquina de guerra opera no domínio da organização imanente. O líder do bando, o chefe da tribo está constantemente exercitando e reafirmando a sua liderança; sua potência de liderança é posta em dúvida, é provada o tempo todo. Provada na prática, no exercício das velocidades inerentes à batalha e à guerra. Já o aparelho de Estado funciona pelo modelo da ordem. A Lei e a completude do ordenamento jurídico, a capilaridade dos Decretos e Portarias, Serviços Notariais, tudo funciona a partir de delegações daquele que detém o poder soberano. Em resumo: se a máquina de guerra é caracterizada pela potência, o aparelho de Estado o é pelo poder. O mesmo se dá em relação à unidade. Se é certo que a máquina de guerra tem uma unidade, tal fato só acontece em função da permanente formação guerreira. A máquina de guerra não tem território fixo, seu território é sua formação, sua unidade territorial coincide com sua organização guerreira. Suas tecnologias funcionam para garantir esta “unidade em ação”. É uma unidade vetorial. Já o aparelho de Estado mantém sua unidade evitando a guerra. É certo que o soberano tem o poder de declarar a guerra, é possível até mesmo definir a soberania por este poder. Entretanto, este poder existe justamente para ser evitado. Outro poder do soberano, o monopólio da força, substitui a guerra. O uso da força, a coerção, a ordem coercitiva que garante a unidade territorial se estabelece para que a guerra seja evitada. A máquina de guerra deve ser repelida.

2. As impurezas. Máquina de guerra e aparelho de Estado são dois modelos ideais. A máquina de guerra como agenciamento da ordem dos afetos e o aparelho de Estado ordenado pelo distanciamento dos sentimentos (a distinção entre afeto e sentimento restará clara no que segue). O aparelho de Estado tem que ser ordem pura. Uma Teoria Pura do Direito é o sonho de qualquer Estado soberano. A garantia jurídica a partir de um ordenamento que dê conta de tudo, que abarque

todas as situações, sem nenhuma interferência externa, sem nenhuma intervenção “extralegal” do governante. Este modelo de aparelho de Estado estaria, portanto, mais ligado ao conceito de trabalho do que necessariamente ao de guerra. À máquina estatal cabe mais gerir a produção, distribuir as ferramentas, ordenar a distribuição, a divisão do trabalho do que organizar a guerra. É Carl Schmitt o teórico que aponta para o fato de que, das teologias deístas ao Estado liberal moderno, a ideia de pureza de um Estado identificado com um ordenamento jurídico que funciona sem atrito e, postergando a guerra, se impõe como ideologia de management10, e acrescenta: [no Estado moderno] “mesmo quando reconhecida a excessiva idealidade de uma Teoria Pura do Direito, os teóricos da ordem que admitem uma intervenção fática o fazem em nome da ordem.”11 É o mesmo Carl Schmitt que identifica os limites deste modelo puro e vê o inevitável encontro entre o aparelho de Estado com o seu exterior, a máquina de guerra que excede à lei, que resiste à tradutibilidade, que se constitui como exceção e quebra a repetição mecânica das rotinas estatais.12 Carl Schmitt identifica, com clareza, a impossibilidade de que o aparelho de Estado se caracterize como mero gestor de um exército. Para formar um exército, longe de ser um gestor ingênuo, o Estado deve funcionar como um aparelho de captura. A exceção, a máquina de guerra deve ser modulada, capturada pelo aparelho de Estado, de maneira que os sistemas de acoplamento próprios e inerentes à formação guerreira possam ser absorvidos pelo e postos a serviço do Estado. Ainda que identifique com clareza estes dois vetores, Carl Schmitt resolve esta tensão entre máquina de guerra (organização imanente) e aparelho de Estado pelo lado da ordem ou da transcendência. Autoridade é quem decide o que é exceção, o que é máquina de guerra e, no mesmo golpe, modula, captura os agenciamentos da máquina de guerra e se faz guerra em nome da ordem.13 O Estado se faz guerra permanente na medida em 10

