ALBERTI FURUZATO As vozes do fantastico um esutdo de Todorov e Roas

May 31, 2017 | Autor: Adrianna Alberti | Categoria: Literature, Tzvetan Todorov, Fantastic Literature, Literatura Fantástica, David Roas
Share Embed


Descrição do Produto



Adrianna Alberti, Graduanda. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Email: [email protected]
Fábio Dobashi Furuzato, Professor Dr. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Email: [email protected]


As vozes do fantástico: um estudo teórico de Todorov e Roas

Adrianna ALBERTI
Fábio Dobashi FURUZATO

RESUMO: Este trabalho se propõe a apresentar o aporte teórico da pesquisa "Representações do Fantástico: vampiros", realizada com bolsa do programa de Iniciação Científica UEMS/Fundect-MS/CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Fabio Dobashi Furuzato. Valemo-nos das contribuições teóricas de Tzvetan Todorov, presentes em sua obra Introdução à literatura fantástica e da teorização do fantástico de David Roas, em A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. O primeiro desenvolve sua concepção, partindo de uma abordagem mais estruturalista. Com parâmetros rígidos, o fantástico passa a ser delimitado a partir da incerteza e da hesitação que devem permanecer sem resolução. Em contrapartida, Roas estabelece o fantástico a partir da relação conflituosa entre a obra literária e o real, tal qual o leitor o compreende e percebe. Dessa forma, o fantástico será a representação da transgressão do real.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura fantástica; Tzvetan Todorov; David Roas.

Introdução

O presente artigo traz os estudos referentes ao aporte teórico da pesquisa "Representações do Fantástico: vampiros", fomentada com o auxilio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica – PIBIC, pelo Programa de Iniciação Científica UEMS/Fundect-MS/CNPq, sob orientação do professor Dr. Fabio Dobashi Furuzato. A pesquisa se propõe a analisar o campo da literatura denominada literatura fantástica, bem como a análise de como ocorre a representação de um dos personagens mais conhecidos do fantástico: os vampiros.
Neste artigo nos deteremos no aporte teórico e nas revisões bibliográficas da pesquisa inicial. O termo "literatura fantástica" tem servido para designar uma vasta produção ficcional caracterizada pela existência de seres ou elementos sobrenaturais ou pela ocorrência de fenômenos que fogem à explicação científica e racional. Historicamente a narrativa fantástica surge entre os séculos XVIII e XIX, com fortes influências do romantismo e do romantismo gótico, mesclando elementos de terror e horror e principalmente o medo. O conjunto de obras que se apresentam como fantásticos é tão variado que, a rigor, do ponto de vista teórico, grande parte delas não deveria ser compreendida como tal.
Percebemos a dificuldade de definição desse campo teórico a partir de dois pontos: o primeiro diz respeito às ideias desenvolvidas sobre o tema, "há certa flutuação no que se considera como narrativa fantástica no sentido estrito do termo, isto é, uma modalidade literária muito bem definida" (CAMARANI, 2014, p. 7); o segundo ponto diz respeita às classificações das obras como fantásticas, pois, dependendo de sua construção, não implicam necessariamente no aparecimento das principais características apontadas para a existência do fantástico, como o medo, a hesitação quanto à natureza do acontecimento supostamente sobrenatural ou mesmo a inquietação que coloca em xeque nossa própria concepção de realidade.
