Água no regime jurídico de direitos humanos - Water under human rights perspective

June 16, 2017 | Autor: Danielle Denny | Categoria: Law, Water, Human Rights, Environmental Sustainability
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Direito e Sustentabilidade U N I V E R S I DA D E PAU L I S TA ORGANIZADORES: DANIELLE MENDES THAME DENNY DOUGL AS CASTRO MARIO KONRAD

EDIÇÃO NOVEMBRO 2015

Ficha catalográfica

Anais Jornada Jurídica: revista eletrônica e impressa de Direito e Sustentabilidade da Universidade Paulista – v. 1, n. 1 – Edição Novembro (2015) – São Paulo : Semestral -Resumos em português e inglês Disponível no portal : http://jornadajuridicaunip.blogspot.com.br

versão eletrônica: ISSN 2446-6034 versão impressa: ISSN ( pendente ) 1.Direito. 2. Comunicação. 3. Cultura. 4. Meio ambiente. 5. Direitos humanos. 6. Educação. 7. Inovações tecnológicas. 8. Saúde. 9. Extensão universitária I. Universidade Paulista

Anais Jornada Jurídica: Revista Eletrônica de Direito e Sustentabilidade da Universidade Paulista, São Paulo, SP, Brasil ISSN 2446-6034 está licenciada sob Licença Creative Commons

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EXPEDIENTE

DIREITO E SUSTENTABILIDADE

Anais Jornada Jurídica é uma publicação semestral de Direito e Sustentabilidade da Universidade Paulista, Campus Marquês e Norte. A versão eletrônica recebe o ISSN 2446-6034 e a impressa o ISSN (completar). A publicação não se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados.

Disponível no portal : http://jornadajuridicaunip.blogspot.com.br

Volume 1, Número 1, Edição 1 - Novembro 2015

REALIZAÇÃO

DIREÇÃO EDITORIAL: Mario Konrad REVISÃO TÉCNICA: Danielle Denny e Douglas Castro AGRADECIMENTO ESPECIAL: Universidade Paulista COLABORADORES: Todos os textos são de responsabilidade de seus autores. Os artigos publicados nesta edição possuem assinatura e apresentação do profissional do Direito. A cada artigo, você poderá também ter contato com notas e entrevistas produzidas por nossa redação que não têm influência direta na opinião de nossos colaboradores.

CONTATO

Universidade Paulista - Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão, Centro de Ciências Jurídicas. Campus Marquês, Avenida Marques de São Vicente, 3001 – Lapa ii

Sao Paulo, SP - Brasil. CEP 05036-040. Telefone: (11) 3613-7018. Fax: (11) 3613-7000 - Campus Norte, Rua Amazonas da Silva, 737 - Vila Guilherme - São Paulo - SP- Brasil. CEP 02051-001. Telefone: (11) 2790-1550 URL da Homepage: www.unip.br

EDITORES

Danielle Mendes Thame Denny, http://lattes.cnpq.br/8898848038418809, Universidade Paulista , Rua Amazonas da Silva, 737 - Vila Guilherme - São Paulo - SP- Brasil, CEP 02051-001. Telefone: (11) 2790-1550

Douglas de Castro, http://lattes.cnpq.br/4705266553541759, Universidade Paulista, Avenida Marques de São Vicente, 3001 – Lapa  - Sao Paulo, SP - Brasil, CEP 05036040. Telefone: (11) 3613-7018. Fax: (11) 3613-7000

IMPRESSÃO E ACABAMENTO (Gráfica a definir)

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ÍNDICE Feminicídio, Homicídio qualificado pela condição do sexo feminino - Gisele Porto Barros - 6 Os novos rumos sócio-afetivos e familiares incorporados na legislação brasileira em uma articulação com o conto 'A Bela e a Fera’ - Adelaide Ferreira Margato e Júlia Ascoli Gomes Ferreira - 16 Água no regime jurídico de direitos humanos - Danielle Mendes Thame Denny - 26 Governo eletrônico, cidadania e inclusão digital - Cristina Barbosa Rodrigues e Irineu Francisco Barreto Junior - 40 As Guardas Municipais e o Princípio da Eficiência Administrativa: Repensando o artigo 144 da Constituição Federal - Arthur Bezerra de Souza Junior - 54 O princípio da dignidade da pessoa humana - Octávio Serra Negra - 68 Princípio da motivação das decisões judiciais e processo democrático: as novidades do Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei 13.105/2015) quanto à fundamentação das decisões judiciais - Maria Cristina Zainaghi e Mônica Bonetti Couto - 81 Regulação econômica da infraestrutura no Brasil: uma análise histórico-institucional Alexandre da Silva de Oliveira - 95 As normas de “jus cogens” como a mais importante fonte contemporânea de Direito Internacional - Miguel Ângelo Marques - 117 O direito ao meio ambiente na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos Gabriela Rodrigues Saab Riva - 132 Uma análise da hermenêutica jurídica na visão de Hans Kelsen - Luiz Carlos Corrêa 147

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Editorial Esta edição de inauguração da Anais Jornada Jurídica: revista eletrônica e impressa de Direito e Sustentabilidade da Universidade Paulista foi elaborada a partir de uma chamada pública de artigos e traz textos sobre temas variados recebidos pelo processo de submissão contínua. Espera-se que a revista continue recebendo contribuições e que seja possível manter a semestralidade de sua publicação digital.

Os autores deste número, são coincidentemente todos professores da Universidade Paulista. O que indica um incremento do interesse desses profissionais pela pesquisa, contribui para o avanço das temáticas abordadas e, ainda mais relevante, consolida a atividade investigativa acadêmica na instituição.

É, portanto, uma grande satisfação escrever este editorial. Após um processo cauteloso de análise das contribuições que se candidataram para este número inaugural, o resultado obtido foi muito proveitoso. Em especial, os artigos que aqui se encontram retratam com propriedade os objetivos da chamada por perspectivas interdisciplinares sobre Direito e Sustentabilidade.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Danielle Mendes Thame Denny Douglas Castro Mario Konrad

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Homicídio qualificado pela condição do sexo feminino Homicide qualified by gender-based violence Gisele Porto Barros

Resumo O presente artigo aborda aspectos referentes à recente Lei 13.104/2015, a qual acresceu à figura do homicídio a qualificadora relativa ao denominado “Feminicídio”. Faz-se considerações sobre a violência em decorrência do gênero, por conseguinte. Trata-se, por sinal, de problema social que, com o advento dessa novel legislação, poderá ser coibido e, quiçá, erradicado diuturnamente. Palavras-chave: Lei do Feminicídio. Homicídio qualificado. Violência de gênero.

Abstract This article aims to analyze the main aspects of Law 13,104 / 2015, that adds the “Femicide Act” to the kinds of homicide. So, general considerations about violence against women as a result of gender are made. By the way, this violence constitutes a social problem that, with this new law, could be remedied and, maybe, eradicate day by day. Keywords: Law of Femicide. Homicide qualified. Gender violence.

INTRODUÇÃO Homens e mulheres são diferentes, assim como, na natureza, macho e fêmea. Historicamente, os seres humanos têm optado por dimensionar essa desigualdade através da dominação patriarcal. Esse desiquilíbrio, quando alguns subjugam e outros são submetidos, gera conflito e, este, por sua vez, quando exacerbado gera violência. Não se olvida que a Constituição Federal estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Aliás, hodiernamente não mais subsiste a figura do

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“chefe de família” exercida pelos indivíduos do sexo masculino e nem tampouco a submissão dos do sexo oposto (feminino) aos correspondentes maridos ou companheiros. Desrespeitar essa igualdade consubstancia violação aos direitos humanos. Todavia, ainda é comum que se estabeleça tratamento desigual entre homens e mulheres. Nessa toada, é mister que as condutas reveladoras desse tratamento diferenciado sejam combatidas e punidas. Recente conquista no combate ao preconceito que envolve esses diferentes gêneros está consubstanciada na Lei 13.104, de 9 de março de 2015, a denominada “Lei do feminicídio”. Essa novel legislação acresceu ao tipo contido no artigo 121 do Código Penal qualificadora referente ao feminicídio, o qual entendido como a morte de mulheres em razão da condição do sexo feminino (baseada no gênero).

CONSIDERAÇÕES GERAIS

As agressões foco dessa figura qualificada (tipificada no artigo 121, § 2º, VI, da Lei Penal), a objetivar a retirada da vida da vítima, mulher, em razão do gênero feminino, representam a vulnerabilidade que, até hoje, é própria desse sujeito passivo. É notório que, inobstante os avanços a colocar homem e mulher em situação de igualdade, ainda não se tem quadro satisfatório a propiciar equilíbrio entre os gêneros feminino e masculino. É nesse diapasão que se inseriu dentre as qualificadoras do delito de homicídio a referente ao dolo específico de ceifar a vida de indivíduo em virtude do respectivo sexo. Aliás, previsão correspondente representa observância ao princípio da igualdade ou isonomia, na medida em que visa à tutela da “mulher” enquanto indivíduo do gênero feminino a ser sujeito de direitos assim (e na mesma proporção) como os do sexo masculino. Registra-se, a propósito, que a desigualdade entre homem e mulher não se dá somente por fatores biológicos, mas também pelos papéis sociais que são impostos a cada

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qual, por sinal, a reforçar as culturas patriarcais, estabelecendo relações de dominação e violência entre os sexos. Fruto dessa violência de gênero, marcada pela discriminação histórica contra as mulheres, portanto, é a inovação legislativa objeto do presente artigo.

Conceito e classificação. Os termos feminicídio e femicídio são utilizados como sinônimos para a morte de mulheres em razão do gênero. É dizer, são termos usados para expressar a máxima violência contra indivíduos do sexo feminino, ou seja, o óbito. A expressão femicídio ou femicide foi utilizada pela primeira vez por Diana Russel em 1976, perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, realizado em Bruxelas. Diana Russel e Jane Caputi definiram femicide como: “O assassinato de mulheres realizado por homens motivado por ódio, desprezo, prazer ou um sentido de propriedade sobre as mulheres”. “Radford e Russel (1992) e Caputi e Russel (1992, p. 15) cunham o termo femicide como um continuum de violência contra as mulheres. Estabelecem conexões entre as variadas formas de violência, como o estupro, o incesto, o abuso físico e emocional, o assédio sexual, o uso das mulheres na pornografia, na exploração sexual, a esterilização ou a maternidade forçada etc., que, resultantes em morte, se convertem em femicídio. (...) Os termos “femicídio” e “feminicídio” embora sejam utilizados indistintamente na América Latina, referem-se aos assassinatos sexuais de mulheres e, portanto, diferenciam-se do neutral “homicídio”. Porém, algumas correntes sustentam que o termo “femicídio” não dá conta da complexidade nem da gravidade dos delitos contra a vida das mulheres por sua condição de gênero, pois etimologicamente significa unicamente dar morte a uma mulher. A expressão “feminicídio”, por sua vez, englobaria a motivação baseada no gênero ou misoginia, agregando a inação estatal frente aos crimes (PATH, 2010, p. 30). Lagarde (2006, p. 221), responsável pela introdução do termo “feminicídio” na academia, tem optado por ele por incluir o fator impunidade, em virtude de ausências legais e de políticas do governo, que geram uma convivência insegura para as mulheres, colocando-as em risco e favorecendo o conjunto de crimes praticados por razão de gênero. De acordo com Lagarde (2006, p. 221), o feminicídio não é apenas uma violência 8

exercida por homens contra mulheres, mas por homens em posição de supremacia social, sexual, jurídica, econômica, política, ideológica e de todo tipo, sobre mulheres em condições de desigualdade, de subordinação, de exploração ou de opressão, e com a particularidade da exclusão”.

Destaca-se que o feminicídio pode classificar-se em “íntimo”, “não íntimo”, “social’ e “por conexão”. A primeira figura (feminicídio íntimo) ocorre quando o assassinato é praticado por homem contra mulher com a qual tem ou tinha vínculos familiar, afetivo, de convivência ou afins. Estão nessa modalidade incluídos os crimes cometidos por parceiros sexuais ou homens com quem as vítimas tiveram relações interpessoais outras, tais como namorados, companheiros, maridos, independentemente se decorrentes de relações atuais ou pretéritas. O feminicídio não íntimo é aquele em que o assassino não tem vínculo com a vítima, ou seja, a mulher não tinha relações íntimas, familiares ou de convivência, mas havia uma relação de confiança, hierarquia ou amizade (amigos ou colegas de trabalho, empregadores, etc.). Por sua vez, o feminicídio social caracteriza-se pelas formas encobertas de assassinar uma mulher. A vítima morre em decorrência de atitudes sociais misóginas. Por exemplo: a morte como consequência de abortos ilegais. Por fim, o feminicídio por conexão é aquele em que o assassinato ocorre porque a vítima encontrava-se na “linha de fogo” de pessoa que tinha por objetivo matar uma mulher. São casos em que as reais ofendidas, adultas ou não, tentam intervir para impedir a prática de um delito contra outra mulher e acabam morrendo. Nessa hipótese, independe o vínculo que havia entre a vítima e o agressor, que podem, inclusive, ser desconhecidos entre si.

Dados estatísticos.

Em conformidade ao Mapa da Violência de 2012, produzido pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos, o Brasil ocupa a 7ª posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking com 84 países.

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Entre 1980 e 2010 foram assassinadas mais de 92 mil mulheres no Brasil, 43,7 mil somente na última década. Ou seja, a cada duas horas, uma brasileira foi morta sob condições violentas, em sua maioria no ambiente doméstico. Outrossim, o Estado do Espírito Santo continua a ser o mais violento, com a maior taxa de mortes femininas (9,8 vítimas para cada 100 mil mulheres), seguido por Alagoas, com taxa de 8,3 assassinatos. O número é quase quatro vezes maior do que o Piauí, Estado com índice de 2,65, o menor no País. Nas capitais dos Estados, os níveis de mortes são ainda mais elevados. Se a taxa média dos Estados no ano de 2010 foi de 4,4 homicídios a cada 100 mil mulheres, a taxa das capitais foi de 5,1. Aliás, destacam-se pelas superiores taxas Vitória, João Pessoa, Maceió e Curitiba, com níveis acima dos 10 homicídios em 100 mil mulheres. No que tange à idade das vítimas, as maiores taxas encontram-se na faixa dos 15 aos 29 anos de idade, com preponderância para o intervalo de 20 a 29 anos, que mais cresceu entre 2000 a 2010. Por sua vez, nas idades acima dos 30 anos a tendência foi a queda.

Motivação.

Vários podem ser os motivos pelos quais se tem essa triste realidade. Normalmente, o alto índice de violência de gênero deve-se à alta tolerância que envolve a matéria, ao preconceito próprio, à culpabilização da vítima como justificativa à agressão perpetrada contra ela, entre outras razões. Não se olvida pesquisa pela qual se verificou não fossem poucos os que culpam a vítima de um estupro, por exemplo, pelo uso de roupas curtas ou “provocantes”. Ao vestir-se como “vadia”, a mulher “pediria” para ser estuprada. O mesmo pensamento envolve a agressão física com o escopo morte. Daí a necessidade de punir-se com mais rigor condutas da espécie.

A Lei 13.104/2015.

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Em vigor a partir de 10 de março de 2015, a Lei 13.104 acresceu o inciso VI ao parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal, criando nova figura qualificada ao delito de homicídio. Não bastasse isso, essa novel legislação incluiu ao supracitado tipo penal causa especial de aumento de pena (majoração de um terço à metade) na hipótese de ter sido o feminicídio praticado contra gestante, nos três (3) meses posteriores ao parto (situação em que lactante a vítima), quando o sujeito passivo contar com menos de quatorze (14) ou mais de sessenta (60) anos de idade, bem como se deficiente a ofendida ou se verificado o fato na presença de descendente ou ascendente dela. Salienta-se, ademais, ter sido incluída essa figura no rol taxativo do artigo 1º da Lei 8.072/1990, razão pela qual se a classifica como hedionda. Não se deslembra, outrossim, que a Lei 13.104/2015 acrescentou ao artigo 121 do Código Penal o parágrafo 2º-A, a apontar situações a serem consideradas como retirada da vida por condições de sexo feminino, a saber: violência doméstica e familiar, e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Análise do tipo penal.

À primeira vista, somente a mulher pode ser sujeito passivo do feminicídio. Faz-se ressalva, nesse ponto, para a polêmica a envolver os sujeitos passivos aos quais aplicados a Lei 11.340/2006 (“Lei Maria da Penha”), certo haver posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido da aplicação correspondente a transexuais, travestis ou nos casos de relações homoafetivas masculinas. Parece-nos não ser a hipótese, posto o elemento subjetivo específico abranger tão-somente pessoas do sexo feminino. Ademais, não se deslembra a vedação ao uso da analogia em desfavor do réu. Impõe-se ressaltar que não basta ser o homicídio praticado contra mulher para que se o tipifique como feminicídio. É mister que o animus necandi envolva o preconceito característico das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres. É dizer, para que se configure o feminicídio, nas respectivas formas tentada ou consumada, o agente tem que objetivar matar a vítima (que, na hipótese de tentativa, pode

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sobreviver por razões alheias à vontade daquele) por considerá-la indivíduo de gênero desigual e inferior. A violência empregada para a consecução desse fim pode verificar-se no âmbito doméstico (artigo 121, § 2º-A, I, do Código Penal), porém, desde que presente o preconceito de gênero. Também é possível prática própria quando o agente nutra pouca ou nenhuma estima ou apreço em relação à vítima, desprezando-a ou desvalorizando-a. É a hipótese prevista na primeira parte do inciso II do sobredito dispositivo (menosprezo à condição de mulher). A bem ver, ainda, pode-se verificar o feminicídio quando o sujeito ativo tiver por escopo assassinar a vítima por discriminação à condição de mulher (inciso II, parte final). Em conformidade à Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, 1979), ratificada em 1984, entende-se essa discriminação como:

(...) toda distinção, exclusão, ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Consoante antes exposto, e nos termos do parágrafo 7º do artigo sob exame, incidirá na terceira fase da dosimetria própria majorante de terça parte (1/3) à metade (1/2) se o crime for praticado contra gestante ou nos três (3) meses posteriores ao parto, contra mulher menor de quatorze (14) ou maior de sessenta (60) anos de idade, ou, ainda, na presença de descendente ou ascendente da vítima, em todas as hipóteses, desde que conhecedor dessas circunstâncias o autor do crime. Além disso, frisa-se que essa causa de aumento referente à idade da ofendida, por ser específica, prepondera sobre a contida no parágrafo 4º do artigo 121 da Lei Penal. E, nesse caso, pelo non bis in idem, proíbe-se a incidência da agravante genérica estabelecida no artigo 61, II, h, desse diploma. De outra banda, considerado crime hediondo, o feminicídio é inafiançável e não se admite ao correspondente autor anistia, graça e indulto.

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Também consequência dessa classificação, via de regra, o regime para início de cumprimento da sanção reclusiva própria será o fechado e a respectiva progressão observará como critério objetivo as frações de dois quintos (2/5), se o sentenciado for primário, e, três quintos (3/5), se reincidente. Na hipótese de prisão temporária respeitar-se-á o prazo de trinta (30) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Por fim, para a concessão do benefício do livramento condicional exigirse-á o cumprimento de mais de dois terços (2/3) da pena.

CONCLUSÃO.

A Lei 13.104/2015, em vigor a partir de 10 de março do ano corrente, representa avanço no combate à desigualdade de gênero. Malgrado o Brasil tenha sido o 16º País da América Latina a prever a figura do “feminicídio”, com essa novel legislação espera-se haja diminuição das taxas de mortalidade de mulheres no território nacional. Tipificado como uma das formas de homicídio qualificado, o feminicídio passa a ser considerado delito hediondo (artigo 1º da Lei 8.072/1990). Nesse passo, conquanto não superada, apenas por essa inovação legislativa, a diferença de oportunidades e tratamentos entre homens e mulheres que, ainda hoje, é patente, essa previsão normativa possibilitará punição com maior rigor àqueles que objetivarem ceifar a vida de pessoa do sexo feminino motivados pelo preconceito de gênero.

Logo, de grande valia a tipificação dessa figura.

Com efeito, é necessário que busquemos a construção de uma nova sociedade, mais justa, solidária e humanizada.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Amélia, GUERRA, Viviane N. de A. organizadoras. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento - 2. ed. - São Paulo: Cortez, 1997.

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BARSTED, Leila Linhares, HERMANN, Jacqueline (pesquisa e coord.), Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos - Traduzindo a Legislação com a perspectiva de gênero - Os direitos das mulheres são direitos humanos – 1. ed. rev. e ampl. - Rio de Janeiro: Cepia, 2001.

CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista, apud FARIA, Helena Omena Lopes de, MELO, Mônica de. Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. São Paulo, Centro de Estudos, 1998.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012. Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil. Disponível em: < http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_mulheres.php> Acesso em: 6 de setembro de 2015.

Convenção Interamericana para Previnir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”. Disponível em: < http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm > Acesso em: 6 de setembro de 2015.

Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979). Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discrimulher. htm> Acesso em: 6 de setembro de 2015.

Dossiê violência contra a mulher. Um problema que afeta toda a sociedade. Disponível e m : Acesso em: 5 de setembro de 2015.

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Violência de gênero. Tipificar ou não o femicídio/feminicídio?. Disponível em: Acesso em: 6 de setembro de 2015.

Gisele Porto Barros Assessora Jurídica da Presidência da 15ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito e Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, bem como Especialista em Direito Processual Civil – enfoque no microssistema da tutela coletiva – pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Universitária.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Novos rumos sócio-afetivos e familiares incorporados na legislação brasileira: articulação com o conto 'A Bela e a Fera’ - New socio-affective family arrangements in Brazilian Law articulated with the fairy tale "Beauty and the Beast".  Adelaide Ferreira Margato Júlia Ascoli Gomes Ferreira Resumo Este artigo representa uma articulação entre o conto “A Bela e a Fera”, a constituição familiar monoparental e as consequências desse arranjo familiar na educação e desenvolvimento dos filhos. Embasaram teoricamente este estudo, Coelho, 2000, Bettelheim, 1980, a Constituição Federal de 1988, o ECA de 1990 e o Código Civil Brasileiro de 2002. Concluímos que a monoparentalidade gera inseguranças tanto para as crianças quanto para os pais, causando nelas problemas de imaturidade psicológica. Portanto, são necessárias, novas políticas públicas, atuação da sociedade e conscientização dos pais, pois trazer um filho ao mundo é tarefa que exige responsabilidade e dedicação.

Palavras chave: família monoparental, A Bela e a Fera, imaturidade psicológica 
  Abstract This article is an articulation between the fairy tale “Beauty and the Beast”, the singleparent family and its consequences in the children education and psychological development. The theoretical underpinnings for this study are: Coelho, 2000, Bettelheim, 1980, 1988 Federal Constitution , ECA 1990 and Brazilian Civil Code, 2002. We came to the conclusion that the single parenthood is responsible for youngsters psychological immaturity as well as insecurity feelings from both parents and kids. Finally, we suggest new State policies, society performance and parents` consciousness of their parenthood, because having a baby is a task that needs total dedication and responsibility. 16

Key words: single-parent family, Beauty and the Beast, psychological immaturity.

I - Introdução A linguagem é, por si só, uma relação com o mundo, com o inconsciente e a história (Coelho, 1972) Desde suas origens pré-históricas, o homem procura marcar sua presença no mundo através de uma forma concreta de registrar sua fala e fazê-la perdurar no tempo. Foram vários os suportes físicos descobertos para deixar suas mensagens, desde pedras, peles de animais, chifres até chegar no livro que, hoje, com o aparecimento da internet sofre ameaças. Todavia, queremos acreditar, junto com Piza, (2004) que ele jamais morrerá, seja no suporte eletrônico ou impresso, pois o que as palavras dão é insubstituível, imortal e representam uma relação do ser humano com o mundo, com o inconsciente, confirmando as ideias da epígrafe. Levando tais ideias em consideração, decidimos pesquisar, neste artigo, os seculares contos de fadas e trazê-los para o mundo real, nosso mundo cibernético e entender a mensagem que nos deixaram através dos tempos. Mensagens artísticas de tanta importância que têm servido de subsídios a diversos ramos das ciências humanas, incluindo a psicologia, sociologia, antropologia, política e educação. Sem dúvida, explica a célebre psicanalista junguiana Von Franz (2000), essas narrativas folclóricas não envelhecem, pois são sonhos da alma coletiva e fonte preciosa de compreensão da psique e do comportamento humano. Mudando de foco, vale registrar, nesse momento, nosso entendimento sobre literatura infantil não como mero entretenimento, mas como arte, literatura e, sobretudo, como um importante veículo de transmissão de ideias ou padrões de comportamento e formação de valores vigentes na sociedade. Assim, escolhemos “A Bela e a Fera”, cujo primeiro relato data de 1757, escrito por Madame Leprince de Beaumont. Este artigo almeja, então, discutir a relação entre o conto “A Bela e a Fera”, e a constituição de família monoparental com suas consequências na educação e desenvolvimento dos filhos. O objetivo geral deste trabalho foi compreender essa estrutura famíliar na contemporaneidade da sociedade brasileira, exigindo para tanto uma pesquisa da legislação brasileira vigente. Neste sentido, a Constituição Federal (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e o Novo Código Civil (2002) atuaram como os principais recursos legais.

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Especificando, nossa preocupação precípua é estabelecer uma relação entre a trama desenvolvida no conto e a constituição familiar monoparental masculina, fixando nosso olhar em algumas consequências advindas da monoparentalidade no desenvolvimento psicológico dos filhos. Nesse caminho, esbarramos em outras questões do desenvolvimento juvenil que, ocasionalmente, foram circundadas sem, todavia, uma preocupação maior com análises, pois não integram nosso rol de objetivos. Sabemos da existência de vários trabalhos que se preocuparam com contos de fada e relações familiares, como Coelho (2000), Betelheim, (1980), Von Franz, (2000), entretanto, este estudo se distingue dos demais, pois tem como escopo a discussão de um tipo de constituição familiar monoparental masculina, hoje reconhecida pelas leis brasileiras. Assim, organizamos a presente pesquisa em introdução, desenvolvimento e conclusão. No desenvolvimento, dividimos em três seções, sendo que, na primeira, apresentamos uma breve discussão do aparecimento e importância da literatura infantil onde os contos maravilhosos se inserem; na segunda, uma apresentação do conceito de família, incluindo a monoparental, e seu enquadramento na legislação brasileira. Fechamos com uma terceira seção, em que discutimos o conto e articulamos com preceitos teóricos e a legislação brasileira em vigor. Encerramos o artigo com uma conclusão, que se espera possa contribuir, de alguma forma, com o mundo jurídico, literário e acadêmico. A pesquisa é de natureza bibliográfica e fundamenta-se em pesquisas teórico-críticas da literatura infanto-juvenil, da psicologia analítica junguiana e da recente legislação brasileira. Como recurso metodológico, tomamos o método dialético pautado no materialismo histórico, pois tem sua interpretação baseada na realidade e na dialética da sociedade. Finalmente, esperamos contribuir com este estudo tanto para o mundo acadêmico, quanto para a sociedade, pois, ao levantar os aspectos concernentes a esta modalidade familiar, acreditamos deixar um toque inicial para que, futuramente, possam ser elaborados projetos voltados especificamente à necessidade desses novos arranjos familiares.

II - Desenvolvimento. 1ª Seção: Um breve apanhado da história da Literatura infantil: suas origens e desenvolvimento Antes do século XVII não existiam livros para crianças, explica Zilberman 2003, porque a concepção de infância, uma faixa etária diferenciada, com interesses próprios e com 18

a necessidade de uma formação específica, só aconteceu em meio à idade moderna. Consequentemente, os primeiros livros para crianças foram produzidos no final do século XVII e durante o século XVIII. Vale lembrar que antes da constituição desse modelo familiar burguês, não havia consideração especial para com a infância que passa, então, a ser valorizada junto com a nova noção de família cuja preocupação maior é estimular o afeto entre os seus membros. Por outro lado, a nova valorização da infância gerou também, em contrapartida, meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções. Nesse contexto, literatura infantil e escola são convocadas para cumprir tal controle, comprovando a não casualidade da aproximação entre a instituição escola e esse gênero literário, já que os primeiros textos para crianças foram escritos por pedagogos e professoras com intuito educativo. Concluindo, literatura infantil e escola se relacionam desde as modificações acontecidas na Idade Média e solidificadas no século XVIII, que segundo Zilberman (2003) propiciaram a ascensão de modalidades culturais como a escola, com sua organização conforme a conhecemos hoje, e também de um gênero literário dirigido ao jovem. Assim, a ficção do século XVIII ajudou a propagar esta visão de mundo que, por sua vez, desalojou a família tradicional, promovendo uma espécie de surto de sentimento em três diferentes áreas: o namoro, o relacionamento mãe-filho, e a linha fronteiriça entre a família e a comunidade circundante. Nesse contexto, a valorização da infância, enquanto faixa etária diferenciada, torna-se uma das principais bandeiras desse modelo doméstico. A criança é então particularizada como um tipo de indivíduo que merece consideração especial, transformando-se na base da organização da família que, agora tem a responsabilidade de zelar para que seus filhos atinjam a idade adulta de maneira saudável e madura, providenciando, para tanto, a sua formação intelectual. Tais iniciativas foram logo incorporadas ao cotidiano da classe média e passaram a ser consideradas fator indispensável à manutenção de um estilo doméstico de vida. Passa a criança, então, a ser idealizada e, consequentemente, alvo de manipulação do adulto que mantém autoridade inquestionável sobre elas. Em outras palavras, a escola é parte do processo de manipulação da criança, pois a conduz ao respeito da norma vigente, que é a da classe dominante. E a literatura infantil, fora ou dentro da instituição escolar, é outro instrumento que tem servido ao cumprimento da norma em vigor. Mas apesar de todo esse aspecto desfavorável que envolve a escola e a literatura infantil, no que diz respeito à manipulação da criança e manutenção do status quo social, 19

Zilberman não propõe a abolição da literatura infantil na escola nem tampouco a abolição da escola, pois segundo a autora, ambas, enquanto instituições, podem provar sua utilidade quando se tornarem o espaço para a criança refletir sobre sua condição pessoal (Zilberman, 2003). Neste sentido, escola e literatura são fundamentais para a formação do leitor. Explicando melhor, a literatura procede de forma a sintetizar, por meios dos recursos da ficção, uma realidade que o leitor vivencia no seu cotidiano, e a escola também tem uma finalidade sintetizadora já que transforma a realidade em disciplinas ou áreas de conhecimento que são apresentadas aos alunos. No entanto, Zilberman (op.cit) acredita que a literatura é capaz de romper a barreira entre a escola e a sociedade, e que tudo isso depende das opções do professor, que deve escolher com cautela o texto a ser lido em sala de aula e a adequação desse texto ao leitor. Dessa forma, segundo a autora, as fronteiras se estendem da valorização da obra literária à relevância dada ao procedimento de leitura. (Zilberman, 2003, p. 26) Assim, se o texto escolhido pelo professor cumprir o requisito da qualidade literária, o leitor será capaz de reconhecer nele a realidade na qual está inserido e poderá então compartilhar lucros e as perdas. Em outras palavras, a adequação do texto ao leitor está vinculada ao grau de abertura para a realidade vivenciada pelo recebedor do texto, seja ela de natureza íntima ou social. ( Zilberman, 2003, p. 27) Além de escolher um texto baseado no critério da qualidade literária e se preocupar com a adequação do texto ao leitor, ao professor não cabe apenas a tarefa de ensinar a criança a ler corretamente, é preciso também fazer a mediação entre o texto e o leitor, ajudando-o a compreender o texto. É nesse contexto que a literatura infantil é levada a realizar a sua função formadora, que não deve ser confundida com uma missão pedagógica. É também nesse contexto que se pode falar de leitor crítico. Assim, a literatura infantil auxilia a criança a experimentar o mundo, uma vez que lida com dois elementos para a conquista da compreensão do real: 1) uma história que apresenta as relações presentes na realidade, que a criança não pode perceber por conta própria; e 2) a linguagem, que é a mediadora entre a criança e o mundo. No entanto, para adequar-se ao recebedor, ou seja, à criança, a literatura infantil deve atender aos interesses do leitor, e para tanto, precisa posicionar-se diante do real, isto é, o texto precisa ser coerente e verossímil para coincidir com as expectativas do público a quem se dirige. Cabe então à literatura infantil, ser literatura e não mais pedagogia, pois o sucesso do livro depende de sua orientação para o recebedor. Olhando mais de perto o conto “A Bela e a Fera”, cujas discussões desenvolveremos logo mais, vemos nele a apresentação de uma situação familiar verossímel: uma família monoparental masculina, pois Bela só possuía o pai que ficara viúvo e, consequente20

mente, tinha por ele um amor imensurável. Neste sentido, é possível dizer que a literatura infantil: (...) se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de acesso ao real, na medida em que facilita a ordenação de experiências existenciais, pelo conhecimento de histórias, e a expansão de seu domínio linguístico. (Zilberman, 2003, p. 46)

