Akrasia e Hedonismo no Protágoras de Platão

July 5, 2017 | Autor: Daniel Nascimento | Categoria: Plato, Ancient Philosophy, Akrasia
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Descrição do Produto

Nota preliminar Estes livros são o resultado de um trabalho conjunto das gestões 2011/12 e 2012/3 da ANPOF e contaram com a colaboração dos Coordenadores dos Programas de Pós-Graduação filiados à ANPOF e dos Coordenadores de GTs da ANPOF, responsáveis pela seleção dos trabalhos. Também colaboraram na preparação do material para publicação os pesquisadores André Penteado e Fernando Lopes de Aquino. ANPOF – Gestão 2011/12 Vinicius de Figueiredo (UFPR) Edgar da Rocha Marques (UFRJ) Telma de Souza Birchal (UFMG) Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR) Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC) Darlei Dall’Agnol (UFSC) Daniel Omar Perez (PUC/PR) Marcelo de Carvalho (UNIFESP) ANPOF – Gestão 2013/14 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N. Brito (UNISINOS) Ethel Rocha (UFRJ) Gabriel Pancera (UFMG) Hélder Carvalho (UFPI) Lia Levy (UFRGS) Érico Andrade (UFPE) Delamar V. Dutra (UFSC)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F487

Filosofia antiga e medieval / Organização de Marcelo Carvalho, Vinicius Figueiredo. São Paulo : ANPOF, 2013. 614 p. Bibliografia ISBN 978-85-88072-16-9 1. Filosofia antiga 2. Filosofia medieval 3. Filosofia - História I. Carvalho, Marcelo II. Figueiredo, Vinicius III. Encontro Nacional ANPOF CDD 100

Apresentação

Vinicius de Figueiredo Marcelo Carvalho

A publicação dos Livros da ANPOF resultou da ideia, que pautou o programa da Diretoria da ANPOF em 2011 e 2012, de promover maior divulgação da produção filosófica nacional. Esse intuito, por sua vez, unda-se na convicção de que a comunidade filosófica nacional, que vem passando por um significativo processo de ampliação em todas as regi es do pa s, dese a e merece conhecer-se melhor. O aparecimento da primeira série de Livros da ANPOF unta-se a outras iniciativas nesta direção, como a criação de uma seção voltada para resenhas de livros de filosofia publicados no Brasil ou no e terior que possuam repercussão entre nós, assim como da modernização (ainda em curso) da página da ANPOF, para que ela permaneça cumprindo a contento a unção de divulgar concursos, congressos, trabalhos, livros e atos de relev ncia para a comunidade. Essas iniciativas só serão consolidadas, caso o esp rito que as anima or encampado por mais de uma gestão, além, é claro, do interesse da própria comunidade em conhecer-se melhor. A estreita cooperação entre as duas gest es a de 2011-2012 e a de 2013-2014 az crer que a iniciativa logrará sucesso. Bem rente à consolidação da filosofia no Brasil, em um momento em que ala-se muito em avaliação, o processo de autoconhecimento cumpre unção indispensável: ele é, primeiramente, autoavaliação. Os te tos que o leitor tem em mãos oram o resultado de parte significativa dos trabalhos apresentados no V Encontro Nacional da ANPOF, realizado entre 22 e 26 de outubro de 2013 em Curitiba. Sua seleção oi realizada pelos coordenadores dos Grupos de Trabalho e pelos coordenadores dos Programas Associados a ANPOF. A unção e ercida por eles torna-se, assim, parte do processo de autoconhecimento da comunidade. Apresentação

3

Além desse aspecto, há também outros a serem assinalados nesta apresentação. O ndice dos volumes possibilitará que pesquisadores descubram no trabalho de colegas até então ignorados novos interlocutores, produzindo o resultado esperado de novas interlocuç es, essenciais para a cooperação entre as instituiç es a que pertencem. Também deve-se apontar que essa iniciativa possui um importante sentido de documentação acerca do que estamos azendo em filosofia neste momento. Nesta direção, a consulta dos Livros da ANPOF abre-se para um interessante leque de consideraç es. percept vel a concentração dos trabalhos apresentados nas áreas de Filosofia Moderna e de Filosofia Contempor nea. Caberá à refle ão sobre a tra etória da consolidação da filosofia no Brasil comentar esse en meno, e aminando suas raz es e implicaç es. Como se trata de um processo muito din mico, nada melhor do que a continuidade dessa iniciativa para medir as trans ormaç es que seguramente estão por vir. Cabe, por fim, agradecer ao principal su eito dessa iniciativa isto é, a todos aqueles que, en rentando os desafios de uma publicação aberta como essa, apresentaram o resultado de suas pesquisas e responderam pelo envio dos te tos. Nossa parte é esta: apresentar nossa contribuição para debate, cr tica e interlocução.