Foi somente a partir do estudo de Tzvetan Todorov, na década de 1970, que se estabeleceram com mais rigor as diferenças entre os gêneros maravilhoso, fantástico e estranho. Mas ainda hoje ocorre comumente uma generalização do fantástico que acaba abarcando, de forma confusa, gêneros literários distintos como o fabuloso, o terror, o gótico, até mesmo a ficção científica. E talvez o principal fator dessa mistura seja por se conceituar o fantástico como sinônimo daquilo que não é real, reduzindo-o a tudo aquilo que é irreal, ficcional e imaginário. Sabemos que se considerarmos o conceito dessa forma, ele deixa de ter sua funcionalidade, Monegal (1908) cita Jorge Luís Borges: toda literatura é fantástica, com exceção da literatura realista/naturalista, da segunda metade do séxulo XIX.
Assim, para Todorov (2008) o fantástico está estabelecido de forma complexa entre outros gêneros, ou seja, está situado entre o maravilhoso e o estranho. É justamente a posição que a narrativa toma em relação à hesitação que irá definir a qual gênero o texto pertence: se o fenômeno fantástico possui uma justificativa sobrenatural, o texto é maravilhoso; se o fenômeno fantástico possui uma justificativa racional (seja científica, psicológica ou realista), o texto é pertencente ao gênero estranho.
Em A ameaça do fantástico: aproximações teóricas (ROAS, 2014), o professor e crítico espanhol busca "chegar a uma definição do fantástico, conjugando os diversos aspectos tratados em teorias anteriores relevantes sobre o assunto" (CAMARANI, 2014, p.165). Aqui o fantástico abrange uma categoria estética multidisciplinar que engloba mais do que apenas a literatura, incluindo o cinema, o teatro e até videogames.
Para explicar essa categoria estética, o teórico espanhol parte de uma retomada histórica sobre o desenvolvimento do gênero fantástico, que "começa a desenvolver-se em uma época marcada pela ideia de um universo estável ordenado [...] nesse sentido, o fantástico define-se pela transgressão a essas regras" (CAMARANI, 2014, p. 166). Assim, é principalmente a partir da relação de conflito entre a ideia de real existente e do impossível que se dá o fantástico. Esse conflito, longe de ser estanque, desenvolve-se de acordo com a concepção coletiva de real. E, dentre os elementos conhecidos da literatura fantástica, os monstros se destacam por serem, normalmente, os principais personagens na narrativa.
Segundo Roas (2014), em palestra proferida em evento na UERJ, a cujo texto tivemos acesso, o monstro encarna os nossos medos ancestrais (como o medo da morte e do desconhecido), apontando para uma questão importante em relação à literatura fantástica, que nos auxilia a compreender melhor a forma como o ser humano elabora a representação subjetiva de seus medos na literatura. Os monstros são a representação da transgressão e da desordem, sendo antinaturais tanto do ponto de vista físico, como do psicológico. Nesse sentido, eles são paradoxais: impossíveis de ser. Através do discurso fantástico, trazem à luz aquilo que é proibido, que na mente foi reprimido. E tal conteúdo, por estar socialmente estabelecido (em uma dada época histórica, sob o viés do pensamento vigente), explica o motivo da presença e das funções do monstro fantástico se atualizarem (ROAS, 2014).