“A maneira, hoje dominante, do pensamento técnico-econômico não consegue mais, de forma alguma, perceber uma ideia política. O Estado moderno parece, realmente, ter-se tornado aquilo o que Max Weber nele vê: uma grande empresa.” SCHMITT, C. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006. p. 59. 11 SCHMITT, C. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006. p. 15. 12 “A exceção é mais interessante do que o caso normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo; ela não somente confirma a regra, mas esta vive da exceção. Na exceção, a força da vida real transpõe a crosta mecânica fixada na repetição.” SCHMITT, C. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006. p. 15. 13 “A norma de um meio homogêneo. Essa normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar. Ao contrário, pertence à sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante. Todo Direito é ‘direito situacional’. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele

que, ao lado de gerir a produção, se impõe a tarefa de capturar potenciais agenciamentos maquínicos e submetê-los à ordem, à ideia de Bem Comum. Não seria de todo um equívoco falar em uma “epigênese” da formação estatal. O Estado moderno se forma, se constitui, toma suas coordenadas, de dentro de uma máquina de guerra. A máquina de guerra precede ao Estado assim como os instintos precedem às instituições. Certamente esta constatação pode ser feita somente a posteriori, vez que, na prática, o Estado já é em si este estado impuro que entrelaça instintos e instituições ou, se preferirmos, entre afetos (relações entre corpos e emoções) e sentimentos que conduzem à ideia de Bem Comum sentimentos organizados em noções comuns a partir do conceito de relação). Mas este recorte é ainda no nível supra individual. Estamos aqui no domínio da formação social. O que me interessa, a partir destas coordenadas, é ver como este estado impuro funciona na formação do indivíduo, mormente o indivíduo que irá desempenhar o papel de guerreiro no interior do Estado. A questão é: como se dá esta submissão do afeto à ideia de Bem Comum no nível infra-individual? Para elaborar uma resposta, volto ao mapeamento das duas coordenadas. Ao domínio dos afetos (arma) e o domínio dos sentimentos (ferramenta). É o conceito de guerra que torna possível a formação de um aparelho de Estado como acoplamento entre afetos e sentimentos (impureza). É só na medida em que o Estado reconhece a existência efetiva da máquina de guerra e dos agenciamentos de ordem afetiva (e a necessidade de interferir nos afetos) que se pode falar em Bem Comum (no sentido contemporâneo do termo). No ponto de encontro dessas duas coordenadas que vou chamar, com Deleuze e Guattari, de afetos e sentimentos é que surge o aparelho de Estado como expansão infinita de uma guerra permanente (ou, se preferirmos, permanente captura). Afetos e sentimentos são dois níveis do agenciamento. Cabe lembrar que, além de relação afecção entre corpos, agenciamentos são passionais, composições de desejo (desejo não é “determinação natural ou espontânea”, é agenciado, maquinado), ou seja combinações de apetites que formam as emoções básicas, conforme afirmam Deleuze e Guattari.14

tem o monopólio da última decisão.” SCHMITT, C. Teologia Política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006. p. 14. 14 “Racionalidade e o rendimento de um agenciamento não existem sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos que o constituem, tanto quanto ele os constitui.” DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. 1.ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 78.

Se estamos no domínio do desejo (conatus), podemos distribuir duas coordenadas: agenciamentos de guerra e regime do trabalho, mobilizando paixões de ordem diferente (afetos e sentimentos). Os agenciamentos de guerra, as afecções, afetos ou emoções são do domínio da resposta, da descarga rápida, do revide, em resumo: da composição de velocidade entre elementos. Tais agenciamentos remetem ao móvel em si. Os afetos são projéteis, armas: projeção, velocidade e ação livre são as características que definem os dispositivos de resposta ou afetos, ou armas. Armas são afetos e afetos são armas. Temos toda uma relação afetiva com as armas, com a ação de disparo. Por outro lado, o regime de trabalho é inseparável da organização e do desenvolvimento de uma forma. Seu correspondente é o domínio do sentimento. O sentimento é da ordem da gravidade institucional, da avaliação da matéria e de suas resistências, um sentido da forma e de seus desenvolvimentos, uma economia da força. O sentimento trabalha a matéria, é distanciamento, é instituição, é da ordem do trabalho paciente e repetido realizado pelas ferramentas (a “repetição” que incomoda tanto Carl Schmitt). Deste modo, as principais características do regime dos sentimentos são: a introcepção15, a gravidade, o trabalho, o uso das ferramentas16. Distinguimos, assim, dois momentos: o dos afetos, projeções, velocidades e instintos que correspondem às armas e o dos sentimentos, introcepção, gravidade, instituições que correspondem às ferramentas (Deleuze e Guattari utilizam-se do exemplo das artes marciais para traçar esta distinção entre afeto e sentimento).17 15

