Ainda a Origem das Armas Nacionais

August 17, 2017 | Autor: Luís Granjo | Categoria: HISTORIA GENEALOGIA
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Ainda a origem das Armas Nacionais

…Ainda a origem das Armas Nacionais

-A cruz Azul -O milagre de Ourique -O carbúnculo

As armas dos reis de Portugal, que são por inerência as armas nacionais, sofreram ao longo da sua existência várias modificações, à semelhança de outros reinos. Tal evolução inicia-se na própria fundação da nacionalidade, o que desde logo nos coloca perante uma séria dificuldade, que é o facto da heráldica estar a surgir na Europa precisamente nessa altura. Quando Portugal nasceu não existia heráldica tal como hoje a vemos, organizada e com regras bem definidas, mas sim um conjunto de sinais, que começavam a tomar consciência heráldica, ou seja começavam a revestir-se de uma carga simbólica associada a um indivíduo, a uma família ou a um facto. Por outro lado também não estamos perante armas falantes como acontece relativamente aos reinos de Leão e Castela. D. Afonso Henriques teria usado vários escudos ao longo da sua vida, o que é muito natural para um cavaleiro que passava mais tempo em batalhas do que em qualquer outra actividade. Mas o último escudo que teria usado, eventualmente até o das suas cerimónias fúnebres, ficou guardado no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra até pelo menos finais do séc. XVII, ou inícios do XVIII.1 O tempo foi-o degradando e quando já estava muito fragmentado foi colocado numa caixa em cuja tampa se desenhou a composição que o escudo anteriormente ostentava2. Apesar deste escudo já ter há muito desaparecido, houve pessoas que o viram e deixaram a sua descrição para a posteridade. Devido à sua complexidade, não há uma imediata compreensão do seu significado, até porque a evolução que teve mesmo durante a vida do rei fundador, fez com que nos habituássemos a olhar para o resultado dessa evolução como algo 1

PINOTEAU, Barão Hervé de, Nouvelles Recherches sur les Origines des Armes de Portugal, Actas do 17º Congresso Internacional das Ciências Genealógica e Heráldica, Instituto Português de Heráldica, Lisboa, 1986, p. 421. 2

ABRANTES, Marquês de, D. Luiz Gonzaga de Lencastre e Távora, Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa, Armas e Troféus, V Série-Tomos III e IV, Lisboa, 1983, p. 68

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que surgia pela primeira vez. Isto é, este escudo inicial de carácter proto-heráldico só foi usado pelo primeiro rei; a simbólica nele patente tornou-se identificativa do próprio monarca. Quem olhava para o escudo, via os sinais do rei.3 Essa é muito naturalmente uma característica básica da própria heráldica: o conteúdo do escudo identificar o seu portador. Logo, quando era necessário confirmar a autoridade real na documentação emitida pela chancelaria régia, ou nas moedas que o rei mandava cunhar, o que era prerrogativa do domínio de um senhor relativamente a um território independente, eram utilizados os símbolos que identificavam esse senhor e que normalmente se encontravam no seu escudo. Assim teria acontecido com D. Afonso Henriques, que numa fase posterior modificou e simplificou os símbolos patentes no seu escudo para, por exemplo, validar documentos e cunhar moeda. A necessidade de reproduzir aquilo que seriam os “sinais d´El-Rei“4 em espaços reduzidos como eram os dos selos e moedas tornou necessária essa simplificação, bem como a noção emergente dos correctos ordenamentos heráldicos que ia permitindo separar nos vários elementos do escudo, aquilo que seriam peças heráldicas, sujeitas a regras de ordenação, do que seriam elementos meramente estruturais. Esta seria, de resto, uma evolução natural que aconteceu um pouco por toda a Europa.5 Quando olhamos para o brasão de armas de Portugal e imaginamos a sua evolução, somos tentados a pensar que tudo começou com a composição de “Portugal-Antigo“ : de prata, cinco escudetes de azul besantados do campo, ordenados em cruz, estando os laterais apontados ao centro, e em seguida pensamos: muito bem, tem estética, mas como é que tudo isto apareceu? O que é que significa? Como é óbvio muito se tem dito sobre este assunto, mas será que está definitivamente esclarecida a questão? Vejamos as principais teorias que se têm formado sobre a matéria.