Dois lados do fantástico

Há vários teóricos que abordam o fantástico no estudo da literatura. Devido a essa profusão de estudos na área, optamos por examinar mais detidamente: A introdução à literatura fantástica, de Todorov, pelo seu caráter mais rigoroso, devido à abordagem tipicamente estruturalista; e os trabalhos teóricos de David Roas, que vêm se destacando por reformular o conceito de fantástico, possibilitando que ele abarque um maior número de narrativas e coincida melhor com a intuição que a comunidade de leitores e escritores tem sobre o gênero.

2.1 O fantástico sistematizado.

Tzvetan Todorov (1939), teórico búlgaro, é referência obrigatória para o tema do fantástico. O seu trabalho Introdução à literatura fantástica é notadamente um marco no estudo sobre literatura fantástica, sendo ainda hoje constantemente citado na produção que aborda o tema.
A partir de base mais estruturalista, o teórico busca definir um gênero literário, sistematizando tanto os procedimentos narrativos quanto os temas. Todorov busca ir além das concepções de estudiosos antecedentes sobre o fantástico. Para ele o fantástico é a hesitação que a narrativa causa, "[...] a ambiguidade se mantém até o fim da aventura: realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? [...] O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural" (TODOROV, 2008, p. 30-31). Quando a obra aponta para uma explicação, fazendo com que o sobrenatural seja ou não aceito como real, o fantástico perde sua característica e a obra deve se considerada pertencente ou ao gênero maravilho ou ao gênero estranho.
Assim, é necessário que, para o texto ser considerado fantástico, corresponda à determinadas condições. Deve conter hesitação, que deve ocorrer em relação ao leitor, para que isso ocorra é necessário que o leitor se identifique com algum personagem. A hesitação é uma condição facultativa dentro da obra.
Há também a condição que diz respeito à interpretação do leitor, o fantástico também implica uma maneira de ser lido, "que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem 'poética', nem 'alegórica'" (TODOROV, 2008, p. 38, grifos do autor). Visto que a leitura poética e alegórica constituem obstáculos para o fantástico, pois se recusamos o caráter representativo da linguagem e consideramos cada frase como pura combinação semântica, ou quando, no caso da alegoria, em que as palavras dizem uma coisa, mas significam outra, o fantástico não poderá aparecer; o fantástico só pode subsistir na ficção.
Para o autor é importante destacar que não se trata apenas da aparição de um elemento sobrenatural na obra. Caso contrário, uma extensa gama de autores poderia ser inclusa como obras da literatura fantástica, como Shakespeare e Homero, por exemplo. O fantástico não pode ser definido como oposto ao real; entra em discussão a questão do fantástico como hesitação, situada entre o real e o imaginário, entre o real e a descrença do fenômeno ocorrido, surge a possibilidade da loucura.
Todorov (2008) define que a literatura fantástica não é um gênero autônomo, mas é situado entre outros gêneros, o maravilhoso e o estranho. Para tanto, o gênero maravilhoso é considerado como aquele em que o sobrenatural é aceito como real, e o estranho tem seu conteúdo sobrenatural, em geral, explicado. É pela forma como o autor dá continuidade à sua história, a obra é rotulada como pertencente a um ou outro gênero.
As obras podem transitar entre o estranho-puro, o fantástico-estranho, o fantástico-puro, o fantástico-maravilhoso e o maravilhoso-puro, sendo que "estes subgêneros compreendem as obras que mantêm por muito tempo a hesitação fantástica, mas terminam enfim no maravilhoso ou no estranho." (TODOROV, 2008, p. 50).
O fantástico-estranho é aquele em que a obra retrata acontecimentos que se apresentam como sobrenaturais e recebem ao final explicação racional, não se excluindo explicações reducionistas como azar, coincidências, influência de entorpecentes, enganos, jogos trocados, ilusão dos sentidos e loucura.
Quando pertencentes ao gênero de estranho-puro, as obras relatam acontecimentos que podem ser explicados pela razão, mas que são de alguma forma fenômenos incríveis, singulares, insólitos e inquietantes, e provocam no leitor uma reação semelhante à familiar. O estranho vai se empenhar na descrição de certas reações, em particular o medo, e está ligado mais com os sentimentos das pessoas do que com um acontecimento que questiona a razão.