O termo introcepção, utilizado por Deleuze e Guattari, corresponde à ideia “de que temos acesso a um sentido muito especial, o sentido do interior do corpo, ou seja, o sentido introceptivo”, conforme Damásio. Esta ideia, ainda conforme Damásio, é geralmente negada pelos livros de neurologia. Entretanto, tomou novo fôlego com os trabalhos de A.D. Craig. Ver DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.155; p. 319, notas 20-22. 16 O regime de trabalho é inseparável de uma organização e de um desenvolvimento de uma Forma, aos quais corresponde uma formação do sujeito. É o regime passional do sentimento como “forma do trabalhador”. O sentimento implica uma avaliação da matéria e de suas resistências, um sentido da forma e de seus desenvolvimentos, uma economia da força e de seus deslocamentos, toda uma gravidade. Mas o regime da máquina de guerra é antes o dos afetos, que só remetem ao móvel em si, a velocidades e a composições de velocidade entre elementos. O afeto é a descarga rápida da emoção, o revide, ao passo que o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada, resistente. Os afetos são projéteis tanto quanto as armas, ao passo que os sentimentos são introceptivos como as ferramentas. Há uma relação afetiva com a arma, da qual dão testemunho não apenas as mitologias, mas a canção de gesta, o romance de cavalaria e cortês. As armas são afetos e os afetos são armas. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Vol. 5. 1.ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2008. p 79. 17 “[…] As artes marciais sempre subordinaram as armas à velocidade, primeiramente à velocidade mental (absoluta); mas, através disso, eram também as artes do suspense e da imobilidade. O afeto percorre esses extremos. Por isso as artes marciais não invocam um código, como uma questão de Estado, mas caminhos, que são outras tantas vias do afeto; nesses caminhos, aprende-se a “desviar-se” das armas tanto quanto servir-se delas, como se a potência e a cultura do afeto fossem o verdadeiro objetivo do agenciamento, a arma sendo

É obvio que estes dois estados não se restringem ao âmbito social. No domínio das emoções, por exemplo, podemos distinguir três níveis correspondendo às emoções de fundo, às emoções propriamente ditas e às emoções sociais18. Passemos, então, ao nível das emoções no âmbito infra-individual. 3. Emoções e afetos no nível na formação da subjetividade De uma forma menos abstrata e metafórica, podemos caracterizar estas duas coordenadas utilizando as definições de emoções e sentimentos desenvolvidas por Damásio. Para este autor, as emoções precedem os sentimentos e têm um caráter evolutivo. Em seu aspecto mais básico as emoções nada mais são do que a expressão do resultado de um encontro entre corpos. Emoções são reações simples que promovem a sobrevida. Daí sua equiparação à homeostasia. Em sua origem as emoções são automáticas, ou seja, são nada mais do que processos de regulação, mecanismos para solucionar problemas básicos da vida. Damásio recorta três níveis no processo de constituição das emoções.19 Níveis que, seguindo as coordenadas estabelecias por Deleuze e Guattari, eu chamaria de passagem das afecções aos afetos. Num primeiro nível teríamos a pura afecção constituída pelo metabolismo (componentes químicos e mecânicos responsáveis pelas secreções endócrinas, contrações apenas meio provisório. Aprender a desfazer, e a desfazer-se, é próprio da máquina de guerra: o “não-fazer” do guerreiro, desfazer o sujeito. Um movimento de descodificação atravessa a máquina de guerra, ao passo que a sobrecodificação solda a ferramenta a uma organização do trabalho e do Estado.” DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Vol. 5. 1.ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2008. p 79-80. 18 Damásio classifica as emoções em três tipos. Emoções de fundo: correspondem ao conjunto ou cadência de gestos, comportamentos, ritmo, tom, frequência e amplitude de voz, amplitude de movimentos, postura corporal e assim por diante. “As emoções de fundo são combinações de certas reações regulatórias simples e são, portanto, o resultado imprevisível do desencadeamento simultâneo de diversos processos regulatórios dentro de nosso organismo.” Já as emoções primárias (ou emoções básicas) são aquelas estabelecidas pela reiteração ou pela tradição, pelo hábito. São comportamentos quase que estereotipados que implicam uma reação a um conjunto de circunstâncias. A lista é longa. Alguns exemplos são: medo, raiva, nojo, surpresa, tristeza, felicidade e assim por diante. Estas emoções básicas se manifestam em várias culturas e até mesmo em outras espécies. Por fim, temos as emoções sociais: simpatia, compaixão, embaraço, vergonha, culpa, orgulho, ciúme, inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo. Estas emoções sociais são compostas a partir das emoções de fundo e das emoções primárias. É como se fosse um agenciamento em três níveis interdependentes (indignação e desprezo, por exemplo, utilizam-se de gestos e expressões corporais próprias do nojo, que, por sua vez, evoluiu como mecanismo de rejeição automática e benéfica de elementos potencialmente tóxicos). Para uma visão detalhada do assunto ver DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp. 56-60. 19 Para uma visão detalhada dos níveis que apresento de modo sumário aqui ver DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp. 39-46.