4

Apresentação

Filosofia Antiga e Medieval

ADRIANE DA SILVA MACHADO M BBS UFSM A : ................................................................................................................9 AMANDA VIANA DE SOU A (GT Neoplatonismo) M :M E

H

..................................19

ANSELMO TADEU FERREIRA (GT Filosofia na Idade Média) T A A : D M

...............................................25

ANDR LUI BRAGA DA SILVA (GT Platão e o Platonismo) E D O P

.......................................................33

ANDR LUI CRU SOUSA (UFRN) A A .................................................................................................................................................45 ANA ROSA LU (UFF) OF P P (

D

E ,E )............................................................................................61

A. H

BERNARDO VEIGA DE OLIVEIRA ALVES (UFRJ) A T A .......................................................................................69 BIANCA TOSSATO ANDRADE (PUC-RIO) C U O

E

-T

...................................81

CESAR AUGUSTO MATHIAS DE ALENCAR (PPGLM/UFRJ) A -S C .........................................................................89 CONSTAN A BARAHONA (USP) D -A DANIEL LOUREN O (GT Aristóteles) D 3 19 S

P

II ....................................................................99

:A A

A

.............................. 105

DANIEL SIM O NACIMENTO (GT Platão e o Platonismo) A P P .......................................................................... 117

Sumário

5

ED A

L VIA FRAGA DE SOU A (GT Filosofia na Idade Média) D M S A

ELEANDRO ENI (UFSM) A

T

............................. 125

P

.......................... 133

EVANIEL BR S DOS SANTOS (GT História da Filosofia da Natureza) E T A ................................................................... 151 FERNANDO GA ONI (GT Aristóteles) A -

EN I.2 .............................. 175

FERNANDO MARTINS MENDON A (GT Aristóteles) S , A ........................................................................................................................ 183 FERNANDO RODRIGUES MONTES D OCA (GT Filosofia na Idade Média) A E C D H A C ...................................................................................................................... 191 GABRIEL GELLER AVIER (GT Aristóteles) D C A

..................................................................... 205

GILM RIO GUERREIRO DA COSTA (GT Platão e o platonismo) U P S ............................................................................................................. 213 GUILHERME DA COSTA ASSUN O CEC LIO (GT Platão e o platonismo) T H :U A S ................................................................................. 229 GUSTAVO BARRETO VILHENA DE PAIVA (GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga) A H G J D E ............................................................................................. 241 JEANE VANESSA SANTOS SILVA (UFPB) C

.......................... 259

JOS GABRIEL TRINDADE SANTOS (UFPB) E P ...................................................................................................................... 269 JOVELINA MARIA RAMOS DE SOU A (GT Filosofia Antiga) D .................................................................................................................... 277 JULIANA ORTEGOSA AGGIO (UFBA) O A

6

Sumário

......................................................................................... 295

LISIANE S. BLANS (UFSM) A LOUISE A

........................................... 305

ALMSLE (GT Platão e o platonismo) R P ........................................................................................... 315

LUCAS ANGIONI (GT Artistóteles) C A

........................................................................................ 329

LUI MARCOS DA SILVA FILHO (GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga) S ’A D A

............................... 343

MARCELO DA COSTA MACIEL GT História do Ceticismo) P ................................................................................................................................ 349 M. REUS ENGLER (GT Platão e o platonismo) O :S