O gênero fantástico-maravilhoso diz respeito àquelas obras que contêm acontecimentos fantásticos e têm sua aceitação sobrenatural. Por fim, existe o maravilhoso-puro, no qual os acontecimentos sobrenaturais não causam estranheza nem nos personagens, nem nos leitores.
Para Todorov não se inclui no gênero maravilhoso-puro alguns tipos de relatos que ainda justificam o sobrenatural, como maravilhoso-hiperbólico, no qual fenômenos sobrenaturais são explicados por suas dimensões (em geral exageradas); maravilhoso-exótico, em que os relatos sobrenaturais não são apresentados como tais, pois parte-se da ideia de que o leitor pode não ter estado nos locais descritos na obra, e, sendo assim, não tem motivo para colocar em dúvida as características apresentadas. O maravilhoso-instrumental em que aparecem instrumentos que, no período histórico em que foram escritas as obras, pareciam sobrenaturais, mas na atualidade são perfeitamente possíveis; este último difere-se da ficção científica ou do maravilhoso-científico, em cujas obras, o sobrenatural se explica de maneira racional a partir das leis da ciência, mas o período histórico ainda não reconhece tal explicação.
Acerca do discurso do fantástico, o teórico búlgaro aponta que o fantástico é precedido "por uma série de comparações, de expressões figuradas ou simplesmente idiomáticas, muito correntes na linguagem comum, mas que designam, se forem tomadas ao pé da letra, um acontecimento sobrenatural" (TODOROV, 2008, p. 88). Indica também que a escolha do narrador (narrador-personagem ou narrador representado) facilita a identificação do leitor, e assim, sua imersão ao texto, o autor aponta que o narrador personagem é mais indicado à narrativa fantástica.
Todorov (2008) indica que em relação a composição ou estrutura (fator sintático da obra), para que a obra seja considerada fantástica, deve conter certo nível de gradação na narrativa (inicia-se em um contexto equilibro, ocorrem as primeiras sugestões iniciais dos fenômenos sobrenaturais, para chegar ao ponto em que culmina a história). Ainda indica que deve-se evitar uma segunda leitura de uma obra fantástica, visto que a segunda leitura retiraria a hesitação e o mistério que a obra traz narrado.
Outro aspecto importante na teoria de Todorov (2008) são os temas do fantástico, que o autor classifica em duas categorias distintas e restritivas: os temas do eu, que se caracterizam pelo limite entre matéria e espírito; e os temas do tu, que são designadas pela sexualidade.
Dos temas do eu, o autor destaca a metamorfose que se liga aos seres sobrenaturais, e o poder deles sobre o destino dos homens. Aponta que estes seres estão intimamente ligados ao sonho de poder, e, de uma maneira geral, à causalidade, às coisas que ocorrem a nós de origem desconhecida. Essa causalidade é sujeita a um pandeterminismo, onde tudo, inclusive o acaso, tem uma causa e como tudo possui uma ligação, tudo é altamente significativo.
O autor aponta que o que é comum a ambos os temas (do eu e do tu), é a ruptura com a realidade. Há uma revelação, ou seja, a passagem de um ponto cotidiano ao inexplicável. Em outras palavras: não há diferenciação entre o mundo exterior e o eu (do sujeito), o que ocasiona também a diferenciação da percepção entre o tempo e o espaço.
Dentre os temas do eu, Todorov vai destacar ainda o que chama de temas do olhar, ainda relacionados à estrutura da relação do homem com o mundo. De acordo com o autor, toda aparição sobrenatural é acompanhada de um elemento do domínio do olhar, como os óculos e o espelho, mas não o olhar em si. É por meio da visão indireta que a via para o maravilhoso toma forma.
Para melhor compreensão dos temas que se baseiam na ruptura do limite entre o psíquico e o físico, Todorov discorre sobre os temas do eu, em três analogias. A primeira em relação ao universo da infância, "o acontecimento essencial que provoca a passagem da primeira organização mental à maturidade (através de uma série de estádios intermediários) é a chegada da linguagem" (TODOROV, 2008, p. 154). É a linguagem que altera a percepção de mundo, como a ausência de distinção entre sujeito e objeto e espaço e tempo, por exemplo.
A segunda comparação é sobre os temas do eu e o mundo das drogas: "trata-se de novo de um mundo sem linguagem: a droga se recusa à verbalização. Do mesmo modo ainda, o outro não tem aqui existência autônoma, o eu a ele se identifica, sem concebê-lo como independente." (TODOROV, 2008, p. 155). A terceira comparação é sobre as psicoses, que liga-se a um mundo incerto, sem uma explicação ordenada, "somos levados a nos apoiar em descrições (do mundo psicótico) feitas a partir do universo do homem 'normal'" (TODOROV, 2008, p.155).