musculares relacionadas à digestão, etc.), a função principal desta maquinaria metabólica seria manter o equilíbrio químico interior, ou seja, repelir e resistir às afecções que agridem e produzir ou atrair afecções que contribuem para a sobrevida do organismo. Além do metabolismo, este nível primário também contaria com aquilo que Damásio chama de reflexos básicos. Reflexos de Startle (de alarme ou susto), ou seja, reflexos de reação a ruídos inesperados (uma explosão por exemplo) e tropismos que levam os organismos a procurar a luz e não o escuro, ou a evitar o frio ou calor extremos. Por fim, neste nível básico, temos as respostas imunitárias do sistema imunológico que se configura como a primeira linha de defesa dos organismos vertebrados quando sua integridade é ameaçada, quer do interior, quer do exterior. Um segundo nível é constituído pelos comportamentos de prazer (recompensa) e dor (punição). Estes comportamentos incluem reações de aproximação e retraimento apresentadas pelos organismos. A título de exemplo, podemos citar, com Damásio, os sinais químicos nociceptivos (indicadores de dor) que disparam não só o comportamento de dor, como também o comportamento de doença (retraimento do corpo, por exemplo). Ainda neste segundo nível, podem ser encontradas as pulsões e motivações: fome, sede, curiosidade, comportamentos exploratórios, lúdicos e sexuais. Por fim, num terceiro nível encontraríamos as emoções propriamente ditas: alegria, mágoa, medo, tristeza, orgulho, vergonha, simpatia, e assim por diante (emoções primárias e emoções sociais). É o agenciamento destes três níveis que forma as emoções em sentido amplo. Homeostase, regulação, reação, avaliação de circunstâncias internas e externas levam ao desenvolvimento de um sistema de disparo estereotipado, reações automáticas (embora algumas já possam ser moduladas) que têm como objetivo não só a preservação pura e simples, mas também o aumento da qualidade da sobrevida do organismo. O princípio de organização das emoções é o agenciamento (ou acoplamento) dos três níveis. Todos os três níveis são interdependentes e o comportamento de reação, a “máquina de guerra” é o resultado final deste entrelaçamento. É todo um sistema de projeção que emerge do nível mais básico (invisível a olho nu) até o nível dos comportamentos emocionais estereotipados. Descritos os três níveis, posso destacar as cinco características principais definidoras das emoções como mecanismo de resposta, conforme destacadas por Damásio20: 20

DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 61

1. Coleção de respostas químicas e neurais que forma um padrão distinto. 2. Estas respostas são automáticas – ocorrem quando o cérebro detecta um estímuloemocional-competente (EEC), i.e., quando o objeto ou acontecimento, cuja presença é real ou relembrada, desencadeia a emoção. 3. A resposta aos EEC se dá por repertórios de ação específicos. A lista dos EEC é filogenética e experiencial. 4. O resultado imediato da resposta é uma alteração do estado do corpo e das estruturas cerebrais que mapeiam o corpo e sustentam o pensamento. 5. O resultado é a colocação do organismo, direta ou indiretamente, em circunstâncias que levam à sobrevida e ao bem-estar (formação de uma máquina de guerra). Além desses cinco componentes, há uma fase de “avaliação”, um intervalo entre o EEC e a resposta. Ao que eu chamo de intervalo de disparo. O que segue à avaliação é a projeção, o projétil (imobilidade, fuga, revide, etc..): um cálculo de velocidades, distâncias, arremessos e projeções que é modulado: os organismos aprendem a modular a velocidade de disparo, dependendo da circunstância, da situação. A partir do modelo dos afetos temos: agenciamentos no nível cerebral (bioquímicos, impulsos elétricos), que se estendem aos dispositivos corporais e aos acoplamentos de extensão. A arma

é

o

prolongamento

de

uma

emoção

modulada.