.............................. 357

MARCIO SOARES (GT Dialética) A

P

MARCOS ROBERTO NUNES COSTA (UFPE) L S A

P

............ 369

....................................................................... 377

MARIA ELI ABETH BUENO DE GODO (GT Filosofia Antiga) P :P A C .......................................................................................... 389 MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA (GT Filosofia na Idade Média) N C ................................................................. 399 MATHEUS BARRETO PA OS DE OLIVEIRA (GT História da Filosofia da Natureza) A T A ................................................................................................................................ 409 MELINE COSTA SOUSA (GT História da Filosofia da Natureza) P D A ........................................................................ 419 NESTOR REINOLDO M LLLER (UFSCAR) O E : F

P

........................................................... 429

PAULO RICARDO MARTINES (GT Filosofia na Idade Média) P , 5-12 ................................................................................................. 439

Sumário

7

PEDRO RODOLFO FERNANDES DA SILVA (PUC-SP) R A H .............................................................................................................................. 449 RAFAEL RODRIGUES GARCIA (USP) OM T .................................................................................................................................. 461 RAPHAEL ILLIG (GT Aristóteles) C E E A ........................................................................................................... 469 RAFAEL ADOLFO (UFSC) O P A

.............................................................................................. 481

RENATA AUGUSTA TH MOTA CARNEIRO (UFC) O R

P

................................. 491

RENATO MATOSO RIBEIRO GOMES BRAND O (GT Platão e o platonismo) P , P .................................................................. 497 RENATO DOS SANTOS BARBOSA (UFRN) A



RICARDO DA COSTA (GT Filosofia na Idade Média) O (1399) B M

E

-

....... 511

........ 519

RODRIGO PINTO DE BRITO (GT Filosofia Helen stica) A ............................................................................................................................................. 533 ROGERIO GIMENES DE CAMPOS (USP) PLAT O E OS ASTROS ENTRE O MITO E A F SICA ........................................................................ 565 VIVIANNE DE CASTILHO MOREIRA (GT Lógica e ontologia) O N

...................................... 579

ERI UISON SIMER CURBANI (GT Platão e o platonismo) AM P E I : L VI VII R .......................................................................................... 593 OLANDA GLORIA GAMBOA MU O (GT tica e Filosofia Pol tica) C I .................................................................................................. 601

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Sumário

Akrasia e Hedonismo no Protágoras de Platão Daniel Simão Nascimento*

* Doutorando, PUC-RJ.

Resumo Segundo a opinião mais comum entre os comentadores, encontramos na obra de Platão mais de uma explicação da akrasia. Em particular, muitos sustentam que o argumento do Protágoras, que explica a incontinência como um erro de cálculo, é abandonado pelo filóso o em suas obras mais maduras. Como prova da superação do argumento que nos é apresentado no Protágoras, tais autores afirmam que esse argumento se baseia numa tese hedonista que será duramente criticada em outros diálogos. Re utando tal acusação, pretendo estabelecer as bases para uma compreensão unitária do pensamento platônico acerca da akrasia. Palavras chave: Platão, a rasia, hedonismo.

A

primeira refle ão filosófica sobre o problema da akrasia, ou incontinência, encontra-se no Protágoras de Platão. Lá, á nos dizia Aristóteles, vemos Sócrates negar tal en meno e afirmar que ninguém age contrariamente ao que é melhor acreditando que o que az é mal, mas apenas por ignor ncia. A negação da akrasía no Protágoras se encontra, assim, estreitamente conectada com o tão criticado intelectualismo socrático1. Além do intelectualismo, no entanto, pesa SEGVIC, 1957, p. 48. Segundo a autora, é poss vel discernir duas ormas principais desta cr tica. A primeira orma consistiria em afirmar que Sócrates subestima a import ncia dos lados emotivo, desiderativo e volitivo da natureza humana, estando preocupado demais com o intelecto. A segunda orma, por outro lado, não acusa Sócrates de subestimar tais lados da natureza humana mas de nos ornecer uma e plicação insuficiente, porque intelectualista’, deles. Em ambas as ormas nos encontramos diante da e pressão de uma grave acusação: os argumentos de endidos por Sócrates parecem ignorar a e ist ncia de en menos que são considerados corriqueiros, estando, portanto, em conflito com a realidade dos atos. 1