O autor afirma que aos temas do tu, aqueles que se ligam à sexualidade, nos textos da literatura fantástica há algo próprio que diz respeito à satisfação de sentimentos e sentidos internos e, especialmente, o desejo sexual. Em geral, esse se liga ao sentido de punição, como algo pecaminoso e errado, a ser punido socialmente. Nas histórias fantásticas, tal desejo é explicitado pela figura do diabo como tentação sensual e regente da libido.
Nesse sentido, há ainda, além desse amor intenso, transformações do desejo. "A maior parte dentre elas não pertence verdadeiramente ao sobrenatural, mas antes, a um 'estranhamento' social." (TODOROV, 2008, p. 140, grifos do autor). Incluem-se aí o incesto; a homossexualidade; relações não monogâmicas (representados em geral como um amor a três), um desejo próximo ao sadismo, que pode alcançar a crueldade. Nem sempre o desejo sexual é aparente. Entre esses pontos encontra-se também o amor pela morte, podendo ou não ser direcionada ao corpo (necrofilia), mas mais comumente representada nas ocasiões de amor com vampiros ou mortos que voltam à vida.
Vale destacar que o autor indica que cada tema pode ser encontrado em vários textos, porém cada obra dará um sentido próprio para eles, ou seja, a obra é que estabelece a relação que fará com o tema, e este com outros temas.
Em resumo Todorov (2008) sistematiza o fantástico, que se fundamenta na hesitação do leitor sobre o fenômeno que rompe com a realidade inserida na obra. O fantástico tem por um lado uma função literária e por outro uma função social, ligada à possibilidade de fala daquilo que é proibido, que vai além da censura institucionalizada, dizendo respeito também da censura da psique dos autores: "a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da lei e com isto mesmo transgredi-la" (TODOROV, 2008, p. 168).
Para o autor o fantástico ainda possui
Uma função pragmática: o sobrenatural emociona, assusta, ou simplesmente mantém em suspense o leitor. Uma função semântica: o sobrenatural constitui sua própria manifestação, é uma autodesignação. Enfim, uma função sintática: ele entra, dissemos, no desenvolvimento da narrativa. (TODOROV, 2008, p. 171).
A narrativa fantástica deve ser caracterizada por possui um início equilibrado, uma situação estável, segue-se então alguma coisa que introduz um desequilíbrio e o personagem após vencer os obstáculos, o equilíbrio (da narrativa) é então restaurado, ainda que não o mesmo do início. Na narrativa fantástica, cada ruptura de equilíbrio é seguida de uma intervenção sobrenatural, ou seja, modifica a situação anterior.
Para completar, o autor ainda discorre sobre a seguinte questão: Em que se transformou a narrativa do sobrenatural no século XX? E responde: as narrativas do século XX são diferentes das narrativas tidas como tradicionais (as que ele busca explicar durante toda sua obra).
Justifica que "em primeiro lugar, o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações indiretas [...]: ele está contido em toda a primeira frase". (TODOROV, 2008, p. 179). Visto que o acontecimento sobrenatural é que dá o curso da narrativa, em geral, as obras passam a tornar a hesitação inútil.
Ao apontar que a literatura fantástica fala dos tabus da sociedade, indica também que com a mudança da mesma e o advento da Psicanálise a literatura fantástica perdeu sua função. "A Psicanálise substituiu (e por isso mesmo tornou inútil) a literatura fantástica. Não se tem a necessidade hoje de recorrer ao diabo para falar de um desejo sexual excessivo, nem aos vampiros para designar atração exercida pelos cadáveres". (TODOROV, 2008, p. 169). Em outras palavras, a Psicanálise desloca os tabus para trata-los de forma indisfarçada. "O psicanalista tem aí uma atitude análoga à do narrador de um conto fantástico afirmando que existe relação causal entre fatos aparentemente independentes" (TODOROV, 2008, p. 170).
Em conclusão, pode-se dizer que Todorov deseja tentar dar conta de formular a teoria como científica, como na linguística, buscando estruturar e tornar objetivas as categorias que definem o fantástico, porém, a literatura está além da semântica. Ainda que grande parte do livro é justificada pela tentativa de Todorov de manter a postura estruturalista, em comparação à teorias anterior sobre o gênero, é menos abstrata.