2ª Seção: Os novos rumos sócio-afetivos e familiares incorporados na legislação brasileira A Constituição de 1988 alargou o conceito de família para além do casamento, pois trouxe o conceito de entidade familiar, albergando relacionamentos para além deste. Como consequência disso, foi assegurada especial proteção tanto aos vínculos monoparentais quanto à união estável (art. 226, §4º da CF). Em outras palavras, o enfoque deixa de ser o casamento e passa a ser a família como instituição independentemente constituída. Abandona-se a ideia de família chefiada pelo marido, que detinha os direitos, dentre outros, de fixar o domicílio conjugal, representar legalmente a família e de administrar os bens – ideias essas provenientes de um Estado Liberal, que pouco intervinha nas relações privadas - e passa-se a adotar um conceito de família como destinatária de normas crescentemente tutelares, que asseguram a liberdade e a igualdade entre homens e mulheres – ideia esta característica do Estado Social, no qual se insere a Constituição Federal de 1988. Com base nessa igualdade material entre homens e mulheres, prevista no art. 226, § 5º da C.F., o pai e a mãe passam a exercer, em conjunto, o pátrio poder – que, inclusive, passou a ser chamado de poder familiar. A monoparentalidade encontra também proteção no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em sua definição de família natural - nela incluída a família monoparental (art. 25) - e ao salientar que crianças e jovens devem se desenvolver em ambiente familiar adequado, ou seja, naquele que favoreça o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual (art. 3º). A tutela constitucional da família monoparental se mostra necessária, dado o expressivo aumento do número dessas entidades na atual realidade brasileira por fatores que vão muito além da viuvez – que, até a década de 90, era a principal causa para a existência da família monoparental. Atualmente, todavia, presenciamos uma figura de “produção independente” das mulheres que, inclusive, voluntariamente procuram a gravidez e assumem, sozinhas, a incumbência da criação dos filhos. Apesar de o tipo mais comum de família monoparental ser aquela chefiada pela mulher, há também a monoparentalidade oriunda de pai solteiro, que, muitas vezes, é decorrente do abandono deste por parte de sua mãe ou falecimento desta. Ademais, diversos outros motivos fazem com que surja a figura da família monoparental, como por exemplo, a separação de 21

fato, divórcio, concubinato, adoção de filho por apenas uma pessoa, etc. De qualquer forma, independentemente da causa, os efeitos jurídicos deste tipo de arranjo familiar são os mesmos, notadamente quanto ao poder familiar e ao estado de filiação que é conferido a seus integrantes. A Constituição de 1988 não apenas protege a família monoparental já constituída, mas também a que se pretende constituir. Isso se deve ao fato de que, segundo Freire de Sá (2004), o princípio do melhor interesse da criança não estará assegurado simplesmente pelo fato de a criança nascer em família biparental, mas pela circunstância de ser amada, desejada e respeitada. E, justamente por se pensar no melhor interesse da criança, o Estado deve dar um maior enfoque aos novos tipos de família – como a família monoparental. Isso se deve ao fato de esta espécie de família exigir uma maior proteção estatal, afinal o genitor terá como incumbência administrar individualmente a família, garantindo-lhe o sustento e os cuidados devidos com o lar e com a criação dos filhos. Inclusive, muitas vezes, a família monoparental proveniente de divórcio faz com que a criança seja criada na ausência de um dos pais, e, consequentemente, desenvolva determinados traumas familiares, principalmente em razão de sua consciência de que o pai/mãe existe e, mesmo assim, exerce a rejeição por livre escolha. Nesse sentido, cumpre mencionar que, atualmente no Brasil, observa-se uma tendência no Judiciário do aumento de pedidos de reparação de danos (indenização moral) pelo “abandono afetivo” de um dos pais. Segundo o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça, escaparia ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo com outrém. Entretanto, em recente decisão de abril de 2012, a Min. Nancy Andrighi condenou o pai ao pagamento de R$ 200 mil reais à filha em razão do abandono afetivo. Foi salientado que a discussão não é em relação ao amor – já que este é uma faculdade – mas sim à imposição constitucional e biológica do dever de cuidar, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. A omissão no dever de cuidar da prole por parte do genitor impõe a possibilidade de pleitear compensação por danos morais devidos em razão do abandono afetivo. O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. 3ª Seção: Novas relações familiares em uma articulação com o conto “A Bela e a Fera” O conto “A Bela e a Fera” tem sua trama desenvolvida no seio de uma família monoparental masculina, pois o pai, viúvo, cria sozinho sua filha, lutando para dar-lhe o melhor. Cabe ressaltar que esse papel de pai ativo é de fundamental importância a fim de se estabelecer uma educação competente para as crianças, ou seja, aquela educação

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com nível equilibrado de controle e carinho aos filhos, aceitando facilmente os encargos decorrentes da monoparentalidade. É visível, no conto, a luta do pai, que financeiramente, enfrenta sérios problemas para dar uma educação equilibrada à filha; todavia a ausência da figura da mãe e esposa parece gerar uma insegurança tanto no pai quanto na filha que leva ambos a um amor exacerbado um pelo outro, comprovando assim, pelo menos em parte, os problemas de ordem afetiva derivados da fragilidade das famílias monoparentais (Colman, 1991). Apesar de alguns pais acolherem aspectos femininos e exercerem as funções tradicionalmente entendidas como maternas e assim fundir em si os papeis de pai e mãe, nunca conseguirão substituir a figura da mãe. O que estes pais podem fazer é dar carinho, estar próximo, educar, orientar, criar seus filhos; e, com paciência, força de vontade e dedicação aprender a serem pais integrais e desempenhar um papel positivo a partir da sua própria paternidade. Por esta razão, parece possível dizer que filhos criados em famílias monoparentais apresentam maiores dificuldades no seu desenvolvimento, sendo mais imaturos. Tal situação é evidenciada no conto quando, logo no início, Bela apresenta um comportamento sexual imaturo, pois dizia aos pretendentes que era muito jovem para casar-se e desejava ficar com o pai ainda por alguns anos. Para Bettelheim (1980), Bela via o amor pelo pai e por um homem como opostos e antagônicos e acreditava que devia escolher entre um e outro, negando sua própria sexualidade. Isso, segundo o autor (op.cit) antecipa de séculos o enfoque freudiano de que a criança vivencia o sexo como repulsivo enquanto seus anseios sexuais estiverem ligados aos pais, porque só uma atitude negativa quanto ao sexo pode fazer assegurar o tabu do incesto, e com isto a estabilidade da família. Como se vê, o conto tem como premissa maior as relações afetivas que envolvem pai e filha, não existindo nada de feroz, conforme sugere o título, uma vez que até a aproximação de Bela e Fera ocorre pela semelhança do caráter e brilhantismo de ambos. Nem mesmo no início do conto, quando Fera ameaça prender o pai de Bela, há traços de ferocidade, pois sua real intenção era conseguir trocar o pai pela jovem donzela, uma vez que queria apenas a companhia dela, já que o amor da jovem era seu objetivo e, com isso, a libertação da aparência animal criada por um feitiço. Neste sentido, é possível dizer que se trata de uma ameaça vazia, conforme aponta Bettelheim (1980 p.342), ou seja, uma ameaça despida de vingança e assentada em uma racionalidade que tem como alvo a libertação. Assim, a trama deste conto de fadas mergulha na razão e objetividade e não nos impulsos, situação que nos permite dizer que, em nenhum momento do conto, vimos atitudes compatíveis com irracionalidade no comportamento de Fera cuja aparência é de um animal. Tal racionalidade pode ser observada desde o início quando, por exigência 23

de Fera, Bela declara ser por sua livre e espontânea vontade que deseja ficar no castelo no lugar de seu pai. Também não é instintivamente que Fera, apesar de pedir, com insistência, Bela em casamento, aceita sua rejeição sem recriminá-la e não tenta se aproximar antes de ela declarar que o ama. Explicando melhor, só uma donzela de bom caráter e cheia de brilhantismo poderá por ele se apaixonar e devolver à Fera a humanização. Arrematando com Bettelheim, (1980) que traduz essas ideias para termos psicanalíticos: o casamento de Bela com Fera é a humanização e socialização do id pelo superego. Em resumo, a história sugere uma ligação edípica de Bela com o pai, pois até mesmo a aproximação com Fera deu-se por amor ao pai a quem precisava salvar, oferecendo sua própria vida. O pai, por seu lado, também luta para salvar a filha da prisão, adoecendo e padecendo quase até a morte na tentativa de libertá-la. Na opinião de Bettelheim, (1980) “A Bela e a Fera” é o conto que deixa mais claro para a criança que a ligação edípica com os pais é algo natural, desejável e tem consequências muito positivas, se durante o processo de amadurecimento for transferido do pai para o amado e, por conseguinte, se transformar. Sem dúvida, a essência da história é o crescimento durante o processo de amadurecimento da filha que acontece no final ao transferir seu amor edípico original do pai para o futuro marido. Assim, é possível terminar com Coelho (2000) e concordar com a psicanálise que vê os significados simbólicos dos contos maravilhosos ligados aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional. Lembra a psicanálise que a identificação com o herói bom e belo não se deve à sua bondade ou beleza, mas por sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de bondade e de beleza e, principalmente, sua necessidade de segurança e proteção cuja superação é atingida na fase adulta.

III – Conclusão Vimos como os contos de fadas, mais especificamente, “A Bela e a Fera” ensinam as crianças que, na vida real, é imperioso que estejamos sempre preparados para enfrentar grandes dificuldades, dando sugestões de coragem e otimismo para atravessar e vencer as inevitáveis crises de crescimento, encontrando assim, significado na vida (Bettelheim, 1980). Tais histórias, apesar de inventadas, não são falsas, pois ocorrem de forma semelhante no plano de nossas experiências pessoais. Portanto, a literatura infantil tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no convívio espontâneo de leitor e livro, seja no diálogo leitor e texto estimulado pela escola (Coelho, 2000). 24

Com relação à realidade social, o conto aborda uma trama desenvolvida em uma família monoparental cujas análises nos permitem concluir que esse tipo de arranjo sempre existiu de fato, desde a Antiguidade, embora não encontrasse proteção no mundo jurídico. Como já foi assinalado, a família é a instituição mais importante de nossa sociedade, todavia tem sofrido grandes transformações ao longo do tempo. Dizendo melhor, a família formal, cujo comprometimento mútuo decorre do casamento, explica Dias (2001, p. 54) vem cedendo lugar à certeza de que é o envolvimento afetivo que garante um espaço de individualidade e assegura uma auréola de privacidade indispensável ao pleno desenvolvimento do ser humano. Completando, a autora esclarece ser no âmbito das relações afetivas que se estrutura a personalidade da pessoa, pois o afeto entre as pessoas organiza e orienta o seu desenvolvimento (Dias, 2001). Assim, os novos rumos conduzem à família socioafetiva, onde prevalecem os laços de afetividade sobre os elementos meramente formais. Neste sentido, a constituição de 1988 absorveu essa transformação e alarga o conceito de família, privilegiando a dignidade humana e trazendo uma revolução no Direito de Família, a partir de três eixos básicos. (Dias, 2001p.65). Esses eixos seriam o art. 226 que legitima a pluralidade da entidade familiar e suas várias formas de constituição; o art. 227 no parágrafo 6º altera o sistema de filiação, proibindo a discriminação de filhos fora do casamento e o terceiro eixo situa-se no art. 226, artigos 5º. inciso I e 226 parágrafo 5º que consagra o princípio da igualdade entre homens e mulheres (Dias, 2001). Portanto, a nova Carta Magna, redimensiona o conceito de família, afastando o pressuposto de casamento. Para sua configuração, acrescentam Souza & Dias (2001, p. 33) “deixou-se de exigir a necessidade de existência de um par, o que, consequentemente, subtraiu de sua finalidade a proliferação”. Frente a essas mudanças, instala-se o fim do pátrio poder e institui-se o poder familiar e passam a integrar o conceito de família as relações monoparentais cujo crescimento tem sido substancial em nossa sociedade, levando a seu reconhecimento como entidade familiar na Constituição Federal de 1988 (CF 226 4º). A monoparentalidade encontra também proteção no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) ao definir o que seja família natural, nela incluindo a monoparental, e salienta que crianças e jovens devem se desenvolver em ambiente familiar adequado, ou seja, aquele que favoreça o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual. Embora seja o amor por um filho e deste pelo pai tão antigo quanto a humanidade, somente hoje, depois de todas as mudanças sociais havidas na segunda metade do século passado e o advento da Constituição Federal de 1988 que levou à criação do novo Código Civil de 2002 é possível ver novos rumos sócio-afetivos incorporados na legislação brasileira que trazem um novo olhar ao conceito de família. Em outras palavras, os vínculos de afeto se sobrepõem à verdade biológica e uma vez declarada a 25

convivência familiar e comunitária como direito fundamental, prioriza-se a família socioafetiva, a não discriminação de filhos, a corresponsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar e se reconhece o núcleo monoparental como entidade familiar (Pereira, 2004). Na verdade, independentemente dos sacrifícios que o homem faça para criar seus filhos e dificuldades que eventualmente possa encontrar no caminho, a máxima da família monoparental é o amor: o pai não cuida dos filhos porque isso é fácil, mas porque os ama. Resumindo e finalizando, urgem políticas públicas, que garantam amparo e proteção especial para essas crianças que não puderam crescer em lares biparentais, aliadas a uma atuação da sociedade e conscientização dos pais, pois trazer um filho ao mundo é tarefa que exige total responsabilidade e dedicação. IV - Referencias bibliográficas BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Paz e Terra 1980 BRASIL -  Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ Acesso em 20/09/2015 COELHO, Eduardo Prado. O reino Flutuante. Lisboa. Edições 70, 1972 COELHO, Nelly Novaes Literatura Infantil . Ed. Moderna 2000 COLMAN, Arthur. O pai: mitologia e papeis em mutação. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1991. DIAS, Maria Berenice. Famílias modernas: (inter)secções do afeto e da lei. Revista brasileira de direito de família, Porto Aklegre: Síntese/IBDFAM, v.8 jan/mar.2001 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Família Monoparental . Disponível em: http://fujitaadvocacia.com.br/artigofujita001.html acesso em 18/09/2015 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os Contornos Jurídicos da Responsabilidade Afetiva na Relação entre Pais e Filhos – Além da Obrigação Legal de Caráter Material, 2006 LOBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.5

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PIZA, Daniel. Revista Bravo, abril 2004 ano 7, no. 79 p.35 PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice. Direito de família e o novo código civil . Prefácio. Belo Horizonte: Del Rey? UBDFAM, 2001 A, Maria de Fátima Freire de . Monoparentalidade e biodireito. Afeto, ética, família e o novo código Civil. Rodrigo da Cunha Pereira ( coord) Belo Horizonte: Del Rey, 2004 VON FRANZ, M.L O feminino nos contos de fadas. 2000 ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2003

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Água no regime jurídico de direitos humanos Water under human rights perspective Danielle Mendes Thame Denny

RESUMO O presente artigo aborda a água como Direito Humano e como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável. Identifica, porém, a dificuldade que é tratar do tema dentro do Regime Jurídico dos Direitos Humanos. Em busca de parâmetros para instrumentalizar essa abordagem, detalha a Teoria de Direitos Humanos de Amartya Sen. A metodologia empregada é a dialógica, buscando a contraposição interdisciplinar necessária para construir convenções úteis que reconheçam os axiomas éticos aos quais a aplicação do Direito Humano à Água está sujeito. As técnicas de delineamento foram pesquisa bibliográfica, documental e legislativa. PALAVRAS-CHAVE: Água, Direitos Humanos, Amartya Sen

ABSTRACT: This article discusses water as a Human Right and a Millennium Development Goal. Identifies, on the other hand the difficulty that represents treating the subject inside the Human Rights Regime. The present research details the Theory of Human Rights, by Amartya Sen, to establish parameters and therefore instrument the approach of water as a Human Right. The chosen methodology is the dialogic that searches the interdisciplinary contraposition necessary to construct useful conventions that recognize the ethical axioms to whose the application of the Human Right to water is subjected. The delineation techniques were bibliographic, documental and legislative research. KEYWORDS: Water, Human Rights, Amartya Sen

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INTRODUÇÃO Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, criador do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, estuda profundamente a qualidade de vida (medida em termos de longevidade, mortalidade infantil, serviços de saúde e educação e índice de segurança), em virtude disso reconhece a importância dos Direitos Humanos e propõe elementos para uma Teoria de Direitos Humanos que serão analisados, neste trabalho, sob o aspecto do Direito Humano à Água. O planeta Terra poderia muito bem receber o nome de Água, uma vez que esse recurso corresponde a quase três quartos do planeta. Apesar disso, a escassez hídrica é um dos grandes desafios da contemporaneidade. Isso porque, apenas 1% corresponde à água doce apropriada ao consumo humano, 97% é salgada e 2% estão em estado sólido nas geleiras (FAO, 2015:5). E o uso irracional desse 1% tem comprometido a sustentabilidade desse recurso para as próximas gerações. A agricultura é o principal destino dessa água doce disponível em rios, lagos e lençóis freáticos, sozinha corresponde a 70% do uso desse 1% (FAO, 2015:VIII). E muitas vezes é feita de forma predatória, estima-se que cerca de 200 bilhões de toneladas de água são utilizados além do limite de renovação que o corpo hídrico possui, ou seja, mais de meio bilhão de pessoas são alimentadas por grãos produzidos de maneira insustentável (THAME, 2013:6). A água para o consumo humano direto também está no limite da exaustão. Mais de 1 bilhão de pessoas não tem acesso a água potável e mais de 2,5 bilhões vivem sem saneamento completo, ou falta coleta ou tratamento de esgoto. A estimativa é de mais de 1,8 bilhões de pessoas estarem em regiões com absoluta escassez hídrica em 2025 e dois terços da população mundial estarem submetidos a condições de estresse hídrico (UNWATER,2013:1). O crescimento populacional, a urbanização e a industrialização aumenta ainda mais a demanda por água potável nas grandes cidades. Mais da metade das pessoas vivem atualmente em cidades, sendo que 30% em áreas de ocupação desordenada como em favelas sem água potável e sem saneamento completo (WWDR, 2015:11). Situação que coloca essas pessoas em uma condição de risco gravíssimo à saúde. A ingestão de água contaminada pode gerar muitas doenças como cólera, febre tifoide, amebíase, disenteria, O contato pode acarretar micoses e outras formas de contaminação e pode sujeitar a pessoa a contaminação por parasitas que podem ser encontrados na água suja. A aspiração de gotículas contaminadas com bactérias também pode gerar doenças respiratórias fatais como é o caso da legionellose. Por último a má admi-

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nistração dos reservatórios hídricos favorece mosquitos como os que transmitem a dengue e a malária. No Brasil, é recente a preocupação com a falta de água de qualidade. O país detém 12% do estoque mundial, porém essa abundancia está mal distribuída, 80% estão nas bacias do Amazonas e Araguaia/Tocantins, os 20% restantes atendem a demanda de 90% da população brasileira. E esses cursos d´água do Sudeste enfrentam sequelas decorrentes de anos de ocupação desenfreada, disposição inadequada de resíduos urbanos e indústrias e principalmente e falta de coleta e tratamento de esgoto. A capital do estado de São Paulo por exemplo, apesar de ser cortada por dois rios o Tietê e o Pinheiros e ser emoldurada pelas represas Billings e Guarapiranga, enfrenta uma realidade de estresse hídrico. Itu, cidade do interior de São Paulo é outro exemplo paradigmático. Apesar de estar localizada na beira do rio Tietê, precisou abastecer sua população com carros pipa trazendo água de longe, gerando uma insegurança hídrica que por pouco culminou em guerra civil. Na altura de Itú, o rio Tietê está absolutamente imprestável para o consumo humano, principalmente por irresponsabilidade das municipalidades a montante de implementar uma gestão ambientalmente adequada: de recursos hídricos, de resíduos sólidos e de saneamento. O esgoto lançado sem tratamento é a principal fonte de poluição. Para reverter essa situação o direito na modalidade de comando e controle tem o seu papel, mas se mostra ineficiente se desprovido de uma política pública de fiscalização constante e de condenações exemplares. O fato de ser crime poluir e não haver na prática o devido processo administrativo, civil e penal, desmoraliza a ordem pública e ao invés de servir de desestímulo à prática lesiva, faz com que ela seja interessante, que compense o risco. Mas a legislação também pode ser utilizada como indutora da realidade, instituindo incentivos e criando obrigações preventivas. Um bom exemplo dessa prática é a precificação pelo uso do recurso hídrico, o objetivo dessa lei é efetivar o princípio do poluidor-pagador e então forçar economicamente o usuário do recurso hídrico a tratar seu esgoto e seus resíduos para pagar menos taxa e água. Para surtir efeito o valor da taxa precisa ser alto, para não compensar poluir, tem que ser mais barato instalar a unidade de tratamento que continuar a pagar taxa. Essa cobrança pelo uso da água ainda não é implementada em todas as bacias hidrográficas brasileiras, apenas na bacia do Piracicaba, do Paraíba do Sul e do Sorocaba e o tocante às águas subterrâneas não há qualquer regulação que induza ao uso mais racional. Normas técnicas por sua vez podem também ter um papel relevante para orientar o uso do recurso hídrico com responsabilidade. Normalmente essas normas têm sua efe30

tividade muito mais decorrentes do entendimento delas como científicas e realmente como melhores práticas e menos pelos efeitos jurídicos que pode vir a ocorrer caso haja descumprimento. O compromisso voluntário da sociedade e dos agentes do mercado com aquilo que está previsto nas normas técnicas tende a ser muito mais eficaz, portanto, que uma eventual fiscalização e uma possível aplicação de sanção. Mas para tanto pressupõe-se uma mudança de paradigma no enfrentamento do problema da escassez hídrica. A temática precisa ser objeto de participação de toda a sociedade, não é um problema pontual de governo, pelo contrário, precisa haver responsabilidades compartilhadas por todos. Pouco adianta haver leis ou o acesso à água ser reconhecido como Direito Humano pela ONU se falta conscientização ambiental e mobilização popular para forçar a entrada do tema na agenda pública local. A metodologia adotada neste trabalho foi a dialógica, lastreada na transdisciplinaridade, e na conjugação de instrumentos práticos e teóricos, para construir convenções úteis ao conhecimento e à efetivação do Direito Humano à Água. As técnicas de delineamento foram pesquisa bibliográfica e documental. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL O acesso a água segura foi essencial para que se perseguisse todos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, pois qualquer iniciativa de redução da pobreza ou de fomentar o desenvolvimento socioambientalmente sustentável depende necessariamente do acesso das pessoas aos recursos hídricos de qualidade em quantidade suficiente para garantir a sua existência digna. Além disso, o objetivo 7 tratou especificamente do tema “reduzir pela metade, até 2015, a proporção de população sem acesso sustentável a água potável segura e a saneamento básico”. Em linhas gerais, desde 1992 até 2015, os oito Objetivos do Milênio foram fundamentais para estruturar políticas públicas em torno de: redução da pobreza; ensino básico universal; igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; menos mortalidade infantil; melhor saúde materna; combate à Aids, malária e outras doenças; sustentabilidade ambiental e parceria mundial para o desenvolvimento. Para atingir esses objetivos, a ONU trabalhou com um conjunto de 18 metas, monitoradas por 48 indicadores. Essas metas decorrem da Declaração do Milênio, o mais importante compromisso internacional em favor do desenvolvimento e da eliminação da pobreza e da fome no mundo, assinada em setembro de 2000, por representantes de 191 estados membros da ONU, incluindo 147 chefes de Estado. Se ainda há muito a ser feito por alguns países para o cumprimento dos objetivos, a maioria, inclusive o Brasil, conseguiu alcançar ou se aproximar o máximo possível das metas, o que comprova a eficácia desses instrumento de soft law, que mesmo não pre31

vendo sanções por descumprimento, é capaz de gerar comprometimento e cooperação dos países em busca de resultados . Este ano, a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015 será estabelecida na Assembléia Geral da ONU em setembro. O desafio é serem adotados objetivos e metas ainda mais arrojados a serem perseguidos nos próximos quinze anos. Atendendo ao objetivo de maior participação da sociedade civil o PNUD realizou uma consulta popular em escala global. Além disso, foi também submetido a análise pública as conclusões a que chegou o grupo de trabalho multidisciplinar, da ONU, designado, durante a Rio+20, para estudar as necessidades a serem refletidas nos próximos objetivos para o desenvolvimento sustentável. O relatório reconheceu a importância das responsabilidades serem comuns, porém diferenciadas. A persistente fragilidade macroeconômica e as atuais incertezas políticas certamente fará com que o cenário das negociações não seja tão propício como em 1992 e em 2000. Neste contexto de crise os países buscam agregar valor às suas produções, maximizando benefícios e minimizando riscos, o desavio vai ser incluir as condicionantes com um crescimento inclusivo e que respeite o meio ambiente. O Brasil tem participado ativamente na construção da Agenda Pós-2015 e há uma coordenação nacional com mandato específico de construir as posições diplomáticas brasileiras, principalmente focada em definir meios que possam ser adotados pela comunidade internacional e pelos países desenvolvidos para apoiar os países em desenvolvimento na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como formas de financiamentos, transferência de tecnologia e capacitação de recursos humanos. Independentemente de quão auspicioso for o resultado da Agenda Pós-2015, certamente a qualidade da água estará presente, haja vista a sua importância basilar para garantir a consecução de vários outros objetivos e metas. ÁGUA COMO DIREITO HUMANO A Assembléia Geral das Nações Unidas declarou ser a água direito humano essencial em 2010, pela Resolução A/RES/64/292. Por sua vez, em 2011, o Conselho dos Direitos Humanos adotou a Resolução 16/2, pela qual considera o acesso a água potável segura e ao saneamento um direito humano. Esse direito foi reiterado pela Resolução A/HRC/24/L.31 do Conselho de Direitos Humanos sobre o Direito à Água e ao Saneamento. Afinal, a água limpa e segura e o respectivo saneamento básico são pré-requisitos para o ser humano gozar plenamente uma vida digna e exercer os outros direitos humanos sobretudo o direito à vida e à dignidade humana. “Na esteira da histórica resolução da Assembleia Geral da ONU sobre o direito à água, em abril de 2011 o Conselho dos Direitos Humanos, por meio da Resolução 16/2,175 32

também denominada “O direito humano à água e ao saneamento”, definiu o acesso à água potável segura e ao saneamento como um direito humano derivado do direito ao nível adequado de vida e intrinsecamente ligado ao direito à saúde, assim como ao direito à vida e ao direito à dignidade humana. Finalmente, em setembro de 2013, na Resolução 24/31, documento mais recente sobre o assunto, o Conselho de Direitos Humanos reiterou a existência do direito à água e ao saneamento, reforçando que os Estados têm a obrigação de disponibilizar progressivamente os serviços de água e saneamento adequados e que esse processo deve levar em conta igualmente a capacidade das gerações futuras de efetivar o direito água.“ (RIVA, 2015:63)

Sendo assim, as instituições e os meios que compõem o sistema de direitos humanos das Nações Unidas podem ser utilizados para fazer o acompanhamento do progresso atingido pelos Estados membros para efetivar em seus territórios o direito à água e ao saneamento, sendo viável responsabilizar governos por inércias e má gestão. Inclusive, na Agenda 21, o capítulo 18 já direcionava as ações dos Estados para um gerenciamento sustentável:

“18.2. A água é necessária em todos os aspectos da vida. O objetivo geral é assegurar que se mantenha uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza e combatendo vetores de moléstias relacionadas com a água. Tecnologias inovadoras, inclusive o aperfeiçoamento de tecnologias nativas, são necessárias para aproveitar plenamente os recursos hídricos limitados e protegê-los da poluição.”

Gabriela Saab Riva identifica com muita propriedade que apesar da evolução jurídica relativa aos Direitos Humanos parecer desconexa com a do Direito Ambiental, “esses dois ramos se entrelaçam em diversos pontos, mantendo uma relação cada dia mais estreita” (RIVA, 2015:28). Comprovação disso é a tendência de os lugares onde há violação aos direitos humanos também sofrer degradação ambiental, dada a exacerbada extração de recursos naturais acompanhada da fragilidade política. Apesar de haver diferenças no tocante à natureza jurídica do direito à água, como independente ou derivado, de qualquer forma ele é condição necessária para a realização de outros direitos humanos, como a existência digna, o direito à vida, o direito à saúde

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e portanto precisa ser objeto de políticas públicas e da atividade privada para a sua garantia. Assim, quanto à natureza do direito à água, cogitam-se duas possibilidades: (i) o direito à água subordinado (ou derivado) e necessário para a realização de outros direitos primários já reconhecidos pela comunidade jurídica internacional (direito à vida, direito à saúde, etc.); (ii) o direito à água independente, que enseja direitos e obrigações próprios e que pode ser judicializado per se, sem que haja a necessidade de comprovar a violação de nenhum outro direito humano. Essa é uma discussão importante, pois dela depende a escolha entre se buscar a criação de um novo direito ou simplesmente litigar por um direito à água com base em direitos humanos já consagrados. Além disso, dependendo dessa classificação, as obrigações dirigidas aos Estados podem ser diferentes.” (RIVA, 2015:110) Declarado de maneira independente, o Direito Humano à Água sai da sombra dos outros direitos humanos e poderia ser judicializado pelo regime jurídico nacional e internacional de maneira independente, portanto criaria-se uma maior segurança jurídica e assim uma maior efetividade. ELEMENTOS DE UMA TEORIA DE DIREITOS HUMANOS Amartya Sen, encarando a dicotomia entre o poder retórico da elocução política dos Direitos Humanos e a sua fraqueza em termos práticos, sendo pouco ou nada cogente, buscou sistematizar aspectos mínimos para que se pudesse elaborar uma Teoria de Direitos Humanos. Para tanto formulou, em linhas gerais, as seguintes perguntas (SEN, 2004: 318): Que tipo de discurso é usado na Declaração de Direitos Humanos? O que faz os Direitos Humanos serem importantes? Que tipo de deveres e obrigações são geradas pelos Direitos Humanos? Que tipo de ações podem promover os Direitos Humanos? Os direitos de segunda geração (econômicos e sociais) podem ser incluídos entre os Direitos Humanos? Como o status de universal deve ser encarado diante da imensa variedade cultural? E a positivação é necessária ou deve ser a principal forma de implementação dos Direitos Humanos? Para alguns, os Direitos Humanos têm características de um direito ainda imaturo, em formação, seria um reconhecimento ético, ainda sem qualquer dever jurídico ou interpretação legal que lhe pudesse ser decorrente. Para outros, os Direitos Humanos são as bases morais, as fontes formadoras do Direito, na medida em que motivam e inspiram as legislações específicas. Segundo Amartya Sen, Jeremy Bentham define os Direitos Humanos como a criança do Direito e Herman Hart como os pais do Direito (SEN, 2004: 326).

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De qualquer forma, a implementação dos Direitos Humanos vai muito além do ato legislativo e da judicialização. Também formas de ação, monitoramento e reporte podem se mostrar mais apropriadas, como é o caso das iniciativas levadas a cabo por organizações como a Anistia Internacional ou a Green Peace, apenas para citar alguns exemplos dentre tantos. Sobre a importância dos Direitos Humanos, eles representam além de direitos e garantias fundamentais, também uma carga valorativa reconhecida socialmente como relevante e engajam a discussão pública. Existe, portanto, um limite de relevância social que precisa ser atendido para que um direito seja considerado Direito Humano. Os tipos de deveres e obrigações gerados pelos Direitos Humanos são variados. Amartya Sen diferencia o direito ao processo (como ao devido processo legal), do direito à oportunidade (viver sem a ameaça de ser assaltada, por exemplo. Mas tem um outro aspecto que ele pontua, a capacidade, que se mostra no binômio o que a pessoa pretende ser ou fazer versus aquilo que tem os meios de conseguir ser ou fazer. Antes de abordar os tipos de ações podem promover os Direitos humanos é preciso fazer a ressalva de que apesar de haver uma necessária carga valorativa de importância a ser atribuída a um direito para que ele possa ser considerado Direito Humano, ainda assim, diante do fato concreto o indivíduo não necessariamente aplica de pronto o dispositivo, pelo contrário procede uma consideração valorativa, em que pondera direitos e interesses conflitantes aplicáveis aquele caso em questão. O autor sintetiza que o reconhecimento dos Direitos Humanos não significa que qualquer pessoa precisa agir, face a qualquer violação, em qualquer lugar do mundo, mas que pelo contrário, é o reconhecimento de que alguém que detenha uma posição plausível possa agir para prevenir a violação de maneira efetiva (SEN, 2004:340). Significa dizer que é inviável alegar que o assunto não é da conta das pessoas. Além dos deveres propriamente ditos, há as obrigações imperfeitas, que são preceitos éticos que fundamentam uma conduta. Correspondem à necessidade de a pessoa, em condição de ajudar, levar em consideração a ameaça de Direitos Humanos. Um exemplo pode ser útil para marcar essa diferença: no caso de homicídio, o bandido viola a obrigação perfeita de não matar, mas quem assistiu ao crime e nada fez violou a obrigação imperfeita de ter tomado as medidas ao seu alcance para prevenir o crime. Assim, diversas ações podem promover os Direitos Humanos independentemente de uma legislação coercitiva. Exemplo disso, em especial, são as atuações nos meios de comunicação, a pressão política a ser feita pela sociedade civil, a exposição pública ou as políticas institucionais que levam a discussão pública Direitos Humanos.