Akrasia e Hedonismo no Protágoras de Platão

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sobre o argumento socrático que encontramos no Protágoras uma outra acusação: segundo muitos especialistas, tal argumento seria, em ltima inst ncia, um argumento hedonista. Por hedonismo, compreendo o comprometimento com a afirmação da identidade entre o bem e o prazer. É somente sobre esta segunda acusação que pretendo alar aqui. O en meno que é analisado por Sócrates no Protágoras não é chamado de akrasia, mas sim de ser vencido pelo prazer’ (352b). Segundo Sócrates: A grande maioria dos homens pensa do conhecimento mais ou menos o seguinte: que não é orte, nem capaz de guiar, nem de comandar não cogitam dele nessas conexões, sendo, pelo contrário, de parecer que muitas vezes, embora se a o homem dotado de conhecimento, não é governado por ele, mas por qualquer outra coisa, ora pela cólera, ora pelos prazeres, ora pela dor, algumas vezes pelo amor, e muito requentemente pelo medo, e consideram o conhecimento mais ou menos como um escravo que se deixa arrastar por tudo.2

Sócrates pergunta a Protágoras se ele concorda com a multidão ou se acredita, ao contrário, que o conhecimento se a algo nobre e apto a governar o homem, que quem quer que aprenda o que é bom e o que é mau não pode amais ser orçado a agir contra o que lhe indica o conhecimento, e que a intelig ncia é um remédio suficiente para a humanidade. Protágoras concorda rapidamente com Sócrates, mas o filóso o não se dá por satis eito. Dado que a maioria dos homens não vai escutá-los, o que se az necessário é que ambos, Sócrates e Protágoras, se untem para buscar persuadir o mundo e e plicar o que é essa e peri ncia que os homens chamam ser vencido pelo prazer’, e que eles dão como razão para o ato de não conseguirem azer o que é bom mesmo quando t m o conhecimento necessário para tal. Sócrates se mostra preocupado com um con unto de en menos bastante singular: tratam-se de ações conscientemente empreendidas por um indivíduo e que, de acordo com esse próprio indiv duo, não teriam como fim aquilo que é o seu maior interesse. Isso aconteceria na medida em que ele escolheria, dentre as di erentes possibilidades de ação que lhe são tanto poss veis quanto dispon veis, uma outra que não aquela que lhe seria mais benéfica. O que, segundo a multidão, o levaria a azer tal escolha O ato de ele ser vencido pelo prazer, isso é, pela e pectativa do prazer propiciado por esta outra opção. Como exemplos desse tipo de ação, nos são o erecidos os casos ditos requentes em que os homens se deixam dominar pelos prazeres da comida, da bebida ou do amor, mesmo estando conscientes de que são práticas nocivas (353c). A investigação de Sócrates começa perguntando pela razão que leva a maioria dos homens a chamar as aç es que levam a cabo nesses momentos de nocivas. O filóso o afirma que se perguntasse à multidão se ela acredita que essas coisas são 2 352b-c. Tradução utilizada neste trabalho é de Carlos Alberto Nunes (PLAT O. (2002). Protágoras, Górgias, Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará)