2.2. O fantástico e os limites do real

David Roas (Barcelona, 1965) é professor de teoria da literatura e literatura comparada em Barcelona, além de escritor do gênero fantástico. O pensamento teórico-crítico de Roas surge em seus estudos sobre o fantástico no contexto da literatura fantástica espanhola, que, segundo o autor, surge a partir do Romantismo. Roas (2014) busca abarcar o funcionamento, o sentido e o efeito do fantástico e concebe a literatura fantástica como fenômeno de expressão humana. Para tanto, parte de quatro conceitos para seu estudo: a realidade, o impossível, o medo e a linguagem.
[...] sobre o fantástico: sua relação necessária com a ideia do real (e, portanto, do possível e do impossível), seus limites (e as formas que habitam aí, como o maravilhoso, o realismo mágico ou o grotesco), seus efeitos emocionais e psicológicos sobre o receptor, e a transgressão que supõe para a linguagem a vontade de expressar o que, por definição, é inexpressável. (ROAS, 2014, p. 8)
Para Roas, o objetivo da literatura fantástica é o de desestabilizar os limites e a validade da forma como se percebe o real. Alvarez (2014), na apresentação do livro A ameaça do fantástico: aproximações teóricas aponta que Roas "propõe revelar a anormalidade inserida na própria ordem do real por meio de imperceptíveis alterações que transformam, de repente, o normal e familiar em inquietante instabilidade" (p. 18).
O fantástico surge para oferecer ao leitor uma forma de experimentar uma inquietação pela falta de sentido, ou seja, experimentar uma percepção do real desprovido de sentido, como Alvarez indica "imerso num mundo povoado de convencionalismos e banalidades, que o levam à constatação de sua insignificância diante do que não consegue explicar satisfatoriamente para si mesmo" (2014, p. 21).
Para Roas (2014), apenas a aparição de um fenômeno ou acontecimento sobrenatural não indica que a obra pertença à literatura fantástica, uma vez que epopeias gregas e narrativas utópicas (entre outras) apresentam esses elementos, mas não são fantásticas. Por outro lado, sem o sobrenatural, o fantástico não pode existir.
O fator considerado como essencial e obrigatório em literatura fantástica é, por outro lado, a transgressão das leis que organizam o mundo real, ou seja, o sobrenatural é aquilo que transgride as leis do real: "a narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, [...] para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real" (ROAS, 2014, p. 31). O fantástico obtém sucesso ao provocar no leitor a incerteza de sua percepção do real e, consequentemente, da percepção de sua própria existência.
Outro fator importante fator que o autor trabalha é a questão do contexto sociocultural para a experiência do fantástico, visto que, se é necessário que o fantástico se contraponha ao real, "toda representação da realidade depende do modelo de mundo de que uma cultura parte" (ROAS, 2014, p. 39), ou seja, o que se conhece por real é que vai definir o efeito de conflito do fantástico.
Roas (2014) aponta que "o discurso fantástico é, como afirma Reis, um discurso em relação intertextual constante com esse outro discurso que é a realidade (entendida como construção cultural)" (p. 46). É justamente esse aspecto descartado por abordagens mais estruturalistas (como a de Todorov). A realidade torna-se um quadro de referência, construído histórica e socialmente, ou seja, um contexto extratextual.
Ora, se para o êxito do fantástico é necessário o conflito entre o real e o sobrenatural, vale destacar que o realismo é essencial para esse gênero, há uma necessidade estrutural disso. O autor aponta que é indispensável que haja uma descrição mais real possível do mundo, "essa exigência de verossimilhança é dupla, uma vez que devemos aceitar – acreditar em – algo que o próprio narrador [nem sempre] reconhece, ou estabelece, como impossível" (ROAS, 2014, p.52). Isso implica, segundo o teórico, que a narrativa fantástica exige técnicas realistas.
É característica do fantástico também a questão da superação dos limites da linguagem. O fenômeno fantástico é impossível de explicar. Cabe ao escritor produzir um ainda não dito, entretanto não lhe cabe alternativa além da linguagem para evotar e impor o fenômeno. "O autor fantástico deve obrigá-las [as palavras] durante certo momento, a produzir um 'ainda não dito', a significar um indesignável" (ROAS, 2014, p. 170).
A concordância estabelecida entre o mundo ficcional e o mundo extratextual se parte no momento em que a linguagem precisa dar conta do fenômeno impossível. A representação ou, melhor dizendo, a tentativa de representação desse fenômeno supõe a crise da ilusão do real [...]. Bozzetto chama de "operadores de confusão" e que intensificam a incerteza diante da percepção do fenômeno impossível: metáforas, sinédoques, comparações, paralelismos, analogias, antíteses, oximoros, neologismos e expressões ambíguas do tipo "pensei ter visto", "acho que vi", "era como se", assim como a utilização reiterada de adjetivos de forte conotação, como "sinistro", "fantasmagórico", "aterrorizante", "incrível" e outros desse mesmo campo semântico. (ROAS, 2014, p. 171-172).