O

agenciamento

guerreiro/cela/cavalo/rédea é o projétil, é a velocidade de disparo de emoções moduladas. Por outro lado, temos o nível dos sentimentos. Se o sentimento é da ordem da introcepção, podemos afirmar, com Damásio, que esta introcepção é a percepção ou leitura dos estados corporais e dos estados mentais correspondentes. Um sentimento é uma percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar, dirá Damásio.21 Damásio diz que o conteúdo essencial do sentimento é uma ideia de um certo aspecto do corpo quando o organismo é levado a reagir a objetos ou situações, “uma ideia do corpo quando este é perturbado pelo processo emocional. O cerne dessa noção de sentimento que

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“A origem das percepções que constituem a essência dos pensamentos é clara: o corpo é continuamente mapeado num certo número de estruturas cerebrais. Os conteúdos das percepções também são claros: estados do corpo retratados nos mapas cerebrais do corpo.” DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 92-94

hoje defendo provém das propostas de William James […]”.22 Entretanto, este conteúdo essencial não esgota o conceito. Mais dois conteúdos são necessários. Para além das imagens do corpo que dão ao sentimento o seu conteúdo distinto, temos que incluir a representação da forma de pensar que acompanha a percepção do corpo, bem como a percepção dos pensamentos que concordam, em matéria de tema, com o tipo de emoção que estamos sentindo.23 Os sentimentos são percepções interativas. Além disso, estas percepções não são passivas, envolvem um “recrutamento dinâmico e repetido do corpo”, principalmente quando estamos diante de sentimentos alegres. Em resumo: há uma resistência às variações, uma captura e uma retenção de estados emocionais. Em uma importante nota de rodapé, Damásio ressalta esta característica do sentimento: resistência à perturbação.24 A partir desta perspectiva, os sentimentos são formações de ideias sobre o corpo. Sentimentos envolvem uma ideia de alegria extraída, por exemplo, de relações materiais que amplificam no organismo a capacidade de agir. Os sentimentos formam uma noção sobre a relação, são o ponto de chegada enquanto leitura retrospectiva de um amálgama de agenciamentos. Deste ponto de vista, os sentimentos são aquilo que ordena, que modula, que distribui (a partir do trabalho paciencioso e da introcepção) os mecanismos de resposta. A partir do domínio dos sentimentos, as respostas não são mais imediatas, atuais. Os sentimentos carregam consigo uma espécie de intervalo (delay) entre estímulo e resposta. Este intervalo é o intervalo da leitura dos estados corporais que, por sua vez, se dá a partir do desenvolvimento de uma série de ferramentas utilizadas para trabalhar, moldar, dar coerência e coesão às emoções. Assim, no domínio da relação entre emoções (ou afetos) e sentimentos, não há como falar em ideias adequadas. Quando muito, podemos falar de noções comuns. Os sentimentos nos levam a uma ideia do que seja o Bem Comum (ou a uma ideia do que seja um mal a ser evitado). Esta ideia do que seja o Bem Comum, uma ideia de ordem formada pelos sentimentos, resistirá às perturbações causadas pelo turbilhão incessante das emoções. O aparelho de Estado se empenhará na captura, na modulação de qualquer agenciamento que seja identificado como perturbação ao Bem Comum (à ideia de Bem Comum). Estes 22

DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 95. 23 DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 96. 24 “O meu colega David Rudrauf defende a ideia de que a resistência à variação é a causa principal da nossa experiência das emoções, uma ideia que se coaduna bem com o pensamento de Francisco Varela. Parte daquilo que sentimos corresponderia a resistir às perturbações causadas pela emoção e à tendência de controlar essas perturbações.” DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 317.