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Daniel Simão Nascimento

ruins por causa do prazer que causam ou pelas outras consequências que trazem, eles afirmariam que elas são ruins por causa de suas outras consequ ncias. O que Sócrates pretende dei ar claro é que quando a multidão chama uma determinada ação de ruim isso é porque, de alguma orma, ela acredita que tal ação contém dores ou malef cios que são maiores que o prazer proporcionado. O mesmo racioc nio, é claro, é aplicado quando se chama algo de bom (354a). Cada opção de conduta poss vel é avaliada como um pacote’ que contém tanto dor quanto prazer, e uma determinada opção é classificada como boa ou má dependendo da proporção entre dor e prazer que ela contém. Se isso é verdade, nos diz Sócrates, então devemos admitir que a multidão persegue o prazer e evita a dor, e que uma ação prazerosa só poderá ser considerada ruim caso resulte em mais dor do que prazer, assim como só será considerada boa se resultar em mais prazer do que dor. Logo em seu primeiro argumento, portanto, Sócrates estabelece que o prazer é bom e a dor ruim, e que a maioria dos homens persegue o prazer como sendo um bem e evita a dor como um mal. E isso a tal ponto que os homens chamam o ato do deleite de mal caso ele os prive de prazeres maiores do que os que possui nele mesmo (354d). Tendo atingido este ponto da argumentação, Sócrates simula uma intervenção por parte da multidão, que estaria se perguntando acerca da utilidade do argumento desenvolvido até o momento. O filóso o, então, lhes assegura que deste ponto dependem todas as nossas conclus es’ (354e), mas que ainda é poss vel voltar atrás, caso eles a multidão ou Protágoras consigam de alguma orma dizer que o bem é di erente do prazer, ou o mal da dor. Como Protágoras se mostra incapaz de di erenciá-los, no entanto, ele é orçado a admitir a identidade entre o bem e o prazer, isto é, a tese hedonista. O movimento através do qual Protágoras é levado a dar seu assentimento à tese proposta por Sócrates ainda é motivo de grande embaraço para os especialistas. Prova disso é o ato de que a controvérsia a respeito de quem seria o porta-voz dessa tese ainda permanece3. Até ho e, alguns comentadores importantes de endem que é o próprio Sócrates, e com ele, talvez, o ovem Platão, quem sustenta a identidade entre o bem e o prazer. Tais autores, no entanto, são orçados a admitir que uma tal postura entra em contradição direta com posições sustentadas por Sócrates em outros diálogos de Platão. A interpretação que pretendemos de ender aqui vai no sentido oposto, se colocando plenamente de acordo com Migliori quando este afirma que o Protágoras e prime posiç es que são estáveis e constitutivas’ do platonismo 4. Para melhor undamentar tal opção, será til analisar alguns argumentos que oram levantados em avor de uma leitura hedonista da argumentação socrática que encontramos no Protágoras. 3 As interpretaç es vão desde a afirmação de que o hedonismo oi uma posição sustentada pelo Sócrates histórico mas não por Platão que ela era a posição também de Platão em sua uventude, mas que mais tarde oi abandonada que nem Platão e nem Sócrates amais a sustentaram, e que ela só é e aminada no Protágoras porque está implícita no ensinamento de Protágoras e Platão desejar demonstrar que mesmo tendo admitido o hedonismo as virtudes são unas e são um tipo de saber (SESONS E, 1963, p. 74) 4 MIGLIORI, 2004, p. 529.

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Em avor de tal interpretação, pode-se apontar para 351c, onde Sócrates pergunta a Protágoras se ele concorda com a multidão que chama algumas coisas prazerosas de más e algumas coisas dolorosas de boas, e se não deveríamos dizer, ao invés, que as coisas são boas na medida em que são prazerosas, e más na medida em que são dolorosas. Protágoras se mostra, de in cio, relutante em aceitar tal afirmação. Fica claro então que a tese hedonista é trazida para o diálogo por Sócrates e que, de in cio, não se pode nem sequer afirmar que ela é partilhada por Protágoras ou pela multidão. Poder-se-ia mesmo dizer que tal tese oi proposta e imposta pelo próprio Sócrates através de um artif cio dialético, e que seu interlocutor a aceita contra sua própria vontade. Essa é a posição de endida em um livro recente, por exemplo, por Julia Annas5. No entanto, se é verdade que a tese hedonista é trazida ao diálogo por Sócrates, o argumento que se segue de 353c até 353e não dei a d vidas de que o hedonismo está sendo analisado como uma crença tanto de Protágoras quanto da multidão. Como nos diz Sesons e, Sócrates traz à tona a opinião que ele pensa estar impl cita na vida da multidão e dos sofistas. Se eles não são capazes de propor e nem agir de acordo com nenhum outra medida do bem que não se a o prazer, então eles devem admitir que o verdadeiro conhecimento dos prazeres e das dores é a chave para uma vida boa e que nenhum homem que sabe realmente que uma determinada ação é a melhor agirá voluntariamente de outra maneira6. Se aceitarmos tal argumento, temos então que o hedonismo é uma crença de Protágoras e da multidão, mas não de Sócrates, o que parece condizente com o personagem que encontramos nos demais diálogos de Platão. Tal imagem, no entanto, pode ser enganadora. Com e eito, se observamos cuidadosamente o argumento desenvolvido por Sócrates é imposs vel não notar o alto grau de permissividade moral que o caracteriza. De ato, não encontramos em parte alguma qualquer re er ncia aos bens da alma, cu a superioridade em relação aos prazeres f sicos é afirmada tantas vezes na obra plat nica. Sócrates se contenta em dar e emplos como azer e erc cios f sicos, dieta, tomar remédios etc. esse traço da argumentação socrática que parece guiar Terence Ir in, em seu comentário mais recente sobre o argumento desenvolvido no Protágoras. Segundo Ir in: Para compreendermos o que Sócrates de ende, devemos considerar afirmações diversas sobre a relação entre o bem e o que é prazeroso: 1. O ser-bom é o prazer, i.e., o ser bom de X consiste essencialmente no prazer de (em seu ser prazeroso). 2. O bem para o homem é a sua elicidade, i.e, o bem em sua vida como um todo. 5 ANNAS, 1999, p. 167-171. importante observar, no entanto, que a autora não de ende a ideia de que Sócrates, ou Platão, de endam seriamente a tese hedonista, mas somente que é razoável in erirmos do que nos é dito no Protágoras que Platão acreditou ser válido ormular e discutir a tese hedonista, e que portanto ele deveria levá-la a sério. Creio, no entanto, que essa interpretação não az justiça ao que encontramos no texto platônico. 6 SESONS E, Op. Cit., p. 77.