Roas aponta que os recursos e procedimentos linguísticos não são exclusivos do fantástico. Sejam aqueles que se relacionam com a instância narrativa: narração em primeira pessoa, identificação do leitor, vacilação, entre outros; sejam os recursos relacionados com os aspectos sintáticos: temporalidade, ausência de causalidade e finalidade, metalepse metagórica; ou, sejam aqueles vinculados ao nível verbal ou discursivo: "literalização do sentido figurado, adjetivação conotada, nivelação narrativa do natural e do sobrenatural, evasão de termos designativos, antropomorfização da sinédoque" (ROAS, 2014, p. 179). O teórico espanhol completa: "não existe uma linguagem fantástica em si mesma, e sim um modo de usar a linguagem que gera um efeito fantástico" (ROAS, 2014, p. 179).
Ao contrário do que Todorov postula que o fantástico havia perdido sua função social com o advento da Psicanálise, por tratar de temas antes considerados tabus, o fantástico permanece existindo, porém, com uma nova maneira de expressão do gênero. As novas formas de escrever o fantástico condizem com a visão pós-moderna da realidade, em que o real e o mundo são percebidos como indecifráveis, em que não há verdades gerais e não há meio de captar o real. Enquanto a literatura fantástica do século XIX apontava para a possibilidade do mundo real ultrapassar o conhecimento racional, a literatura fantástica do século XX nos traz o mundo coerente como artifício, irreal, um construto social.
Diante disso, não se deve supor que o fantástico seja uma concepção estática. Ao contrário, ele evolui com o a mudança de relações do ser humano com o mundo e, sendo assim, os autores do fantástico contemporâneo buscam "narrativas fantásticas para desmentir os esquemas de interpretação da realidade e do eu" (ROAS, 2014, p. 92), bem como o de mostrar a estranheza do mundo, pois "com o passar do tempo foi se tornando necessário empregar novos recursos, técnicas diferentes, mais sutis para comunicá-los, despertá-los ou reativá-los, e com isso, causar a inquietude do leitor" (ROAS, 2014, p. 150).
Disso caracteriza a não mais necessidade da aparição do sobrenatural, pois a transgressão, mais do que antes, é o objetivo do fantástico (contemporâneo). O fantástico visa a problematização dos limites entre real e irreal, ao contrário da narrativa pós-moderna (e da surrealista) que apaga esses limites, harmonizando o real e o imaginário.
O fantástico revela a complexidade do real e nossa incapacidade de compreendê-lo e explicá-lo, e faz isso por meio da transgressão da ideia (convencional e arbitrária) que o leitor faz da realidade, o que implica uma contínua reflexão sobre as concepções que desenvolvemos para explicar e representar o mundo e o eu. (ROAS, 2014, p 104).
O autor frisa que a diferença entre qualquer gênero e o fantástico é a confrontação da realidade, a transgressão do mundo que compreendemos e acreditamos, mesmo que a percepção que o leitor e a pós-modernidade tenham do real não seja como anteriormente.
A transgressão, a subversão, proposta por toda narrativa fantástica não se limita unicamente à sua dimensão temática, manifestando-se também no nível linguístico, uma vez que, ao propor a descrição de um fenômeno impossível, altera a representação da realidade estabelecida pelo sistema de valores compartilhado pela comunidade. (ROAS, 2014, p. 123).
As regularidades e o que conhecemos do real nos dão a segurança necessária, e eis o objetivo do fantástico, desestabilizá-los. "E diretamente ligado a essa transgressão, a essa ameaça, aparece outro efeito fundamental do fantástico: o medo" (ROAS, 2014, p135, grifo do autor). Essa impressão e seus similares (terror, inquietude, angústia, estranheza, entre outros) são alcançados devido à impressão de ameaça que o leitor experimenta. Assim como outras características, o medo não é condição nem efeito exclusivo do fantástico. O medo aparece também não apenas no âmbito literário como no cinematográfico em "histórias de terror", thrillers, histórias com psicopatas, catástrofes naturais, entre outros.
Ao retomarmos historicamente o fantástico, podemos observar como se desenvolveram as narrativas e observar o que nos diz Roas: O fantástico surgiu a princípio do romance gótico do século XVIII, que traz o macabro, o prazer do medo e o sublime, acontecimentos distanciados do espaço e tempo do leitor, lhe dando uma distância segura dos fatos, "o receptor suspendia sua incredulidade e 'aceitava' sem maiores problemas a presença desses fenômenos sobrenaturais porque ocorriam longe de casa" (ROAS, 2014, p. 166).
Foi com os autores românticos que essa característica foi modificada, visto que trouxeram para o cotidiano do leitor, para o presente e suas localidades, em que "parece impossível que qualquer coisa impossível possa acontecer" (ROAS, 2014, p. 167). A medida que avança o século XIX essa cotidianização vai adquirindo outras características, como a busca dos autores por explicações científicas para incrementar seus textos.
Posteriormente a essas mudanças incluíram nas narrativas as verificações positivistas das informações, além da necessidade de evidenciar as relações de causa e efeito, bem como a questão subjetiva. Essas mudanças são acrescentadas para cada vez mais o mundo descrito no texto se aproximar do real do leitor. Na segunda metade do século XX, outras alternativas do fantástico levam "as histórias fantásticas ao grau máximo de cotidianização, de 'realismo'" (ROAS, 2014, p. 169).
Roas (2014) conclui "nossa ideia de realidade atua como contraponto, como contraste para fenômenos cuja presença impossível problematiza a ordem precária em que fingimos viver mais ou menos tranquilos" (p. 187), logo, o mundo da narrativa fantástica, em qualquer tempo que seja escrita, é o nosso mundo.