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Quanto aos direitos de segunda geração, Amartya Sen ressalta que, diferentemente dos tradicionais direitos civis e políticos, que normalmente requerem a abstenção do Estado de intervir na vida de seus cidadãos, os econômicos e sociais demandam, via de regra, uma ação governamental custosa para efetivar políticas públicas. Para países com economias frágeis e panoramas políticos instáveis, a efetivação desses direitos fica limitada à utopia. Porém essa falta de viabilidade não pode ser considerada uma perda de direitos, pelo contrário, deve motivar a constante busca por novas circunstâncias políticas e econômicas que possibilitem a efetivação desses Direitos Humanos (SEN, 2004:348). Outro ponto importante é a relação entre opinião pública e a formulação e eficácia dos Direitos Humanos. Os valores éticos florescem se encontram apoio popular, espaço para debate e informações abundantes disponíveis (SEN, 2004:349). O processo de monitoramento das violações de Direitos Humanos, bem como o de identificação dos violadores para pelo menos causar constrangimento, demanda uma atuação da sociedade que só é possível em um ambiente em que o fluxo de informações é livre. Essa opinião pública, contudo, está submetida a valores éticos próprios de um determinado tempo e espaço que se for submetida a uma análise mais abrangente talvez não seja a mesma. O autor traz o exemplo do costume das famílias gregas de matar ou abandonar crianças que não tivessem condição de criar. Por mais abominável que possa parecer, os filósofos da época como Aristóteles e Platão não se manifestaram contra. (SEN, 2004:355). Em virtude desse multiculturalismo, o entendimento e a viabilidade dos Direitos Humanos dependem intimamente do vínculo com a discussão pública internacional, pois a natureza de universalidade depende da habilidade de sobreviver ao escrutínio público além das fronteiras. CONSIDERAÇÕES FINAIS O acesso à água em quantidade e de qualidade suficiente integra o rol dos Objetivos de Desenvolvimento Sústentável e foi declarado como Direito Humano. Dessa forma, representa uma garantia fundamental e detém uma carga valorativa reconhecida socialmente como altamente relevante e capaz de engajar a discussão pública. Porém sua efetividade ainda é um desafio. Pela análise da Teoria de Direitos Humanos de Amartya Sen, pode-se perceber que essa intangibilidade é comum a outros Direitos Humanos, até os de primeira e segunda geração. Conhecendo essas características próprias, diminui-se a discrepância entre as expectativas e as possibilidades, e com menor frustração é possível articular atuações práticas que possam ser tão ou mais efetivas que uma positivação de direitos. Afinal a imple36

mentação do Direito Humano à água vai muito além do ato legislativo e da judicialização, pressupõe outras formas de ação, monitoramento e reporte, com amplo envolvimento político e social. Apesar disso, é importante ressaltar que tal reconhecimento da água como Direito Humano não significa que a partir desse momento todas as pessoas no mundo precisam ter acesso imediato à quantidade e à qualidade de água necessária a sua existência. A construção desse Direito será um processo e demanda dos Estados atuações políticas e econômicas consistentes. A falta de viabilidade não pode ser considerada uma perda de direitos, pelo contrário, deve motivar a constante busca por novas circunstâncias políticas e econômicas que possibilitem a efetivação desse direito. Mas de qualquer maneira, como afirma Amartya Sen, é inviável alegar que esse assunto não é da conta das pessoas. Inclusive diversas ações podem promover esse Direito Humano independentemente de uma legislação coercitiva. Exemplo disso, em especial, são as atuações nos meios de comunicação, a pressão política a ser feita pela sociedade civil, a exposição pública ou as políticas institucionais que levam a água à discussão pública. Existe uma relação direta entre opinião pública e a formulação e eficácia dos Direitos Humanos, mas para tanto há de haver espaço para debate e informações abundantes disponíveis, pois disso depende o processo de monitoramento das violações de Direitos Humanos, bem como a identificação dos violadores para pelo menos causar constrangimento. Tal atuação da sociedade que só é possível em um ambiente em que o fluxo de informações é livre. Por último, em virtude do multiculturalismo, o entendimento e a viabilidade da água como Direito Humano depende intimamente do constante vínculo com a discussão pública internacional, pois a natureza de sua universalidade depende da habilidade de continuar sobrevivendo ao escrutínio público além das fronteiras.

REFERÊNCIAS

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Danielle Mendes Thame Denny Pesquisadora dos grupos de pesquisa Cultura do Ouvir da Faculdade Cásper Líbero e Energia e Sustentabilidade da Universidade Católica de Santos . Integra a comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo. Doutoranda pela Universidade Católica de Santos, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Mestre em Comunicação na Contemporaneidade, pela Faculdade Cásper Líbero. Com especializações em: Diplomacia Econômica, pela Universidade Estadual de Campinas; Direito Tributário, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e Política pela Escola de Governo da Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora universitária na Fundação Armando Álvares Penteado e na Universidade Paulista.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Governo eletrônico, cidadania e inclusão digital Digital inclusion, citizenship and eletronic governance Cristina Barbosa Rodrigues Irineu Francisco Barreto Junior RESUMO Este artigo aponta a inclusão digital como requisito para efetivação de direitos fundamentais, uma vez que esta se trata de direito autônomo do cidadão, em analogia ao direito de acesso à informação assegurado pela Constituição Federal. A metodologia adota é fundamentada no conceito de governo eletrônico e seu papel para o aprimoramento da cidadania. Constitui uma pesquisa conceitual teórica jurídica, baseada no método analítico dedutivo. Nesse contexto, aborda a política de governança eletrônica promovida pelo Estado para mitigar a exclusão sociodigital, notadamente por intermédio do programa Federal de Governo Eletrônico. Nesse cenário, o Estado assume papel de importância, voltado à democratização do acesso à rede e à prestação eficiente de serviços aos cidadãos, usando as novas tecnologias para promover e efetivar direitos fundamentais. Verifica-se que o surgimento da internet – e o seu crescimento enquanto diferencial competitivo – encontra amplo campo de aplicação nas políticas governamentais, uma vez que podem contribuir para a promoção da democratização e da inclusão social, permitindo mais transparência administrativa e controle popular dos governos, por intermédio do chamado governo eletrônico. Palavras-chaves: Direito à Informação; Exclusão Digital; Governo Eletrônico.

ABSTRACT This article points to the digital inclusion as a pre-requisite for enforcing these rights, since this entails the citizen´s autonomous right, in view of the right to access information which is secured by the Federal Constitution. Its methodology is based on the conceptual definition of electronic government. It is therefore search concept theoretical law on the basis of deductive analytical method. In this context, it touches upon the electronic governance policy sanctioned by the State to mitigate the social-digital exclusion, more specifically through the Federal Government´s Electronic Program. In this scenario, the 40

State takes on an important role, aimed at the democratization of the access to the Net and provision of efficient service to the citizens, using the new technologies to promote and make effective the fundamental rights. It is made evident that the advent of the Internet – and its expansion as a competitive advantage – finds ample field of application in the government policies, once it is able to contribute to promote the democratization and the social inclusion, allowing more administrative transparency and better popular control of the governments through the so called electronic government. Key-words: Right to Information; Digital Exclusion; Electronic Government.

Introdução Os impactos globais trazidos pelas tecnologias da informação e da comunicação – TICs – fizeram surgir uma nova sociedade de indivíduos cada vez mais conectados, que se comunicam, adquirem e produzem serviços e se beneficiam do conhecimento e da gama de informações disponíveis na rede mundial de computadores, configurando uma nova era: a da informação. Diante desse quadro, revela-se incontestável que esse novo ambiente socioeconômico tem causado impacto não só na sociedade civil, mas também na estrutura e na gestão dos governos. Conforme preceitua Klaus Frey, “as novas tecnologias da informação e da comunicação ampliam as possibilidades de participação dos cidadãos na tomada de decisões políticas. Esta realidade tem sido definida como governança urbana eletrônica”. Assim, verifica-se que o surgimento da internet e o seu crescimento enquanto diferencial competitivo encontra amplo campo de aplicação nas políticas governamentais, pois podem contribuir para a promoção da democratização, permitindo mais transparência administrativa e controle popular dos governos. Nesse cenário, se depreende que o governo eletrônico surge emergido dos movimentos de reforma do Estado, dos quais emanam questões como o accountability, o controle social e a transparência dos governos, potencializadas pelo surgimento de novas tecnologias da informática e das telecomunicações, que possibilitam a criação de sistemas integrados e interativos de prestação de serviços, de controle governamental e de difusão de informações institucionais cada vez mais abrangentes e acessíveis aos cidadãos. O Governo Eletrônico

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Conforme assevera Castells, “a Internet não surge somente como uma nova tecnologia da informação, mas também como uma nova forma de organização da economia e da sociedade como um todo, num processo de desconstrução e reconstrução incessantes” . Nessa constante modernização das tecnologias da informação e da comunicação, novos paradigmas surgem para direcionar a comunicação social, as relações entre os indivíduos, as relações comerciais e, como não poderia deixar de ser, afetam as relações entre governantes e governados. No tocante às relações com o governo, a intermediação eletrônica, proporcionada pela rede mundial de computadores, possibilita maior integração dos processos governamentais, não apenas entre si, mas também com os demais atores, que com eles interagem, permitindo a realização eficaz de atividades e serviços públicos, mediante transações eletrônicas com os cidadãos, fornecedores, empresas e outras entidades, de forma a democratizar a atuação estatal, tornando-a mais moderna, eficiente, eficaz e transparente. Nesse diapasão, sob a égide da gestão pública eletrônica, são desenvolvidas políticas públicas utilizando as TICs como ferramentas de modernização administrativa, de ampliação dos princípios democráticos de participação popular, de efetivação de direitos e garantias constitucionais e, principalmente, de promoção de inclusão social e política dos setores marginalizados da sociedade. Desse modo, constata-se que todo o potencial oferecido por esse conjunto de instrumentos tecnológicos disponíveis na sociedade da informação, principalmente nos países em desenvolvimento, deve ser utilizado não apenas para dar mais eficiência às ações do Estado, mas, sobretudo, para reafirmar e difundir os instrumentos democráticos, efetivar direitos fundamentais e ainda promover a inclusão social do cidadão. A rede mundial tornou-se um desafio para as empresas, instituições e organismos do governo em todo o mundo, e não há como escapar desse processo de transformação da sociedade. Para todos aqueles que tiverem meios de acesso, as informações são diversas, públicas e gratuitas e, para os que não as têm, o Estado assume um papel muito importante, voltado para a democratização do acesso à rede e a prestação eficiente de seus serviços aos cidadãos, usando as tecnologias de informação e comunicação. Esse novo modelo de atuação estatal, que envolve o uso das tecnologias da informação e da comunicação, com o objetivo de melhorar a gestão de procedimentos e serviços públicos característicos da face governamental da sociedade da informação, tem

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sido identificado e nomeado como governo eletrônico, governança eletrônica ou ainda e-government. Conforme leciona Yarina Amoroso: (...) el gobierno eletronico consiste en la aplicación de las TIC en la gestión hacia dentro (control de la entidad) y hacia fuera (servicios de cara al cliente) de los procesos que llevan a cabo los departamentos de administración pública. Es el resultado de un cambio radical en las relaciones entre gobierno – ciudadanos (G2G), gobiernos-negocios (G2B) y gobierno-gobierno (G2G) . Além disso, conforme preleciona Sorj, o na seara do governo eletrônico, encontra-se o voto eletrônico, a possibilidade de interagir com órgãos públicos e ainda a regulamentação das atividades associadas ao uso e acesso à rede mundial de computadores: O e-governo inclui o voto eletrônico, a possibilidade de interagir com as instituições públicas e a regulamentação das atividades associadas à Internet – o desenvolvimento da legislação concernente às atividades comerciais, certificação, segurança e direitos de privacidade individual – e todas as medidas que asseguram a universalização do acesso à Internet.

Contudo, referido autor ainda anota que hodiernamente, na realidade, os impactos da internet no âmbito político-administrativo do Estado podem ser separados em três vertentes com objetivos transformadores distintos, que para muitos englobam o mesmo conceito de governo eletrônico: e-governança, ligada à gestão pública e seus desdobramentos, e-governo, que se revela nos novos instrumentos que propiciam participação e, muitas vezes, até manipulação, popular na gestão governamental e e-política, que representa o reflexos da internet na estrutura política da sociedade, os quais define da seguinte forma: Hoje,e-governança, e-governo; e-política: Os impactos da Internet na vida política podem ser separados em três níveis: a e-governança refere-se à utilização da Internet para aumentar a eficácia, a eficiência, qualidade, transparência e fiscalização das ações e serviços do governo e das instituições públicas; o e-governo inclui o conjunto de novos instrumentos que permitem aumentar e modificar a participação dos cidadãos na gestão e escolha das decisões governamentais, bem como influenciá-las; a epolítica é o impacto da Internet na própria estrutura e possibilidades de organização política da sociedade.

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Assim, como anota o citado autor, o governo eletrônico sob a ótica da e-governança permite a utilização da Internet para:

1) divulgar todas as atividades dos diferentes órgãos do governo, incluindo acompanhamento do orçamento e gastos públicos, garantindo uma maior transparência e monitoramento público; 2) melhorar a rapidez, o alcance, e a qualidade na administração interna e nos serviços prestados; 3) prestar serviços on-line, incluindo emissão de certificados, solicitação de serviços de saúde e educação, pagamento de contas, tributos e declaração de impostos; 4) realizar leilões eletrônicos, licitações públicas, compras e fornecer serviços. (...) O e-governo inclui o voto eletrônico, a possibilidade de interagir com as instituições públicas e a regulamentação das atividades associadas à Internet – o desenvolvimento da legislação concernente às atividades comerciais, certificação, segurança e direitos de privacidade individual – e todas as medidas que asseguram a universalização do acesso à Internet.

Dentre esses diversos espectros de atuação, de acordo com o que defende Maria Sylvia Zanella Di Pietro, questão relevante é a face do governo eletrônico que incentiva a participação popular na gestão e no controle da Administração Pública, posto que tal atuação cidadã revela um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito distinguindo-o do Estado de Direito Social, pela diminuição da distância entre sociedade e Estado. Tal organização estatal repousa sobre uma verdadeira ideologia de participação do administrado nas funções administrativas para a legitimidade dos atos da Administração Pública, na medida em que uma Administração Pública eficaz, democrática e participativa é exigência natural do Estado Democrático de Direito. Conforme leciona Wallace Paiva Martins Júnior, essa nova postura de coordenação é o note das relações entre a sociedade e o Estado Contemporâneo: Tendência da moderna relação entre Estado e Sociedade, baseada na recíproca coordenação (em vez de rigorosa separação ou fusão), a participação é incluída entre os meios de alteração do modelo de atuação dos complexos burocráticos estatais: rompe a clássica dualidade radical entre Administração e o administrado e impõe o decréscimo da oposição entre autoridade e liberdade, mediante atuação direta do administrado na atividade administrativa (e na formação de suas decisões), objetivando maiores graus

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de coincidência possível entre a realidade social e o conteúdo das decisões administrativas e de obtenção de adesão dos cidadãos.

Entretanto, o citado autor ressalta que a participação cidadã não se resume apenas na escolha dos governantes, posto que existe a demanda da sociedade por atuação efetiva nas decisões de poder: Essa sociedade participativa não se embasa na tradicional escolha dos governantes pelos cidadãos, nem se satisfaz com o afastamento da sociedade, obra da ditadura, da burocracia e da tecnocracia. Os indivíduos demandam a oitiva na tomada de decisões objetivas envolvendo diretamente seus interesses individuais e metaindividuais específicos. Daí a afirmação doutrinária da participação política como expressão do anseio de influencia nas decisões de poder que repercutem sobre as pessoas interessadas, derivada da reversão do enclausuramento político da Administração Pública e da reabilitação da pessoa do administrado. A participação é idéia-mestra da contemporânea noção de cidadania: o povo torna-se parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social, instaurado nos níveis de distribuição dos bens (materiais e imateriais). Indispensáveis (existência socialmente digna, proteção dos interesses transindividuais, controle do poder político, administração da coisa pública e proteção dos interesses transnacionais).

Desta forma, segundo Roberto Dromi, além da necessidade de leis acerca da ética da gestão da coisa pública, deve ser reconhecido como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, a participação real e efetiva dos grupos e cidadãos por diversos canais para acolher propostas e compromissos. Sob outro aspecto, o governo eletrônico tratado com o enfoque estrito do Direito Administrativo, notadamente no tocante ao regime jurídico dos atos administrativos, revela o novo caminho que trilham as atividades do governo quando este adotou o uso da internet em suas funções. Nas palavras de Hartmann, essa incorporação é estudada como o uso da informática, o tratamento lógico e automático da informação, e da telemática, o tratamento da informação e distância e sua respectiva integração, afetam a execução das competências da administração direta e indireta, desenvolvendo-se a chamada teleadministração.

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Oportuno ainda, é trazer à colação a classificação que Filgueiras Júnior apresenta, citando a jurista italiana Daniele Marongiu, sobre os atos administrativos praticados no âmbito digital, os quais são distinguidos em razão da existência ou não da atuação do servidor público: os atos administrativos eletrônicos são aqueles praticados por um servidor, à distância ou não, através de um sistema computadorizado; os atos administrativos automáticos são aqueles meramente burocráticos, executados pelo próprio computador.

Hartmann, mencionando Filgueiras Júnior sob a perspectiva dos atos administrativos eletrônicos, lista como benefícios da teleadministração, no contexto lato do governo eletrônico, os seguintes resultados: Sem atendimentos face a face entre servidor e cidadão, haverá uma drástica redução das diferenças de tratamento, atingindo máxima incidência do princípio da impessoalidade. A administração será mais ágil e eficiente com a fácil pesquisa de documentos a partir de um terminal que vasculha bancos de dados em todo o território nacional. Uma melhor organização do trabalho permitirá evitar o uso do sistema postal, abolir longas filas para atendimento em órgãos previdenciários, impossibilitar a perda de documentos e registros, e talvez introduzir até o trabalho domiciliar dos servidores públicos, motivando-os à ação em razão de estarem participando de uma Administração ágil e efetiva.

Contudo, a gestão governamental em ambiente tecnológico, para atingir seus objetivos deve, além da internet, abarcar os meios associados, como portais de relacionamento, prestação de serviços e de informações direcionados, conforme o caso, aos demais órgãos governamentais, entidades não-governamentais, fornecedores, parceiros e cidadãos; centrais de atendimento unificadas, integradas e informatizadas; call centers; telecentros de acesso gratuito à internet; quiosques informatizados para auto-atendimento e recursos que visem possibilitar celeridade na tramitação de processos, como, por exemplo, leitura ótica, cadastros únicos, cartões magnéticos, leitores de dados e equipamentos em rede. As novas tecnologias da informação e da comunicação – se devidamente aplicadas e difundidas – ampliam as possibilidades de participação dos cidadãos na tomada de decisões políticas, exigindo um novo perfil de Estado, posto que trazem instrumentos de

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divulgação dos novos e mutantes anseios sociais, de fiscalização, acompanhamento e interferência do cidadão perante a atuação dos governos. No tocante à transparência e controle da eficiência estatal, as ferramentas tecnológicas da informação e da comunicação promovem uma verdadeira revolução na gestão pública, na medida em que facilitam o controle por parte da sociedade quanto às despesas públicas ao mesmo tempo que diminuem a burocracia que obstaculiza o acesso aos serviços públicos. Como exemplo dessa revolução, pode ser citada a divulgação das contas públicas por meio da internet (portal transparência) e a disponibilização de serviços públicos online nos sites de diversos órgãos públicos. Nessa seara, conforme expressão do pensamento de Klaus Frey, as novas tecnologias não só tornam mais eficiente a prestação de serviços públicos, como também representam um incentivo para ativar reformas administrativas dirigidas para substituir o modelo burocrático da administração pública tradicional. Ademais, a implantação de um novo modelo de prestação de serviços apresenta o problema fundamental de criar atitudes positivas na população e conquistar a sua confiança na prestação de serviços públicos por intermédio das TICs. Além disso, vale mencionar ainda que a implantação desse novo modelo, ou face da gestão Estatal, também já chegou ao Poder Judiciário, que gradativamente está informatizando e simplificando o acesso à justiça. O governo eletrônico brasileiro tem seu marco inicial com a publicação da Proposta de Política de Governo Eletrônico e do Livro Verde da Sociedade da Informação, no final do ano de 2000. O Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil, elaborado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, estabeleceu as metas de implantação do Programa Sociedade da Informação no Brasil, fundamentadas na expansão e integração da tecnologia e da internet aos diversos segmentos da sociedade, notadamente o industrial, comercial e educacional. Referido programa, por intermédio da Proposta de Política de Governo Eletrônico, elegeu como principais metas a inclusão digital, o aperfeiçoamento da gestão e da qualidade dos serviços públicos, a transparência e a simplificação de processos. Nesse cenário, a Proposta de Política de Governo Eletrônico ainda enfatiza as transformações profundas pelas quais passam a função e o conceito de Estado na sociedade contemporânea. Desta feita, de acordo com as diretrizes do Livro Verde, o governo brasileiro deve incentivar e possibilitar a participação popular, tendo a rede mundial como instrumento facili-

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tador desse direito, devendo ainda ampliar o acesso, a desburocratização e a fiscalização dos serviços públicos, utilizando os meios digitais. Nesse enfoque, conforme mencionou Sandra Regina Valério Souza, O Governo criou dentro do sistema de Governo Eletrônico a chamada LAG, Lista de Assuntos do Governo, onde se encontram minimamente destacados quais os assuntos pertinentes e prioridades governamentais que devem conter os sites ligados ao E-Government, onde as prioridades são: • Preferência de linguagem do leigo ao jargão do serviço público ou termos técnicos. • Não supõe que o cidadão tenha conhecimento prévio das responsabilidades de cada nível ou órgão governamental. Procura ser independente da estrutura governamental, devendo sobreviver às mudanças de estruturas e organogramas. • O uso comum é mais importante do que a precisão acadêmica, quando se está escolhendo nomes ou posições relativas aos cabeçalhos.

Verifica-se com a aplicação dos conceitos e paradigmas descritos no Livro Verde, que as instituições públicas começam a mudar sua forma de atuar, disponibilizando serviços pela via digital e desburocratizando o serviço prestado. Contudo, é importante frisar que, de acordo com as orientações dos sites oficiais que atualmente promovem as políticas de governo eletrônico brasileiro, houve uma mudança no enfoque, a visão que apresentava o cidadão-usuário como um mero “cliente” dos serviços públicos foi superada. Prioriza-se, agora, a promoção da cidadania, ou seja, que as políticas de governo eletrônico tenham como referência os direitos coletivos, incorporando a promoção da participação e do controle social e a indissociabilidade entre a prestação de serviços e sua afirmação como direito dos indivíduos e da sociedade. Essa visão, contudo, não abandona a preocupação em atender as necessidades e demandas dos cidadãos individualmente, mas a vincula aos princípios da universalidade, da igualdade perante a lei e da eqüidade na oferta de serviços e informações. Ademais, sob os reflexos das mudanças acarretadas pelos avanços da tecnologia da informação e da comunicação, o conceito de Estado Nação também passa por transformações profundas: a compreensão desse processo e a atuação do governo como agente ativo de formulação de políticas e construção de consensos, continuará sendo fundamental na nova economia e na nova sociedade. Busca-se um novo Estado que

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possa articular o local, o regional, o nacional o supra nacional e o cidadão – com suas opiniões e aspirações individuais. Contudo, para atender os anseios da sociedade do século XXI, são primordiais a adoção de modelos de gestão governamental fundamentados no governo eletrônico, na ampliação e na difusão do acesso às inovações tecnológicas, notadamente à rede mundial de computadores, combatendo a exclusão sócio-digital. Nesse diapasão, temos que a inclusão digital deve ser tratada como um elemento constituinte da política de governo eletrônico, para que esta possa configurar-se como política universal. Esta visão funda-se no entendimento da inclusão digital como direito de cidadania e, portanto, objeto de políticas públicas para sua promoção. Contudo, conforme orienta o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão: a articulação à política de governo eletrônico não pode levar a uma visão instrumental da inclusão digital. Esta deve ser vista como estratégia para construção e afirmação de novos direitos e consolidação de outros pela facilitação de acesso a eles. Não se trata, portanto, de contar com iniciativas de inclusão digital somente como recurso para ampliar a base de usuários (e, portanto, justificar os investimentos em governo eletrônico), nem reduzida a elemento de aumento da empregabilidade de indivíduos ou de formação de consumidores para novos tipos ou canais de distribuição de bens e serviços. Além disso, enquanto a inclusão digital concentra-se apenas em indivíduos, ela cria benefícios individuais mas não transforma as práticas políticas. Não é possível falar de práticas políticas sem que se fale também da utilização da tecnologia da informação pelas organizações da sociedade civil em suas interações com os governos, o que evidencia o papel relevante da transformação dessas mesmas organizações pelo uso de recursos tecnológicos.

Acrescente-se que a implantação da governança eletrônica representa uma mudança no aspecto geográfico, social e temporal na gestão, na oferta e na utilização de serviços e processos públicos, na medida em que qualquer cidadão, de qualquer localidade, poderá a qualquer momento ter acesso, via internet, aos principais órgãos, departamentos e instituições do governo. Esse cenário ainda é composto pelo fenômeno da globalização, que traz consigo o movimento de integração entre as diversas soberanias, notadamente em razão de questões econômicas. Com a globalização consolidou-se o sistema econômico multilateral na nova ordem mundial, ampliando-se os vínculos econômicos, financeiros e a interdependência entre os Estados com influência das inovações tecnológicas e da informação nas relações mundiais. 49

Anote-se ainda que os Estados cederam prerrogativas de sua soberania para se integrarem a organizações transnacionais ou supranacionais (como a ONU – Organização das Nações Unidas, OMC – Organização Mundial do Comércio), submetendo-se às decisões dessas organizações. Conforme ensina Liliana Minardi Paesani, ao tratar do novo papel do Estado, citando Miguel Reale: É pertinente a lição de Miguel Reale (2000) quando argumenta sobre os fins do Estado alegando que hoje, não se pode entender a soberania estatal como “poder de império” capaz de traçar livremente os limites de suas decisões e de suas atividades. Acata-se genericamente a idéia da soberania entendida como poder condicionado para sua natural inserção no sistema de forças internacionais devido à crescente globalização, mas rejeita a idéia de Estado evanescente ou de poder relativo. Enfatiza a necessidade de mudança de enfoque, prevalecendo a idéia de função sobre o mando. Com o predomínio da funcionalidade, será mais fácil entender o papel do estado frente à globalização. A nova realidade estatal deve ser interpretada no contexto dos valores da civilização contemporânea, na qual os processos de comunicação ou de informação ganham crescente terreno como conseqüência das conquistas tecnológicas que informam a cultura cibernética. Conclui Reale, que não se trata de substituição da era do capitalismo pela era da informação mas de uma evolução do capitalismo que desloca o seu eixo em que, a informática dá significado e forma ao capital em razão de sua aplicação prevalecendo a informação sobre as posses dos bens e a produção.

Na seara desse novo caminho, constata-se que o Estado, com o governo eletrônico e com a globalização, confirma sua presença na sociedade do mundo contemporâneo, possuindo ainda papel fundamental na promoção do interesse público e de principal ator no processo de inclusão dos cidadãos no mundo digital do qual, inclusive, já faz parte.

CONCLUSÃO

Diante do contexto brasileiro de governo eletrônico, esboçado na explanação acima, se depreende que todo o potencial oferecido por esse conjunto de instrumentos tecnológicos disponíveis na sociedade da informação, principalmente nos países em desenvolvimento, deve ser utilizado não apenas para dar mais eficiência às ações do Estado, 50

mas, sobretudo, para reafirmar e difundir os instrumentos democráticos, efetivar direitos fundamentais e promover a inclusão sócio-digital dos excluídos. Nessa seara, é possível indicar os seguintes desafios e metas para a efetiva implantação do governo eletrônico no Brasil: generalizar o acesso à rede, expandindo os serviços para as classes menos favorecidas, promovendo a ampliação, difusão e aperfeiçoamento dos telecentros, bem como desonerando os equipamentos necessários ao acesso à internet; impedir a elitização da tecnologia no exercício da cidadania; sanar as deficiências existentes na infra-estrutura de tecnologia da informação para facilitar o acesso individual e coletivo, a um custo mais baixo; incluir mais cidadãos no processo político, difundindo informações, universalizando efetivamente o voto e o controle do Estado por parte da sociedade; disseminar informações para controle social do governo e participação popular; tornar os processos da Administração Pública céleres e eficazes; universalizar e facilitar e desonerar a prestação de serviços públicos.

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FILGUEIRAS JÚNIOR, Marcus Vinícius. Ato administrativo eletrônico e teleadministração. Perspectivas de investigação. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Renovar, v. 237, p. 244. jul./set. 2004. FREY, Klaus. Nueva Sociedad. Gobernanza eletrónica urbana e inclusión digital: experiencias en ciudades europeas y brasileñas. HARTMANN, Ivar Alberto Martins. O Acesso à Internet Como Direito Fundamental. Disponível em http://www.biblioteca.idbrasil.gov.br/.../o-acesso-a-internet-como-direito-fundamental. Acesso em 30/03/2012. Ministério da Ciência e Tecnologia. Livro Verde da Informação no Brasil. Brasília: 2002. MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva.Transparência Administrativa. Publicidade, Motivação e Participação Popular. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010 PAESANI, Liliana Minardi (coord.). O Direito na Sociedade da Informação II. São Paulo: Atlas, 2009. SOUZA, Sandra Regina Valério. Análise do discurso do Site do Tribunal de
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Cristina Barbosa Rodrigues Graduada em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (1998), Pós-Graduada em Direto Administrativo Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2002/2003), Mestre em Direito da Sociedade da Informação - Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2010/2012). Professora de 52

Direito Administrativo e Direito Tributário da Universidade Paulista - UNIP, advogada colaboradora do escritório de advocacia ASB - Advogados Associados, do IBC - Instituto Brasil Cidade e da Prolex Assessores Ltda., membro do Conselho Técnico Multidisciplinar da APM - Associação Paulista de Municípios e consultora de entidades públicas e do terceiro setor.

Irineu Francisco Barreto Junior Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Docente do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da FMU, Professor e Coordenador Adjunto do Curso de Graduação em Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas FMU. Analista de Projetos Pleno da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados Seade. Docente do Programa de Mestrado em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (UVV-ES). Coordenador da Comissão de Iniciação Científica do Complexo Educacional FMU. Membro da Comissão Própria de Avaliação (CPA) do Complexo Educacional FMU. Professor Convidado da Escola Judicial do Trabalho da Segunda Região EJUD 02. Membro Efetivo do Núcleo Docente Estruturante do Curso de Direito da FMU. Membro do Conselho Editorial da Revista Saúde e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Associação Paulista de Saúde Pública. Membro do Conselho Editorial e Científico Nacional e Internacional da Revista Brasileira de Direitos Emergentes na Sociedade Global - Universidade Federal de Santa Maria - RS. Membro do Conselho Editorial Científico Nacional e Internacional da Revista Eletrônica de Direito da UFSM - RS. Possui experiência nas áreas de Ciências Sociais e Direito, com ênfase em Análise de Políticas Sociais, Sociedade da Informação, Análise de Dados Estatísticos, Metodologia da Pesquisa Científica, Sociologia, Ciência Política e Didática do Ensino Superior. Palestrante e parecerista de publicações científicas.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Guardas Municipais e Princípio da Eficiência Administrativa: Repensando o artigo 144 da Constituição Federal Municipal Guards and the Principle of Administrative Efficiency: Rethinking Article 144 of the Federal Constitution Arthur Bezerra de Souza Junior Resumo O presente trabalho objetiva-se em formular uma releitura sobre o artigo 144 da Carta Magna Brasileira, especificamente no tocante a competência das Guardas Municipais. Este novo olhar tem como fundamentação jurídica o Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa. A centralização da gestão de segurança pública acarreta fatores negativos no que tange o bem estar da sociedade tendo em vista a falência do Estado. Descentralizar esta gestão, dando abertura ao município é medida que se impõe, para que a eficiência seja alcançada. Desta forma, abordaremos neste estudo, desde o panorama atual das Guardas Municipais, os conceitos de poder de polícia e Eficiência Administrativa, mostrando, assim, a necessidade de se instituir nova competência a esta Instituição, visando o bem comum de toda a sociedade, ressaltando a necessidade do devido processo de reforma constitucional. Palavras-Chave: Guardas Municipais; Poder de Polícia; Eficiência.

Abstract This objective is to work to form a new reading on the article 144 of the Brazilian Magna Carta, specifically regarding the competence of the Municipal Guards. This new look has as its legal basis the Constitutional Principle of Administrative Efficiency.The centralization of public security management entails negative factors regarding the welfare of society in view of the state of bankruptcy. This decentralized management, giving opening to the municipality as is necessary so that the efficiency is achieved.

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Thus, we discuss in this study, since the current situation of the Municipal Guards, the police power of concepts and Administrative Efficiency, showing thus the need to introduce new powers to this institution for the common good of the whole society, emphasizing the need for due process of constitutional reform. Keywords: Municipal Guards; Police power; Efficiency.

Introdução Conforme preconiza a Constituição Federal, em turno do seu artigo 6º, a segurança pública é direito social e dever do Estado. Todo brasileiro ou estrangeiro residente nos País tem direito que o Estado desenvolva políticas de segurança e equipe as Instituições criadas no artigo 144. É clarividente que o Estado, entenda-se, União, Estados, Municípios e Distrito Federal, deve promover políticas de segurança Pública respeitando os preceitos do artigo 144 da Constituição Federal que delimitam a competência de cada ente federativo. Contudo, com os índices de criminalidade fugindo do controle de nossas autoridades, necessário se faz a reorganização do Estado no tocante à atuação para a prevenção do crime. Porém, a questão da Segurança Pública entra em pauta, entendendo que se torna necessário a releitura do artigo 144 da Constituição Federal visando o compartilhamento da segurança pública com os municípios. E essa releitura se dá com a alteração do mencionado artigo, aumentando a competência das Guardas Municipais, delegando-lhes Poder de Polícia. O Princípio da Eficiência Administrativa vem respaldar esta releitura, tendo em vista que este busca os meios necessários para a concretização de fins que tragam o bem estar social. Segurança Pública é dever do Estado e somente com esse reposicionamento teremos eficiência na prestação deste serviço direcionado à sociedade.

Panorama atual acerca da competência das Guardas Municipais

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Importante, para o bom desenvolvimento do presente trabalho, é tratar do entendimento atual no que tange à competência atribuída às Guardas Municipais. Salienta-se, contudo, que este não é nosso entendimento, servindo apenas como parâmetro para o desenrolar das ideias atinentes ao tema. Consoante a literal interpretação do estabelecido no artigo 144 da Constituição Federal e seus parágrafos, atualmente, a competência atribuída à Guarda Municipal, representa somente a proteção dos bens do município, de seus serviços e instalações. No caput do mencionado artigo, taxativamente estão incumbidos da segurança pública os órgãos ali relacionados, ou seja, as Polícias Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Polícias Civis e Militares além do Corpo de Bombeiros Militar. Desta forma, a leitura até o ano de 1998 era a de que a Guardas Municipais não possuíam o Poder de Polícia e, consequentemente, o Município não participava da gestão da Segurança Pública. Desta feita, afirmam que, não tendo a Guarda Municipal Poder de polícia, não poderia exercer atividades armadas, de repressão, de prisão e de fiscalização de trânsito. Neste sentido, Diógenes Gasparini, em artigo, cujo nome fora dado de “As Guardas Municipais na Constituição de 1988”, frisa que: “...mesmo que pela sua natureza se pudesse entender a prestação dos serviços de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, como de interesse local, esses não seriam do Município por força do que estabelece o § 5º do art. 144 da CF, que de forma clara atribui essas competências à Polícia Militar.” Continua ainda em sua explicação: “A melhor doutrina, na vigência desses diplomas legais, orientou-se no sentido da impossibilidade da criação e da manutenção de serviços de policiamento ostensivo e de preservação de ordem pública a cargo das guardas municipais. Nesse sentido conclui o Procurador do Estado, Dr. Pedro Luis Carvalho de campos Vergueiro no parecer citado e assim ementado: “Guarda Municipal – Carece o Município de Competência para a manutenção de ordem pública, que compete, com exclusividade, à Policia Militar Estadual.” E termina seu entendimento: “Não havendo competência para agir do Município, não se tem como legitimar do seu “agente policial, mesmo que aquele ou este queira a atribuição. Por esta razão tem-se como correta a lição de Caio Tácito, assim oferecida: “Primeira condição de legalidade é a competência do agente. Não há em Direito Administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício da atribuição do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado, objetivamente fixado pelo legislador”. 56

Ainda, vemos que Pinto Ferreira, sobre o tema dissertou:

“Os municípios podem instituir guardas municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, de acordo com a lei. Os constituintes poderiam ter alargado as forças das guardas municipais, fazendo-as auxiliares da polícia militar e atribuindo-lhes funções repressivas de crime.”