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3. A elicidade é alcançada pela predomin ncia do prazer na vida do homem como um todo. 4. X ser bom como um todo = X ser prazeroso = X propiciar mais prazer do que dor como um todo.7

Para o autor, portanto, Sócrates de ende uma teoria hedonista do bem, teoria essa que o autor batiza de hedonismo eudaimon stico . Não é minha intenção azer aqui uma análise detalhada da interpretação de endida por Ir in. Pretendo apenas apontar uma con usão trazida pela quarta afirmação, e que deve ser evitada. Ir in e plica a ltima tese imputada a Sócrates a partir do comprometimento do filóso o com a afirmação, a princ pio bastante contra-intuitiva, de que algumas vezes ter um dente arrancado é algo prazeroso mesmo que cause dores imediatas, pois é um meio para um prazer de duração mais longa. Ora, se isso é tudo que Ir in dese a imputar a Sócrates, então a ormulação da tese oi e cessiva. Se reconhecemos como verdadeira a afirmação de que ser bom como um todo é igual ser prazeroso estamos reconhecendo não somente que algumas vezes algo pode ser prazeroso mesmo causando dores mas que o ato de algo ser prazeroso az dele algo bom como um todo. Isso, no entanto, só é verdade se definirmos previamente que algo só pode ser prazeroso se or prazeroso como um todo, o que parece ugir completamente ao esp rito do te to plat nico. O que Sócrates ressalta é que a escolha do indiv duo é a escolha entre duas opç es que contém tanto prazeres quanto dores, e que portanto o simples ato de uma opção ser prazerosa não é suficiente para que ela se a escolhida. Isso também, vale ressaltar, parece ser algo que Sócrates acredita estar assumido implicitamente pela multidão. O problema da quarta tese tal como é ormulada por Ir in aparece claramente se tomarmos como e emplo o doente que oge do médico por medo da incisão. Sócrates não nega que o procedimento se a doloroso, isto é, que ele cause dor no sueito. O que ele acredita é que, por ter consequ ncias positivas uturas, essa dor não deve ser o nico ator a ser levado em conta na escolha do su eito entre ir ao médico ou ignorar o problema. Da mesma maneira, ele não nega que a entrega aos prazeres da mesa e do se o se a prazerosa mesmo quando ela traz consequ ncias ne astas. Ainda no in cio da discussão, Sócrates dei a claro que ele chama de agradáveis todas as coisas que trazem (metexhonta) ou produzem (poiunta) prazer (351d-e). Seria, portanto, incorreto afirmar que para ele só são prazerosas as coisas que propiciam mais prazer do que dor como um todo. Com e eito, a admissão de que e iste prazer tanto nas boas quanto nas más é de import ncia capital para a explicação socrática da akrasia, uma vez que, ao final da discussão, o filóso o pretenderá ter mostrado que o homem incontinente erra em sua escolha ustamente porque os prazeres imediatos de um determinado curso de ação o uscam os outros prazeres, maiores, que o esperavam mais adiante no caminho que recusou tomar. 7

IR IN, 2007, p. 34.

