AGONIA E EXTASE NOSSA LITERATURA EM UM HOMEM CELEBRE DE MACHADO DE ASSIS

May 30, 2017 | Autor: Glaucio Cardoso | Categoria: Languages and Linguistics, Literature, Literary Theory
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AGONIA E ÊXTASE: NOSSA LITERATURA EM “UM HOMEM CÉLEBRE”, DE MACHADO DE ASSIS Ao narrar a trajetória de um aclamado, porém desiludido, compositor brasileiro, Machado de Assis cria um relato perturbadoramente atual de nossa mentalidade, caracterizada pela dependência cultural e intelectual. Tomarei o projeto literário de Machado de Assis, considerando-o como elemento formador de uma literatura nacional efetivamente forte, capaz de dialogar com a produção europeia e/ou clássica, mas sem a preocupação de copiar-lhe o estilo nem tão pouco preocupado em apresentar uma cor local na escrita. Para tanto, valer-me-ei de uma análise muito pessoal do conto “Um homem célebre”, publicado em Várias Histórias (1896). O conto serve de alegoria para a) o novo papel do artista em uma sociedade voltada para o mercado de consumo e b) a construção da obra de arte enquanto representante da nação. Como o primeiro aspecto já foi amplamente estudado por outros autores como Henriqueta do Coutto Prado Valladares, focarei minha análise no segundo. Ao apresentar-nos o drama do personagem Pestana, famoso compositor de polcas1 que guarda o desejo secreto de igualar-se aos grandes mestres da música universal, Machado toca fundo naquilo que foi possivelmente o grande mote de toda a produção literária e artística no Brasil desde a implantação do Romantismo e que permaneceria no centro das manifestações literárias do próprio Modernismo no início do século XX: a criação de uma obra de arte genuinamente brasileira que retratasse a nossa cultura embora fosse constantemente permeada por uma expressa necessidade de igualar-se com a produção estrangeira, fonte dos chamados “mestres” nas diversas áreas. Isso fica bem demonstrado quando Pestana, ao retornar a casa após um sarau familiar em casa da viúva Camargo, senta-se ao piano e encara seus mestres retratados e chamados pelo narrador de “compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, 1

A Polca é uma dança popular oriunda da República Tcheca, da região da Boêmia. No século XIX esta região fazia parte do antigo Império Austro-Húngaro. A dança foi introduzida nos salões europeus da era pósnapoleônica com o atrativo da aproximação física dos dançarinos, ao prever duas possibilidades de evolução do par enlaçado: rodeando (um giro após seis passos, com meio giro no terceiro, e outro depois dos três últimos), ou, mais animadamente, com rápidos pulinhos nas pontas dos pés. Tudo dentro de um compasso binário simples, de movimento em allegretto, cujo ritmo à base de colcheias e semicolcheias, com breves pausas regulares no fim do compasso, permitia aos pares as novas possibilidades de aproximação dos corpos que viria a chamar popularmente de dançar agarrado.

Bach, Schumann, e ainda outros três,” (1975: 87) que constituem para o compositor brasileiro seu grande deleite e ao mesmo tempo extremo martírio. O deleite de poder interpretar-lhes as obras e o martírio de sentir-se impulsionado à criação de uma obra musical capaz de ombrear-se com a de seus mestres, que lhe desse a imortalidade derivada do reconhecimento da grandeza de que seria capaz o seu gênio criador. Entretanto, não se pode reduzir o conto em questão ao simples drama do personagem central; isto só seria possível ignorando o que diz Luiz Costa Lima em seu ensaio “O palimpsesto de Itaguaí”, embora um tanto longa a citação se faz necessária: Ocorre-nos uma hipótese: Machado foi um criador de palimpsestos. Como informam os dicionários, o palimpsesto era um pergaminho2, cuja primeira escrita muitas vezes era rasurada para que uma segunda se depusesse sobre as letras apagadas; a curiosidade dos analistas era então mobilizada para recuperar o texto primitivo. Supomos então haver em Machado uma verdadeira política do texto consistente em compor um texto aparente, “segundo”, capaz de interessar a seus leitores “cultos” pelo sóbrio casticismo da linguagem, seus polidos torneios, suas personagens de pequenos vícios e inofensiva aparência. Sob esses traços, eram deixadas as marcas de um texto “primeiro”, que a impressão tipográfica antes velava que apagava. (1991: 253)