A Cruz Azul 3

LANGHANS, F. P. de Almeida, Heráldica Ciência de Temas Vivos, Gabinete de Heráldica Corporativa, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, Vol. I, Lisboa, 1966, pp. 3-4 4

Expressão utilizada pelo Sr. Dr. Francisco de Simas Alves de Azevedo

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PINOTEAU, Barão Hervé de, Héraldique Capétienne, Éditions Patrice de la Perrière, Paris, 1979, p.3

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Não se consegue provar se teria existido alguma vez uma bandeira com a cruz azul, dita bandeira da fundação, ou um escudo com essa cruz, apesar de não ser descabido pensarmos que possa ter existido; é até muito provável que o conde D. Henrique a tenha adoptado aquando da sua ida à Terra Santa e que nesse caso tenha escolhido um esmalte diferente daquele usado pelos cruzados para se diferenciar. Os cruzados teriam uma cruz vermelha e o conde D. Henrique teria escolhido o azul. No entanto para alguns autores esta é a origem das armas nacionais. A cruz teria sido usada também por D. Afonso Henriques e daí até aos escudetes foi um passo: a cruz seria formada por duas tiras de couro pregadas ao escudo nas pontas e na intersecção das mesmas; devido ao uso nas batalhas as tiras sofriam sucessivos golpes de espada e ao fim de algum tempo só as partes pregadas restariam dando assim origem aos escudetes, e os pregos aos besantes respectivamente.6 Parece-me uma forma pouco digna de um rei se identificar, tanto mais que o seu primo Afonso Raimundes tinha por armas um leão, cuja conotação de vigor, poder e magestade nunca encontraria paralelismo nos restos das tiras que mais denotariam desleixo do que outra coisa. Por outro lado não parece verosímil que o Conquistador usasse um só escudo a ponto de este ficar tão danificado; e se de facto se pretendesse mesmo representar uma cruz, por mais danificado que o escudo ficasse era reparado ou substituído de forma que a cruz estivesse sempre presente e bem visível. Não existem quaisquer provas da sua existência no escudo do primeiro rei, nem tão pouco em selos ou moedas. No entanto o mesmo não acontece relativamente à bandeira. Durante a Idade Média foi comum o uso de estandartes pelos reis e grandes senhores feudais que tinham representações diferentes das que compunham os seus escudos. Existem algumas gravuras que mostram uma bandeira com uma cruz azul, embora não sejam fontes coevas. Há também um relato da conquista de Lisboa onde é referida a “Bandeira da Cruz”, mas não há a certeza se a referência é relativa à representação vexilológica ou ao facto de se invocar um fragmento do Santo Lenho embutido na lança porta-estandarte.7 É relativamente comum nesta época encontrarmos cruzes nos documentos régios; a sua conotação não será necessariamente heráldica, mas sim representativa da Reconquista e do espírito de Cruzada que se mantinha bem vivo em numerosos reinos cristãos.8 A ter existido um escudo com uma cruz azul, este estaria conotado com o conde D. Henrique e não de uma forma directa com os primeiros reis de Portugal. 6

LANGHANS, F. P. de Almeida, op. cit, p. 14

7

ABRANTES, Marquês de, op. cit. P. 62-63 PINOTEAU, Barão Hervé de, op cit. p. 59

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O Milagre de Ourique A Batalha de Ourique é o marco fundamental na gesta de emancipação do Condado Portucalense que desde então se torna no Reino de Portugal. É de esperar que um tal acontecimento adquira uma aura lendária no imaginário colectivo de um povo, e que ao longo dos tempos a sua projecção atinja proporções míticas. Podemos ainda ter algumas dúvidas relativamente ao local onde aconteceu, mas uma coisa temos certeza: Portugal nasceu em Ourique! É a partir daqui que D. Afonso Henriques toma consciência do ponto de não retorno; é aclamado rei, tem o apoio das suas gentes e o caminho aberto para orientar a política de independência do reino de Leão junto da santa Sé. Tradicionalmente ficou a imagem de cinco reis mouros vencidos, de Jesus Cristo a aparecer a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe vitória,9 o que estaria representado nas armas reais: os cinco escudetes representavam os cinco reis mouros, ou também cinco feridas que o rei teria sofrido, ou ainda as cinco chagas de Cristo, e os besantes os trinta dinheiros da traição de judas. Os factos decorrentes da Batalha de Ourique e das suas consequências lendárias, intrinsecamente ligadas à fundação do reino, reforçavam aquilo que estava patente na composição heráldica simplificada da original e que vulgarmente é designada por Portugal-Antigo. Ou seja, Ourique era uma suficiente explicação das armas reais, algo que encaixava na perfeição. Assim se procedeu durante vários séculos.10 Mas não nos podemos esquecer de olhar para as fontes, em vários documentos régios das chancelarias de D. Sancho I e D. Afonso II existem selos com quatro escudetes, com seis, com sete !11….e relativamente aos besantes a discrepância é ainda maior: nove, dez, onze, doze, treze, catorze, dezasseis, enfim até trinta e um besantes.12 Mais uma vez é legítimo pensar que se o número de escudetes estivesse como representação de cinco reis vencidos, ou cinco feridas, ou das cinco chagas de Cristo, então teria havido o cuidado de os representar sempre em número de cinco, o que não aconteceu. Da mesma forma se os besantes significavam os trinta dinheiros, por que é que o seu número variou tanto? Só bastante mais

9

GALVÃO, Duarte, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, INCM, Lisboa, 1995, p. 66