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Embora tal ponto se a de grande import ncia para a compreensão do argumento socrático, ele não recebeu a devida import ncia por parte de muitos comentadores do diálogo. Para Gosling e Taylor, por e emplo, Sócrates se compromete no m nimo com a afirmação segundo a qual tudo o que é prazeroso é bom8. Hac orth, por outro lado, afirma que Sócrates sustenta uma outra tripla equação, a saber, que o belo = ao bem = ao prazer, que também implica na mesma consequência das teses propostas por Ir in9. Outro comentador para quem o argumento Socrático se baseia na identidade entre o bem e o prazer é Sullivan10. Contra Ir in, mas também contra tais autores, creio ter dito o suficiente para estabelecer que tais crenças não podem ser imputadas a Sócrates. Como dissemos antes, a identidade entre o bem e o prazer é analisada no Protágoras como uma crença da multidão e de Protágoras. Ainda resta, no entanto, a pergunta acerca da import ncia dessa tese para o argumento socrático. Com e eito, poder-se-ia pensar que tal tese é undamental para as conclus es alcançadas pelo filóso o ao final do argumento11. Não creio, no entanto, que isso se a verdade. Com e eito, como á disse Vlastos12, a tese hedonista pode ser desmembrada em duas proposiç es: (a) todo prazer é bom e toda dor é má, (b) todo bem é prazer e todo mal é dor. Sócrates só sustenta a primeira proposição que, aliás, á lhe permite re utar a e plicação o erecida pela multidão. Basta a aceitação da proposição (a) para que o filóso o mostre de que orma é rid cula a idéia de que, sabendo que é melhor do que , alguém escolhe por ter sido derrotado por prazeres. Pois nesse caso, sendo os prazeres bons, o agente teria escolhido a pior opção tendo sido derrotado pelo que é bom. Mesmo que compreendamos derrotado’ no sentido de motivado’, a relação entre a pior opção e o que é bom causa problemas. Tudo se passa como se o agente tivesse dei ado de levar algo em consideração no momento de sua escolha. Além disso, e ainda que em nenhum momento de sua argumentação Sócrates tente separar o bem do prazer, é poss vel afirmar que uma tal separação está pressuposta na maneira como ele conduz sua argumentação. De ato, desde o in cio da e plicação socrática (353c), as aç es são chamadas se a de boas, se a de más, se a de prazerosas, seja de dolorosas. O que é importante notar, no entanto, é que tanto as ações boas quanto as ações más podem trazer prazeres e dores para o mesmo indivíduo, isto é, que pode-se dizer de uma mesma ação, seja ela boa ou má, que ela é prazerosa e dolorosa para o mesmo indivíduo, mas não se pode dizer de uma mesma ação que ela é boa e má para o mesmo indiv duo. Se seguirmos a lógica da GOSLING, J. C. B. E TA LOR, C. C. ., 1982, P. 50. HAC FORTH, R., 1928, p. 42. 10 SULLIVAN, J. P., 1981, p. 19. 11 Tal é a posição de endida por Roslyn eiss em seu livro intitulado The Socratic Paradox and it’s enemies. Para a autora, o filóso o distorce e empobrece deliberadamente sua descrição da personalidade humana, trans ormando as pessoas em simples perseguidores racionais do prazer, com o ob etivo de re utar a alegação eita por Protágoras a respeito de sua capacidade para ensinar a virtude. Tal distorção, nos diz Weiss, acaba por produzir uma versão do paradoxo socrático que é não-socrática ( EISS, 2006, p. 20-24). 12 VLASTOS, 1969, p. 74. 8 9

