Ah, mas que caretice!

Share Embed


Descrição do Produto

Ah, mas que caretice! Rodrigo Bouillet Organizador do Cineclube Tela Brasilis [email protected] Texto escrito para o programa da sessão do Cineclube Tela Brasilis realizada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 31 de maio de 2007. Antecedendo É isso aí, bicho (dir. Carlos Bini, 1971) foi exibido o curta Mutantes (dir. Antonio Carlos Fontoura, 1970). Em seguida foi realizado debate com o diretor Carlos Bini e o produtor Carlos Doady.

O discurso geral sobre a História do Cinema Brasileiro refere-se aos anos 1970, sobretudo seu início, como o período em que se deu o advento da pornochanchada, o momento em que os caciques do cinema novo selaram acordo com o Estado ou ainda a breve ocasião em que se deu a agoniacurtição marginal. A sedimentação de tal visão acaba por acobertar experiências contemporâneas a elas. Uma das mais inusitadas talvez seja a tentativa de se produzir um filme eminentemente hippie no Brasil. O “eminentemente” não é gratuito uma vez que podemos observar ecos da ideologia do movimento tanto na comédia erótica “Essa Gostosa Brincadeira a Dois” (Victor Di Mello, 1974) – com Carlo Mossy e Dilma Lóes abandonando a exploração do trabalho e o conservadorismo da família em uma viagem hedonista pela Bahia – quanto na iconoclastia de “A Ilha dos Prazeres Proibidos” (Carlos Reichenbach, 1977). No entanto, haveria um legítimo representante daqueles anos de pedidos de Paz & Amor ao mundo: “Geração Bendita – É Isso Aí Bicho!”, filme realizado por uma comunidade hippie de Nova Friburgo. De forma mais imediata, duas características do filme se destacam. A primeira é sua face “documental”. Há uma necessidade de registrar o comportamento e os hábitos da comunidade: a meditação orientalista, a comunhão com a natureza através do banho de cachoeira coletivo, as festas, a música, o acampamento, a moda, a confecção e comercialização do artesanato, as decisões coletivas, as drogas, o pacifismo, etc. Desta forma, ao mesmo tempo, temos a preservação e a promoção da ideologia. O segundo elemento é o conservadorismo da sociedade. Está concentrado na figura da mãe da personagem Sônia todo o preconceito sofrido pela comunidade: “São loucos”, ela diz. Assim ela os considerava simplesmente por terem um estilo de vida diferente do seu. De outra forma, está o evangélico a todo o momento tentando a conversão espiritual do grupo. E, operando na última instância de repressão, está o aparato coercitivo policial. Para alívio da mãe, os roubos e assassinatos, segundo ela, irão

acabar. A “caretice” materna é a mesma da Corte que condena o réu injustamente no início do filme. Estado, família e religião – ou o “Vivendus Convencional” - alternam-se para “recuperar” os hippies ao status quo. Porém, podemos perceber que outra questão perpassa todo o filme. É a compreensão da própria inviabilidade do movimento naqueles anos de bode ditatorial. Toda a seqüência inicial sinaliza para isso. “Geração ninguém mais / Geração já passou / SOS / Vai passando a Geração” são versos que se somam à imagem onde estão eletrodomésticos, e até mesmo um vestido de noiva numa fogueira. Mas, não podemos esquecer que a bandeira do movimento lá está a queimar também. É como que um misto de prenúncio do fim e grito de revolta. A ideologia logo seria suplantada pelo capitalismo moralista voraz do yuppie oitentista e, concomitantemente, era preciso se diferenciar do hippismo que tomou conta da moda standard, esvaziando os preceitos do movimento. Seria preciso sair deste planeta, o que acontece literalmente nos planos da decolagem de um foguete espacial. Para a comunidade, esta cisão ocorre com o grupo deixando a cidade. Um final que dá uma reviravolta com o que é apresentado até então pela narrativa. Como dito anteriormente, há passagens “documentais”, o registro do cotidiano. Temos então planos “soltos”, independentes, que fazem um 3x4 bastante peculiar dos membros da comunidade. Parece que todos foram perguntados como queriam ser retratados pelo filme. E assim o foram. Observamos isso, sobretudo, na parte da cadeia. Mas há também muito de curtição com o próprio cinema. Despudoradamente e de forma bastante galhofeira brinca-se com clichês, especialmente as partes mais piegas de filmes românticos. Tal grau de “inocência” contrasta com o final amargo da mulher grávida do hippie que acaba por se casar com um proto-conservador qualquer da cidade. O filho da liberdade com que fora concebido, fora do laço matrimonial, distante da opressão familiar e em comunhão com a natureza acaba por ficar no lar provinciano. Rever o filme mais de trinta anos depois de realizado faz pensar não no projeto que ficou para traz, mas sim em suas possibilidades que ainda permanecem e permeiam a sociedade, muito longe dos modismos. A contracultura veio de mãos dadas com os movimentos da sociedade civil organizada que lentamente solidificam-se no Brasil. O país passa por uma fase de alargamento de suas fronteiras (experimentando a difusão dos meios digitais, de trocas de informação quase que de forma imediata, e

onde a produção artística e intelectual passa a ser entendida como de direito ao acesso de todos), mas que ao mesmo tempo se defronta com escândalos de sua ainda sobrevivente oligarquia política dos ares pesados da exceção. Deixemos de caretice, bicho!

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.