10

LANGHANS, F. P. de Almeida, op. cit. p. 13

11

LIMA, João Paulo de Abreu e, Armas de Portugal Origem Evolução Significado, Inapa, Lisboa, pp. 23 e 47

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Idem, pp. 45 a 49

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tarde os escudetes passaram a estar carregados com cinco besantes em aspa que é a posição que compete às peças que se encontram neste número, o que parece uma adaptação às normas heráldicas e também um facto condicionado pela necessidade de representar a composição em superfícies de espaço reduzido como era o caso já mencionado dos selos de validação e das moedas. Se podiam ser representados dez besantes por escudete para somarem trinta em cada braço da “cruz”, então por que é que aparecem umas vezes onze ou doze e outras vezes quatorze ou quinze? Não faz sentido, Ourique poderia ter justificado as armas nacionais se elas se apresentassem constantes no seu ordenamento e número de peças, o que não aconteceu.13

O Carbúnculo Toda a complexidade até aqui referida das armas originais tem a ver com o ordenamento do escudo de Santa Cruz de Coimbra. Conforme disse inicialmente, na época de D. Afonso Henriques ainda não existia a heráldica que hoje conhecemos, havia sinais de identificação pessoal mas sem as regras devidas. A heráldica como elemento identificativo pessoal e de domínio com características hereditárias começava a surgir nesta altura um pouco por toda a Europa14, mas como todos os sistemas que são uma novidade foi sendo introduzida aos poucos. Assim, muitas das armas que apareceram nesta altura tinham elementos estranhos à heráldica, não eram estilizados, alguns eram sinais confusos, enfim, como não havia regras, como era algo que era visto de forma diferente da que é hoje visto, e que muitas vezes não tinha nenhum significado especial para além de adorno do escudo, era perfeitamente natural misturar elementos de decoração com determinadas partes que constituíam o próprio escudo, como alguns rebordos e contornos que eram por vezes pintados de forma a sobressaírem no conjunto15. É o que se designa por Proto-Heráldica. É nesta situação que se encontra o carbúnculo, elemento material de reforço do escudo; uma espécie de ferragem, que partindo do centro reforça o escudo em cruz, em aspa e em orla, ficando este dividido em oito fatias16. Tal dificultava a

13

MATOS, Armando de, Evolução Histórica das Armas Nacionais Portuguesas, Livraria Fernando Machado, Porto, 1939, p. 44 14

NEUBECKER, Ottfried, Le Grand Livre de l´Héraldique – L´Histoire, l´Art et la Science du Blason, Bordas, Bruxelas, 1995, p. 6 15

JOUBERT, Pierre, Les Lys et les Lions, Les Presses d´Ile-de-France, Pris, 1947, s/p

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NÓBREGA, Artur Vaz Osório da, Compêndio Português de Heráidica de Família, Medialivros, Lisboa, 2003, p.132

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decoração do mesmo com as tais peças pintadas ou aplicadas em madeira ou couro, o que no final resultava necessariamente em algo bizarro e confuso! O escudo de Santa Cruz, segundo as gravuras que chegaram até nós, era um escudo de tipo normando, em forma de amêndoa, com um carbúnculo, sobre o qual estavam dispostos dezassete ou dezanove “escudetes”, cinco em cruz, quatro acantonando os anteriores e os restantes dispostos em orla17. Estou convencido que quando surgiram estas peças não tinham nenhum significado especial. O escudo tinha utilidade defensiva na actividade bélica, e o que estava colocado sobre ele tinha o objectivo de o reforçar. Mais importante é a carga simbólica de que o escudo se reveste, no seu todo, quando se torna o escudo da vitória de Ourique, o escudo da aclamação; a partir desse momento, os símbolos do rei começam a ser considerados como os símbolos do próprio reino. À semelhança do reino de Navarra e do velho costume germânico, teria sido D. Afonso aclamado sobre o escudo? Teria sido “alevantado”, ou “alçado” a rei em cima do escudo?18 Se assim fosse estaria explicada toda a sacralidade inerente ao escudo de Coimbra, o escudo do ritual da aclamação, guardado e venerado pelos seus pares para que servisse de memória à vida do rei que fundou um país, e como dizia no seu epitáfio original: “foi defensor da cruz e protegido pela cruz”. A partir daqui o escudo de Coimbra mantém a sua “alma” enquanto elemento sagrado que confirma o sancionamento divino da essência real, mas as armas do reino passaram já pelo processo de simplificação atrás descrito19, e após tal metamorfose o que sobrou dessa evolução foi a composição liberta de todos os elementos estranhos à heráldica. Aquilo que nos habituamos a designar por “Portugal-Antigo”. Luís Laforga Granjo

17

SOUSA, Manuel de Faria e, Epitome de Las Historias Portuguesas, Madrid, 1628, p. 365

18

MATTOSO, José, D. Afonso Henriques, Círculo de Leitores, Lisboa, 2006, p. 121

19

ABRANTES, Marquês de, op. cit. p. 72

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