Vemos, portanto, que outrora, o pensamento acerca da competência da Guarda Municipal estava restrita à proteção patrimonial. Entretanto, vemos como ultrapassado este modelo de atribuição de competência. Concordamos que na realidade da Constituição Brasileira de 1988 não havia necessidade da inclusão das Guardas Municipais nos órgãos de Segurança Pública. Porém esta interpretação encontra-se ultrapassada devendo ser relida, fato este já iniciado por nossos tribunais superiores, o que no momento oportuno apresentaremos. Com a falência dos órgãos de Segurança Pública, para que a concretude do Princípio da Eficiência Administrativa no que tange à gestão de Segurança Pública se mostre completa, necessário uma nova interpretação do Artigo 144 da Carta Constitucional, visando o bem maior da segurança da sociedade, alargando a competência das guardas municipais, munindo-as do Poder de Polícia. Desta forma, efetivamente, teremos maior segurança, descentralizando a Segurança Pública do Núcleo estadual, atribuindo ao município sua parcela de responsabilidade na segurança, acarretando uma gestão mais eficiente e benéfica à todos.

O Poder de Polícia

A Administração Pública, para que suas atividades sejam realizadas à contento, possui poderes para a obtenção do fim máximo. E para que isso ocorra, os interesses da coletividade devem sobrepor ao o interesse particular. Estes poderes, os quais são conferidos por lei, tornam-se poderes-deveres ao passo que a Administração tem o dever de agir visando o bem estar da sociedade, da coletividade e não só o direito de exercê-los.

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Não poderíamos refletir sobre a releitura do Artigo 144 da Constituição Federal, implicando, desta forma, em acréscimo de competências às Guardas municipais sem, contudo, estudar, ainda que sucintamente, um dos poderes da Administração Pública, que é o Poder de Polícia. Como já arguido anteriormente, para que o município possa participar da gestão da segurança pública e desta forma, desconcentrar esta obrigação das mãos do ente estadual, necessário de faz, instituir o Poder de Polícia às Guardas Municipais. A partir do momento que instituir-se o Poder de Polícia às Guardas dos Municípios, este órgão teria maior eficiência nas ruas, cuidando da ordem social e evitando a criminalidade. Entretanto, para o melhor entendimento da questão acima levantada, necessária se faz a conceituação, definição e pertinentes reflexões acerca deste Poder, o que a seguir faremos. O Poder de Polícia tem sua definição expressa no Código Tributário Nacional, em sede de seu artigo 78, in verbis:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.

O conteúdo do artigo, por ser extenso e quiçá confuso, nos traz a necessidade de buscarmos na doutrina pátria algumas interpretações, o que passamos a fazer. Parece-nos que Hely Lopes Meirelles traz a conceituação mais precisa ao dizer que “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e o gozo de bens, atividades e direitos individuais em benefício da coletividade e do próprio Estado”. . Por sua vez, Irene Patrícia Nohara, em seu conceito não menos preciso, afirma que Poder de Polícia “Consiste na atividade do Estado de condicionar e restringir o exercício de direitos individuais, tais como a propriedade e a liberdade, em benefício do interesse público”.

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Continua a autora, conceituando interesse público para o completo entendimento do conceito:

“Atualmente, interesse público compreende: segurança, moral, saúde, meio ambiente, defesa do consumidor, propriedade, patrimônio cultural etc. Há polícias administrativas especializadas, tais como as de segurança, do meio ambiente, aérea, marítima, aeroportuária, sanitária, de defesa civil etc.”

Vemos que poder de polícia está intimamente ligado à função administrativa, exercendo sobre condutas que direta ou indiretamente interferem e afetam os interesses da sociedade. Tem o condão de reprimir, fiscalizar e regular questões públicas sobressaindo ao interesse particular. E o que mais nos interessa é extrair que poder de polícia também está ligado à segurança. E mais, segurança no âmbito municipal, conforme bem leciona Hely Lopes Meirelles:

“... os assuntos de interesse nacional ficam sujeitos à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional sujeitam-se às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local subordinam-se aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal.”

Desta forma, podemos afirmar que é possível, como veremos adiante, que o município exerça poder de polícia administrativa. Devemos, por bem, analisar que não só existe a polícia administrativa, mas também a judiciária, sendo o exercício, por parte da administração, do poder de polícia. A doutrina traz distinção entre estes dois institutos. Afirma que a Polícia Judiciária está relacionada com a investigação, apurando ilícitos penais. Já a polícia administrativa está ligada ao ilícito administrativo. E para bem entendermos as funções inerentes a cada instituto, trazemos à baila a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho:

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“Vejamos um exemplo: quando agentes administrativos estão exercendo serviços de fiscalização em atividades de comércio, ou em locais proibidos para menores, ou sobre as condições de alimentos para consumo, ou ainda em parques florestais, essas atividades retratam o exercício de Polícia Administrativa. Se, ao contrário, os agentes estão investigando a prática de crime e, com esse objetivo, desenvolvem várias atividades necessárias à sua apuração, como oitiva de testemunha, inspeções e perícias em determinados locais e documentos, convocação de indiciados etc., são essas atividades caracterizadas como Polícia Judiciária, eis que, terminada a apuração, os elementos são enviados ao Ministério Público para, se for o caso, providenciar a propositura da ação penal.”

E continuando, vemos na lição de Maria Sylvia di Pietro, outra explicação acerca das funções:

“Outra diferença: a polícia judiciária é privativa de corporações especializadas (polícia civil e militar), enquanto a polícia administrativa se reparte entre diversos órgãos da Administração, incluindo além da própria polícia militar, os vários órgãos de fiscalização aos quais a lei atribua esse mister, como os que atuam nas áreas de saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social.” Contudo, segundo corrente, nesta oportunidade representada por Marcelo Alexandrino, entende não haver distinção entre as duas polícias, onde há de se ver:

“Julgamos necessário anotar que é muito frequentemente proposto pela doutrina, como critério de distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária, o caráter preventivo daquela e repressivo desta. A polícia administrativa teria o objetivo principal de prevenir condutas ou situações contrárias ao interesse público, ao passo que a polícia judiciária teria o escopo precípuo de possibilitar a punição, pelo Poder Judiciário, das pessoas que cometeram ilícitos penais. Ao nosso ver, trata-se de paradigma um tanto inadequado à diferenciação pretendida, porque a polícia administrativa atua tanto preventivamente quanto em caráter repressivo. Com efeito, nada têm de excepcionais, ou de incomuns, as medidas repressivas adotadas no exercício do poder de polícia administrativa, tais como a aplicação de multas, a apreensão e decretação de pena de perdimento de mercadorias irregularmente introduzidas no País, a interdição de estabelecimento comerciais ou industriais, a suspensão temporária do exercícios de direitos ( a 60

exemplo da suspensão da licença para dirigir automóveis aplicada aos condutores infratores), entre muitas outras.”

Conforme visto, a distinção tem caráter doutrinário, sendo que esta diferenciação, na prática, não interfere o exercício do Poder de Polícia pela Administração Pública. Destarte, definimos o conceito de Poder de Polícia e a distinção entre Polícia Administrativa e Judiciária, sendo de extrema importância salientar, por hora, que o Poder de Polícia Visa a supremacia do interesse Público sobre o participar e que o mesmo pode ser exercido visando segurança da coletividade.

O Princípio da Eficiência Administrativa

Os princípios que regem toda a atividade da Administração Pública estão contidos na Constituição Federal de 1988 de forma implícita ou explícita. Outras leis citam e criam princípios, contudo, há de se recordar que estes seguem a hierarquia e lógica com as disposições da Administração Pública expressas na Lei Maior. Conceituando, Irene Patrícia Nohara afirma que “Princípios são normas de caráter geral, com elevada carga valorativa, que fundamentam as regras Jurídicas. Eles desempenham um papel estrutural no Direito, o que não implica coesão de seus conteúdos, pois todo ordenamento jurídico minimamente democrático pressupõe a convivência de uma série de valores e interesses conflitantes”. Corroborando com a conceituação, Celso Antônio Bandeira de Mello desenvolve o que segue:

“Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes de todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”.

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Entre todos os princípios que orientam a atividade da Administração Pública, os que possuem maior importância são aqueles contidos no caput do artigo 37 da Constituição Federal que são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Vale ressaltar que o princípio da eficiência foi acrescido ao caput do artigo 37 da Constituição Federal após a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98. Notamos, portanto, que os princípios encampados pelo artigo 37 da Constituição Federal são obrigatórios à todos os entes da Federação em suas atividades de Administração Pública por estarem inseridos, como visto, na Carta Magna. E com o visto, o mais recente princípio constitucional administrativo é o da eficiência. Porém, mesmo antes de sua aparição na Constituição Federal, é notório que essa diretriz já possuía exigibilidade no que toca à atuação do agente público, onde o mesmo tem o dever de agir com competência. Nota-se então que a eficiência não é novidade no mundo jurídico nacional, mesmo que ainda não positivado. Eficiência, na ciência da Administração, é normalmente enfocada como capacidade de fazer “coisas direito” Vemos, então que o princípio da eficiência tem sua base estipulada no fazer certo, fazer o melhor para o interesse Público. Impõe uma obrigação ao agente público de produzir resultados condizentes ao interesse social. Corroborando, Alexandre de Moraes assim especifica o Princípio da Eficiência como aquele que “impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social.” Desta forma, estando o princípio contido na Carta Constitucional, é direito social a cobrança da Eficiência nos Serviços Públicos. A partir da positivação deste princípio como direcionador da atividade administrativa abre-se a possibilidade com fundamentação jurídica para exigência da efetivação de direitos sociais. Este é um grande avanço trazido pela Emenda Constitucional nº 19/98.

O Município e a gestão de segurança Pública: Uma Releitura do artigo 144 da Constituição Federal 62

Parece-nos imprescindível que os municípios passem a integrar a gestão de segurança pública. Apesar do fato de que este papel estar constitucionalmente reservado aos Estados e União, a nova realidade social levanta necessidade da releitura das competências expressas na Constituição Federal e assim, o devido processo de reforma no que toca à questão. Com a ineficiência dos Estados Membros em dispor de serviços segurança pública com qualidade para a sociedade, nada mais coerente que ampliar a competência das guardas municipais para exercer papel repressivo e ostensivo dentro de seu próprio território. A descentralização da gestão de segurança pública é tendência irreversível, tendo em vista a falência a qual o Estado se encontra. Com a participação do município nas questões de segurança, haverá a desoneração do Estado e, em contrapartida, aumentará a segurança da coletividade, visando o bem comum da sociedade. É clarividente que há necessidade de uma releitura do artigo 144 da Constituição Federal, mudando, através de Emenda Constitucional, as competências acerca da segurança pública, aumentando a responsabilidade municipal neste aspecto. E o município assim fará, a partir do momento que estruturar adequadamente suas guardas municipais, treinando seus agentes e, desta forma, tornando extremamente eficientes no combate da criminalidade local. A gestão da segurança em âmbito municipal é tese amplamente amparada pelo Princípio Constitucional da Eficiência administrativa. Como já visto oportunamente, o princípio da Eficiência, em poucas palavras, representa a imposição ao agente público em buscar os fins desejados e eficientes. Assim, a possibilidade de reforma constitucional neste sentido é altamente viável e necessária. Desta forma, aumentando as competências das guardas municipais em sentido da repressão do crime significa buscar o espírito imposto aos próprios Estados membros para o alcance do fim da segurança social. É pertinente que tenhamos maior efetivo nas ruas para combater a criminalidade, guardas municipais em conjunto com a Policia Militar do que a restrição dos agente municipais na proteção dos Bens, Serviços e Instalações. Se assim permanecer, haverá flagrante choque com o Princípio da Eficiência Administrativa. Salienta-se delegar o Poder de Polícia às Guardas Municipais é respeitar a Eficiência Administrativa, trazendo maior agilidade ao município em trazer segurança aos seus 63

munícipes. Eficiência administrativa deve ser aplicada em todos os níveis organizacionais e suas respectivas gestões. Irene Patrícia Nohara nos ensina que o princípio da eficiência administrativa deve ser visto além do que o simples aproveitamento dos recursos colocados à administração. Deve também analisar a relação entre os meios utilizados e as necessidades sociais. A alteração das competências das Guardas Municipais é medida que se impõe. Tanto é que, mesmo antes da alteração constitucional pretendida e necessária, o Superior Tribunal de Justiça, para que a Eficiência Administrativa se espelhe na segurança pública, tem julgados no sentido de ampliar as guardas municipais no sentido de possibilitar à estas instituições poderes de fiscalização de trânsito e de prisões em caso de flagrante delito. Neste sentido, transcrevemos a seguinte ementa, proveniente do julgamento do Habeas Corpus 2008/0139550-7, Relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, da 5º Turma Julgadora:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. PENA APLICADA: 2 ANOS E 8 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME INICIAL FECHADO. POSSIBILIDADE DE PRISÃO EM FLAGRANTE POR GUARDA MUNICIPAL E CONSEQUENTE APREENSÃO DO OBJETO DO CRIME. PACIENTE PORTADOR DE MAUS ANTECEDENTES E REINCIDENTE. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL NA FIXAÇÃO DO REGIME MAIS GRAVOSO. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA.

O Poder Judiciário, vislumbrando a necessidade de delegar poder de polícia às Guardas municipais e a omissão legislativa, tenta, da forma que lhe cabe suprir esta omissão. É necessário, visto o panorama esposado neste trabalho que haja movimentação legislativa no sentido de alterar o artigo 144 da Constituição Federal, constituindo o município no sistema de gestão de segurança pública, aumentando, desta forma a competência das Guardas municipais, sendo medida que se impõe para a eficiência administrativa e para a paz social.

Conclusão 64

Estamos diante de uma nova realidade social onde a questão de segurança pública encontra-se deficitária no que tange os fins que devem ser alcançados. Ocorre que, a Constituição Federal, em turno de seu artigo 144 não permite promover gestão de segurança pública aos municípios, segundo a inteligência de que as Guardas Municipais só possuem competência de proteger os bens, serviços e instalações municipais. As guardas Municipais não possuem o Poder de Polícia para atuar na prevenção de crimes e patrulhamento ostensivo. Contudo, a realidade atual, diferente da realidade de 1988 (ano de promulgação da Constituição Federal), o efetivo policial não supre a necessidade de segurança da população. O Estado não consegue suprir a necessidades destes serviços, sendo importante o aumento do efetivo e, consequentemente, a descentralização da gestão de segurança pública, repassando parte desta parcela às mãos do município. Com a descentralização, proveniente de Emenda Constitucional, será delegado poder de polícia às Guardas Municipais e estas poderão atuar no policiamento, ordem pública, fiscalização de trânsito e outras competências inerentes do Poder de Polícia Administrativo e Judicial. Após a Emenda Constitucional 19/98, o Princípio da Eficiência foi incluído em nossa Carta Magna. Este se apresenta como a necessidade do poder público de buscar os fins desejados por seus administrados. Ora, Segurança Pública é um dos fins queridos pela sociedade e, para que sua efetivação é necessário rever a competência das Guardas Municipais, aumentando o efetivo nas ruas para a consecução deste serviço tão importante. Contudo, é necessário também trazer à baila o fato de que o município possui o dever de estruturar suas guardas municipais e preparar seus agentes para o exercício do poder de polícia. A necessidade da efetivação do princípio da eficiência administrativa no caso da gestão de segurança pública ganhou contornos de grande importância, pois, o Superior Tribunal de Justiça em recente decisão, declarou válida prisão procedida por guardas municipais no caso de flagrante delito. Outros Tribunais estaduais também estão, em suas decisões, aumentando e convalidando atos de Poder de Polícia a estas guardas. Destarte, medida que se impõe, é a realização de uma releitura do artigo 144 da Constituição Federal, fundamentado no Princípio Constitucional da Eficiência Administrativa, 65

autorizando a delegação do Poder de Polícia às Guardas Municipais, e desta forma, trazendo o município para participação integrada da Gestão de Segurança Pública, como forma de garantir o direito social à Segurança.

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Arthur Bezerra de Souza Junior

Mestre em Direito pela Uninove. Especialista em Direito Processual Civil pela Unisul. Advogado. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil na UNIP. Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP. Palestrante. Autor de artigos e livros jurídicos, entre eles “Ativismo Judicial e o Direito à Saúde: Uma análise do Supremo tribunal Federal”.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

O princípio da dignidade da pessoa humana The principle of human dignity Octávio Serra Negra

Resumo A dignidade da pessoa humana constitui a pedra fundamental do nosso ordenamento jurídico, tanto é verdade que se encontra capitulada no artigo 1°, III da Constituição Republicana. O presente artigo tem como finalidade, em um primeiro momento, analisar a natureza jurídica desse mandamento, tendo vista que muito se discute se constitui um princípio ou um valor, para após verificar o seu alcance, valendo-se inclusive do histórico material desse instituto, que tem como fonte os direitos naturais do homem Abstract The human dignity constitutes the cornerstone of our legal system which in truth is stipulated on article 1°, III of Brazilian contritution. This article has the objective, in first place to analyse the legal nature of the provision, taking into account that discution constitutes a principle or value, to afterwards confirm its reaching, using historical material of this provision that has its source natural law man.

Introdução A Constituição Federal prevê os primeiro fundamentos do Estado brasileiro no artigo inaugural, mais precisamente nos incisos I a V, onde encontramos as pilastras do ordenamento jurídico nacional, as quais devem ser observadas pelos operadores do direito quando da elaboração e interpretação do sistema.

A dignidade da pessoa humana constitui uma dessas pilastras, capitulada mais precisamente no artigo 1º, III da Constituição Republicana.

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Em consonância com o dispositivo constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente reafirma no artigo 3° o mencionado princípio.

O presente estudo tem como norte a apresentação do real alcance e significado da dignidade da pessoa humana, analisando as suas diretrizes, tais como o fato de ser real e concreta, e não um mero ideal abstrato a ser alcançado, como também o fato de que tal primado deve ser observado desde a concepção, e não somente a partir do nascimento com vida, devendo, por via conseqüência, ser aplicado aos menores, enquanto pessoas que necessitam de especial atenção.

Verificaremos, ainda, que a dignidade da pessoa humana não faz distinção entre homem e mulher, por se dirigir à pessoa, independentemente do gênero e da idade, e que o seu reconhecimento faz prevalecer o ideal do ser sobre o do ter.

Estas idéias irão reafirmar a dupla concepção do princípio em questão, o qual se mostra em um caráter dúplice: protetivo em relação ao Estado e igualitário em relação aos próprios jurisdicionados.

Com o presente, pretendemos suscitar a comunidade acadêmica, bem como os demais operadores do Direito, a refletir sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, em especial em relação ao menor, de modo que a idéia transmitida possa contribuir de forma frutífera ao desenvolvimento humano, sem entretanto pretender firmar idéias definitivas relacionados ao tema, procurando, em verdade, simplesmente agregar valores e propostas.para o desenvolvimento científico.

CAPÍTULO I

1.

Princípio ou Valor ?

A importância da dignidade da pessoa humana no nosso ordenamento jurídico é indiscutível, porém, no que tange ao fato de ser considerada um valor 69

ou um princípio, não há o mesmo consenso, circunstância essa que nos levará a tecer algumas considerações relativas ao fato para melhor individualizarmos a natureza jurídica desta reconhecida pedra fundamental.

A transmissão de informações do direito se dá através de uma linguagem. Essa, por sua vez, enquanto linguagem do direito positivo, através de uma conduta, a qual passará a ser relevante somente quando for absorvida, ou seja, quando houver deonticidade.









A conduta refém de linguagem é irrelevante para ordenamento.

Verificada essa deonticidade, ela será apresentada pelos modais deônticos, que são classificados em condutas obrigatórias, proibidas e permitidas. A formação das normas jurídicas é estabelecida a partir de um mínimo irredutível deôntico, caso contrário estaríamos diante de um mero enunciado, seja ele normativo ou prescritivo. Tais normas constituem a significação obtida durante um processo de cognição que utiliza como suporte um texto positivado, sendo classificadas como de comportamento ou de estrutura.

As normas de comportamento são as que buscam regular as relações intersubjetivas, tendo como suporte os limites estabelecidos pelos modais deônticos em face das condutas que não são vedadas ao exercício do Poder de legislar.

As normas de estrutura, por sua vez, têm como norte disciplinar a criação, modificar a eficácia ou o comportamento de outras normas, finalidades estas apontadas aos princípios, os quais, costumeiramente são conceituados como preceitos extraídos do ordenamento jurídico, mas que em verdade nada mais são que normas jurídicas de estrutura, as quais, pelo exposto, não se confundem com leis, pois estas são simplesmente veículos introdutores de normas.

Conclui-se, pois, que a dignidade da pessoa humana constitui um princípio, haja vista que é uma norma de estrutura, e ao mesmo tempo um valor, pois 70

além de ser apreciável em um maior ou menor grau, é observada como um bem à luz do que se aprecia e aprova.

CAPÍTULO II

2. Concepções da Dignidade da Pessoa Humana

2.1. Definição

A dignidade humana constitui um valor inerente à pessoa, tanto no aspecto moral como espiritual, e que se manifesta singularmente em cada indivíduo de forma consciente e com o objetivo de respeito da própria vida e das demais pessoas que compõe o tecido social.









Conforme aduz o professor Rizzato Nunes:

“A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa”

O mencionado conceito apresenta duas concepções, pois materializa a relação protetiva que se estabelece entre o individuo e Estado, e, ao mesmo tempo, estabelece o tratamento igualitário e respeitoso que deve ser observado pelos jurisdicionados.

2.2. Real e Concreta

A dignidade da pessoa humana não é um ideal abstrato, ou seja, um primado que deva ser alcançado hipoteticamente. É em verdade real e concreta. Faz parte do nosso dia-a-dia, e deve ser observada quando das nossas relações mais 71

simples, constituindo assim um norte para todos aqueles que compõem o tecido social.

Urge ressaltar que não estamos diante da dignidade humana, simplesmente, mas da dignidade dirigida à pessoa humana, a qual, por ser individualizada não permite o sacrifício dos direitos ou até mesmo da personalidade do indivíduo em nome dos interesses coletivos.









Conforme aduz Ricardo Chunha Chimenti:

A dignidade da pessoa humana é uma referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais inerentes à espécie humana, ou seja, daqueles direitos que visam garantir o conforto existencial das pessoas, protegendo-as de sofrimentos evitáveis na esfera social.

Esta diretriz está relacionada à primeira concepção da dignidade da pessoa humana, pois estabelece a forma em que o Estado deve se relacionar com os jurisdicionados, estabelecendo direitos e garantias do indivíduo.

2.2.1. Direitos Naturais do Homem

A Constituição de 1988 arrolou uma série de direitos humanos fundamentais. Estes, por sua vez, constituem os denominados direitos naturais do homem.

A idéia de constitucionalismo nasceu com a Carta dos Estados Unidos da América do Norte, de 1787, que estabeleceu uma forte concepção limitadora do poder estatal através da previsão de direitos e garantias fundamentais.

Procurou-se expurgar toda e qualquer forma de tirania, externa e interna, tendo como norte o desenvolvimento de um sistema em que os poderes esta-

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belecidos pudessem se equilibrar, de modo que os freios e os contrapesos impossibilitariam a supremacia de um em face do outro, contribuindo decisivamente para um perfeito equilíbrio estatal e, conseqüentemente, social.

A fonte dessa constituição foi a Declaração de Independência redigida por Thomas Jeverson, em 1776, a qual, sob a influência de Locke e Rousseau, invocou direitos naturais e inalienáveis do homem.

Percebe-se, dessa forma, que a pedra fundamental foi o ideal jusnaturalista de Locke, haja vista que a busca do bem comum seria o norte dos governos, a partir daquele momento, o qual só poderia ser alcançado através da liberdade.

A liberdade, por sua vez, não seria conquistada simplesmente pela declaração de independência, pois esta marcaria a realização externa, mas não necessariamente a interna, pois a opressão interna poderia surtir os mesmos efeitos nefastos que a externa, exercida anteriormente pela Inglaterra. Por conta disso, sabiam os ex-colonos que a possibilidade de mitigação dos direitos e garantias individuais conquistados poderia trazer terríveis conseqüências, e por isso a busca de liberdade teve forte conotação interna, além da externa.

Em 1791 os estados votaram e aprovaram dez emendas à Constituição, as quais estabeleceram os alicerces da liberdade de expressão, o direito ao porte de armas, os julgamentos abertos e com júri, a proibição de penas cruéis e outras liberdades.

Na esteira do constitucionalismo norte-americano veio a Declaração Francesa de 1789, nitidamente influenciada pela Declaração da Virgínia de 1776 e pelo constitucionalismo inglês, resultado da conscientização de que o homem, além de deveres, tem, também, direitos, que se mostravam necessários para a revolução industrial, a qual retiraria o homem do sistema feudal e o transportaria para o capitalista pelos movimentos de 1640 e 1688 que culminaria com uma estabilidade política a qual viria a fortalecer as relações internas sociais.

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Essa declaração, incorporada como preâmbulo da Constituição Francesa de 1791, buscou explicitar regras fundamentais aplicáveis a todos os homens, em todos os países e para todos os tempos.

A partir de então, os direitos e garantias fundamentais passaram a ser positivados constitucionalmente, possibilitando a tutela de tais direitos e, principalmente, conscientizando os jurisdicionados acerca da existência e importância de tais garantias, dentre elas a inviolabilidade do direito à vida.

A Constituição Brasileira não procedeu de outra forma, pois abraçou tais idéias ao positivar no artigo 1º a dignidade da pessoa humana e no artigo 5º a inviolabilidade do direito à vida, princípio este correlato àquele.

Constitui, assim, a dignidade da pessoa humana um valor irredutível e insubstituível ao indivíduo concretamente considerado, não havendo, como conseqüência lógica, a possibilidade de admitir-se a pena de morte, pois a vida, enquanto direito fundamental, constitui direito corolário da dignidade da pessoa humana, e como tal sustentáculo da nossa sociedade.

2.3. Concepção e Menoridade

A dignidade da pessoa humana constitui um valor que deve ser observado desde a concepção, e não somente a partir do nascimento.

Não podemos, entretanto, confundir o respeito à dignidade do nascente com a idéia de descriminalização do aborto, nem tão pouco acreditar que os dispositivos do Código Penal que autorizam o aborto estariam eivados de inconstitucionalidade.

Em primeiro lugar, a entrada em vigor de uma lei que tornasse a conduta de matar o produto da concepção um irrelevante penal seria flagrantemente 74

inconstitucional, haja vista que estaria em dissonância com a Carta Magna, mais precisamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. Esta hipotética lei apresentaria a natureza jurídica de abolitio criminis e como tal teria aplicabilidade erga omnes, circunstância determinante para a sua declaração de inconstitucionalidade.

Nesse sentido, urge ressaltar que o respeito à vida humana, desde a concepção, é tutelado pelo nosso ordenamento jurídico constitucional, e por este motivo não pode o legislador infraconstitucional autorizar o expurgo da vida humana intrauterina indiscriminadamente, ou melhor, a critério da gestante ou seu responsável.

O Código Penal, em perfeita consonância com a Constituição Republicana e, principalmente, com o princípio da dignidade da pessoa humana, criminaliza o aborto, autorizando, excepcionalmente, a morte do produto da concepção, mais precisamente nas hipóteses em há perigo de vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro.

As normas permissivas do legislador infraconstitucional não ofendem a Carta Magna em função do fato de ser a morte do produto da concepção admitida em caráter excepcional, pois a regra espelha a dignidade da pessoa humana. O que significa que o legislador abraça o princípio da relatividade das liberdades públicas, tornando sem efeito a idéia de um bem jurídico absoluto.

Pari passo a esse ideal de dignidade desde a concepção, o menor também tem reconhecido o seu direito de ter respeitado todos os valores inerentes à pessoa humana, conforme estabelece o artigo 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesse sentido, o ideal da proteção integral está arraigado na premissa de respeito à dignidade da pessoa humana que se encontra em fase de desenvolvimento físico e psíquico, e por conseqüência necessita de especial proteção para que a sua dignidade seja observada, de modo que atinja a maturidade e possa contribuir frutiferamente nas relações vindouras, quando atingir a maioridade.

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2.4. Dignidade Independentemente do Gênero e Idade

A dignidade da pessoa humana não menciona o gênero masculino ou feminino, bem como o fato de ser maior ou menor de idade.

Em verdade, a dignidade é a do ser humano, e como tal alcança todas as faculdades desse ser, independentemente de gênero ou idade.

Além disso, a dignidade de cada indivíduo pressupõe a dignidade dos demais, pois não há de se falar em dignidade da pessoa humana somente na primeira pessoa do singular. A idéia de reciprocidade constitui bandeira das pessoas que são reconhecidas em sua dignidade. De nada vale a dignidade respeitada de determinado jurisdicionado, se não for aplicada a outro.

Esta diretriz se estabelece à luz da segunda concepção do princípio da dignidade da pessoa humana, da qual o individuo deve respeitar a dignidade do seu semelhante, da mesma forma que a Constituição exige que se respeite a sua. Desta concepção podemos extrair a idéia de isonomia presente no princípio da dignidade da pessoa humana, pois o tratamento recebido por determinado jurisdicionado deverá ser o mesmo concedido a outro, respeitando-se, obviamente as circunstâncias do caso concreto e as diferenças entre eles, haja vista que, conforme apontado, o princípio da relatividade das liberdades públicas determina que nenhum bem jurídico é absoluto, todos são relativos, admitindo-se portando o tratamento diferenciado.

2.5. Primado do Ser

O primado da pessoa, à luz da dignidade, é o do ser, e não o do ter. Disso se extrai que as liberdades prevalecem sobre a propriedade.

Esta diretriz legitima a busca pela qualidade de vida, pois de nada adianta uma vida que não seja digna, ou seja, uma vida em que os bens materiais, a 76

propriedade, o poder econômico de alguns possam se sobrepujar sobre os interesses de muitos.

O respeito à dignidade da pessoa humana orienta no sentido de se respeitar a função social da propriedade, a quebra de patentes, entre outras, de modo que a vida seja respeitada não somente sob o aspecto vital, mas também no que tange à forma pela qual ela se estabelece.

Conclusão

A concepção jusnaturalista da Declaração Universal materializou o princípio da dignidade da pessoa humana, corporificando seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, dotados, cada qual de razão e consciência.

Este princípio constitui, pois, a pedra angular do nosso ordenamento jurídico, o qual deve estribar as normas constitucionais e infra-constitucionais existentes e vindouras, as quais, se não estiverem em perfeita consonância com as suas diretrizes, estarão eivadas de inconstitucionalidade, tal qual a previsão sobre a pena de morte em caso de guerra, que constitui uma regra constitucional inconstitucional, por ofender um dos princípios da República.

O primado da dignidade da pessoa humana constitui uma conquista da humanidade, pois tem em suas bases os limites de atuação do Estado e do particular nas relações entre eles, os quais devem se respeitar para que a motivos da própria existência continuem válidos, não se perdendo à luz de falácias ou mecanismos autoritários que têm como escopo a satisfação do interesse de alguns em detrimento dos demais ou até mesmo de um único indivíduo.

Não podemos nos olvidar do declínio da sociedade quando estabeleceu diferenciações estribadas em critérios étnicos para determinar a vida ou a morte de alguém, sem falar sobre a possibilidade de procriar ou não, resumindo uma ideologia em que se separavam os indivíduos em uma sociedade de desejáveis e indesejá77

veis. Tais fatos ocorreram em um século que é considerado por muitos como o ápice da humanidade, mas que em verdade constitui a idade das trevas, quando o homem entrou em um confronto de proporções mundiais, iniciado em 1914 e finalizado em 1945, e que a dignidade da pessoa humana foi desprezada e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa de 1789 foram esquecidos.

Este ideal de dignidade da pessoa humana deve ser fortalecido a cada dia, pois a finalidade das leis dos homens é de conseguir a felicidade e a tranqüilidade da sua espécie. Para tanto, tais leis devem observar seus fundamentos, seus alicerces, os quais podem ser encontrados nos princípios da natureza, que estão gravados no coração dos homens e que podem ser denominados direitos naturais, os quais são materializados, inclusive, pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

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Octávio Serra Negra

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Doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos e Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é Advogado de Romoff, Ruiz e Marques, Advogados Associados e Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas Rio Branco e da Universidade Paulista. Além disso, é autor de diversos artigos jurídicos e do 16° volume da série Leituras Jurídicas, publicado pela Editora Atlas, o qual discorre sobre os Crimes Contra o Patrimônio, Propriedade Intelectual, Sentimento Religioso e Respeito aos Mortos.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Princípio da motivação das decisões judiciais e processo democrático: as novidades do Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei 13.105/2015) quanto à fundamentação das decisões judiciais - Principio de la motivación de las decisiones judiciales y proceso democratico: novedades del Nuevo Código de Proceso Civil brasileño no que respecta la fundamentación de las decisiones judiciales Maria Cristina Zainaghi Mônica Bonetti Couto

Resumo A motivação das decisões judiciais é princípio inserto na Constituição Federal brasileira (art. 93, IX, da CF), sendo garantia inerente ao próprio Estado Democrático de Direito. Com o advento do novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, ainda em vacatio legis), o tema sofreu importantes alterações: o diploma legal em alusão passa a especificar como o juiz deverá promover a motivação, a partir de critérios específicos. Desta feita, a motivação das decisões judiciais passa a ser garantida e realizada de forma mais coerente com o novo modelo de processo civil, democrático, além de se constituir em medida assecuratória do contraditório, da ampla defesa e do próprio devido processo legal. A preocupação do legislador infraconstitucional no trato do tema explicita o comprometimento, já há algum tempo preconizado pela doutrina, com a efetiva realização deste princípio. Palavras-chave: Motivação. Decisões Judiciais. Processo Democrático. Fundamentação. Novo Código de Processo Civil.

