Ainda o começo do fim

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Teatro, Teatro Latinoamericano, Pós-Modernidade
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AINDA O COMEÇO DO FIM por Waldísio Araújo

Quadrado (da Companhia Núcleo 2): peça teatral participante da Mostra de Teatro Ademar Guerra, parte do megaevento Festival de Teatro de Curitiba, encenada em 3 de abril de 2014. Um monólogo a três, em que uma das personagens é o próprio diretor, outra é um auxiliar de bastidores e, finalmente, o ator principal representa (no duplo sentido da palavra) um ator cuja Quadrado. Mostra de teatro Ademar Guerra, Festival de autonomia na peça é praticamente Teatro de Curitiba. nenhuma -- exceto, talvez, a de ser manipulado (o que ele representa com maestria). Destituído do pretenso autoconhecimento prometido após a Morte de Deus, o artista contemporâneo torna-se pura animalidade num mundo em que a linguagem fala sozinha e não precisa de comentaristas nem de público, ambos resumidos a meras estatísticas. Para que exercer papel de ator na peça, se o jogo está marcado por regras que não podem ser sequer pensadas ou expressas? "Criação artística"? Ha! ha! ha! Só se for a mesma do pastor da igreja, a do político ou a do Faustão; mas a igreja moderna não é uma eclésia, o público não é uma democracia e o auditório do Domingão é burro. Aliás, a verificabilidade das ideias e o julgamento estético doravante residem na quantidade de cliques no botão "curtir" do Facebook ou na decisão das pesquisas de opinião sobre como deverá acabar a novela das 8... A peça funde atuação corporal de palco com danças e falas animalescas, câmeras de vigilância que acompanham a personagem aos bastidores ou subterrâneos de um camarim que obviamente não está lá, mas talvez dentro dele mesmo, grunhidos de desespero de uma civilização condenada, cenas de violência urbana, pregação religiosa, autoflagelação mental e mutilação física -- todas essas coisas, aliás, complementares entre si e reunidas numa profusão de sons e imagens reais e virtuais em que pesadelo e realidade não se distinguem simplesmente porque não existe "realidade" nenhuma. Foucault e Baudrillard parecem finalmente se reconciliar, mas como últimos anunciadores implícitos do fim do homem. E, como documento comprobatório desses últimos tempos, toda a história da arte de cento e poucos anos para cá desfila num vórtice selvagem. Evocam-se como fundo quadros do construtivista russo Malevich com telas do Windows e da TV e ilusões visuais da Op-Art e Arte Cinética, a ironia antirrealista do hiper-realismo -- e quase em primeiro plano um vaso sanitário de onde se espera a qualquer momento emergir a gargalhada sarcástica de Marcel Duchamp ou o grotesco que sempre

está à espreita por trás de tudo o que chamamos de "belo". Em suma, todas as facetas intermináveis e mais ou menos assumidas da Arte Conceitual. Mas o público mais ingênuo pode ter pistas da gravidade da situação ao deparar-se com cenas estranhamente familiares, como o sorriso idiota da Monalisa, os grafismos de Kankinsky ou os geometrismos já bem assimilados de Piet Mondrian... Mas é toda a história da arte contemporânea que está comentada aqui, sobretudo as peripécias geniais de sua busca insana por liberdade -- a liberdade supostamente humana de encontrar a verdade a todo custo. Afinal, são meras etapas de imersão do mundo não no absurdo de Camus, mas num caos confundido com o Nada puro e, por isso mesmo, destituído do poder criador da ruptura (Garganta, Abismo, Caos) em que, ao contrário da nossa, equilibrou-se a grandeza inimitável da civilização grega. "Progresso" na história da arte? Esqueçam! Isso não existe: nós somos apenas decadência, sempre o fomos ao menos desde as grutas de Lascaux. Mas talvez haja um "depois"; logo, haveria ainda agora uma brecha, uma janela, quem sabe. Mas isto não se vê na peça: afinal, é preciso que haja algo após o fim se quisermos que o Nada não seja absoluto, e não devemos tirar do além do homem o prazer de suprimir os últimos resquícios de ordem imutável. Lamento não ter chegado a tempo de entregar-me à penúltima (e primeira) sessão da peça, pois adoraria repensar, rever, ruminar, grunhir, rugir nesse belo retrato-denúncia de uma civilização agonizante. Parabéns a Jef Telles e aos atores por tão bem terem representado a impossibilidade de se vir a ser autor e ator nos dias que (es)correm... Veja algumas cenas da peça em http://vimeo.com/73208497

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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