O que se esconderia, portanto, sob a camada do texto “segundo” (ou, como eu prefiro dizer, “aparente”) que conhecemos sob o título de “Um homem célebre”? Deixemos de lado maiores considerações sobre a história aparente, i.e., a criação artística enquanto elemento nascente do talento e da inspiração, e nos esforcemos por trazer à tona o texto “primeiro” que ali se encontra semi-oculto para o leitor. Começarei por enfocar o papel do artista como representante e criador de sua própria cultura. Foi no Romantismo que surgiu pela primeira vez a proposta de criação de uma literatura brasileira, que retratasse nossa terra, nosso povo e nosso ethos3 de forma plena e capaz de ombrear-se com o que era produzido na Europa. Nesta busca cultural, cujos grandes representantes da primeira hora foram nomes como Gonçalves Dias e José de Alencar, os modelos europeus foram amplamente explorados gerando uma literatura que, embora fosse permeada de certa cor local, foi incapaz de retratar nossa realidade de 2

Pergaminho (do grego pergaméne e do latim pergamina ou pergamena), é o nome dado a uma pele de animal, geralmente de cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha, preparada para nela se escrever. Designa ainda o documento escrito nesse meio. O seu nome lembra o da cidade grega de Pérgamo, na Ásia Menor, onde se acredita possa ter se originado ou distribuído. 3 Entende-se ethos como sendo o conjunto de caracteres distintivos de um povo em relação a outro, caracteres estes que abrangem traços físicos, sociais e culturais. A palavra tem origem na Grécia Antiga, significando ética, valores; os gregos entendiam-na como “a morada do homem”.

maneira efetivamente real, i.e., toda a nossa produção literária era em verdade uma grande idealização de nossa cultura e história a fim de buscar a aprovação da arte produzida alhures. Pestana seria, portanto, uma metáfora de nossa mentalidade sempre preocupada em encontrar um lugar de destaque na metrópole cultural, o que pode ser conferido nas palavras do narrador do conto ao dizer que sua fama “dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma” (1975 [1896]: 94). Machado demonstra sua virtuosidade ao utilizar a música em lugar da literatura e se nos torna relativamente simples entender que tais referências se apresentam ao leitor de forma mais evidente do que se poderia supor. De fato, o início do conto é por si só emblemático quando levamos em conta que os saraus, ou salões, tão em moda no século XIX eram encontros amplamente disputados pelos poetas e demais artífices da palavra de então, como bem demonstrou Ubiratan Machado em sua pesquisa intitulada Vida literária no Brasil durante o Romantismo. A dicotomia entre popular e erudito fica bem clara quando as polcas de Pestana chegam “à consagração do assobio e da cantarola noturna” (1975: 86) da mesma maneira que um escritor popular vê-se citado e declamado aqui e ali pela cidade. O desagrado que isto provoca em Pestana, pensando-o como metáfora do escritor, poderia nos dar a falsa ideia de que escritores não se desejam ver nas rodas de conversa, nas esquinas, comentados, repetidos e até mesmo corrompidos quando seus textos não são devidamente citados (“e zangava-se quando não a tocavam bem” (90)). Em realidade, tudo isto fazia e faz parte da vida literária, mas a ironia machadiana busca atingir aquilo que mais atormenta qualquer artista: o sentimento de inferioridade. Lembro-me das palavras de um professor de artes para seus alunos ao se referir aos artistas brasileiros que buscavam a projeção internacional: uma vez tupiniquim, sempre tupiniquim. É esta a primeira camada real do palimpsesto em análise: o artista local ao buscar a consagração não é capaz de enxergá-la dentro de sua própria terra, como se só fosse um artista de talento e valor caso alcançasse o reconhecimento do e no estrangeiro. As polcas