agenciamentos, entretanto, não deixarão de proliferar, de resistir aqui e ali, no interior do corpo político. Cabe ao aparelho modulá-los, voltando contra a máquina de guerra, uma guerra permanente em nome do Bem Comum. A unidade política tem vazão neste estado confuso onde armas se fazem ferramentas e vice-versa, onde emoções e sentimentos travam sua “batalha”. A neurociência desempenha um papel importantíssimo como ferramenta, intervindo no nível infra-individual. Um dos principais aspectos da neurociência é a capacidade de funcionar como instrumento de normalização, agindo diretamente sobre os indivíduos para modular qualquer componente emocional que seja potencialmente nocivo aos ideais de ordem, unidade e de Bem Comum – intervir na exceção. O caso emblemático de modulação é a intervenção direta nos indivíduos que compõem exércitos e polícias (que, por sua vez, farão a intervenção direta no corpo político), objetivando “otimizar a tomada de decisão”, “otimizar a performance de unidade” ou mesmo “controlar as emoções indesejáveis”, em suma, evitar emoções que sejam nocivas ao corpo político. 4. Exemplo de modulação de afetos pela neurociência Estudos e técnicas contemporâneas que se aplicam diretamente ao cérebro e ao sistema nervoso objetivando (dentre outros) interferir diretamente nos mecanismos afetivos e, com isso, “otimizar performance” podem ser remontados já à primeira Guerra Mundial. Entretanto, o marco institucional de um programa voltado exclusivamente à otimização de performance do chamado “warfighter”, isto é, do “soldado em ação”, remonta a 1957 e à fundação da Defense Advanced Reseach Projects Agency (DARPA) pelo governo norte americano. Desde sua fundação, a DARPA cumpre um papel importante não só no desenvolvimento de pesquisas próprias, no funcionamento como agência de fomento (financiamento de pesquisas, disponibilização de dados), mas também como elo de ligação entre universidades e empresas cujas pesquisas e projetos tenham alguma relevância para o desenvolvimento de tecnologias de defesa (interna e externa). As ciências que se voltam para o estudo do cérebro e do sistema nervoso, hoje reunidas sob o guarda-chuva das “cognitive sciences” (ciências cognitivas) sempre foram um dos principais focos de atenção da DARPA. Por mais de meio século a agência vem se dedicando a estudos em psicologia, psiquiatria, genética, neurobiologia, neurociência, robótica, inteligência

artificial e inteligência aumentada, para ficar somente em alguns tópicos. Sendo a modulação das emoções um dos principais objetivos da agência, não causa espanto o fato de que suas pesquisas têm se voltado para o estudo dos mecanismos das emoções, de modo a tornar possível a intervenção direta nos mesmos. Tais pesquisas se intensificaram a partir de 2013, quando o presidente Obama anunciou o programa Brain Initiative (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies) tendo a DARPA como um de seus apoiadores oficiais25. Não por acaso a agência é um dos apoiadores do Brain Initative. Conforme já relatei acima, a DARPA vem aplicando consideráveis esforços em neurotecnologias por mais de meio século. Estes esforços, conforme já ressaltei, são o resultado de uma atividade integrada pelas universidades e pela iniciativa privada, o que torna a presença da agência imprescindível para qualquer projeto de pesquisa voltado para o cérebro. Em seu esforço integrado com as universidades dos EUA, a DARPA alcançou inegáveis progressos no que diz respeito à modulação de comportamento e de emoções. Jonathan D. Moreno26 produziu um importante trabalho que não apenas descreve alguns desses programas de pesquisa, mas também os relaciona com o contexto geopolítico em que tiveram vazão (além de faz uma avaliação crítica do uso das tecnologias de defesa). Dentre os programas de pesquisa ressaltados por Moreno, gostaria de chamar a atenção para dois exemplos de modulação de emoções que se caracterizam como verdadeiras intervenções no nível infra-individual dos afetos. Dentro do projeto de Augmented Cognition levado adiante pela DARPA, há uma série de pesquisas voltadas à otimização de estados emocionais, dentre as quais talvez a mais importante seja a que lida com o estresse. O estresse é reconhecido como uma das principais causas de falha humana em situação de combate. O déficit de atenção é um dos “efeitos colaterais” do estresse prolongado. É justamente neste momento de déficit que a falha ocorre. Entretanto, a crise (a situação de estresse), tem reconhecidamente um aspecto positivo: promove o foco, a concentração. A mente sob estresse permanece focada e se adapta rapidamente a novas situações. É uma consequência do mecanismo de defesa construído pelo processo evolutivo que consiste num aumento de nosso poder cognitivo quando estamos diante de situações de intenso perigo. 25

Para um panorama sobre as atividades da DARPA no Brain Initiative ver: http://www.darpa.mil/program/ourresearch/darpa-and-the-brain-initiative acessado em 11/09/2015. 26 Para uma abordagem detalhada ver MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006.