Resumen La motivación de las decisiones judiciales es insertar en el principio de la Constitución Federal brasileña, sin embargo con el advenimiento del nuevo código de Procedimiento Civil, Ley Nº 13.105 marzo de 2015, aún en vacatio legis, el tema sufrió cambios, porque la ley especificará cómo el juez debe promover la motivación, según criterios específicos. Así, la motivación de las sentencias será garantizada y celebrada más coherente con el nuevo modelo de proceso civil, democrático, además de ser una medida assecuratória del contradictorio, de amplia defensa y debido proceso legal. La preocupa-

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ción del legislador respecto del tema explícito el compromiso, como durante algún tiempo enseñado por la doctrina, con la realización efectiva de este principio.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste ensaio é o de examinar o princípio da motivação das decisões judiciais, com atenção especial para as importantes modificações introduzidas no tema pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro, recentemente promulgado (Lei 13.105/2015), e em cujo artigo 489 se visualiza, com clareza, a realização desse princípio sob a ótica de um (novo) sistema processual, efetivamente democrático e, por isso, muito mais legítimo. Este estudo trabalha com a hipótese de que o novo texto – doravante designado de Novo Código de Processo Civil, ou apenas NCPC – incrementa, de maneira absolutamente oportuna e legítima, o princípio em questão, garantia que é de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Para atingir-se tal desiderato, o trabalho será dividido em três itens ou seções. De início, procurar-se-á delimitar o significado do princípio da motivação das decisões judiciais, passando-se os olhos, ainda que de maneira breve, pela evolução do tema em nosso ordenamento jurídico, bem como pela relevância de referido princípio nos ordenamentos europeus, com ênfase para o direito espanhol. No segundo item, analisar-se-ão as novas tendências que preconizam uma mudança de paradigma na análise e aplicação das regras de direito processual civil, mais afinadas com o modelo constitucional de processo e o processo democrático. Por fim, será analisada a regulamentação que o tema recebeu em nível infraconstitucional, mais especificamente no extenso rol dos incisos do art. 489 do Novo CPC. Baseada no método bibliográfico e, quanto à abordagem, indutivo, a presente pesquisa é encerrada por sucintas conclusões parciais, em função do quanto foi examinado ao longo do estudo realizado.

1. Motivação das decisões judiciais: significado e evolução

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A motivação das decisões judiciais pode ser compreendida como o postulado que exige que todas as decisões devam ter a explicitação das razões jurídicas que conduziram o julgador àquele entendimento, pois assim, permitir-se-á à parte bem realizar o contraditório, e inclusive, permitindo-se analisar o interesse e necessidade de se recorrer contra aquela específica decisão, esse mesmo postulado da motivação das decisões judiciais acaba por realizar também os princípios da ampla defesa, do duplo grau e do devido processo legal. Por isso é que se afirma, com absoluta razão e propriedade, que a motivação é assecuratória de diversos outros princípios, bem como é garantia interente ao próprio Estado de Direito. Nos dizeres de Liebman:

(...) tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos ajuízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar à decisão a que chegou. Só assim a motivação poderá ser uma garantia contra o arbítrio... ( omissis)... Para o direito é irrelevante conhecer dos mecanismos psicológicos que, às vezes, permitem ao juiz chegar às decisões. O que importa, somente, é saber se a parte dispositiva da sentença e a motivação estão, do ponto de vista jurídico, lógicas e coerentes, de forma a constituírem elementos inseparáveis de um ato unitário, que se interpretam e se iluminam reciprocamente. (LIEBMAN, 1980, p. 120)

Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes e Lênio Streck, a fundamentação das decisões judiciais constitui importante limite à arbitrariedade judicial: “não é da subjetividade dos juízes ou dos integrantes dos Tribunais que deve advir o sentido a ser atribuído à lei” – dizem, - “caindo por terra o antigo aforisma de que ‘sentença vem de sentire’, erigido no superado paradigma da filosofia da consciência”. (MENDES e STRECK, 2014, p. 1.324) Neste sentido Canotilho ensina, com lições válidas inteiramente para o sistema brasileiro: A exigência de fundamentação das decisões judiciais (CRP, art. 205.º/1) ou da “motivação de sentenças” radica em três razões fundamentais: (1) controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntaristico e subjectivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa 83

dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas.”(CANOTILHO, 2000, p. 651)

A exigência da motivação das decisões judiciais ostenta, a um só tempo, dupla função: de um lado, é um instrumento técnico processual permitindo o adequado exercício do direito de defesa e de controle das instâncias superiores; de outro, ostenta também relevantíssima função política, constituindo um fator de racionalidade das decisões judiciais, garantindo que a decisão não será resultado de mero capricho ou de arbitrariedade do juiz (TARUFO, 2006, p. 332). Atualmente identificam-se diversos questionamentos quanto a aspectos práticos relacionados à motivação, pois se considera a decisão imotivada nula, da mesma maneira que se há de considerar nula a decisão cuja motivação é insuficiente. Todavia a motivação sucinta pode ser aceita, como consta da decisão do Supremo Tribunal Federal em ARE 811691, que teve como relator o Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 24/06/2014. Surge aqui o problema: quando, afinal, há de ser entendida a motivação como suficiente? O Supremo Tribunal Federal, na Súmula 284, consolidou o entendimento no seguinte enunciado: é inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia. Ora, a Súmula acima referida de certa maneira especifica o que deve conter na motivação, porém certamente esse posicionamento acaba deixando a fundamentação com um critério subjetivo bastante discutível e, de difícil compreensão, pois, por exemplo, entendeu o Supremo em diversas decisões (como por exemplo, ARE 742212, relator Ministro DIAS TOFFOLI, julgado em 02/09/2014) que fundamentar com base em motivações dos próprios autos (motivação per relatione) consubstancia fundamentação válida. Da mesma maneira em diversas oportunidades os Tribunais brasileiros entenderam que a motivação concisa, por si só, não torna a decisão nula, a exemplo do quanto se decidiu no Agravo Regimental 811691, de que foi relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 24/06/2014. Neste sentido, aliás, estabelece o art. 459, do Código de Processo Civil brasileiro, parte final, que “nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, o juiz decidirá em forma concisa.” Em complemento, deve-se referir o art. 165, do atual CPC, onde se lê que “As sentenças e acórdãos se84

rão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.” (grifamos) A bem da verdade, o que se constata é que a possibilidade – comumente aceita – da concisão nas decisões judiciais como um todo (e não apenas nas hipóteses de extinção do processo sem resolução do mérito, situação autorizada pelo art. 459 do CPC em vigor), traduziu, na prática, na multiplicação de decisões que são mera reproduções genéricas de outras, ou até, de tão reduzidas, que resultam despidas de motivação. A fim de reparar esses problemas, o novo Código de Processo Civil passou a disciplinar a matéria, especificando e detalhando a aplicação e melhor realização de dito princípio constitucional, como se verá mais adiante (item 2, infra).

1.1. Breve histórico da previsão legislativa e constitucional

A motivação foi surgindo de forma esparsa ao longo dos anos em diversos ordenamentos jurídicos, começando na França, para posteriormente influenciar essa necessidade no ordenamento italiano e espanhol. A exigência de motivação está presente nas disposições do Pacto de San Juan da Costa Rica, mais precisamente em seu artigo 66, 1. Neste sentido, aliás, pode-se dizer que de uma maneira geral a motivação está inserta e presente nos ordenamentos constitucionais e infraconstitucionais de diversos países da civil Law (TARUFO, 2006, p. 332), não encontrando paradigma, porém, nos países afetos à commom law. A Constituição Federal brasileira de 1988 passou a prever expressamente a motivação em seu artigo 93, IX e X, passando a determinar que a decisão judicial deverá ser motivada, sob pena de nulidade. A assunção da motivação das decisões judiciais nas Constituições mais modernas, aliás, assenta-se na ideia de sua inserção na órbita dos direitos fundamentais (TUCCI & CRUZ e TUCCI, 1989, p. 76). Notemos a importância do tema, pois a falta de motivação ocasionará a nulidade do ato processual proferido. No que nos interessa, vale referir o quanto consta do 85

inc. IX, do citado art. 93: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicas, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;...”   que:

Em complemento ao texto constitucional, o art. 458 do vigente CPC reza

São requisitos essenciais da sentença: I- o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II- os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III- o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeteram.

É de observar que a desatenção aos comandos acima induz a nulidade da decisão judicial, como estabelece o próprio texto constitucional anteriormente referido. Historicamente, nas Ordenações Filipinas, em seu Livro III, Titulo LXVI, parágrafo 7, temos a previsão de que o julgador motive a sentença para que as partes vejam se convém apelar:

7. E para as partes saberem se lhes convêm appellar, ou agravar das sentenças diffinitivas, ou vir com embargos a ellas, e os Juízes da mór alçada entenderem melhor os fundamentos, por que os Juízes inferiores se movem a condenar, ou absolver, mandamos que todos nossos Desembargadores, e quaisquer outros Julgadores, ora sejam Letrados, ora o não sejam, declarem especificamente em suas sentenças diffinitivas (2), assim na primeira instancia, como no caso da appellação, ou agravo, ou revista, as causas, em que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar, ou revogar.

O Código de Processo Civil brasileiro de 1939 (Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939) tratou do tema no parágrafo único do artigo 118, onde já previa a motivação. Repete a exigência em seu artigo 280, que ao apresentar os requisitos da sentença, prevê a necessidade de fundamentação. Notemos que o mesmo se repetiu no Código de Processo Civil brasileiro em vigor (Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973), em cujo artigo 458 repete-se, praticamente, os comandos do artigo 280 do Código de Processo Civil de 1939, acima referido. 86

Outros dispositivos do vigente Código de Processo Civil brasileiro tratam da motivação, como os artigos 131 e 165.

1.2. A motivação no direito espanhol

Fazendo um estudo superficial sobre o direito espanhol, verificamos que a motivação também é requisito constitucional, tal como consta do artigo 120, 3, da Constituição espanhola, que assevera sobre a matéria. De acordo com o que estabelece referido diploma, as sentenças haverão de ser sempre motivadas. Vale referir, a propósito, a Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial espanhol, em cujo artigo 245 define-se sentença como o ato que resolve a demanda em qualquer instância ou recurso, ou quando, segundo as leis processuais, devam revestir tal forma. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, encontram-se importantes julgados consagrando a importância da motivação como integrante da própria garantia da tutela jurisdicional efetiva. Em interessante passagem, consta da sentença de n. 55/1987, datada de 13 de mayo de 1987, proferida pelo Tribunal Constitucional:

Es jurisprudencia reiterada de este Tribunal la de que la tutela judicial efectiva, que reconoce y consagra el art. 24 de la Constitución se satisface primordialmente mediante una Sentencia de fondo, que resuelva las pretensiones controvertidas y que se encuentre jurídicamente fundada, lo que es aplicable, en línea de principio, tanto a la primera instancia de un proceso como a la segunda cuando ésta exista. Los términos en que se encuentra concebido el art. 24 de la Constitución han de entenderse integrados, en este sentido, con lo que dispone el art. 120 de la propia Constitución que exige la motivación de las Sentencias. […] La exigencia de motivación de las Sentencias judiciales se relaciona de una manera directa con el principio del Estado Democrático de Derecho (art. 1 de la Constitución Española) y con una concepción de la legitimidad de la función jurisdiccional, apoyada esencialmente en el carácter vinculante que tiene para ésta la Ley (art. 117.1 de la Constitución). Precisamente de ello se deduce la función que debe cumplir la motivación de las Sentencias y consecuentemente, el criterio mediante el cual se debe llevar a cabo la verificación de tal exigencia constitucional. La Constitución requiere que el Juez motive sus Sentencias, ante todo, para permitir el control de 87

la actividad jurisdiccional. Los fundamentos de la Sentencia se deben dirigir, también, a lograr el convencimiento, no sólo del acusado, sino también de las otras partes del proceso, respecto de la corrección y justicia de la decisión judicial sobre los derechos de un ciudadano. En este sentido deben mostrar el esfuerzo del Tribunal por lograr una aplicación del Derecho vigente libre de toda arbitrariedad.

Nessa mesma linha, explicitando o conteúdo da motivação, decidiu o Tribunal Supremo, na sentença de núm. 567/2011 de 2 junio de 2011, ao decidir o Recurso de Casación núm. 1195//2010:

1ª) De un lado es un valladar contra la arbitrariedad judicial aunque venga arropada del lenguaje forense, arbitrariedad que deja de serlo para convertirse en juicio razonado y razonable si se expresan los razonamientos y valoraciones para llegar al fallo, y sustent a r l o .
 2ª) En segundo lugar la fundamentación actúa como medio de incrementar la credibilidad de la Justicia en la medida que con ella se trata de convencer a las partes de la corr e c c i ó n d e l a d e c i s i ó n a d o p t a d a , ( … )
 3ª) Finalmente, y en tercer lugar, la fundamentación sirve para controlar la actividad judicial de los órganos de instancia por parte del Tribunal Superior cuando conocen del asunto a través del sistema de recursos, ya sea a través de la Apelación o de la Casación, pues tanto en uno como en otro caso esa falta de fundamentación atenta directamente contra el sistema de recursos en la medida que se priva a las partes a que su causa sea nuevamente examinada por un Tribunal distinto y superior al primero, examen que no se puede verificar en la apelación o casación si la sentencia carece de fundamentación (…).

2. O dever de fundamentar, o modelo de processo democrático e os avanços do NCPC quanto ao tema

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O princípio da motivação, como já vimos, é inerente a própria existência da Justiça, representando uma garantia – ou, como preferem Gilmar Ferreira Mendes e Lênio L. Streck, um autêntico dever fundamental (MENDES & STRECK, 2014, p. 1.324) cuja falta enseja a nulidade da sentença. É, aliás, uma preocupação histórica, pois contrapõe o arbítrio do juiz à razão, como asseverou Liebman, que escreveu:

A história do processo, nos últimos séculos, pode ser concebida como a história dos esforços feitos por legisladores e juristas, no sentido de limitar o âmbito de arbítrio do juiz, e fazer como que as operações que realiza submetam-se aos imperativos da Razão. Antes de tudo, há a lei, naturalmente. Mas não basta. Porque é exatamente a lei que, de forma cada vez mais penetrante, querque o magistrado ao realizar as diversas tarefasde ordem material e intelectual a ele confiadas, tenha um comportamento racional, equilibrado, de acordo com a lógica natural, compreensível e convincente, para que esteja interessado nas peculiaridades do caso ou as observe com atenção. (LIEBMAN, p. 83).

Na atualidade, a preocupação com uma maior racionalidade na interpretação da lei e na aplicação do direito pelo juiz, nos casos concretos postos a julgamento pelas partes, diante do Poder Judiciário, revela-se notável. De fato, o paradigma do Estado Democrático de Direito e o preconizado modelo constitucional de processo impõem essa conclusão. Não seria possível pudesse o juiz decidir sem ‘explicar’ as razões de suas ‘escolha’ por um fundamento trazido pelo autor ou pelo réu e não por outro, ficando, assim, acima de qualquer controle pelas partes e, em última análise, da própria sociedade. Em realidade, a compreensão (recorrente) de que qualquer motivação apresentada seria hábil a cumprir a garantia constitucional conduziu a diversos problemas, das mais variadas ordens, sobretudo o de deixar as partes ao arbítrio do juiz. Neste sentido, são as lições de Maurício Ramires: é preciso diferenciar a fundamentação válida de suas simulações. Fundamentar validamente não é explicar a decisão. A explicação só confere à decisão uma falsa aparência de validade. O juiz explica, e não fundamenta, quando diz que assim decide por ter incidido ao caso ‘tal ou qual norma legal’. A atitude do juiz que repete o texto normativo que lhe pareceu adequado, sem justificar a escolha, não vai além do que faria se não explicitasse de forma alguma o motivo da decisão...... Ao juiz contemporâneo não 89

pode bastar, ao dar cabo a um discussão, a mera declaração do vencedor, repetindo as razões deste como quem enuncia uma equação matemática. Ao contrário, é preciso que o julgador, no mesmo passo em que diz por que acolheu as razões do vencedor, afirme as razões pelas quais rejeitara a interpretação dada pela parte sucumbente. (RAMIRES, 2010, pp. 41-42).

Neste ambiente, acima brevemente desenhado, a minudente regulamentação dada ao tema pelo Novo Código de Processo Civil é merecedora de aplausos. No referido diploma a motivação aparece, primeiramente, no artigo 11, prevendo a necessidade da fundamentação das decisões judiciais, sob pena de nulidade. O artigo 371do NCPC também trata da motivação, desta feita no tocante interpretação das questões probatórias, asseverando a necessidade do juiz em justificar seu entendimento. O assunto é, porém, alvo de disciplina específica no artigo 489 do NCPC, dispositivo este que protagonizou um pedido que órgãos representantes dos juízes, que solicitavam o seu veto. Em contrapartida os órgãos representantes dos advogados, defendiam sua mantença. O artigo 489 em alusão indica que os elementos essenciais da sentença são relatório, fundamentos e dispositivo. Desta forma, a não ser pela nomenclatura, observa-se que não inovação quanto aos “requisitos essenciais” do Código de Processo Civil de 1973. As disposições deste artigo não são aplicáveis somente às sentenças, visto que o parágrafo 1º prevê: “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão”. Sendo assim, a palavra sentença é empregada neste artigo como uma espécie de sinônimo que abarca toda decisão jurisdicional. (BUENO, 2015, p. 325). Os seis incisos do parágrafo 1º preveem hipóteses nas quais a decisão judicial não é (ou não está) fundamentada. De acordo com Leonardo Carneiro da Cunha, o rol é exemplificativo e a ocorrência de qualquer uma destas hipóteses, consideradas auto-explicativas, ou de qualquer outra que denote semelhante defasagem, pode ensejar a nulidade da decisão em questão. (CUNHA, 2015, p.1232) No artigo em comento se especifica, claramente, como deverá ser a fundamentação da sentença, explicitando que havendo indicação de ato normativo, deve o julgador demonstrar a relação da citação e o caso em concreto.

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Na hipótese de citação de conceitos jurídicos indeterminados, deverá o julgador explicar os conceitos; invocando-se Precedente ou Súmula, deve-se demonstrar a relação deste com o caso em conflito. Outros pontos considerados como não fundamentados dizem respeito à hipótese de o juiz deixar de analisar um fundamento ou argumento arguido por uma das partes, ou ainda, julgar em desacordo com precedente ou Súmula. Notemos que agora temos pontos claros no Novo Código de Processo Civil, que nos levará, por exemplo, a entender que a motivação per relatione será considerada ausência de fundamentação, por exemplo. O parágrafo 2º do mesmo art. 489 dispõe que “no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”. Por isso, o magistrado deve incluir também na fundamentação da decisão, sob pena de nulidade, as justificativas pelas quais optou por aplicar determinada solução ao eventual conflito entre normas jurídicas, sejam princípios ou regras, explicando “a razão da utilização de determinado princípio em detrimento de outro, a capacidade de ponderação das normas envolvidas, os critérios gerais empregados para definir o peso e a prevalência de uma norma sobre a outra e a relação existente entre esses critérios, o procedimento e o método que serviram de base avaliação e comprovação do grau de promoção de uma norma e o grau de restrição da outra, bem como os fatos considerados relevantes para a ponderação e com base em que critérios eles foram juridicamente avaliados.” (CUNHA, 2015, pp.1236-1237) Por fim, o parágrafo 3º, do artigo 489, estabelece que “a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”. Com efeito, a decisão deve ser entendida em seu conjunto, “como um todo, aplicando-se a técnica da interpretação sistemática para a compreensão do quanto tenha sido decidido”, permitindo a identificação dos limites da lide e sua solução, assim como a extração da “norma jurídica concreta, individualizada, que resolve o caso.” (CUNHA, 2015, p.1236)

CONCLUSÃO 91

Neste trabalho, ainda que de maneira sucinta, verificamos a motivação e sua importância nos ordenamentos brasileiro e espanhol, como um assecuratório do próprio devido processo legal. Verificamos, igualmente, que a exigência da motivação das decisões judiciais ostenta dupla função: de um lado, é um instrumento técnico processual permitindo o adequado exercício do direito de defesa e de controle das instâncias superiores; de outro, ostenta também importante função política, na medida em que é instrumento de controle da racionalidade das decisões judiciais. Pode-se dizer, igualmente,por tudo o que foi visto, que a garantia da motivação é uma exigência de um Estado Democrático de Direito, encontrando guarida nos textos constitucionais do Brasil e de diversos países das famílias da civil Law. Constatamos, de igual forma, que a possibilidade – correntemente aceita – da concisão nas decisões judiciais traduziu, na prática, na multiplicação de decisões que são mera reproduções genéricas de outras, ou até, de tão reduzidas, que resultam despidas de motivação. Em realidade, a compreensão (igualmente recorrente) de que qualquer motivação apresentada seria hábil a cumprir a garantia constitucional conduziu a diversos problemas, das mais variadas ordens, sobretudo o de deixar as partes ao arbítrio do juiz. Conquanto fosse óbvia a necessidade de a disciplina que o assunto recebeu no Novo CPC, especificando e detalhando a aplicação e melhor realização de dito princípio constitucional albergado no art. 93, IX, CF, é merecedora de aplausos. Neste sentido, a importância das alterações advindas com o Novo Código de Processo Civil no tema é inescondível e assegurará a necessária transparência da decisão, levando a sério, agora, o imperativo constitucional (art. 93, IX, CF).

REFERÊNCIAS

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Regulação econômica da infraestrutura no Brasil: uma análise histórico-institucional Economic regulation of the infrastructure in Brazil: an historic institutional analises Alexandre da Silva de Oliveira Resumo: o artigo analisa o ambiente institucional para os investimentos em infraestrutura no Brasil, com base nos dados de contas nacionais do IBGE. A infraestrutura brasileira requer um Estado indutor do crescimento econômico de longo prazo. Os investimentos públicos, principalmente, do Plano de Metas e o II PND, ampliaram os investimentos em infraestrutura totais até os anos 1970, em contraposição, aos baixos níveis dos anos 1980-1990. Nesse sentido, o Estado tem o papel de coordenação e indução de investimentos que requerem grandes volumes de capitais altamente específicos, especialmente em infraestrutura. Assim, na seção 1 são apresentadas as principais questões teóricas. Na seção 2 são apresentadas as características dos ciclos de investimentos em infraestrutura dos anos 1930-1970. Na seção 3 é apresentada uma revisão das principais causas da crise dos anos 1980-1990 e os impactos sobre os investimentos em infraestrutura, seguida das conclusões do artigo.

Abstract: the paper analyses the institutional environment for infrastructure investments in Brazil, based on IBGE´s national accounts database. The infrastructure development in Brazil requires a State inducing long-term economic growth. The public investments, mainly of Plano de Metas and II PND, increased the total infrastructure investments until the 1970s, in contrast to the low level of 1980-1990s. In this sense, the State has a coordinating and induction role on investments with required large volumes and highly specific capitals, especially in infrastructure. That is, Section 1 presents the main theoretical issues. Section 2 presents the features of the infrastructure investments cycles of 19301970. Section 3 presents a review of the main causes 1980-1990 crisis and the impacts on infrastructure, followed by paper conclusions. Apresentação O artigo analisa o ambiente institucional para os investimentos em infraestrutura no Brasil, com base nos dados de contas nacionais do IBGE e as experiências de planejamento econômico no Brasil, com foco na investigação dos investimentos em infraestrutura 95

no período de 1930-1990, com base nos dados de contas nacionais do IBGE. O foco concentra-se na avaliação da hipótese de que o desenvolvimento da infraestrutura brasileira, por sua característica de monopólio natural, requer um Estado coordenador e indutor do crescimento econômico de longo prazo. A justificativa é que os investimentos públicos, principalmente, do Plano de Metas e o II PND, ampliaram os investimentos privados nacionais e estrangeiros em infraestrutura até os anos 1970. Em contraposição, a carência de infraestrutura, em virtude da ausência estatal e da reestruturação produtiva dos anos 1980 e 1990. O Estado tem um papel fundamental, por meio de sua atuação na promoção de uma maior taxa de crescimento dos investimentos. Os investimentos em infraestrutura ampliam mercados para suprir a grande demanda interna da população brasileira, por meio da oferta de níveis maiores de bens e serviços, sendo que provocam impactos sobre as estruturas de oferta destes, o que resulta em menores efeitos inflacionários. Isto posto, na seção 1 é apresentado o debate teórico acerca dos determinantes do investimento e da poupança, que é o pano de fundo para a discussão sobre o planejamento e crescimento econômico. Na seção 2, são apresentadas as características dos ciclos de investimentos em infraestrutura dos anos 1930-1970, que caracterizam as experiências brasileiras de planejamento econômico, com destaque para o Plano de Metas e o II PND – Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento. Na seção 3 é apresentada uma revisão das condicionantes que determinaram a crise do Estado, desequilíbrios macroeconômicos e a escassez de investimentos públicos em infraestrutura no período de 1980-1990, seguida das conclusões do artigo. 1. Crescimento, planejamento, regulação econômica e infraestrutura 1.1. A importância do crescimento e planejamento econômico para a infraestrutura A discussão acerca do fenômeno do crescimento econômico é antiga e deriva dos debates entre as abordagens keynesiana e ortodoxa, acerca do investimento e poupança. Na visão ortodoxa, o crescimento econômico é um resultado de longo prazo e obtido com o aumento da poupança agregada. Nessa abordagem, utiliza-se o conceito de função de produção, com o produto (Y) sendo determinado pela acumulação de capital (K), a expansão do trabalho (L) e, com papel de destaque, da eficiência ou produtividade do trabalho (A): Yt = f (Kt, Lt, At) A acumulação de capital (K) é representada pelo investimento bruto da economia, que é definido por (Ib) e é determinado pela soma do acréscimo do estoque de capital da 96

economia (Fbkf), que corresponde a ampliação da capacidade produtiva da economia e o termo (VarEst-dep), que representa as variações de estoque dos bens produzidos não vendidos, descontada a depreciação física do capital: Ib = Fbkf + (VarEst-dep) Na função de crescimento ortodoxa apresentada acima, temos que a taxa de crescimento do produto e da poupança são determinadas pela eficiência ou produtividade do trabalho (A), representada pela taxa de crescimento tecnológico, com o crescimento do produto sendo uma função crescente da razão entre capital e trabalho. Nesse sentido, o papel da poupança é prover os recursos monetários necessários para a expansão de novo capital e a depreciação do capital já instalado. Se não ocorrem aumentos de eficiência ou produtividade do trabalho, não aumenta-se a poupança e, com isso, não ocorrem aumentos de investimentos e; portanto, não se viabiliza o crescimento crescimento econômico do país. Em contrapartida a teoria ortodoxa, temos a abordagem alternativa de Keynes (1988), na qual o investimento é determinado previamente à poupança, sendo que o produto interno bruto é definido pela igualdade entre rendas e despesas: R = D (I) A partir das teorias de Keynes, os países capitalistas se convenceram da necessidade da intervenção do governo para evitar ou reduzir os efeitos das crises cíclicas que caracterizam o modelo econômico capitalista. Essa atuação governamental se dá especialmente em benefício do emprego e dos investimentos, especialmente em infraestrutura. Com isso, o planejamento econômico originou-se como um reconhecimento de que os mercados não são formas infalíveis na alocação de recursos nem, tampouco, ajustados automaticamente. Assim, é necessária uma atuação governamental ativa, por meio de políticas econômicas com o objetivo de ampliar os investimentos e aumentar o acesso da população aos serviços básicos, bem como, do ponto de vista produtivo, promover a redução dos estrangulamentos, com desdobramentos sobre o desenvolvimento econômico. Celso Furtado (1983 e 2001) define amplamente o planejamento econômico como o uso de técnicas e o estabelecimento de objetivos globais a serem alcançados pela economia em períodos previamente fixados. Refere-se, principalmente, à atividade governamental, com a formulação sistemática e a tomada de decisões de política econômica, com o objetivo de disciplinar a atividade produtiva para se promover o desenvolvimento econômico. 97

Com isso, a função do Estado passou de um agente apenas participante da economia, para um papel de protagonista, provedor e impulsionador de políticas públicas no sentido de se atingir o desenvolvimento econômico. Para isso, assumiu funções como a estabilidade da moeda e o crédito, aumento da produção e distribuição de renda. Os Estados, por meio de seus governos institucionalizados passaram a atuar de forma direta e substituir atividades empresariais privadas para beneficiar a população, como na construção de estradas ou grandes obras de grande interesse público. Sendo assim, a partir dos desdobramentos da crise econômica de 1929, a maioria dos países procurou adotar políticas de planejamento do econômico e industrialização, para se atingir o desenvolvimento. Já na década de 1930, o governo dos Estados Unidos interveio de forma acentuada no processo produtivo, com o New Deal do presidente Roosevelt, pode ser considerado uma das primeiras experiências no sentido de se realizar um planejamento econômico, com o objetivo de combater as consequências da terrível depressão que se seguiu à crise da bolsa de valores em 1929. Gradativamente durante o século XX, os Estados passaram a serem produtores e reguladores de setores importantes para o novo ciclo de crescimento que se aproximava. Os Estados passaram a programar políticas em setores nos quais havia grandes dificuldades de viabilização de investimentos, como em infraestrutura há uma grande necessidade de volumosos capitais altamente específicos. 1.2. A importância da regulação econômica para a infraestrutura Em sentido geral, para Bagnoli (2010), o termo regulação refere-se “às formas de organização da atividade econômica pelo Estado, tanto pela concessão de serviços públicos quanto pelo poder de polícia” (BAGNOLI, 2010, p. 84). É o conjunto de técnicas ou ações que, ao serem aplicadas a um processo, dispositivo, organização ou sistema, permite alcançar a estabilidade ou a conformidade de um objetivo previamente definido. A abordagem mais difundida acerca da regulação é derivada tradição econômica ortodoxa, na qual a regulação é realizada pelo próprio mercado, por meio de mecanismos de preços e quantidades ofertas, segundo a lei da oferta e da procura. Nesse sentido, há alguns mercados que existe uma maior eficiência econômica com apenas uma única empresa produzindo toda a quantidade ofertada no mercado, sendo chamados de monopólios naturais. Segundo Carlton e Perloff (2000, p. 101-103), uma empresa é um monopólio natural, se ofertar bens e serviços a uma quantidade de mercado Q, abaixo do custo que existisse a oferta de duas ou mais empresas, Q1 e Q2, respectivamente, ou seja, cada empresa