do compositor do conto são o que de melhor se produz em terra brasileira; Pestana, no entanto, deseja criar uma obra original seguindo o modelo de seus mestres (todos europeus); não é capaz de perceber-se como já estando a criar uma obra imortal seguindo um modelo que não é original de sua pátria. (Ver o hiperlink sobre as origens da polca). Machado aponta, assim, para o problema daquilo que mais de um século depois seria chamado por Costa Lima de “dependência cultural”, uma dependência que está longe de ser de caráter exclusivamente econômico, senão pela “decorrência dos próprios valores com que julgamos a atividade intelectual” (1991: 270) bem como a atividade artística que se veem constantemente impelidas à aprovação de qualquer que seja o intelectual estrangeiro, de preferência o com várias obras no currículo. Visto sob tal ótica, portanto, a agonia do personagem Pestana sofre um duplo desdobramento: em primeira instância será a representação do drama pessoal vivido por cada artista que “enfiado na poltrona de sua melancolia”, como diria Fernando Pessoa4, busca constantemente aquela obra que lhe dará “o primeiro lugar entre os homens”, nas palavras do defunto Brás Cubas5. Em segunda instância Pestana, como já dito anteriormente, é a metaforização de toda a produção literária praticada no Brasil de então, sendo uma visão assustadoramente atual de nossa mentalidade tupiniquim sempre em busca da aprovação de uma metrópole a que atribuímos algum tipo de superioridade difícil de ser explicada e entendida quando nos debruçamos detidamente sobre o conceito que lhe emprestamos. Toda a criação literária brasileira segue por uma destas duas vertentes: a agonia de buscar reconhecimento por aqueles a quem tomamos como mestres e modelos e o êxtase decorrente de quando uma obra brota do cérebro já pronta, bela, completa e por si só perfeita e eterna. Concluímos, portanto, que Machado apresenta neste conto, bem como em outras de suas obras, plena consciência de seu trabalho como gerador de uma grande obra que reflita, A citação foi retirada do poema “Cruzou por mim”, do heterônimo Álvaro de Campos: “Coitado do Álvaro de Campos! / Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! / Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!”. Toda a obra de Pessoa está disponível no Arquivo Pessoa: arquivopessoa.net. 5 Brás Cubas é o defunto autor das Memórias póstumas de Brás Cubas, publicadas pelo mesmo Machado de Assis em 1881. Notável pensar que Brás, assim como Pestana, pode ser lido como reflexo da personalidade brasileira. 4

a partir de dramas aparentemente banais, a complexidade do espírito humano, de criador de uma obra que, longe de buscar a aprovação dos mestres, dialoga com estes e os supera. Se o primeiro lugar na aldeia era incapaz de satisfazer ao ambicioso compositor de polcas, nenhum lugar em Roma é capaz de dar conta do real valor do criador genial que foi o Bruxo do Cosme Velho. Glaucio Cardoso Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, poeta, ensaísta. Autor de Enquanto Clara dormia (poesia), Sopros e outros poemas (poesia), Em defesa de um teatro espírita (ensaio) e La commedia è finita (poesia). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado de. “Um Homem Célebre”. In: _________. Várias histórias. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975 [1896], p. 85-94. COSTA LIMA, Luiz. “Dependência Cultural e Estudos Literários”. In: _________. Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 266-78. ___________. “O palimpsesto de Itaguaí”. In: _________. Op cit. p. 253-65. MACHADO, Ubiratan. Vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. PRADO VALLADARES, Henriqueta do Coutto. “Várias histórias em ‘Um Homem Célebre’”. In.: DIAS ROCHA, Fátima Cristina (org.). Cenas do discurso: deslocamentos e transformações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p. 67-82.

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