A situação de estresse tem este aspecto paradoxal, desenvolvendo, quase que simultaneamente, duas “tendências”: o déficit de atenção e o aumento do poder cognitivo (e da capacidade de concentração). Partindo desta constatação, o programa de pesquisa levado adiante pela DARPA procura separar estes dois aspectos do estresse. Reduzindo os efeitos de distração, se pretende deixar livre os aspectos adaptativos que aumentam a cognição, ou seja, utilizar propositalmente o estresse como fator de aumento da capacidade de ação do soldado em combate. A administração do estresse em combate foi tradicionalmente feita através do uso de drogas específicas. Entretanto, há dois grandes problemas no uso desta técnica: os efeitos do medicamento são de difícil controle e previsão; além disso, afetam outras funções que comandam o foco e são essenciais em situações de perigo. Deste modo, o objetivo do programa é redefinir o problema. Ao contrário de buscar alterar a capacidade do indivíduo de lidar com o estresse, busca-se redefinir o problema em termos sistemáticos: a situação de estresse envolve um sistema composto de um soldado e do equipamento utilizado pelo mesmo27. Considerado de uma perspectiva sistemática, o estresse pode ser distribuído entre o soldado e o equipamento numa espécie de divisão de tarefas.28 O objetivo do programa de pesquisa consiste em desenvolver um sistema de loop computacional no qual “o computador se adapta ao estado do guerreiro em ação de modo a aumentar significativamente sua performance.”29 Este objetivo foi concretizado no protótipo de um capacete com sensores que registram o fluxo sanguíneo no córtex. Assim, todo e qualquer dado relativo a fluxo sanguíneo pode ser associado com estados mentais correlatos (ansiedade, estresse, medo, confusão, etc.) e pode ser remotamente monitorado. De acordo com Moreno, o programa envolveria, além dessa etapa, outras que desenvolveriam aspectos de inteligência aumentada e inteligência artificial. Em seu conjunto, o sistema de loop computacional seria capaz de modular os aspectos

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MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. pp. 5355. 28 “Os seres humanos têm uma capacidade criativa que os computadores não apresentam (até o momento), enquanto os computadores são imunes ao estresse tendo, ao mesmo tempo, a potencialidade de aumentar a habilidade humana de lidar com informações e, ainda, melhorar a atenção humana. A missão do programa de pesquisa ‘Improving Warfighters Information Intake Under Stress’ é: ‘estender, numa ordem de magnitude ou mais, a capacidade de manipular informação do humano-computador desenvolvendo e apresentando melhorias quantificáveis da performance humana em diversos ambientes operacionais estressantes. Especificamente, este programa irá aprimorar a habilidade humana tornando possível que uma pessoa realize com sucesso funções atualmente realizáveis somente por três ou mais indivíduos.’” MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. p. 54. 29 MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. p. 54.

prejudiciais do estresse e amplificar a capacidade de concentração em tempo real através da interação homem-máquina.30 A amígdala é uma importante região cerebral cuja função (dentre outras) é atuar na etapa do desencadeamento das emoções, ou seja, conduzir os estímulos emocionais competentes até os centros de execução.31 A intervenção direta ou indireta na amígdala pode levar ao desenvolvimento de tecnologias capazes de modular e mesmo suprimir emoções que sejam nocivas em situações de combate. Uma dessas emoções nocivas (talvez a mais importante delas) é o medo. As intervenções na maquinaria do desencadeamento do medo são levada adiante através da inibição dos processos de secreção de hormônio da amígdala, de modo a reduzir o registro (ou aprendizado) da emoção de medo. Assim, excitações emocionais (de medo) decorrentes de episódios traumáticos podem ser bloqueadas ou mesmo apagadas, mediante a supressão ou regulação da secreção de hormônios (epinefrina e norepineprina) na corrente sanguínea.32 Quando se fala na possibilidade de mitigar ou mesmo “apagar” o registro das emoções de medo (decorrentes de episódios considerados como traumáticos), se está dizendo que, através da manipulação da maquinaria de defesa, é possível criar uma espécie de “subjetividade destemida”. Se ministrados logo em seguida ao episódio traumático, os inibidores podem agir diretamente no mecanismo de registro das emoções. A consequência é uma espécie de “anestesia” da emoção forte decorrente de eventos traumáticos. Uma vez bloqueadas (ou não

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Estas tecnologias não são para uso imediato, obviamente. Registre-se a ressalva de Moreno (no ano de 2006, quando a publicação da primeira edição): “[...] é importante enfatizar que estes projetos são de longo prazo. Os experts em inteligência artificial ainda não alcançaram o ponto em que as máquinas são capazes de compreender seus próprios programas, sem mencionar a capacidade de interagir com a mente humana. Entretanto, dada a velocidade de crescimento dos poderes computacionais, muitos acreditam que o momento de surgimento de máquinas com autoconsciência não está tão distante assim.” MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. pp. 53-55. 31

DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. 1.ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 71. 32 “A amígdala é um órgão antigo que é importantíssimo para a emoção e para a memória. Se a amígdala sofre algum dano ou é removida, a pessoa pode perder a habilidade de interpretar os sinais intencionais de certas emoções, como raiva por exemplo. A amígdala também libera na corrente sanguínea os hormônios epinefrina (também conhecida por adrenalina) e norepinefrina, os quais contribuem para a fixação de imagens emocionalmente fortes na memória de longo termo. [...] Se os processos de liberação de hormônio na amídala pudessem ser suprimidos, a fixação de más experiências na memória de longo termo poderia ser reduzida. Há alguma evidência de que os bloqueadores-beta, comumente utilizados para tratar enfermidades cardíacas, têm também a capacidade de bloquear os neurotransmissores que consolidam a emoção na memória de longo termo.” MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. p. 129.

registradas) estas emoções fortes, o soldado não hesitará numa próxima situação extrema, vez que não registrou a experiência e não formou um trauma.33 Estes dois singelos exemplos são bastantes para corroborar as teses levantadas ao longo deste trabalho. Se é aceitável traçar duas coordenadas, uma a partir da “máquina de guerra” e outra a partir do “aparelho de Estado”, o certo é que na convergência de ambas encontram-se os processos de normalização de nível infra-individual. Assim, a neurociência passa a cumprir um papel importantíssimo na gestão populacional, na “manutenção da ordem”, ou seja, no controle da população em nome de um ideal de Bem Comum.34 5. Considerações finais O presente trabalho se debruçou sobre o problema das relações de governança no nível infraindividual da modulação de afecções e afetos. A hipótese desse trabalho era a de que o é conceito de guerra que torna possível uma intervenção no nível infra-individual dos afetos para efeitos políticos. Assim, as intervenções ou modulações operadas pelo aparelho de Estado se dariam no sentido de normalizar, eliminar qualquer exceção, qualquer elemento de dissenso, insurgência ou novidade não controlável a partir do interior do corpo político. Abordando o mecanismos das emoções e as intervenções operadas no nível do agenciamento (e, por conseguinte, dos afetos), pretendi descrever minimamente de que modo ocorrem as praticas de normalização no nível infra-individual35. Descritos mecanismo e práticas de normalização pretendo, como forma de conclusão, relacionar o conceito de guerra às últimas. Se tomarmos como acertadas as críticas ao formalismo jurídico e aceitarmos a ideia de que o Estado é a continuação da guerra por outros meios, veremos que é o próprio conceito de guerra, que se torna cada vez mais elástico (“guerra contra as drogas”, “guerra contra o terrorismo”, “guerra contra o crime organizado”), que possibilita, ou melhor, abre um vasto campo político e econômico para a utilização massiva de tecnologias desenvolvidas pelas neurociência na gestão populacional. 33

Para maiores detalhes sobre o mecanismo e sobre as consequências éticas e sociológicas desta manipulação hormonal ver MORENO, J.D. Mind Wars. Brain research and national defense. 1.ed. New York: Dana Press, 2006. p. 129-132. 34

Torna-se desnecessário ressaltar que, sendo o Estado a continuação da guerra por outros meios, as tecnologias utilizadas na guerra entre Estados são as mesmas empregadas na gestão populacional. 35 Compreendido aqui como sendo aquele nível em que não é considerado o organismo como um todo, ou seja, no nível onde a dimensão holística não é mais relevante do que as “máquinas” individualmente consideradas.

A “continuação da guerra por outros meios” não deve, entretanto, ser caracterizada como um estado de “guerra de todos contra todos”, mas sim um estado em que a definição do que é o Bem Comum (a noção comum) é algo em constante disputa, é uma pauta aberta, em razão da qual grupos políticos se organizam de todas as formas viáveis. No Estado contemporâneo, a forma jurídica é cada vez mais tão somente um dos instrumentos que regulam o jogo da disputa política. Outros mecanismos (como o descrito nesse trabalho) surgem como tendo a função ambígua de evitar a guerra de todos contra todos (ou seja, a dissolução do Estado numa guerra real), ao mesmo tempo em que são técnicas de dominação social que aplicam tecnologias de guerra, ou ainda, são a “continuação da guerra por outros meios”. Por fim, a continuação da guerra por outros meios encerra um paradoxo: ao mesmo tempo em que assegura a permanência do Estado (a coesão do corpo político), bloqueia a criação do comum, a instauração de novas práticas e de novas experiências do que se defina por Bem Comum resta constrangida pelas práticas de normalização, dentre as quais a neurociência ocupa, cada vez mais, uma posição de destaque.

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