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tem uma função de custo C(qk) e uma empresa pode produzir sozinha ao custo de Q menor do qua soma das empresas: C(q) < C(q1)+C(q2)+ … + C(qk) Sendo assim, a maneira menos custosa e mais eficiente de se produzir todas as unidades Q seria uma estrutura de mercado de forma de um monopólio natural, que inclui quedas dos custos médios e redução dos custos marginais. Os setores de infraestrutura são reconhecidos como monopólios naturais, também pela situação de mercado em que os investimentos necessários são muitos elevados, e os custos marginais são muito baixos, dada a escala de produção, com bens exclusivos e com muito pouca ou nenhuma rivalidade como, por exemplo, nos setores de infraestrutura. Segundo Randall (1987), quando a máxima eficiência econômica é alcançada por meio dos monopólios naturais, há uma necessidade de atuação governamental no sentido de evitar lucros excessivos por parte das empresas e adequar a quantidade e qualidade da oferta desses bens públicos. Então, a maior eficiência econômica promovida pelos monopólios naturais e a necessidade de se controlar lucros e oferta de bens públicos são as principais motivações por parte do Estado de regular alguns setores, como a infraestrutura. A regulação é descrita como o arcabouço de mecanismos, constituído de leis, regimentos, decretos, portarias, que suportam o marco regulatório dotado de regras setoriais concernentes à tarifação e o ingresso de novas empresas no mercado. Ainda segundo Bagnoli (2010, p. 88-89), a regulação se materializa por meio das agências reguladoras, que são instituições criadas para se combater os abusos dos mercados concentrados, sendo um instrumento de resolução de conflitos e de preservação dos interesses públicos. No que se refere à função destas agências reguladoras, Pires e Piccinini (1999), definem a atividade de regular, fiscalizar ou normatizar a prestação dos serviços públicos, com imparcialidade diante de interesses do Estado, dos concessionários e dos usuários, com independência política, administrativa, financeira e funcional, com o objetivo de contribuir para atenuar a insegurança jurídica e os riscos políticos aos negócios privados de longo prazo. As agências reguladoras independentes e especializadas e a escolha de instrumentos que incentivem a eficiência produtiva e alocativa são consideradas requisitos de uma regulação eficiente. De acordo com os autores (PIRES; PICCININI, 1999, p. 256), aquelas funções das agências reguladoras são operacionalizadas por meio dos seguintes instrumentos, que são: 99

a) o controle de entrada e saída do mercado das empresas; b) controle de tarifárias para evitar práticas anticompetitivas e abuso do poder de mercado; c) promoção da competição, em setores nos quais o monopólio natural seja menos eficiente; d) aplicação de critérios tarifários que incentivem a eficiência produtiva e apropriação de ganhos aos consumidores; e e) fiscalização do cumprimento dos contratos de concessão. No Brasil, estes instrumentos foram implementados, a partir dos anos 1990, caracterizando a atuação das agências reguladoras permitindo, principalmente, controlar as políticas de preços, regras de concorrência e a transparência de informações na prestação de serviços públicos nos setores de infraestrutura. Houve regulamentação, por meio das leis no. 9.074/95 e a no. 8.987/95, com relação ao regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. A qualidade desta regulação está associada ao conceito de segurança jurídica, definido pelos marcos regulatório. A partir da regulamentação mencionada acima, a partir da década de 1990, iniciou-se a implantação de um marco regulatório capaz de incentivar maiores investimentos, reduções de preços e tarifas, como também a elevação da qualidade dos serviços. No entanto, há ainda inúmeras incertezas regulatórias, associadas à fatores legais e burocráticos acerca de processos licitatórios, concessões de serviços públicos e as parcerias público-privadas, que inibem os investimentos privados, nacionais e estrangeiros, em infraestrutura. Segundo Pires e Piccinini (1999), o maior desafio regulatório nos setores de infraestrutura refere-se à criação de um ambiente que, simultaneamente, estimule os investimentos privados, para a modernização e a expansão dos diversos segmentos, e promova o aumento do bem-estar do consumidor. Segundo Rigolon (1996, p. 29), para todos os setores, é conveniente lembrar que apenas uma legislação abrangente e bem definida não é garantia de uma regulação eficiente da infraestrutura. O desenho de políticas de competição efetivas, a formulação da regulação e a imposição da legislação relevante não são tarefas triviais. Como função típica do Estado, a regulação é mais bem executada se o poder público dispuser de recursos materiais suficientes e de pessoal qualificado. No Brasil, observou-se que a eficiência da regulação depende de uma ampla reforma do Estado, que compreenda não só o ajuste fiscal, mas também a estruturação de um serviço público eficiente. Nesse sentido, os setores de infraestrutura têm como principal característica a presença de elevados custos fixos, que se devem pelos investimentos altamente específicos de capital físico. Além disso, os custos fixos elevados destes setores provocam um duplo efeito: (i) maior eficiência produtiva é obtida somente por meio um estrutura concen100

trada de mercado, com altas barreiras à entrada e poucas empresas operadoras – monopólio natural; e (ii) problema de controle e fiscalização do superlucro de monopólio através de regulação adequada. 2. As experiências brasileiras de planejamento econômico: os ciclos de investimentos em infraestrutura entre as décadas de 1930-1970 No Brasil, o planejamento econômico e o Estado como indutor de crescimento de longo prazo resultaram em ampliação dos investimentos em infraestrutura foram características observadas no período de 1930-1970, que marca o início industrialização da economia brasileira. A partir da crise econômica mundial de 1929, que desarticulou os setores agrário-exportadores, principalmente a cafeicultura, devido aos choques externos associados à demanda e os impactos sobre os preços dos preços de seus produtos, combinada a Revolução de 1930, criou-se as condições para a viabilização da transferência de poder para os capitalistas industriais (Furtado, 2001), como a transição do fator dinâmico da economia brasileira para o mercado interno. Esse processo foi estimulado, a partir de meados da década de 1930, por Getúlio Vargas, que adotou uma série de medidas, para impulsionar um processo de substituição de importações, com algumas restrições à sua expansão, provocada pela produção e da taxa de lucro produzida domesticamente. Com esse diagnóstico de insuficiência de capacidade de oferta, o Estado inicia um processo de criação de empresas estatais com foco em indústrias como de siderurgia, petróleo e derivados e mineração. A partir de 1945, com o fim da segunda guerra mundial, os investimentos da economia brasileira foram impulsionados pela demanda doméstica. Segundo Bastos (2003), “o governo enveredou por um rumo, com controle de importações, expansão do crédito, plano de investimentos públicos, fomento à indústria substitutiva de importações, que provocou a oposição ideológica de técnicos e empresários prejudicados pela reversão da abertura, embora continuasse experimentando oposição política de lideranças, sobretudo Getúlio Vargas, sempre favoráveis à reversão da abertura”. (BASTOS, 2003, p. 2). Isto posto, a partir dos anos 1950, ocorreram iniciativas como a criação da Comissão Mista Brasil - Estados Unidos, para identificar e definir projetos de investimento em infraestrutura que seriam financiados pelo Eximbank norte-americano e pelo World Bank. No que se refere ao projeto nacionalista de Vargas, houve a restrição do financiamento externo de projetos de infraestrutura na forma de investimentos diretos estrangeiros, sendo que Vargas estimulou estes projetos com altas taxas de lucro das atividades industriais aceleradas pela política de câmbio valorizado e de transferências de rendas 101

dos setores agroexportadores para os setores industriais (REGO; MARQUES, 2001, p. 82). Sendo assim, o período varguista foi um dos fundadores da infraestrutura que serviu de base ao inicio da industrialização brasileira com a contribuição significativa do capital estrangeiro. No Brasil, com o Plano SALTE (1947-1951), lançado pelo governo de Eurico Gaspar Dutra, com o objetivo de coordenar uma política para estimular investimentos nos setores de saúde, alimentação, transporte e energia, houve uam melhora nas condições de vida da população brasileira. A partir de 1952, foram realizados expressivos projetos de infraestrutura com apoio, do então criado Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Já no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), por meio do Conselho de Desenvolvimento, elaborou-se o Plano Quinquenal de Metas, cujos objetivos eram ampliar a participação do setor público na formação de capital, sendo caracterizado como um primeiro ciclo de investimentos públicos em setores de acumulação de capital no Brasil (Furtado, 1967 e 2007). O Plano de Metas dividiu-se em 31 metas que privilegiavam cinco setores da economia brasileira priorizando os investimentos em: energia, transporte, indústrias de base, alimentação e educação e a meta-síntese, com a criação de Brasília. O plano teve tanto consequências positivas quanto negativas para o país, sendo que, por um lado, deu-se a modernização da indústria e; por outro, o forte endividamento internacional por causa de empréstimos, oriundos de importações de máquinas, equipamentos e instrumentos de produção. Apesar dos desequilíbrios macroeconômicos, observados nas contas públicas e os desajustes externos gerados, que culminou em um processo de hiperinflação e restrição ao crescimento, os investimentos do Plano de Metas impulsionaram um crescimento do PIB de 9,4% ao ano, com papel de destaque para o Estado, que exerceu uma substancial demanda por investimento, de forma a sustentar a demanda efetiva e controlar o ciclo econômico. De acordo com Orenstein e Sochaczenski (1990), o financiamento dos investimentos do Plano de Metas era oriundo 50,0% do governo, 35,0% de fundos privados e 15,0% de agências públicas. No que se refere ao financiamento dos investimentos, Lessa (1981) aponta que as componentes internas do plano foram as emissões de meios de pagamento e a concessão de crédito bancário. Com relação ao financiamento das estatais, especificamente no caso de infraestrutura, Ferreira e Malliagros (1998) afirmam que nos anos 1950, o BNDE foi o agente de financiamento mais importante. Já os capitais externos foram facilita102

dos por políticas de capitais, que foram importantes para financiar a Formação Bruta de Capital Fixo. Sobre os desdobramentos do Plano de Metas, Villela sintetiza que “entre 1956 e 1960, as principais metas de ampliação da produção e da infraestrutura econômica, reunidas no Plano de Metas, foram alcançadas, com o aumento da FBKF, bem como a meta-síntese de construção de Brasília. Nesse sentido, a política de desenvolvimento econômico de JK foi coroada de sucesso.” (VILLELA, 2005, p. 64). O Plano de Metas originou o emprego das técnicas de planejamento no país, com enfoque nos investimentos na indústria da transformação como uma característica do Estado Desenvolvimentista, sendo que esse aumento dos investimentos sinalizou a disposição do Estado em atuar não somente em setores tradicionais, como também na infraestrutura. Outras experiências obtiveram um menor êxito, em comparação ao Plano de Metas. O Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965) tinha como objetivos fundamentais acelerar o crescimento do produto e uma melhor distribuição de renda. Já o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), de 1964-1966, tinha o objetivo principal de eliminar os pontos de estrangulamentos internos da economia. No entanto, os desequilíbrios macroeconômicos internos, principalmente, o processo inflacionário e os desequilíbrios das contas externas e públicas, como também a crise de liquidez da economia internacional, diminuíram as possibilidades de obtenção de uma taxa de crescimento econômico consistente. Nos anos 1970, os governos militares implantaram o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico, em duas fases, sendo a primeira chamada de I PND (1972-1974) e a segunda, o II PND (1975-1979), em meio a desequilíbrios macroeconômicos e restrições externas. Contudo, o II PND, instituído pelo governo do general Ernesto Geisel, obteve êxito, com o objetivo de ampliar o crescimento economico e corrigir desequilíbrios setoriais, principalmente em insumos básicos, bens de capital, alimentos e energia. O II PND foi uma forma de resposta à crise econômica originada no fim do chamado "milagre econômico brasileiro", período de seis anos consecutivos de crescimento a taxas superiores a 10,0% ao ano que, no entanto, criou uma série de desequilíbrios macroeconomicos, como desajustes fiscais, externos e inflacionários. O plano foi viável politicamente, de acordo com Valadares da Silva (2003), em virtude de uma aliança, principalmente, entre o capital financeiro nacional e as oligarquias tradicionais, que negociaram o papel do capital estrangeiro. O II PND se propôs a realizar um ajuste estrutural na economia brasileira, com alguns ajustes conjunturais de curto prazo, por meio da utilização instrumentos tais como taxa de câmbio, taxa básica de juros, regras para exportação e importação. 103

O plano obteve êxito parcial, sendo que, pela primeira vez na história, o Brasil conseguiu dominar todo o ciclo produtivo industrial. Contudo essa industrialização gerou uma dívida externa em expansão, culminando na moratória de 1982. O II PND exerceu um papel positivo para o ajustamento externo da economia brasileira e, principalmente, sustentar o crescimento econômico, impulsionado por meio de elevadas taxas de investimentos. Segundo Batista (1987), as metas do II PND associadas ao crescimento econômico passavam por uma ampliação da infraestrutura no país, com o objetivo de gerar maior emprego, renda e consumo, como também, atingir uma maior produtividade, competitividade e crescimento econômico. De fato, para este período, este processo não foi coordenado pelos mecanismos de ajustamento dos livres mercado, sendo necessária a articulação governamental. O crescimento do PIB nos anos 1970 foi resultado da expansão da taxa anual de investimento, em média 24,0% do PIB entre 1974 e 1979, que possibilitou o crescimento de 6,8% ao ano, com ênfase nas indústrias básicas, notadamente nos setores de bens e capital, eletrônica pesada, insumos básicos, continuando o processo de substituição de importações. A participação do setor público na FBKF foi a maior da história brasileira neste período, e a sustentação por anos consecutivos de altas taxas de crescimento e da FBKF/ PIB denota um processo de desenvolvimento. Estes efeitos dos investimentos e da sua alocação dependiam, conforme afirma Medeiros (2007), “de um regime monetário, cambial e fiscal favorecedor do alto crescimento”. Entre 1950 e 1965, as variações da FBKF do setor público seguiam exatamente as variações da FBKF da administração pública, pois muitas empresas estatais estavam sendo criadas na época e ainda participavam pouco do total investido pelo governo federal, principalmente nos anos 1970. No período de 1930-1970 houve uma ampliação significativa da infraestrutura no Brasil que criou condições para o período de industrialização e superação da dependência externa das importações, que contribuiu em significativa medida os efeitos da dependência externa e intensificou o processo de substituição de importações – a relação FBKF / PIB atingiu 23,5%, sendo que a relação dos investimentos em infraestrutura / PIB atingiu 5,4% do PIB. Foi expressiva a importância do Estado, por meio dos investimentos públicos, que impulsionou os investimentos privados, nacionais e estrangeiros, ampliando a infraestrutura brasileira, com destaque para o papel das empresas estatais. No entanto, esse processo causou efeitos colaterais na economia brasileira, com a elevada participação de empréstimos externos, que aumentou a dívida externa, a escalada da taxa de inflação e a crise fiscal do país.

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3. Crise do Estado, desequilíbrios macroeconômicos e a escassez de investimentos públicos em infraestrutura: notas sobre as décadas de 1980-1990 Nos anos 1980-1990, houve a crise do Estado, desequilíbrios macroeconômicos, o que resultou em uma escassez de investimentos públicos em infraestrutura. As privatizações redefiniram o papel dos investimentos no país e não foram capazes de impulsionar os investimentos necessários para um crescimento da economia brasileira. Os anos 1980 são caracterizados como um período de crise do Estado brasileiro, com desequilíbrios macroeconômicos, com destaque para a deterioração da situação das contas públicas e externas e a ascensão da inflação, em um contexto de cenário externo de restrição financeira. Estas condicionantes provocaram instabilidade do crescimento econômico do país (BAER, 2004, p. 167). Com a implantação do Plano Cruzado entre 1985-86, houve uma tentativa por parte do governo de estabilizar a taxa de inflação, com medidas basicamente de controle de preços. Apesar do sucesso inicial do Plano Cruzado, a economia brasileira retornou a uma situação critica de variabilidade da taxa de crescimento do PIB, com uma elevação da taxa de desemprego e a volta das elevadas taxas de inflação. No mandato do presidente José Sarney (1985-1990), houve uma recuperação do crescimento do PIB, mesmo com a implementação de estabilização e pacotes fiscais para combater as crises internas e externas. Porém, houve uma queda da FBKF e investimentos em infraestrutura dos anos 1970 para os anos 1980 – de 23,5% para 22,2% da relação FBKF / PIB e de 5,4% para 3,6% da relação dos investimentos em infraestrutura / PIB atingiu 5,4% do PIB. Com isso, houve queda de produtividade e eficiência, tornando a infraestrutura do País obsoleta e incapaz de proporcionar condições de crescimento econômico acelerado, além dos amplos impactos sobre a competitividade da economia brasileira. O regime macroeconômico adotado pelo Brasil estava em sintonia com as tendências neoliberais impostas sobre os países periféricos, que também beneficiavam a elite financeira, núcleo do grupo de interesses em ascensão no poder. A intensificação da integração entre os mercados financeiros e de produtos implicou em menor autonomia das políticas econômicas nacionais, assim como sobre os seus efeitos, tanto domésticos como globais. O início da abertura e desregulamentação dos mercados brasileiros amplificou a perda de autonomia das políticas econômicas locais, em detrimento ao aumento de influência de fatores externos, com uma maior volatilidade nos mercados financeiros e de capitais. Os anos 1980 foram marcados pela atrofia dos investimentos estatais e o agravamento das incertezas regulatórias e, principalmente, dos fundamentos macroeconômicos. 105

Com isso, não se promoveu um ambiente favorável aos investimentos privados, nacionais e estrangeiros, com o impacto sobre a infraestrutura brasileira. Após dois choques de preços internacionais do petróleo (1973 e 1979) e a crise financeira do México (1982), os principais credores internacionais, ao perceberem as dificuldades dos países em desenvolvimento em conduzir uma dívida bastante elevada e os novos financiamentos, o que provocou o aumento das exigências para a obtenção de novos empréstimos. Houve, como consequência, maior monitoramento por parte de instituições como o International Monetary Fund (IMF) para a obtenção de ajustes internos das economias em desenvolvimento e garantia de pagamento dos juros. Restabelecida a normalidade institucional, o governo José Sarney implantou, em 1986, o Plano de Estabilização Econômica, conhecido como plano Cruzado, nome da nova moeda então criada, que substituiu o cruzeiro. Seu objetivo principal foi o combate à inflação, e para tanto se estabeleceu a nova moeda, com medidas relacionadas ao congelamento de preços e salários e a eliminação das indexações de preços e salários. As medidas desestimularam a formação de poupança interna e o consumo. Com o congelamento da taxa de câmbio, as exportações caíram e as importações aumentaram. Já no plano Cruzado II de 1987, ocorreu o descongelamento de preços e a alteração dos critérios do cálculo da inflação, no entanto, sem o sucesso pretendido, sendo que até 1989, o governo Sarney implantou dois planos de reforma da economia. O primeiro foi Plano de Controle Macroeconômico, também chamado de Plano Bresser, de 1987, que congelou preços, salários e aluguéis por noventa dias e adiou a realização de grandes obras públicas. O segundo foi o Plano Verão de 1989, que instituiu o cruzado novo como moeda nacional e extinguiu a política de correção monetária, sendo que este plano não obteve êxito no que se refere ao controle de inflação, como os demais planos econômicos heterodoxos. Com a inflação em torno de 80% ao mês, governo de Fernando Collor de Melo, implantou o Plano Brasil Novo, ou o Plano Collor, a partir de 1990, para evitar a hiperinflação e promover o ajuste da economia. O plano congelou preços e salários, aumentou impostos e tarifas, instituiu novos tributos e anunciou o programa de privatização de empresas estatais. Com as sucessivas dificuldades no enfrentamento da questão da inflação, a partir de 1994, o governo implantou o plano Real, que, ao contrário dos anteriores, não congelou preços e salários ou choques na economia, com características ortodoxas. Para isso, concentrou-se basicamente no combate ao desequilíbrio das contas públicas, principal causa da inflação na opinião de muitos analistas.

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No entanto, com a estabilização da moeda e dos fundamentos macroeconômicos, restringiu as condições de viabilização dos investimentos em infraestrutura suficiente para um novo ciclo de investimentos em infraestrutura no país. Os processos de globalização, associados às estratégias das empresas multinacionais e de regionalização, vinculado à formação de blocos econômicos provocaram alguns impactos para os países em desenvolvimento, especialmente para o Brasil, com desdobramentos acerca das condições de privatização dos setores de infraestrutura no Brasil. Apesar das evidências no que se referem à nova fase da acumulação capitalista predominante a partir das últimas duas décadas do século XX, há quem questione as evidências de que estaria havendo uma globalização da economia, uma vez que se observa uma crescente concentração nas decisões e nas desigualdades entre os países. A globalização da economia internacional e a internacionalização da produção das empresas multinacionais ampliaram o comércio e as transferências de tecnologia globalmente, com o impulso dos desenvolvimentos dos mercados financeiros e de capitais, cada vez mais liberalizados e desregulamentados. A globalização representou em alguns casos a perda de autonomia de política econômica. Na verdade, a autonomia das políticas econômicas dos países fica limitada quando estes fazem uso de política de estabilização, excessivamente baseada na liberalização do mercado e da fixação de metas monetárias, que causam impactos importantes tanto na política monetária como nos juros. Apesar da maior relevância das empresas no cenário da globalização, os Estados nacionais ainda desempenham um importante papel no posicionamento estratégico dos países. As mudanças provocadas pelos investimentos diretos estrangeiros alteraram os padrões de estruturas produtivo-organizacionais e redefiniram a noção de competitividade internacional, com a crescente necessidade de investimentos público e privados de longo prazo como, por exemplo, nos setores de infraestrutura. Com a adoção do Plano Real em 1994, cumpriram-se as etapas para a estabilidade da moeda. No entanto, as desigualdades sociais continuaram excessivas, com o empobrecimento de vastas parcelas da população e queda relativa do mercado de trabalho, que crescia em ritmo menor do que o aumento da população. A inserção externa economia brasileira nos anos 1990 significou, por um lado, uma forte reestruturação da produção, tendo como pano de fundo o novo paradigma industrial, baseado nas mudanças provocadas pela globalização, a abertura da economia, a privatização e a desregulamentação, e por outro, causou uma desaceleração do crescimento e acumulação de capital no país. 107

Nesse sentido, a queda dos investimentos em infraestrutura e a precariedade dos serviços públicos, revelam um fator poderoso limitando as perspectivas de crescimento da economia brasileira, principalmente nos anos 1990. Sendo assim, se esta tendência não for revertida no longo prazo, deve ocorrer uma restrição à taxa de crescimento do produto e da produtividade da economia, devido aos baixos investimentos públicos. O fenômeno das privatizações de empresas e serviços não significa um Estado mínimo para Franco (1999) ou Moreira e Giambiagi (2000). Para esses autores, a lógica é deixar governos e empreendedores privados fazerem o que sabem fazer melhor, sendo que um Estado grande requer muitos impostos para custear muitas despesas com muitas atividades. Já um Estado menor, atento somente aos serviços sociais principais, requer menos imposto, para arcar com menos despesas, fruto de menos atividades. A questão da privatização foi um dos aspectos mais polêmicos da década de 1990. Com a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND) em 1990, tornando-se assim, uma parte integrante das reformas econômicas do governo. No período 19911998, somente no âmbito federal, cerca de 60 empresas públicas foram privatizadas, gerando um resultado de cerca de US$ 28,49 bilhões no período. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) representou um importante papel para o PND, pois foi designado como gestor do Fundo Nacional de Desestatização (FND). Suas principais atribuições estavam relacionadas à licitação, contratação, coordenação e supervisão das operações de venda das empresas públicas ao capital privado. O Banco teve o papel ainda de prover recursos, como alternativa de investimento para a infraestrutura diante da falta de recursos orçamentários. No que se referem aos estados, estes aderiram ao programa, com a venda de empresas públicas e o leilão de concessões, atraindo investidores privados para construir uma nova infraestrutura. Com a evolução das privatizações, houve a necessidade crescente, por parte dos governos, na esfera federal, estadual e municipal, de atrair investimentos privados para atender as demandas e os anseios crescentes da população diante da insuficiência de recursos nos orçamentos públicos, comprometidos quase totalmente com despesas como aposentadorias, quadro de funcionários públicos, saúde pública, segurança, educação e pagamento de juros de dívidas já contraídas. De um lado, o processo de abertura e as privatizações foram realizados sem coordenação ou objetivos predefinidos. Por outro lado, a participação do capital estrangeiro, impulsionou a produtividade da infraestrutura, principalmente do setor de telecomunicações. Apesar disso, a queda da FBKF e dos investimentos em infraestrutura nos anos 1990, em comparação aos anos 1970 foi pronunciada – de 23,5% para 18,2% da relação FBKF / PIB e de 5,4% para 2,3% da relação dos investimentos em infraestrutura / 108

PIB atingiu 5,4% do PIB, com amplos impactos negativos sobre as condições de crescimento econômico de longo prazo da economia brasileira. Fatores como os desequilíbrios macroeconômicos, amplificados pela crise da dívida externa da década de 1980, hiperinflação e desajustes das contas públicas provocaram uma queda significativa dos investimentos públicos em infraestrutura no período. Estes mesmos fatores negativos, como também o período de incertezas políticas associadas à transição da ditadura para a democracia, bem como excessiva burocracia e inseguranças institucionais, provocaram expectativas negativas, fazendo com que os investimentos privados também recuassem. Conclusões O trabalho apresentou as experiências de planejamento econômico no Brasil, com foco na investigação dos investimentos em infraestrutura no período de 1930-1990. Constatou-se que os investimentos públicos, principalmente, do Plano de Metas e o II PND, ampliaram os investimentos privados nacionais e estrangeiros em infraestrutura até os anos 1970. Em contraposição, a carência de infraestrutura, em virtude da ausência estatal e da reestruturação produtiva dos anos 1980 e 1990 representou uma oportunidade para o novo ciclo de investimentos em infraestrutura iniciado nos anos 2000, impulsionados pela consolidação dos fundamentos macroeconômicos do Plano Real e pela implementação do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Com relação ao papel do Estado, a partir das teorias de Keynes, os países capitalistas se convenceram da necessidade da intervenção do governo para evitar ou reduzir os efeitos das crises cíclicas que caracterizam o modelo econômico capitalista, sendo que a atuação estatal se dá especialmente em benefício do emprego e dos investimentos. Com relação à função de regulação estatal, observou-se que a eficiência da regulação depende de uma ampla reforma do Estado, que compreenda não só o ajuste fiscal, mas também a estruturação de um serviço público eficiente. Foi apresentado o período de 1930-1970, no qual houve uma ampliação significativa da infraestrutura no Brasil que criou condições para o período de industrialização e superação da dependência externa das importações, que contribuiu em significativa medida os efeitos da dependência externa e intensificou o processo de substituição de importações. Este é um resultado do expressivo papel do Estado, por meio dos investimentos públicos, que impulsionou os investimentos privados, nacionais e estrangeiros, ampliando a infraestrutura brasileira, com destaque para o papel das empresas estatais. Já os anos 1980 foram marcados pela atrofia dos investimentos estatais e o agravamento das incertezas regulatórias e, principalmente, dos fundamentos macroeconômi-

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cos. Com isso, não se promoveu um ambiente favorável aos investimentos privados, nacionais e estrangeiros, com o impacto sobre a infraestrutura brasileira. Os anos 1990 foram marcados pela continuidade da atrofia dos investimentos estatais e o aprofundamento do processo de privatizações. Em setores como de telecomunicações, observa-se uma modernização e ampliação da oferta; contrariamente, em setores como de energia elétrica, houve uma paralisação dos investimentos, em virtude das incertezas regulatórias e a ausência do Estado. Constatou-se que, há uma grande dificuldade de viabilização doméstica dos investimentos necessários, principalmente por que, os investimentos em infraestrutura têm como característica a necessidade de grandes volumes de capitais altamente específicos. Para se viabilizar estes investimentos, é preciso que haja um bom desenho regulatório, para se reduzir as incertezas de longo prazo, como também políticas microeconômicas devem ser voltadas para os objetivos estratégicos do país no longo prazo – direcionando os investimentos domésticos e externos no sentido da promoção do bem estar social e aumento da produtividade e competitividade da economia nacional. Com a formulação sistemática e a tomada de decisões de política econômica, tem o papel de disciplinar a atividade produtiva e promover o crescimento econômico, por meio de investimentos em infraestrutura. Nos setores de infraestrutura, caracterizados como monopólios naturais, há uma necessidade de atuação governamental no sentido de evitar lucros excessivos por parte das empresas e adequar a quantidade e qualidade da oferta desses bens públicos. Nesse sentido, o planejamento econômico, com o uso de técnicas e o estabelecimento de objetivos globais a serem alcançados pela economia em períodos previamente fixados exerce papel importante. Referências Bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INFRAESTRUTURA E INDÚSTRIA DE BASE (ABDIB). Publicações. Dsponível em: < http://www.abdib.org.br/index/conjuntura_infraestrutura_capa.cfm?id_edicao=0>. Acessado em 22.12.2011. ARROUS, J. Les théories de la croissance. Éditions du Seuil, février, 1999. ASSOCIAÇÃO KEYNESIANA BRASILEIRA (AKB). Dossiê da Crise II. Disponível em: . Acessado em 03.12.2010. BAER, W. A economia brasileira. Editora Nobel, 2ª. Edição. São Paulo, 2004.

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Alexandre da Silva de Oliveira

Economista e Mestre em Economia pela PUC-SP e Pós-Graduado pela FGV-SP, FIPEUSP e Escola Paulista de Direito-EPD. Com experiência profissional de 15 anos, tendo atuado em companhias industriais e de serviços nacionais e internacionais em áreas comerciais, financeiras e estratégicas. Palestrante e Professor em eventos e cursos de Ciências Econômicas, Administração, Ciências Contábeis e Direito. Professor de Economia e de Direito na Universidade Paulista (UNIP) e nas Faculdades Integradas Campos Salles (FICS), com publicações nacionais e internacionais e experiência em análises e pesquisas em: economia e negócios, planejamento econômico, cenários econômicos e análise de conjuntura, macroeconomia, organização industrial, comércio internacional estruturas de mercado, direito econômico, governança corporativa, economia financeira/monetária e economia internacional.

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

As normas de “jus cogens” como a mais importante fonte contemporânea de Direito Internacional The rules of "jus cogens" as the most important contemporary source of international law Miguel Ângelo Marques RESUMO O presente artigo tem por escopo demonstrar que as normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens), apesar da previsão contida na CVDT/69, não se restringem ao âmbito do direito dos tratados. Inserem-se, segundo a melhor doutrina, no campo de estudo das fontes do Direito Internacional Público. Por se tratar de um estudo descritivo e exploratório, será realizado com base na pesquisa bibliográfica e histórica, utilizando-se do método indutivo. Palavras-chave: imperativas de direito internacional geral (jus cogens). Direito das Fontes. Direito Internacional Público.

ABSTRACT This article aims to demonstrate the mandatory rules of general international law (jus cogens), despite the forecast contained in CVDT/69, are not restricted to the scope of the law of treaties. They are, according to the best doctrine, in the field of study of the sources of international law. Since this is a descriptive and exploratory study, it is to be performed on the basis of historical and bibliographical research and using the inductive method. Keywords: Mandatory rules of international law (jus cogens). Right of the sources. Public International Law.

Introdução A ideia de uma igualdade absoluta entre os Estados, por se basear em uma concepção equivocada de soberania, possibilitou que por mais de trezentos anos (século

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XVII a XXI), as normas internacionais de proteção aos seres humanos vinculassem apenas os Estados que a ela tivessem anuído.

A soberania, no sistema da monarquia absoluta, se reduzia à ideia de que o monarca pode tudo o que deseja. Com razão, portanto, podiam dizer os reis “O Estado sou eu”, pois, efetivamente, o modelo político do absolutismo, assentado no direito divino, conduzia à conclusão de que a pessoa do monarca encarna o Estado, e um e outro se confundem a ponto de constituírem única entidade. [...] As relações internacionais consistiam, assim, em relações entre soberanos e os tratados eram concluídos por estes ou em seu nome. Sendo absoluta a vontade dos monarcas, não poderiam existir nem tratados inconstitucionais, nem regras constitucionais capazes de entrar em contradição com o Direito Internacional Público. Tampouco era cogitada a questão da validade interna dos tratados, pois os reis podiam estabelecer soberanamente a vigência dos atos internacionais que concluíam com monarcas estrangeiros (CACHAPUZ DE MEDERIOS, 1983, p. 24-25).

Essa visão clássica do direito, evidentemente, gerou arbitrariedades, desigualdades econômicas, e, fundamentalmente, incontáveis violações às normas internacionais de direitos humanos.

A personificação do Estado todo-poderoso, inspirada na filosofia do direito de Hegel, teve uma influência nefasta na evolução do Direito Internacional em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Esta corrente doutrinária resistiu com todas as forças ao ideal de emancipação do ser humano da tutela absoluta do Estado, e ao reconhecimento do indivíduo como sujeito do Direito Internacional. A ideia da soberania estatal absoluta (com que se identificou o positivismo jurídico, inelutavelmente subserviente ao poder), que levou à irresponsabilidade e à pretensa onipotência do Estado, não impedindo as sucessivas atrocidades por este cometidas contra os seres humanos, mostrou-se com o passar do tempo inteiramente descabida (CANÇADO TRINDADE, 2006. P. 13).

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As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial além de revelar a falência daquele sistema clássico e permitir o incremento da sociedade internacional com o reconhecimento das Organizações Internacionais e dos indivíduos como os mais novos sujeitos de direito, fez ressurgir, no cenário mundial, algumas discussões acerca da relevância de se estabelecer princípios universais que pudessem restringir o modelo voluntarista-positivista de soberania estatal então vigente.

[...] foi apenas após a Segunda Guerra Mundial — com a ascensão e a decadência do Nazismo na Alemanha — que a doutrina da soberania estatal foi dramaticamente alterada. A doutrina em defesa de uma soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX, em especial em face das consequências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU, em 1948 e, como consequência, passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional that king can do no wrong (CLAUDE e WESTON, 1989 Apud PIOVESAN, 2013. p. 191).

Surgem, nesse contexto, as normas de jus cogens, como um dos traços mais marcantes da evolução do Direito Internacional moderno, limitando a liberdade de pactuação dos Estados.

A liberdade contratual compreende a liberdade de contratar ou não e a liberdade de determinar o conteúdo do contrato. As partes contratantes em qualquer ordem jurídica estão condicionadas, no tocante à determinação do conteúdo do contrato, à própria ordem jurídica e à realidade social. O princípio reconhecido da liberdade contratual é circunscrito pelo "jus cogens" — ordem pública ou leis imperativas — e pelos bons costumes. [...] No estado atual do desenvolvimento da sociedade internacional, o "jus co119

gens" reveste-se de um caráter de excepcionalidade, pois introduz uma limitação à liberdade contratual dos Estados (RODAS, 1974, p. 125-136). Essa mitigação da acepção clássica de soberania decorre, em grande medida, da ideia de universalidade e extensão, características essenciais das normas internacionais de proteção aos seres humanos.

1 Origem

Apesar de sua relevância contemporânea e do fato de há séculos encontrarmos referências esparsas à existência de normas com força cogente, não há consenso doutrinário sobre origem exata do instituto. Para Paulo Borba Casella (2008, p. 723) e Tatyana Scheila Friedrich (2004, p. 25) as normas de jus cogens têm suas raízes no Direito Romano. De acordo com aquele sistema, algumas normas de direito público (jus publicum), por conterem valores essenciais e superiores às demais, não poderiam ser modificadas por convenções particulares (jus privatorum). Já para Manfred Lachs, o surgimento exato do jus cogens seria duvidoso; não apareceu no Direito Romano, mas eram usados pelos especialistas do Pandectas e do Direito Civil. Divergências históricas a parte, o fato é que a emergência das normas imperativas de direito internacional geral no Século XX decorre em grande medida da pressão exercida por países socialistas no final dos anos 60, de firmar a ideia segundo a qual “algumas normas fundamentais, formadas pelo costume, deveriam estar situadas em uma posição hierarquicamente superior às normas convencionais, tornando nulos os tratados com elas contrastantes” (MAZZUOLI, 2011, p. 263-264).

2 Conceito

No Século XX, coube à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 especificar o conceito de jus cogens:

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Artigo 53. Tratado em conflito com norma imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens) [...] Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.

Pouco tempo depois da celebração da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, o conceito de norma cogente foi reafirmado pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986. Ressalte-se que apesar da Convenção de Viena de 1986 não ter atingido o número mínimo de ratificações ou adesões, ainda assim, é reconhecida como fonte do Direito Internacional, tal como ocorreu com a Convenção de 1969, por ser considerada norma declaratória de costume internacional (art. 38, b, do ECIJ).

3 Características

Do conceito estabelecido pelo art. 53 da CVDT/69 sobre normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens) podemos extrair algumas características importantes.

3.1 Imperatividade

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“Norma imperativa” não se confunde com "norma obrigatória", já que por força do princípio pacta sunt servanda todas as normas de direito internacional são, em princípio, obrigatórias, mas apenas algumas poucas são consideradas imperativas aos Estados. Essa nova característica introduzida pelas CVDT que teria visado em um primeiro momento impedir qualquer tipo de derrogação ou modificação aos tratados internacionais das gentes avançou no Século XX para possibilitar a aplicação de mecanismos internacionais de proteção aos seres humanos, independentemente da prévia manifestação de vontade dos Estados.

3.2 Inderrogabilidade

Além de explicitar o conceito de Norma Imperativa de Direito Internacional Geral, como sendo uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, o dispositivo veda, de forma expressa, qualquer tipo de derrogação. Aliás, seria tautológico dizer que norma cogente é a que não admite derrogação (o que equivale a dizer que são imperativas as normas dotadas de carácter imperativo) – (MIRANDA, 2009, p. 108).