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argumentação socrática, portanto, não podemos absolutamente afirmar que o prazer e o bem são idênticos. Sendo assim, são a multidão e Protágoras que, por não conseguirem di erenciar o bem do prazer, acabam se comprometendo com a tese hedonista. só quando Protágoras se mostra incapaz de construir um argumento que di erencie o bem do prazer e o mal da dor que Sócrates, então, dá prosseguimento ao seu argumento. Segundo o filóso o, se não há nenhum bem que não termine em prazer ou nenhum mal que não termine em so rimento, então é rid culo afirmar que alguém, apesar de saber que o mal é mal, não deixa de pratica-lo por ser arrastado e sub ugado pelo prazer, ou que o homem, embora conhecendo o bem, não se decide a praticá-lo, por encontrar-se dominado pelo prazer do momento. Tal ficará patente, nos diz Sócrates, se, em vez de empregarmos muitos nomes ao mesmo tempo: agradável e desagradável, o bem e o mal, usarmos somente dois nomes, por tratar-se apenas de duas coisas: primeiro, bom e mal depois, agradável e desagradável.13 Sócrates observa que ao azermos tais substituiç es chegar amos ou a afirmação segundo a qual (a) um homem az o mal, sabendo que é mal, e não tendo que az -lo, porque ele é vencido pelo bem’, ou então, que (b) um homem az o que é mais doloroso, sabendo que é doloroso, porque é vencido pelo prazer’. As duas afirmaç es são consideradas absurdas, pois colocam o bem e o prazer como o motivo que levou o indiv duo a cometer uma ação má, que lhe trará dores. Mais uma vez Protágoras se v compelido a concordar com a argumentação do filóso o. O que pode acontecer é que um su eito calcule mal e acabe escolhendo o maior mal em troca do menor bem. O que se chamou ser vencido pelo prazer’ é, na verdade, um erro de cálculo. A parte final do argumento de Sócrates (356c- 357e) e plica como tal erro é possível14. Creio ter dito o suficiente para, se não resolver, ao menos iluminar de orma adequada o debate sobre o suposto hedonismo do Protágoras. A análise acima empreendida oi orientada pela convicção de que, muito mais importante do que atribuir ou não um rótulo ao diálogo plat nico, era preciso compreender e e por, da orma mais clara poss vel, o argumento que encontramos ali. A partir dessa e posição, creio que um leitor do diálogo poderá decidir por si mesmo se o rótulo lhe é ou não apropriado. Isso desde que, é claro, antes de atribu -lo esse mesmo leitor tenha tomado o cuidado de esclarecer o que ele mesmo está entendendo por 355a-b. Para resumir, direi apenas que segundo o filóso o, o erro acontece quando um dos termos, o prazer ou a dor, parece maior ou menor do que verdadeiramente é. Tal possibilidade parece ser inerente a nossa e peri ncia estética ela pertence à orça da apar ncia (tou phainoménou dunamis). Podemos então compreender o que leva alguém a julgar errado as opções que tem diante de si, pois elas e etivamente não lhe parecem da maneira como realmente são, o orçando a mudar de opinião no momento em que se v con rontado com o seu erro. Um determinado prazer, assim como alguma coisa dolorosa, parece menor quando distante e maior quando pró imo. Aquilo de que precisamos para regular nossas escolhas é, literalmente, uma arte que se a capaz de medir o prazer e a dor: a metretiké. Tal arte tornaria a apar ncia ineficiente ao nos mostrar a verdade, trazendo paz para nossa alma e salvando nossas vidas. 13 14

Akrasia e Hedonismo no Protágoras de Platão

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hedonismo. Se o que o oi dito acima está correto, deste esclarecimento dependerão todos os outros. Segundo a interpretação o erecida aqui, Sócrates passa longe de sustentar a identidade entre o bem e o prazer quando afirma que todo prazer é bom. Tudo o que o filóso o procura ressaltar é que o prazer acarretado por uma ação qualquer não pode servir de e plicação para um u zo negativo a seu respeito. Suponhamos que um conhecido se apro ime de nós mani estando remorso a respeito de alguma coisa. Ao ser perguntado sobre o ocorrido, ele nos diz que na noite anterior oi a um jantar e pediu um prato que estava delicioso. Caso seu relato pare por aí, nos será de ato muito dif cil compreender a razão de seu arrependimento. Nossa perple idade se deve ao ato de que seu relato está, de certa orma, incompleto. Deve haver alguma coisa a respeito das circunst ncias do ocorrido, ou das consequ ncias geradas por ele, que não nos oi mencionada. Afinal, não há nada de errado em comer um prato delicioso.

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