Considerações finais

É difícil delimitar a literatura fantástica de uma maneira única e definitiva. Notamos que ainda que as definições desse campo não destoem completamente umas das outras. Cada teórico trabalha de uma forma distinta e consequentemente essa concepção irá delimitar quais obras serão consideradas ou não como fantásticas.
Concordamos com Roas (2014) quando este aponta que a literatura fantástica é uma vasta produção literária que pode abarcar outras formas de expressão humana, como cinema, quadrinhos, desenhos, entre outras. Também concordamos quando ele aponta que o fantástico modificou-se com os adventos teóricos desenvolvidos pela sociedade, ou seja, que o que se considera em uma obra fantástica está em algum grau influenciado e conectado ao contexto sociocultural em que a obra se insere.
Vale destacar que na década de 1970, o estruturalismo, posterior ao formalismo, buscava estabelecer o campo das letras (linguística e literatura) de uma maneira formal, ou seja, buscaram uma organização dos conteúdos. Todorov advém dessas escolas de pensamento. Atualmente tal formato de pensamento já não condiz com a realidade dos estudos literários, porém, Todorov não perde sua importância devido à ineditismo de sua empreitada, uma vez que é percursor na área, pois conseguiu sistematizar de forma mais clara o conceito teórico sobre o gênero fantástico.
Já podemos de antemão concluir, baseando-nos nos estudos tanto de Todorov (2008) como Roas (2014), que a literatura fantástica não pressupõe um elemento sobrenatural ou fantástico por si só, pois somente a aparição de algo sobrenatural que foge das leis da realidade na narrativa não torna a obra uma literatura fantástica.
Enquanto para Todorov (2008) é necessário que a hesitação causada por esse elemento seja constante e deve-se manter até o final. Caso contrário, ou se torna uma obra de gênero estranho ou de gênero maravilhoso (e suas nuances).
Do outro lado, Roas (2014) indica a necessidade que o fantástico cause um conflito entre a concepção e a relação com o real. É preciso que haja uma transgressão e posteriormente um conflito, tanto na obra, quanto para o leitor. O teórico espanhol busca reformular o conceito de fantástico, para que abarque também as narrativas do século XX e XXI, sendo que ele próprio, como escritor fantástico, se enquadra como um dos ficcionais do gênero.


REFERÊNCIAS


ALVAREZ, R. G. H., Apresentação do Autor. In. ROAS, D., A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014. 215p.

CAMARANI, A. L. S., A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo, SP: Cultura Acadêmica, 2014. 217p.

MONEGAL, E. R., Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980.

ROAS, D., A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014. 215p.

________. El monstruo pós-moderno y los limites de lo fantástico. Rio de Janeiro, UERJ, 2014. (Palestra).

TODOROV, T., Introdução à literatura fantástica. (Trad. Maria Clara Correa Castello). São Paulo: Perspectiva, 2008. 188p.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.