3.3 Vedação ao retrocesso

O artigo 53 admite a possibilidade de modificação de uma norma cogente de Direito Internacional, desde que essa alteração ocorra por uma norma ulterior da mesma natureza. Aqui cabe uma observação, já que a ressalva contida no dispositivo deve ser conciliada com uma característica fundamental dos direitos humanos: a vedação ao retrocesso. Com efeito, esta característica tem por escopo impedir a supressão ou redução de conquistas históricas já alcançadas pela sociedade internacional, como é o caso do jus cogens. Desta maneira, “se uma norma posterior revoga ou nulifica uma norma anterior mais benéfica, essa norma posterior é inválida por violar o princípio internacional da vedação do retrocesso (igualmente conhecido como princípio da "proibição de re122

gresso"). Os tratados internacionais de direitos humanos, da mesma forma que as leis internas, também não podem impor restrições que diminuam ou nulifiquem direitos já anteriormente assegurados, tanto no plano interno quanto na própria órbita internacional” (MAZZUOLI, 2014, p. 28-29). Por fim, será nulo, nos termos do art. 53, o tratado que, no momento de sua conclusão, vier a conflitar com uma norma imperativa de Direito Internacional geral.

4 Natureza Jurídica

De acordo com o entendimento firmado pela doutrina e pela jurisprudência internacional, o conceito de jus cogens na atualidade, apesar de explicitado pelas CVDT (1969 e 1986), não se limita ao campo do direito dos tratados.

[...] não se pode negar que seria ilógico reduzir o conceito de jus cogens ao Direito dos Tratados, apesar da previsão contida na CVDT. Se a comunidade internacional como um todo reconhece a existência de valores essenciais que não podem ser derrogados por outros tratados, a não ser que sejam de jus cogens, é claro que esse reconhecimento se espalha para toda e qualquer conduta dos Estados, inclusive os atos unilaterais, a formação de costume etc (RAMOS, 2011, p. 466).

A evolução do conceito de jus cogens hoje transcende o âmbito do direito dos tratados e o direito da responsabilidade internacional dos Estados, de modo a atingir princípios gerais do direito internacional e os próprios alicerces da ordem jurídica internacional. Seu conteúdo é expansivo; não é uma categoria fechada e taxativa. Na sua evolução e por sua própria definição, o jus cogens não tem se limitado ao direito dos tratados; seu domínio tem se ampliado, alcançando também o direito internacional geral, e abarcando todos os atos jurídicos. Manifesta-se na responsabilidade internacional dos Estados e, em última instância, nos fundamentos da ordem jurídica internacional.

Mas, se por um lado há consenso ao se afirmar que as normas imperativas de direito internacional geral transcendem o âmbito do Direito dos Tratados, por outro há grande divergência acerca da sua natureza jurídica.

123

Para uns, o jus cogens, não seria uma nova fonte, mas sim uma "qualidade" atribuída a algumas normas de origem consuetudinária (CASELLA, 2008, p. 724 e RAMOS, 2011, p. 451) ou principiológica (MIRANDA, 2009, p. 105). O fundamento estaria na redação do art. 53 da CVDT, que dispõe ser a “norma imperativa de Direito Internacional geral, uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo”. Já para outros (MAZZUOLI, 2011, p. 173 e FRIEDRICH, 2004, p. 75-76), as normas de jus cogens ingressariam no sistema jurídico internacional, como a mais nova e importante fonte do direito internacional das gentes. De acordo com essa visão, com a qual concordamos, a CVDT/69 ao assegurar que “nenhuma derrogação ou modificação será permitida, salvo por norma ulterior da mesma natureza” e permitir que “uma norma de jus cogens possa anular um tratado violador de normas cogentes”, além de atribuir uma prevalência hierárquica sobre as demais fontes do Direito Internacional proporcionando novas situações nas relações internacionais, demonstrou a existência de uma relação estreita das normas cogentes de direito internacional com o tema das fontes do direito internacional. Assim, se no passado o jus cogens surgiu do reconhecimento de práticas consuetudinárias ou do reconhecimento de princípios gerais do direito, doravante poderá originar-se de qualquer outra fonte de direito internacional, como Princípios Gerais de Direito (v.g., solução pacífica de conflitos, proibição da ameaça ou uso da força, autodeterminação dos povos etc), Costumes Internacionais (v g, normas de direito humanitário aplicadas nos conflitos armados, protegendo pessoas como civis, feridos ou doentes e locais, como hospitais), Textos Convencionais (v.g, Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969), Resoluções ou até mesmo de Recomendações de Organizações Internacionais (v.g., a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948), já que se insere, no cenário do atual, como a mais importante fonte do direito internacional.

4.1 Fontes Tradicionais do Direito Internacional Público

Com efeito, o que se busca no estudo das fontes é compreender o modo pelo qual o direito se manifesta. A investigação histórica revela que desde o surgimento do direito internacional público no Século XVII até os dias atuais, o rol das fontes sofreram profundas alterações, sobretudo, após o reconhecimento dos novos sujeitos de DIP no Século XX.

124

Na atualidade, a doutrina reconhece como rol Autêntico das Fontes do Direito Internacional o contido no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (ECIJ) ou International Court of Justice (ICJ). Este instrumento relacionou então os tratados, os costumes e os princípios gerais do direito. Fez referência à jurisprudência e à doutrina como meios auxiliares na determinação das regras jurídicas, e facultou, sob certas condições, o emprego da equidade (REZEK, 2013. p. 38).



Artigo 38 — 1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: a) as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c) os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d) sob ressalva da disposição do art. 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito. 2. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono (essa expressão é a equidade e já foi perguntado em prova), se as partes com isto concordarem (perceba a redação do dispositivo, a equidade só poderá ser aplicada se as partes concordarem).

Tratado Internacional pode ser definido como o acordo jurídico formal celebrado, em regra, por Estados e Organizações Internacionais e que tem por escopo produzir efeitos no âmbito internacional (MARQUES, 2014, p. 21). Costume Jurídico Internacional, por sua vez, consiste em uma prática reiterada com convicção de obrigatoriedade. Por derradeiro, os Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturas subsequentes. Embora a doutrina e a jurisprudência sejam mencionadas pelo art. 38 do ECIJ, não consideradas, tecnicamente, fontes de direito internacional, mas sim meios auxilia-

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res de interpretação e aplicação das normas internacionais, tendo em vista não criam direitos, cumpre-lhes apenas o mister de interpretá-los. É importante ressaltar que o ECIJ estabelece um elenco meramente exemplificativo, isso porque a doutrina e a jurisprudência internacional reconhecem a existência de outros instrumentos.

Há exemplos marcantes ressaltando o fato de que a enumeração de "fontes" do Direito Internacional contida no artigo 38 do Estatuto da CIJ, conforme já indicado, não é, como jamais foi ou poderia ser, exaustiva. Assim, no caso da Barcelona Traction (Bélgica versus Espanha, Segunda Fase, 1970), a CIJ baseou-se em uma miscelânea de jurisprudência arbitral decisões prévias da própria Corte, tratados bilaterais e multilaterais, e princípios gerais de direito interno para demonstrar que a Bélgica não tinha standing para proteger a Companhia Barcelona Traction; e anos antes, no caso Nottebohm (Liechtenstein versus Guatemala, 1955), a CIJ foi encontrar a evidência do Direito Internacional costumeiro em decisões arbitrais, decisões de tribunais internos em casos de nacionalidade, doutrina, um dispositivo de seu próprio Estatuto, uma série de tratados bilaterais do século XIX (não mais em vigor) entre os Estados Unidos e outros Estados, uma convenção panamericana de 1906, e um tratado de codificação de 1930 (CANÇADO TRINDADE, 2006, p.35). Assim, apesar de não constarem da relação do art. 38 do ECIJ também são reconhecidas como fonte de direito internacional os Atos Unilaterais dos Estados, às Resoluções emanadas de Organizações Internacionais e, fundamentalmente, as Normas de Jus Cogens. Por Ato Unilateral entende-se a manifestação inequívoca de vontade dos Estados com o objetivo de produzir efeitos jurídicos, como, v. g., o reconhecimento; as promessas e as estipulações em favor de terceiros. Essa nova fonte teria sido reconhecida pela Corte Permanente de Justiça Internacional no julgamento do caso do “Estatuto Jurídico da Groenlândia Oriental”, conhecido, ainda, como o caso da declaração Ihlen, de 1933, em que o reino da Noruega estava juridicamente obrigado, ante a Dinamarca, por uma declaração oral de seu ministro das relações exteriores ao embaixador dinamarquês, registrada em notas — e não negada ou discutida, ademais, pelo próprio Sr. Ihlen ou por seu governo (REZEK, 2013. p.  172); e posteriormente pela Corte Internacional de Justiça em, 20 de dezembro de 1974, na sentença do Nuclear Tests Case entre Austrália e Nova Zelândia contra a França (Nuclear Tests Case" - ICJ Reports 1974, p. 267268). 126

Resoluções emanadas de Organizações Internacionais, por sua vez, são decisões emitidas por esses entes, na condição de Sujeito de Direito Internacional Público, como, v. g., Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Poder-se-ia debitar dessa fonte no ECIJ, à circunstância de que o rol foi originalmente lavrado em 1920, quando apenas começava a era das organizações internacionais, e copiado sem maior ânimo de aperfeiçoamento ou atualização — em 1945 (REZEK, 2013, p. 174). Por derradeiro, é importante deixar consignado que, diferentemente do que fora estabelecido pela Convenção de Haia, de 1907, não há que se falar em hierarquia no rol das fontes de direito elencadas pelo ECIJ, razão pela qual poderíamos dizer que, em tese, um tratado poderia revogar um costume internacional, da mesma forma que o costume internacional poderia revogar Tratado.

4.2 Jus Cogens como a principal Fonte de Direito Internacional

Os tratados, os costumes e os princípios gerais de direito internacional não encerram o rol das fontes estabelecido pelo Estatuto da Corte Internacional de Justiça de 1920. As novas fontes de direito internacional, como os atos unilaterais dos Estados, as decisões das Organizações Internacionais e, sobretudo, as normas de jus cogens surgem em um momento posterior, como um desdobramento lógico do processo de desenvolvimento da matéria. Dentro de uma linha cronológica, a internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história do direito; surge a partir do pósguerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo (PIOVESAN, 2013. p. 190). Visando quebrar o velho paradigma de direito internacional, as CVDT de 1969 e 1986 passam então a contar com um núcleo duro de normas imperativas e inderrogáveis, denominadas de jus cogens, que se opõe ao antigo modelo voluntarista, composto por regras emanadas da livre manifestação de vontade dos Estados e que caracterizou a estrutura do direito internacional por muitos anos (MAZZUOLI, 2010, p. 152).

[...] em parecer de 1951, no caso das Reservas à Convenção contra o Genocídio, a CIJ ressaltara que os princípios humanitários subjacentes àquela Convenção eram reconhecidamente "obrigatórios aos Estados, mesmo na ausência de qualquer obrigação con127

vencional" (parecer de 28 de maio de 1951, ICJ reports (1951) p. 23) – (TRINDADE, 2006, p. 50).

Dentro desse contexto, as normas imperativas de direito internacional geral, surgem como a mais importante fonte do direito das gentes, na medida em que gera novas situações nas relações internacionais, sendo que a consequência mais imediata de seu estabelecimento é a anulação de toda norma que lhe for incompatível (FRIEDRICH, 2004, p. 70).

5. Conclusão

Durante muito tempo o modelo voluntarista-positivista de direito internacional condicionou a aplicação de suas normas à prévia manifestação de vontade dos Estados. No Século XX, com a elaboração do ECIJ, a doutrina e os Tribunais Internacionais passaram a reconhecer a existência de um rol Autêntico e não hierarquizado de Fontes do direito internacional. Porém não podemos olvidar que a ideia de um direito natural antecedente a própria existência do Estado, entendido como sujeito primário de direito internacional, baseia-se na idealização de princípios e valores que se inserem na ordem jurídica em um patamar superior. Esse modelo, aprimorado ao longo dos séculos, preconiza a existência de um direito atemporal, universal e imutável, diferindo-se do modelo propugnado pelo juspositivismo, que encontra barreiras de tempo e de espaço. Ao entendermos o direito natural, temos a percepção exata do valor universal dos direitos humanos, bem como a necessidade de garantia da sua proteção e validade, em todos os sentidos. Foi dentro dessa perspectiva de universalidade que a doutrina afastou o velho dogma da doutrina voluntarista do direito internacional para enfatizar a relação direta do jus cogens com as normas de direito natural. Mas foi apenas a partir de 1969, quando a CVDT estabeleceu no seu bojo um núcleo duro composto por normas cogentes, insuscetíveis de qualquer modificação ou 128

derrogação, que se rompeu, em definitivo, com aquele antigo paradigma de normas não hierarquizadas. Esse instrumento consolida a relação intrínseca entre o direito natural e as normas de jus cogens, já que insere as normas imperativas na ordem jurídica internacional como um poderoso instrumento limitador da manifestação de vontade dos Estados. O jus cogens passa então a ser a considerado a maior ordem existente no sistema jurídico internacional afastando, por consequência, qualquer possibilidade de antinomia com as demais fontes de direito (tratados comuns, costumes, princípios gerais de direito internacional, atos unilaterais dos Estados e resoluções emanadas de Organizações Internacionais). Doravante, nos casos de conflitos entre Tratados Internacionais contendo normas de jus cogens, com Textos Convencionais comuns, como destaca Mazzuoli (MAZZUOLI, 2010, p. 153), não será mais possível a utilização dos critérios da especialidade e cronológico, como forma de solução de conflitos, admitir-se-á somente à solução hierárquica, em favor das normas cogentes. Ad exemplum, será perfeitamente válido um acordo celebrado entre Estados de um bloco econômico com o escopo de fomentar suas economias; porém, haverá flagrante violação às normas de jus cogens, se esses mesmos Estados acordarem em bombardear navios de refugiados, com o objetivo de evitar o ingresso de imigrantes ilegais em seus territórios. Depreende-se, portanto, que as normas imperativas de direito internacional geral, ou simplesmente normas de jus cogens, ao resgatarem elementos do antigo direito natural, reforçam a mensagem de um direito universal e superior, acarretando, por consequência, profundas transformações na estrutura do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Consolidam-se no Século XX, como um núcleo duro das CVDT de 1969 e 1986 e atingem no Século XXI, o patamar hierárquico mais alto no campo das fontes do direito internacional, razão pela qual não mais se admite a sua derrogação ou modificação por qualquer outra fonte de direito, salvo por outra norma da mesma natureza, e ainda assim, em observância ao princípio da vedação ao retrocesso, desde que seja para acrescentar direitos.

6. Referências Bibliográficas

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1. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antonio Paulo. O Poder Legislativo e os Tratados Internacionais. Rio Grande do Sul: LPM, 1983. 2. CANÇADO TRINDADE. Antonio Augusto. A humanização do Direito Internacional. Ed. Del Rey. 2006. 3. CLAUDE, Richard Pierre; WESTON. Burns H. (eds.). Human rights in the world community: issues and action. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1989. 4. CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do Direito Internacional Pós-Moderno. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2008. 5. FINKELSTEIN, Claudio. Hierarquia das Normas no Direito Internacional: Jus Cogens e Metaconstitucionalismo. Ed. Saraiva. São Paulo. 2013. 6. FRIEDRICH, Tatyana Scheila. As Normas Imperativas de Direito Internacional Público - Jus Cogens. Editora Forum. 2004. 7. MARQUES, Miguel Ângelo. O Congresso Nacional e a Denúncia de Tratados Internacionais (Dissertação de Mestrado apresentada na faculdade de direito da PUC/SP em 2014). Disponível na internet em “http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=17415”. 2014. 8. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Ed. Revista dos Tribunais. 5ª Edição. 2010. 9. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. São Paulo. Ed. Método. 2014. 10. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos Tratados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 11. MIRANDA, Jorge. Curso de Direito Internacional Público. 4ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense. 2009. 12. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª. Ed. São Paulo. Saraiva. 2013. 13. RAMOS, André de Carvalho. In: SALIBA, Aziz Tuffi (Org.). Direito dos Tratados: Comentários à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969). Belo Horizonte: Arraes, 2011, P. 445-467. 14. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

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15. RODAS, João Grandino. Jus cogens em direito internacional. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 69, n. 2, p. 125-136, 1974. 16. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacional. Ed. Del Rey. 2006.

Miguel Ângelo Marques

Doutorando e Mestre em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP . Professor de Direito Internacional na Universidade Paulista (UNIP).

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

O direito ao meio ambiente na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos Environmental law in the European Human Rights Court decisions Gabriela Rodrigues Saab Riva Resumo A preocupação em proteger os direitos humanos foi afirmada pela comunidade internacional décadas antes do surgimento dos movimentos pela proteção ambiental. Essa disparidade é facilmente percebida quando se analisa o estágio de evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com suas cortes regionais e coercibilidade de seus documentos jurídicos, enquanto o Direito Internacional do Meio Ambiente se vê permeado por documentos não coercitivos e carente de uma jurisdição internacional. Contudo, jurisdições pioneiras e criativas como o Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos passaram a trabalhar as questões ambientais sob a égide dos direitos humanos, reafirmando o que muitos militantes ambientais já há tempos defendiam: proteção ambiental e direitos humanos têm uma relação intrínseca e complementar e, portanto, devem caminhar lado a lado. Nessa esteira, o presente artigo se propõe a analisar como se dão as discussões sobre o direito ao meio ambiente no seio da Corte Europeia, assim como evoluções e involuções em sua jurisprudência. Palavras-chave  : direitos humanos, meio ambiente, Corte Europeia de Direitos Humanos, jurisprudência, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional do Meio Ambiente, Lopez-Ostra, Guerra.

Abstract The need to protect human rights has arrived decades before international community awareness of environment protection. This time shift is easily noticed when analyzing the evolution of International Human Rights Law, its regional jurisdictions and the its bidding documents, in comparison with International Environmental Law and its lack of a jurisdiction and enforceability. 132

Nevertheless, some pioneer and creative jurisdictions, as the European Court of Human Rights, have been dealing with environment issues within the extent of human rights protection, in line with environment activists and its claims that environment and human rights are complementary and intrinsically related, reason why they should evolve together. This paper aims to analyze how the right to environment has been recognized at European Court of Human Rights, as well as its jurisprudence evolutions and detours.

Keywords: human rights, environment, European Court of Human Rights, jurisprudence, International Human Rights Law, International Environmental Law, Lopez-Ostra, Guerra.

1. Introdução A afirmação internacional dos direitos humanos data do fim dos anos 1940. Chocada com os horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional decidiu, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que a proteção dos direitos humanos não poderia ficar a cargo do domínio reservado dos Estados. Já a afirmação da necessidade de se preservar o meio ambiente data dos anos 1970, impulsionada pela conscientização de que a natureza não constitui um reservatório infinito à disposição do homem e de sua ânsia pelo desenvolvimento. No âmbito jurídico, esse movimento ecológico levou à realização de conferências internacionais, das quais se originam diversas declarações que compõem o que chamamos de Direito Internacional do Meio Ambiente. Formado essencialmente por documentos de fraca coercibilidade (soft law) ou por documentos de aplicação e alcance específicos, desse ramo do direito não se originou nenhuma corte internacional que pudesse controlar a efetividade das normas e aplicar as devidas sanções. Face à ausência de uma jurisdição internacional dedicada exclusivamente a questões ambientais, os indivíduos ou grupo de indivíduos afetados por tais problemas passaram a postular perante outras jurisdições, especialmente aquelas que têm como escopo a proteção dos direitos humanos. Inicialmente, os sistemas de proteção de direitos humanos, neles incluso o sistema europeu, não se pronunciavam sobre violações ambientais, nem mesmo sobre aquelas que colocavam em risco a vida e a integridade dos indivíduos. Aos poucos, a intrínseca relação entre direitos humanos e proteção ambiental foi se tornando evidente, até o ponto em que as cortes de direitos humanos passaram a examinar demandas ligadas a 133

problemas ambientais, tanto aqueles causados diretamente pelos Estados como aqueles causados por terceiros. Esse fenômeno pode ser ilustrado por um crescente número de casos que tiveram curso perante a Corte Europeia de Direitos Humanos (doravante, “Corte”, “Corte Europeia” ou “CEDH”), alguns dos quais, em meio a considerações teóricas, serão analisados no presente artigo. Dessa forma, após uma rápida introdução ao sistema europeu de proteção dos direitos humanos, serão analisados os dois primeiros julgados da Corte Europeia que discutem questões ambientais (Caso Lopez-Ostra e Caso Guerra). Em seguida, serão trabalhadas evoluções e involuções posteriores

2. O sistema europeu de proteção dos direitos humanos

Dentre os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, o sistema europeu é, sem dúvida, o mais consolidado, exercendo influência inclusive sobre os sistemas interamericano e africano. Com origem no período pós-Segunda Guerra, seu objetivo principal consistia em evitar violações de direitos humanos e assegurar a paz e a segurança na região. O documento que marca seu nascimento é a Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950 (doravante, “Convenção Europeia”), a qual entrou em vigor em 1953 e conta, atualmente, com 47 Estados membros. A concretização dessa jurisdição foi revolucionária para a época, especialmente porque, pela primeira vez na história, Estados soberanos aceitaram obrigações juridicamente vinculantes relacionadas aos direitos humanos e concordaram em se submeter à jurisdição de uma corte internacional. Quanto ao seu conteúdo, a Convenção Europeia trata quase que exclusivamente dos direitos civis e políticos, também chamados de direitos de primeira geração, uma vez que, à época, o Conselho da Europa era composto essencialmente por países representativos de uma tendência mais liberal no tocante à política de direitos humanos, sendo, portanto, mais inclinados ao reconhecimento desses direitos. Vale ressaltar que os direitos de segunda geração, como o direito à saúde, somente foram incorporados ao sistema europeu por meio da Carta Social Europeia de 1961, e sua aplicação, até os dias atuais, não é garantida pela Corte Europeia, mas sim pelo Comitê Europeu de Direitos Sociais, um órgão “quase-judicial” que sofre constantes crí134

ticas por somente aceitar demandas coletivas, bem como por ser composto por especialistas independentes ao invés de juízes. Se nem ao menos os direitos de segunda geração foram consagrados pela paradigmática Convenção Europeia, o que dizer então dos direitos de terceira geração como o direito ao meio ambiente sadio? Inicialmente, esse direito não foi incluído no rol dos direitos humanos protegidos pela Convenção Europeia. Contudo, a utilização, pela Corte Europeia, do método da interpretação evolutiva mudou esse cenário e possibilitou a análise de demandas relacionadas à degradação ambiental. Por meio dessa técnica, a Corte permite que a Convenção Europeia permaneça adequada para lidar com questões da atualidade, sem que haja necessidade da complexa e demorada elaboração de emendas. Em outras palavras, a interpretação evolutiva da Corte têm como função impedir que o sistema se torne obsoleto, assim como permitir que a Convenção Europeia possa ser aplicada à luz dos acontecimentos atuais. Essa é exatamente a dinâmica na qual nos concentraremos neste artigo, afim de explicar a maneira pela qual a Corte Europeia analisa conjuntamente a proteção ambiental e a proteção dos direitos humanos.

2.1. A proteção ambiental na Corte Europeia de proteção dos direitos humanos

Inicialmente, a Corte Europeia contava com o auxílio de uma comissão na seleção das demandas a serem analisadas, até que o Protocolo n. 11 de 1998 aboliu esse órgão, permitindo o acesso direto dos indivíduos à Corte. Desde sua criação, a Comissão recebeu diversas reclamações relativas a questões ambientais, as quais, segundo os requerentes, davam ensejo a violações dos direitos humanos previstos na Convenção Europeia. Porém, a Comissão se recusava sistematicamente a admitir tais demandas, seja por não reconhecer o nexo entre a proteção do meio ambiente e a violação dos direitos humanos, seja por considerar que essas questões seriam de apreciação exclusiva do Estado, ou, ainda, por entender que a preservação da natureza não poderia ser reivindicada com base na Convenção Europeia. Em decorrência dos movimentos de conscientização ambiental, Comissão e Corte europeias passaram a reconhecer, aos poucos, essa interligação entre direitos humanos e meio ambiente e a afirmar que, caso não fosse dedicada devida atenção aos problemas ambientais, as próprias proposições firmadas na Convenção dificilmente seriam plenamente alcançadas.

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Trataremos a seguir dos casos Lopez Ostra vs. Espanha (9 de dezembro de 1994) (doravante, “caso Lopez-Ostra”) e Guerra e outros vs. Itália (19 de fevereiro de 1998) (doravante, “caso Guerra”), nos quais se reconheceu, pioneiramente, a responsabilidade do Estado por danos ao meio ambiente passíveis de prejudicar o gozo dos direitos humanos. Na sequência, procederemos a uma breve análise de casos em que a Corte estabeleceu requisitos mais rígidos de violação à Convenção Europeia. Finalmente, discorrermos sobre as evoluções recentes na jurisprudência ambiental da CEDH.

2.1.1. O caso Lopez-Ostra

O verdadeiro marco inicial da jurisprudência ambiental na Corte Europeia foi o caso Lopez Ostra vs. Espanha, de 1994. Residente da cidade de Lorca na Espanha, a família Lopez Ostra encaminhou sua demanda à Comissão, queixando-se de que, na região em que habitava – um polo industrial de couro –, uma das fábricas dedicada ao tratamento dos restos líquidos e sólidos da produção teria ocasionado diversos problemas de saúde na população ao emitir gases tóxicos, fumaça e ruídos excessivos. Após ver sua demanda negada em todas as instâncias da justiça espanhola, a Sra. Lopez Ostra apresentou o caso à Comissão Europeia. A Comissão Europeia admitiu a demanda com base no artigo 8º, que prevê o direito à vida privada e familiar, e reconheceu o nexo causal entre os vazamentos da indústria e a doença da filha da requerente. A Corte Europeia, ao seu turno, também considerou admissível a demanda com base no mesmo artigo 8º e definiu que, em casos como esse, nos quais os danos ambientais são classificados como graves (em inglês, “severe”), a demanda poderá ser aceita e o Estado poderá ser condenado mesmo quando não se prove o nexo de causalidade específico entre a doença do requerente e a degradação ambiental, bastando apenas que seja provada a diminuição da capacidade do requerente de gozar de sua vida privada e familiar. Interessante notar que, ao decidir dessa forma, a Corte destacou a importância do meio ambiente para a sociedade em geral. No caso, verifica-se claramente que a Corte realizou uma “interpretação evolutiva” da linguagem do artigo 8º ao reconhecer que a poluição ambiental grave pode representar uma intromissão na vida do indivíduo, afetando seu bem-estar e privando-o de gozar efetivamente de sua vida privada e familiar. Esse tipo de interpretação, muito utilizada pela Corte Europeia em diversas situações, é objeto de discussões polêmicas.

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Discute-se até que ponto a Corte, órgão responsável pela interpretação das regras estabelecidas na Convenção Europeia, poderia ampliar o escopo de proteção de um dispositivo. Especialmente no caso da proteção ambiental, faz-se mister lembrar que a inclusão do “direito ao meio ambiente limpo e sadio” foi objeto de recomendações e até mesmo de projeto de emenda à Convenção Europeia por parte da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Contudo, essas proposições foram expressamente negadas pelo Comitê de Ministros, o qual se posicionou contrariamente à inclusão desse direito no rol da normativa europeia de direitos humanos. Mesmo assim, a Corte decidiu continuar a tratar questões ambientais via proteção de outros direitos humanos, reafirmando a relevância da interpretação evolutiva para o desenvolvimento de sua jurisprudência. É de se notar que a própria Corte defende que os documentos de proteção de direitos humanos devem ser interpretados à luz das condições atuais da sociedade, para que acompanhem as evoluções sociais e mantenham-se como “instrumentos vivos” da normativa internacional. Nesse sentido, a interpretação evolutiva, dentre outras ferramentas, parece colaborar com a própria evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao permitir que dispositivos elaborados na década de 50 possam servir de base para a afirmação de novas obrigações na busca da efetivação dos direitos humanos. Adicionalmente à discussão sobre a interpretação evolutiva, convém, ainda, mencionar o posicionamento da Corte quanto ao artigo 8º no sentido de que os Estados têm o dever de zelar pela proteção à vida privada e familiar de seus cidadãos, mesmo que, para tanto, sejam obrigados a adotar medidas para impedir ou reprimir ações de terceiros. Essa é uma das consequências da chamada “eficácia horizontal das normas de direitos humanos”, segundo a qual os direitos humanos vinculam também as ações dos particulares. Assim, nos casos em que violações de direitos humanos por particulares não forem devidamente evitadas ou reprimidas pelo Estado, a Corte Europeia tende a responsabilizar o Estado por omissão do seu dever de garantir os direitos humanos. Especificamente quanto aos limites dos direitos dos demandantes no caso Lopez-Ostra, tendo em vista que o direito à vida privada e familiar não é um direito absoluto, a Corte aplicou, como o faz frequentemente, o “princípio da proporcionalidade”, afirmando que se deve sempre verificar o equilíbrio entre direitos do indivíduo e interesses da comunidade. Apesar de considerar que o Estado se beneficia de uma “margem de apreciação” ao realizar esse balanço de interesses, a Corte entendeu que a Espanha não conseguiu provar um verdadeiro interesse público, nem mesmo benefícios das atividades da indústria para a comunidade, que justificasse a limitação dos direitos das vítimas. A decisão nesse caso abriu o caminho para que outras demandas sobre danos ao meio ambiente fossem aceitas tanto pela Comissão quanto pela Corte. 137

2.1.2. O caso Guerra

No caso Guerra e outros vs. Itália de 1998, uma petição em nome de 40 moradores da região da Manfredônia, na Itália, liderados pela Sra. Anna Maria Guerra, foi encaminhada à Comissão Europeia. Esses cidadãos e suas famílias viviam perto de uma grande fábrica de produtos químicos e de fertilizantes, a Enichem Agricoltura Factory, a qual já havia sido classificada como de “alta periculosidade” por Decreto Presidencial em razão da emissão de grande quantidade de gás inflamável e de diversos outros componentes químicos prejudiciais ao meio ambiente e à saúde humana. Em determinada ocasião, um acidente na referida fábrica levou 150 pessoas a procurarem hospitais da região com sintomas de envenenamento por arsênico. Após buscarem sem sucesso reparação perante a jurisdição nacional, os demandantes levaram o caso à Comissão, a qual recebeu a demanda e considerou que a Itália teria violado o artigo 10 sobre a liberdade de expressão – na modalidade direito à informação – ao deixar de recolher e disseminar informações necessárias sobre: (i) questões relativas à proteção do meio ambiente; (ii) riscos que os moradores corriam ao habitar a região em questão; e (iii) medidas a serem tomadas em caso de acidente ambiental. No âmbito da Corte, porém, os requerentes optaram por mudar a fundamentação apresentada perante a Comissão, alegando que o artigo 8º sobre o respeito à vida privada e familiar teria sido violado pela Itália. A Corte, reforçando seu entendimento no caso Lopez-Ostra, confirmou a violação ao artigo 8º e considerou que a Itália não cumpriu sua obrigação de assegurar o direito dos requerentes de gozar de sua vida privada e familiar. Ademais, a Corte ressaltou o fato de que a hospitalização de 150 pessoas por envenenamento de arsênico em 1976 se deu realmente em decorrência direta das emissões tóxicas, o que ensejou, de maneira evidente, à violação dos direitos dos requerentes à vida privada e familiar. A Corte esclareceu, ainda, que as autoridades públicas têm a obrigação não apenas de se abster de interferir na privacidade individual e na vida familiar (obrigação negativa), evitando causar diretamente danos ao meio ambiente, mas também de assegurar o respeito pela vida individual e familiar do indivíduo nos casos em que houver risco de danos ambientais que possam prejudicar a efetividade dos direitos humanos (obrigação positiva). Mais especificamente sobre o fato de as autoridades italianas terem guardado segredo sobre os riscos que corriam os habitantes da Manfredônia, a Corte, por meio de sua Grande Câmara, apesar de entender que o artigo 10 sobre a liberdade de expressão não enseja obrigações positivas ao Estado no sentido de coletar e dissemi138

nar informações de proprio motu, entendeu que o Estado tem a obrigação de permitir o “acesso à informação ambiental” que já esteja disponível.

2.1.3. A delimitação da jurisprudência ambiental da Corte

Tendo em vista a quantidade significativa de acidentes ambientais e problemas de poluição originários da atividade industrial nos países europeus, o precedente aberto pelos casos Lopez-Ostra e Guerra poderia, de fato, ensejar o aumento exponencial de demandas de fundo ambiental a serem decididas pela Corte. Acredita-se que, por esse motivo, a Corte tenha decidido estabelecer critérios mais rígidos de admissibilidade e de confirmação de violação ao artigo 8º da Convenção Europeia. O caso Hatton e outros vs. Reino Unido (doravante, “caso Hatton”) de 2001 trouxe à Corte a discussão, já debatida em outros casos, sobre a excessiva poluição sonora proveniente do aeroporto de Heathrow, em Londres. Nesse caso, a Câmara afirmou que o Estado goza de uma “certa margem de apreciação” e que a mera referência ao desenvolvimento econômico da comunidade não justifica violação aos direitos dos demandantes. Nessa esteira, a decisão da Câmara enfatizou a falta de estudos, por parte do Estado britânico, sobre a prevenção e as consequências dessas atividades para o sono dos habitantes da região, mesmo após a exposição do problema em casos anteriores perante a Corte Europeia, além da falta de avaliações sobre a verdadeira importância econômica do funcionamento noturno do aeroporto para a sociedade londrina. Contudo, o caso foi levado à Grande Câmara pelo governo britânico sob o argumento de que a Câmara teria aniquilado qualquer grau de margem de apreciação reservada aos Estados nas situações em que é necessário equilibrar diversos fatores e interesses divergentes. Após analisar o caso, a Grande Câmara entendeu que não existe, sob os auspícios da Convenção Europeia, um “direito ao meio ambiente saudável e isento de ruídos” e que o artigo 8º somente incide nos casos em que indivíduos sejam seriamente afetados pelos ruídos ou por qualquer outro tipo de poluição. Decidiu, ainda, que, no caso Hatton, a “ampla margem de apreciação” do Estado deveria prevalecer, voltando atrás na decisão da Câmara e reafirmando o caráter subsidiário da jurisdição da Corte. Essa decisão da Grande Câmara não foi adotada por unanimidade. As opiniões dissidentes foram enfáticas ao argumentar que a “interpretação evolutiva” da Corte já apontava para a existência de um direito humano ao meio ambiente sadio, e que, por esse motivo, a decisão da Grande Câmara representaria um retrocesso na jurisprudência ambiental da Corte.

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Apesar de controversa, essa decisão da Grande Câmara no caso Hatton estabeleceu alguns critérios posteriormente utilizados pela Corte em demandas ambientais fundadas no artigo 8º, a saber: (i) o indivíduo deve ser direta e seriamente afetado pelo dano ambiental; (ii) a proteção ambiental é apenas um dos elementos a serem considerados quando do sopesamento entre interesses da comunidade e interesses individuais; (iii) o Estado se beneficia de uma ampla margem de apreciação, pois as autoridades nacionais estão melhor posicionadas para realizarem esse “balanço de interesses”. Seguindo o caminho em direção à delimitação de sua jurisprudência em matéria ambiental, no caso Kyrtatos vs. Grécia de 2003, em que uma família requereu a condenação da Grécia por não proteger uma área de pântano conhecida por ser local de procriação de pássaros selvagens, a Corte deixou claro que algumas ações prejudiciais ao meio ambiente não interferem diretamente na vida privada e familiar e, por esse motivo, não afetam o bem-estar dos cidadãos. É de se notar, não sem certa surpresa, o trecho em que a Corte considera que sua decisão poderia ter sido diferente se, ao invés do pântano, o habitat em perigo fosse uma floresta, pois os prejuízos diretos ao bem-estar dos indivíduos seriam mais facilmente provados. Como era de se esperar, alguns juízes discordaram veementemente da decisão por não pactuarem dos critérios de diferenciação entre os habitats em discussão. Em 2005, os critérios estabelecidos no caso Hatton foram reafirmados no caso Fadeyeva vs. Rússia, que versou sobre a poluição proveniente de uma indústria de aço responsável por 95% das emissões poluentes da cidade russa de Cherepovets. Após confirmar a admissibilidade com base no artigo 8º, a Corte realizou o teste de proporcionalidade e condenou o Estado russo por não ter realizado um sopesamento razoável entre os interesses econômicos e desenvolvimentistas da região e os direitos dos demandantes. Seguindo a linha de fundamentação da decisão de Grande Câmara no caso Hatton, a Corte entendeu que, para que se possa suscitar a violação ao artigo 8º, deve ficar provada não apenas a interferência do dano ambiental na vida privada do demandante, mas também um certo nível de gravidade dessa interferência.

2.1.4. Evoluções recentes

Outros aspectos da evolução da jurisprudência ambiental da Corte fundada no artigo 8º da Convenção Europeia mostram-se relevantes para a compreensão do tema. Exemplo disso é o entendimento afirmado no caso Guerra, segundo o qual o “direito à informação ambiental” pode ser extraído das obrigações decorrentes do artigo 8º, o qual foi confirmado e ampliado pela Corte. Nos casos Taskin vs. Turquia de 2004, e Gia140

comelli vs. Itália de 2006, além do direito à informação ambiental, outras exigências procedimentais que vinculam o Estado foram extraídas do artigo 8º, entre elas a necessidade de que as decisões oficiais sobre questões ambientais sejam tomadas de “forma justa” e com o “devido respeito” à vida privada e familiar. Com isso, a Corte defendeu a obrigação dos Estados de realizarem estudos de impacto ambiental e de disponibilizálos à população; além disso, segundo a Corte, quando considerarem que seus interesses não foram devidamente levados em consideração, os indivíduos afetados devem ter o direito de apelar ao judiciário nacional contra tais decisões ou omissões, exercendo a prerrogativa do que se convencionou chamar de “acesso à justiça ambiental”. Por fim, outro caso que contribuiu para a evolução da jurisprudência ambiental da Corte foi o caso Tatar vs. Romênia de 2009 (doravante, “caso Tatar”). Novamente, mesmo não tendo sido provado o nexo de causalidade entre as atividades poluentes de uma fábrica e os danos à saúde dos postulantes, a Romênia foi condenada por não ter realizado estudos prévios, por não ter garantido a participação da população interessada no processo de decisão e por não ter informado a comunidade sobre os efeitos prejudiciais decorrentes dos componentes químicos que foram lançados no meio ambiente durante um acidente em uma mina de ouro. Nessa decisão, a Corte citou expressamente a importância de diversos documentos da normativa internacional ambiental e de princípios ambientais como o “princípio da precaução”, o que ratifica a importância da Corte como um foro de intersecção entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional do meio ambiente. Além disso, a decisão deixou claro que os Estados que tenham inscrito o direito ao meio ambiente sadio em seu ordenamento jurídico, como era o caso da Romênia, têm a obrigação de efetivá-lo. Um último aspecto da decisão no caso Tatar que merece atenção é a conclusão final proferida pela Corte, segundo a qual: as autoridade romenas falharam em suas obrigações de avaliar os riscos das atividades da empresa e de tomar medidas para proteger os direitos dos requerentes relativos à proteção de sua vida privada e familiar, presentes no artigo 8, e, de forma geral, ao direito de gozar de um meio ambiente protegido e sadio.

Não se sabe ao certo se a Corte decidiu fazer menção expressa ao direito a um meio ambiente sadio por considerá-lo implícito no artigo 8º, o que representaria um salto na evolução da jurisprudência ambiental da Corte, ou se somente o fez por referência à Constituição romena, que prevê esse direito no ordenamento jurídico interno. Esperase que futuras decisões em casos correlatos possam esclarecer essa dúvida sobre a 141

existência ou não, no âmbito do sistema europeu de proteção dos direitos humanos, de um direito ao meio ambiente sadio.

3. Considerações finais

A jurisprudência ambiental da Corte Europeia de Direitos Humanos com base no artigo 8º sobre o direito à vida privada e familiar nos fornece um material rico para a compreensão do direito ao meio ambiente derivado das obrigações decorrentes dos direitos humanos. Da análise dessa jurisprudência, algumas conclusões podem ser extraídas. Primeiramente, em razão da não consagração expressa do direito ao meio ambiente sadio na Convenção Europeia e em seus protocolos, a Corte passou a se utilizar da técnica da interpretação evolutiva para admitir o exame de questões relativas à degradação ambiental. De fato, situações que não permeavam a consciência dos elaboradores da Convenção Europeia nos anos 1940 podem, atualmente, dar ensejo a violações de direitos humanos, como é o caso da degradação ambiental. Assim, a utilização da técnica da interpretação evolutiva evita que esse importante documento da normativa internacional se torne obsoleto e deixe de proteger, de forma efetiva, os direitos humanos. Essa ideia de mutabilidade e avanço nos direitos humanos nos remete à afirmação de Hannah Arendt, segundo a qual “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”. Em segundo lugar, mesmo nos casos em que a Corte afirma a incidência de uma ampla margem de apreciação, o que possibilita o exercício do poder discricionário do Estado, esse não está autorizado a agir da forma que bem entender, pois tem a obrigação de proceder a um balanço de interesses justificável e aceitável, sob pena de ser responsabilizado internacionalmente. Ainda sobre a responsabilidade dos Estados, a Corte afirma categoricamente que, além de estarem obrigados a não causar diretamente danos ao meio ambiente que possam prejudicar os direitos dos cidadãos, os Estados têm a obrigação de adotar medidas visando impedir e reprimir ações desse tipo provenientes de particulares. Em terceiro lugar, faz-se mister lembrar que, apesar das evoluções consideráveis no que concerne ao exame das reclamações de cunho ambiental, até o presente momento, a proteção do meio ambiente não constitui um objeto plenamente judicializável no âmbito europeu, pois nem toda degradação ambiental pode ser analisada pela Corte. 142

De fato, é preciso que os danos ambientais atinjam um determinado nível de gravidade e que sejam motivo de interferência na vida privada dos cidadãos. Esse entendimento da Corte corrobora a ideia de uma proteção ambiental de cunho essencialmente antropocêntrico, na qual somente o que se prove danoso ou benéfico ao ser humano merece proteção, e demonstra as limitações da Corte Europeia na garantia de uma verdadeira proteção do meio ambiente per se, condizente com os princípios já firmados no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente. Contudo, se o direito ao meio ambiente sadio ainda não foi concretamente afirmado no âmbito da Corte Europeia, exceção feita à polêmica decisão do caso Tatar, obrigações de cunho procedimental relativas ao meio ambiente já foram incluídas sob a proteção do artigo 8º e estão pacificadas na jurisprudência da Corte, em especial o “direito à informação ambiental” e o “acesso à justiça ambiental”. Dessa forma, a Corte cumpre seu papel de zelar pela proteção dos direitos humanos ao mesmo tempo em que funciona como um foro de discussão sobre a proteção ambiental, ainda que, para isso, as demandas tenham que superar critérios rígidos ligados à gravidade dos danos ambientais e dos prejuízos à vida privada e familiar dos demandantes. Cabe ressaltar, ainda, que, para além do artigo 8º da Convenção Europeia, a Corte também analisa demandas ambientais com base em outros artigos, tais como: o direito à vida (artigo 2º), o direito ao gozo pacífico de suas posses (artigo 1º do I Protocolo à Convenção Europeia), a liberdade de expressão em sua vertente “direito à informação” (artigo 10) e o direito a um processo equitativo (artigo 6). Ademais, o Comitê Europeu de Direitos Sociais, órgão que também compõe o sistema europeu de proteção dos direitos humanos, passou a analisar demandas coletivas quanto à degradação ambiental com base no direito à saúde (artigo 11 da Carta Social Europeia) e a aplicar os princípios extraídos dessas decisões nas recomendações endereçadas aos Estados no âmbito do sistema de verificação de relatórios periódicos. Enfim, essa diversificação nas bases legais da jurisprudência ambiental do sistema europeu de proteção dos direitos humanos merece ser objeto de uma análise mais aprofundada, pois possibilita a análise de demandas cada vez mais variadas, contribuindo para a crescente afirmação da interdependência entre proteção ambiental e efetivação dos direitos humanos. Por fim, faz-se necessário analisar, em uma próxima oportunidade, como a Corte Europeia, considerada um modelo para outras jurisdição internacionais de proteção aos direitos humanos, influencia a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de criar incluir a proteção ambiental no escopo da proteção dos direitos humanos.

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4. Referências bibiográficas

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1979. CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2a. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. FITZMAURICE, Malgosia; MARSHALL, Jill. The Human Right to a Clean EnvironmentPhantom or Reality? The European Court of Human Rights and English Courts Perspective on Balancing Rights in Environmental Cases. Nordic Journal of International Law, v. 76, p. 103-151, 2007. KRAVCHENKO, Svitlana; BONINE, John E. Interpretation of Human Rights for the Protection of the Environment in the European Court of Human Rights. Pacific McGeorge Global Business and Development Law Journal, v. 25, n. 1, p. 245-287, 2012. SHELTON, Dinah. Human Rights and the Environment: Jurisprudence of Human Rights Bodies. Joint UNEP-OHCHR Expert Seminar on Human Rights and the Environment, 14-16 de janeiro de 2002, Genebra: Background Paper No. 2. Disponível em: http://www2.ohchr.org/english/issues/environment/environ/bp2.htm#_ftn34. Acesso em: 30 de setembro de 2013. SHELTON, Dinah. Tatar c. Roumanie: European Court of Human rights decision on protections against environmental harms and on proof of causation and damages. American Journal of International Law, v. 104, n. 2, p. 247-253, 2010. STEINER, Henry. International Human Rights in Context. 3ª. ed., Oxford: Oxford University Press, 2007. VASAK, Karel. The international dimension of human rights. Paris: UNESCO, 1982. SANDS, Philippe. Principles of International Environmental Law. 3ª ed., Cambridge: University College London, 2012.

Casos da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH)

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Caso Arrondelle vs. Reino Unido, Comissão Europeia de Direitos Humanos, (1980)19 DR 186; (1982) 26 DR 5. Caso Fadeyeva vs.Rússia, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 55723/00, de 9 de junho de 2005). Caso Giacomelli vs.Itália, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 59909/00, 2 de novembro de 2006). Caso Guerra e outros vs. Itália, Corte Europeia de Direitos Humanos (116/1996/735/ 932, 19 de fevereiro de 1998). Caso Hatton e outros vs. Reino Unido, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 36022/97, 2 de outubro de 2001). Caso Hatton e outros vs. Reino Unido, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Grande Câmara (no. 36022/97, 8 de julho de 2003). Caso Kyrtatos vs. Grécia, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 41666/98, 22 de maio de 2003). Caso Lopez Ostra vs Espanha, para. 51 (no. 16798/90 [1994] ECHR 46, 9 de dezembro de 1994). Caso Powell e Rayner vs. Reino Unido, Corte Europeia de Direitos Humanos (Series A no. 172, 21 de fevereiro de 1990). Caso Taskin vs. Turquia, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 46117/99, 10 de novembro de 2004). Caso Tatar vs. Romênia, Corte Europeia de Direitos Humanos, Decisão da Câmara (no. 67021/01, 27 de janeiro de 2009). Caso Tyrer vs. Reino Unido, Corte Europeia de Direitos Humanos (ser. A), n 26 (1978).

Gabriela Rodrigues Saab Riva Mestre e doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Mestre em Direitos Humanos pela Université Catholique de Louvain/FUSL/FUNDP (Bélgica). Professora de Direito Internacional Público e Filosofia do Direito na Universidade Paulista (UNIP). 145

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D I R E I T O E S U S T E N T A B I L I D A D E - E D I Ç Ã O N O V E M B R O - 2 015

Uma análise da hermenêutica jurídica na visão de Hans Kelsen Legal hermeneutics according to Hans Kelsen Luiz Carlos Corrêa RESUMO: Esse estudo tem como base a análise da hermenêutica e a interpretação da norma jurídica de Kelsen, e sua função norteadora na interpretação jurídica. Destarte, um dos aspectos mais estudados na teoria geral da norma que versa a respeito da hermenêutica jurídica. Destacamos que seja um do vasto campo do conhecimento jurídico que se refere à interpretação das normas, à sua exata compreensão, tendo em vista a sua aplicação aos casos concretos apresentados na escola exegese. Permeia várias discussões e possibilidades teóricas distintas envolvem a questão da hermenêutica. Elas trazem consigo o próprio modo pelo qual irá se compreender e construir o fenômeno jurídico. Palavras chave: hermenêutica e interpretação; interpretação da norma; Hans Kelsen.

1.

INTRODUÇÃO

Tem-se que, a toda interpretação jurídica deve observar os princípios, dogmas e regras constitucionais, para que haja efetividade na aplicação das normas jurídicas vigentes, ainda mais, para a prevalência da própria Constituição Federal, atendendo-se assim a vários princípios. O momento atual do nosso Direito, denominado de pós-positivismo, é caracterizado pela valorização dos princípios, com sua incorporação, explicita ou implícita, pelas Constituições, bem como o reconhecimento do status de norma jurídica para as regras contidas na carta Magna. O Direito se reaproxima da ética e é consagrada a supremacia dos direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana, do princípio favor debilis, do princípio da solidariedade, da boa-fé, dentre outros mais. Para tal, valendo-se do método bibliográfico, este estudo será desenvolvido de maneira a apresentar a distinção entre interpretação, hermenêutica, reflexividade e ciência. Neste contexto, sempre teremos destaques nos métodos utilizados para a interpre147

tação das normas jurídicas, que, como veremos a seguir, tiveram, como fundamento a ideia da efetividade de Hans Kelsen. 2.

DIFERENCIAÇÃO ENTRE HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇAO

A palavra hermenêutica remete, imediatamente, à mitologia grega. O deus grego Hermes tinha a habilidade de conversar tanto com os deuses quanto com os mortais. Por isso, servia de meio de comunicação entre ambos. Desse mito decorre que a interpretação seja também chamada por hermenêutica. Ainda que seus alicerces teóricos tenham se desenvolvidos com mais vigor a partir do mundo moderno, a hermenêutica é um problema que acompanha o jurista de há muito tempo. Em sociedades antigas, como a hebreia, a grega ou a romana, a interpretação das normas jurídicas confundia-se com os sentidos da religião, da vontade direta dos detentores do poder político, com o misticismo particular de cada povo. No direito romano, alguns contratos só eram considerados válidos caso certos procedimentos simbólicos fossem efetuados, como balançar ramos de videira no alto de montanha a fim de concretizar a mancipatio. Somente se interpretava um contrato como válido a partir de tais procedimentos, muitos deles próximos da magia. Não se podia, ao final das contas, compreender o direito como algo essencialmente distinto do universo mágico, Isso se devia ao fato de que o direito, no mundo antigo, não era fenômeno isolado, com uma operacionalização corria pela mesma confusão. Outros horizontes influenciavam na compreensão direta do que fosse o jurídico e o justo ( MASCARO, 2011, p.155-154). A partir da modernidade, o direito começa a ser consolidado por meio de normas escritas, regulamentos, determinações estatais, e começa a haver uma distância muito grande entre aquele que legislava e aquele que julgava. Em períodos anteriores, com o poder político, econômico e religioso esparramado, as normas eram bastantes ligadas a fatos específicos. Nos tempos modernos, tem início um sistema de unificação e universalização de procedimentos que alcança muitos fatos e fenômenos desconexos. No final da Idade Moderna e no início da Idade Contemporânea, o problema da hermenêutica jurídica impõe-se, então, como um dos mais importantes da nascente teoria geral do direito. Não mais se devia privilegiar a mera opinião do dono do poder e, sim, a determinação da norma jurídica, em si mesma, o jurista não era visto como um poderoso que fazia e desfazia em torno da norma conforme sua vontade, mas, sim, como um servidor da norma, um trabalhador que deveria aplicá-la de acordo com um modelo praticamente mecânico. A interpretação é uma atividade humana voltada a atribuir sentido a algo. Esse algo pode ser muitas coisas: frases, gestos, pinturas, sons, nuvens. No fundo, tudo pode ser interpretado, pois a qualquer coisa podemos atribuir algum sentido. Em ou148

tras palavras, tudo pode ser tomado pelo intérprete como um texto, ou seja, como um objeto interpretável. Se o jornal diz que “a educação é o caminho que o Brasil deve trilhar”, isto é linguagem figurada, mas todos, de modo simples e imediato e honrando o literalismo racional, entendem que “caminho” não é uma rodovia, e que “trilhar” não é com pés físicos literais! Todos entendem que “caminho”, na sentença, significa ação a ser tomada para a salvação do nosso país. Para mim, esta é a interpretação literal racional, literal-óbviaindiscutível dentro do seu contexto. Não há outra interpretação possível. Ninguém precisa entender diferentemente. Semelhantemente, onde Cristo diz “Eu sou o caminho ...”, devemos entender que “caminho”, nesta sentença, significa acesso, maneira que habilita para a salvação pessoal do inferno e para a adoção pelo Pai, através fé bíblica e recebimento bíblico do Cristo da Bíblia. Para mim, esta é a interpretação supostamente literal racional, literal-óbvia-indiscutível dentro do seu contexto. Não há outra possível. Ninguém precisa entender diferentemente. Interpretação alegórica é o oposto do acima. Um alegorista dirá “A palavra `Eu` significa a igreja Fulana, portanto o que Cristo realmente quis dizer é que a igreja Fulana é o único caminho para a salvação; outro alegorista dirá "A expressão `o caminho` é muito radical, devemos interpretá-la como sendo apenas `um dos muitos caminhos possíveis`, portanto o que Cristo realmente quis dizer é que Ele é um dos muitos caminhos possíveis para o céu, e sabemos que outros caminhos igualmente possíveis são as boas obras, a sinceridade, o esforço sincero, o batismo, o budismo, o islamismo, qualquer religião sinceramente seguida, ou até mesmo o ateísmo bondoso.” Com a interpretação alegórica, o interpretador faz a Bíblia ensinar qualquer coisa que ele quiser. Com interpretação alegórica, vai-se à Bíblia para torcê-la de modo a dizer o que o homem quer, é Deus que tem que se dobrar ao homem e não este a Deus. Destaca, o professor Carlos Maximiliano (2000), a Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. Prossegue o professor, as leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.

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A hermenêutica é a parte da ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize, de modo que o seu escopo seja alcançado da melhor maneira. Em uma outra linha, tem-se que hermenêutica é a ciência que estabelece as regras de intepretação e esta é a aplicação de tais regras através da subsunção do fato a norma. Emilio Betti apud Celso Bastos (1999) enquadra a hermenêutica jurídica num contexto de hermenêutica geral, definindo-a: é uma ciência do espírito que engloba o estudo da atividade humana de interpretar. O professor Celso Bastos continua na distinção desses institutos, ressaltando o posicionamento acadêmico de vários doutrinadores pátrios e estrangeiros, aos quais destaca e ao mesmo tempo discorda do Professor Miguel Reale, que desprezando a discussão acadêmica-doutrinária sobre a distinção aqui apresentada, em razão da sua concepção tridimensional do direito ( BASTOS, 1999). Acabando por concluir que: “De fato, a interpretação é essencialmente concreta, reportando-se a uma situação de fato, real ou hipotética. Entretanto, data máxima vênia do eminente jurista hermenêutico pode ser diferençada da interpretação”. Destarte, que em sede dogmática, a hermenêutica tem seu papel bem definido no sentido de que se trata de uma especificação científica no sentido abstrato de estabelecer regras de interpretação, enquanto que a interpretação restringe-se ao campo prático, ou seja, concreto de aplicação dessas regras. O processo metodológico de interpretação iniciou-se através Santo Agostinho, através da obra "Da Doutrina Cristã", buscando uma compreensão das escrituras adotando a metodologia de interpretação literal e alegórica. Durante a idade média, Tomás de Aquino se destacou por tentar interpretar as escrituras com o pensamento de Aristóteles. Seguindo a este período, vem a Reforma protestante, pregando que a Bíblia deveria ser a única fonte da fé, infalível e auto-suficiente, não devendo se utilizar de fontes externas para sua interpretação. No século XIX, com o surgimento do protestantismo liberal, através de Schleiermacher a hermenêutica ingressou na ramo filosófico e nas ciências culturais. Ele propôs um método histórico-crítico para interpretação das escrituras. Schleiermacher achava que a Bíblia era uma fonte histórico-literária e que tinha de ser separada a interpretação gramatical da interpretação técnica. Dilthey, levou a hermenêutica para o campo das atividades filosóficas, segundo ele o texto deveria ser estudado pelo contexto, e que o autor era o instrumento do "espírito da sua época". Graças a Dilthey e Schleiermach a hermenêutica cria uma teoria normativa de interpretação, surgindo uma hermenêutica jurídica clássica. Contrapon150

do-se a este dois filósofos surgiram Heidegger e Gadamer. O primeiro descrevia a hermenêutica como uma filosofia e não uma ciência deveria ser entendida de modo existencial e não metodológico. Este brilhante filósofo que apresentou pela primeira vez a ideia do círculo hermenêutico. São suas as palavras: "Devemos partir de uma pré-compreensão para chegarmos a uma compreensão mais elaborada (interpretação), pois se partíssemos do ´vazio´ não chegaríamos a nada" . A interpretação, como as artes em geral, possui a sua técnica, os meios para chegar aos fins colimados. Foi orientada por princípios e regras que se desenvolveu e aperfeiçoou à medida que envolveu a sociedade e desabrocharam as doutrinas jurídicas. A arte ficou subordinada, em seu desenvolvimento progressivo, a uma ciência geral, o Direito, obediente, por sua vez, aos postulados da Sociologia; e a outra, especial, a Hermenêutica. Esta se aproveita das conclusões da Filosofia Jurídica; com o auxílio delas fixa novos processos de interpretação, enfeixa-os num sistema, e, assim, areja com um sopro de saudável modernismo a arte, rejuvenescendo-a, aperfeiçoando-a, de modo que se conserve à altura cultura profissional, auxiliar prestimosa dos pioneiros da civilização. A interpretação, portanto, consiste em aplicar as regras, que a hermenêutica perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos legais. Quando se fala em hermenêutica ou interpretação advirta-se que elas não se podem restringir tão-somente aos estreitos termos da lei, pois conhecidas são as suas limitações para bem exprimir o direito, o que, aliás, acontece com a generalidade das formas de que o direito se reveste. Desse modo, é ao direito que a lei exprime que se devem endereçar tanto a hermenêutica como a interpretação, num esforço de alcançar aquilo que, por vezes, não logra o legislador manifestar com a necessária clareza e segurança. 3.

A TEORIA DA NORMA JURÍDICA

A teoria da norma jurídica, conforme Hans Kelsen faz uma opção positivista ao desenvolver sua epistemologia, fundamenta-se no pressuposto de que só é possível conhecer as coisas que se dão à nossa sensibilidade, esse conhecimento só é possível através da dialética entre sensibilidade e razão, entre fenômeno e noumenon, e conhecimento é conhecimento científico. Partindo dessa premissa, iremos, identificar a teoria do conhecimento jurídico ao conhecimento científico do Direito, da mesma maneira que a Teoria Pura do Direito à Ciência do Direito. Todavia, a importância de Kelsen para a Filosofia do Direito: a afirmação do Direito como ciência. Infere-se com Aristóteles o conceito de ciência, temos que consiste no “conjunto de verdades relativas a um objeto formal metodologicamente ligados por causas e princípios”. Trata-se, então, de um sistema de conhecimento, que visa à capta-

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ção da essência das coisas, tendo a razão como poder diferenciador e que descreve o observado através de enunciados. O dilema de Kelsen é, portanto, como é possível uma ciência rigorosa do direito. Põe, então, a questão do método. Neste sentido, irá lançar mão de uma dicotomia, dividindo a realidade a fim de que possa ser analisada, estabelecendo um paralelo entre natureza e sociedade, e, por conseguinte, a distinção das ciências em explicativas e normativas. Diz Kelsen, as ciências explicativas são as que tratam do ser, que têm por objeto a realidade como ela é. As suas leis são as leis naturais e suas relações respectivas são de causalidade (A será B), necessárias, compondo elos infinitos. Como salienta o jurista Vicente Ráo, inspirando em Kelsen: “como as normas, consideradas do ponto de vista do fim e do efeito, tendem a dar nascimento a uma certa atitude e como os sujeitos aos quais de dirigem optar entre cumpri-las ou desrespeitá-las, segue-se que as normas devem anteceder os atos que formam o seu conteúdo, ou seja, os atos que lhes servem como fins e que resultam da opção realizada pelos sujeitos” Enfim, a sua finalidade é teórica, voltada para o intelecto, consistindo na contemplação da essência do objeto. Por outro lado, as ciências normativas tratam do dever ser, tendo por objeto a realidade como deve acontecer. As suas leis (proposições jurídicas ) são normas de conduta, sendo as suas relações, pois, de imputação (se A deve ser B), obrigatórias, compondo elos finitos. A sua finalidade é prática, voltada para a análise da ação humana dotada de vontade.

Do exposto, advém que o direito é uma ciência normativa

Destarte, essa concepção não deve levar o intérprete ao equívoco de confundir a validade de uma norma e a eficácia da ideia de uma norma, consoante afirma KELSEN: "A ideia de uma norma como fato psíquico pode tornar-se eficaz apenas no futuro, no sentido de que essa ideia deve preceder temporalmente a conduta em conformidade com a norma, já que a causa deve preceder temporalmente o efeito. Mas a norma também pode se referir à conduta passada. O passado e o futuro são relativos a um determinado momento no tempo" A discussão acerca da validade da norma jurídica traduz um importante questionamento: a pertinência da norma ao ordenamento jurídico. Como leciona Norberto BOBBIO, saber se uma norma jurídica é válida, ou não, não é uma questão ociosa. Se uma norma jurídica é válida significa que é obrigatório conformar-se a ela. E ser obrigatório conformar-se a ela significa geralmente que, se não nos conformarmos, o juiz será por sua vez obrigado a intervir, atribuindo esta ou aquela sanção"

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A problemática da conceituação do que seja norma jurídica remete à análise de várias questões do Direito, como validade, eficácia, conteúdo e estrutura da norma. Tal estudo detalhado e profundo, porém, refoge ao âmbito deste trabalho, cujo objetivo específico é examinar a concepção kelseniana de norma em sua concepção. 3.1 A Norma Objeto da Ciência do Direito Sustenta, Kelsen faz um recorte epistemológico e estabelece a norma como objeto da ciência do direito. Teoria Pura do Direito é a teoria do direito positivo. Eis a pureza metodológica afirmativa do caráter científico do direito. Expurgados os elementos metajurídicos, excluídos conceitos indeterminados e juízos de valor, limita a Jurisprudência à incidência de sua visualização às condições de validade e às relações lógicas entre conceitos de natureza formal. Afirmada, pois, a cientificidade do Direito pela sua intencionalidade, pelo seu método e pelo seu objetivo. A ciência do Direito é uma atividade descritiva, cuja função é a de enunciar as normas jurídicas positivas, através da formulação de proposições jurídicas. A norma jurídica positiva, objeto da ciência jurídica, temos que ela se apresenta como um esquema de interpretação e como um sentido de dever ser. Os fatos realizam-se no tempo e no espaço. Contudo, eles por si mesmos, como fatos da natureza, não têm uma significação jurídica. A norma positiva é que lhes dá uma coloração jurídica, um sentido jurídico, transformando-os em fatos jurídicos (lícitos ou ilícitos). Tomando o exemplo de um homem que se encontre sob a mira de uma arma em um batalhão, temos que o fato por si só não se explica. Tanto pode tratar-se de um homicídio, quanto de uma execução de sentença. A única atitude hábil para solucionar a questão é recorrer ao ordenamento jurídico. Neste sentido, o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico ou antijurídico é o resultado de uma interpretação normativa. Na obra Teoria Geral das Normas de Kelsen, funciona a norma jurídica positiva como um sentido objetivo de dever ser oriundo de um ato de vontade, dirigido à vontade de outrem, isto é, como um mandamento vinculativo da conduta de outrem. O Direito é um sistema de normas que regula a conduta humana. Assim a norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou facultada. Destacamos o dualismo metodológico relativo ao “sein”(ser) e ao “sollen”(dever), ou, seja, na existência do mundo físico,sujeito às leis da causalidade, e do mundo social, sujeito às leis do espirito, as quais, sendo leis de fins, podem ser traduzidas em normas.. Segundo Kelsen, ser e dever ser são dados apreendidos imediatamente pela nossa consciência. A norma é um dever ser e o ato de vontade de que ele constitui o sentido é um ser. A conduta que é e a conduta que dever ser não são idênticas. Da circunstância de algo ser se não segue que algo deva ser, assim como da circunstância de 153

que algo deve ser se não segue que algo seja. Desse modo, de um ser não decorre um dever ser, e de um dever ser não decorre um ser. Um sociólogo afirma que há crime na sociedade, mas o jurista assim não entende. Para este, do fato de que exista crime na sociedade, não decorre que deva existir. Pelo contrário, embora exista crime na sociedade, não deveria existir. Mas, observe-se, o dever ser não é completamente independente de um ser. O estabelecimento de uma norma efetiva-se sob o pressuposto de que seja possível um ser a ela correspondente. A conduta devida na norma e a existente na realidade são coisas diferentes, mas algo que é pode corresponder a um dever ser (substrato modalmente indiferente). Como se verifica, a norma jurídica positiva é um sentido objetivo de dever-ser, que vincula os seus destinatários. Só pode impor uma norma quem está autorizado por outra norma externa e superior, dentro de limites de competência. Caso contrário, tratar-se-á de arbítrio. Também, uma lei fiscal há que se reportar ao Código Tributário Nacional, e, estas, à Constituição Federal. Uma norma procede de outra até chegar à Constituição. Um dever ser decorre sempre de outro dever ser. Indaga-se, então, de onde vem o fundamento de validade de norma constitucional. CONSIDERAÇOES FINAIS No nosso ordenamento jurídico deverá, sempre e necessariamente, sujeitar-se a regras de interpretação jurídica visando a conferir a aplicabilidade da norma legal às relações sociais que lhe deram origem, estender o sentido da norma às relações novas, inéditas ao tempo de sua criação, e temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social . A mudança de pensamento de KELSEN é voz corrente entre os doutrinadores, porém, não é pacífica. Aliás, como a Teoria Geral das Normas somente foi editada após sua morte, torna-se extremamente difícil estabelecer um ponto de vista conclusivo, definitivo, sobre a matéria, vez que qualquer opinião que se formule padecerá da fragilidade de tentar estudar uma obra inacabada. Constituindo a linguagem de Kelsen na estrutura escalonada de ordem jurídica, a expurgar elementos meta-jurídicos desse tipo de conhecimento, o autor vem-nos ensinar com uma obra até mesmo excitante para o seu pesquisador, de modo a nos desafiar a todo instante com a sua radicalidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, Elza Miranda. O Positivismo na Epistemologia Jurídica de Hans Kelsen.

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Belo Horizonte: UFMG, 1978. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 2ª ed. Brasília: UnB, 1992 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. E Ed. Ver. E ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. BOBBIO, Norbeto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,1995 FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurí dica. 7ªed, rev e ampl: Ed Saraiva. 1999 FERRAZ Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do Direito, São Paulo, Atlas, 1980. ____________ .A função social da dogmática jurídica, São Paulo, s.c.p., 1978. KELSEN, Hans. O Problema de Justiça; trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ________. Teoria Geral das Normas; trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986. ________. Teoria Pura do Direito; trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MAGALHÃES Filho, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 2ªed. São Paulo: Atlas, 2011. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19ªed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 2005 RÄO, Vicente. O direito e a vida dos Direitos. 5. ed. Anotada e atualizada por Sandoval, Ovídio Rocha Barros – São Paulo: RT, 1999

Luiz Carlos Corrêa Doutor em Direito pela Fadisp/SP, Mestre em Ciências da Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo- USP-EESC (2006), especialista pela Faculdade São Luis em Direito Educacional e Estatuto da Criança e Adolescente, Graduado em Ciências So155

ciais (Direito) pela Universidade de Ribeirão Preto-UNAERP (1998). Atuando como Membro da Comissão Nacional de Avaliadores de Cursos Jurídicos - INEP/MEC - Port. 1.214/2010). Professor Universitário da UNIP e Faculdade FCN/Estácio.

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