Alcácer Quibir e a Guerra de Quinhentos: uma perspectiva arquitectónica

June 14, 2017 | Autor: Luis Costa e Sousa | Categoria: Military History, Art History
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ALCÁCER

QUIBIR E A GUERRA DE

QUINHENTOS (Uma perspectiva arquitectónica)

Luís Costa e Sousa

ÍNDICE GERAL ÍNDICE DAS IMAGENS .................................................................................................... 5 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………..…….11 PARTE I: TEORIA ............................................................................................................ 14 CAPÍTULO I – A NOVA ESCOLA MILITAR ......................................................................... 16 1. A arte militar em Espanha e Portugal ........................................................................ 16 1.1 Os regulamentos em Portugal: as ordenanças ................................................... 18 As ordenanças manuelinas ....................................................................................... 18 As ordenanças de D. João III ................................................................................... 23 As ordenanças sebásticas ......................................................................................... 24 CAPÍTULO II – OS TRATADOS E OS SEUS AUTORES ......................................................... 35 1. A tratadística militar espanhola .................................................................................. 35 1.1 De 1536 a 1565 ...................................................................................................... 35 Diego de Salazar (1536) ........................................................................................... 35 Diego Gracián (1565) ............................................................................................... 36 1.2 De 1578 até final de Quinhentos ......................................................................... 36 Francisco de Valdés (1578) ...................................................................................... 36 Diego de Alava y Viamont (1590) ........................................................................... 37 2. Os tratados de arte militar em Portugal ..................................................................... 41 Martim Afonso de Melo (?) – Regimento de Guerra ............................................... 41 Isidoro de Almeida (1573) – O 4.º Livro das Instruções Militares .......................... 44 Luís Álvaro Seco (1597) – Anotações ao 4.º livro das instruções militares ............ 46 3. Arquitectura, fortificação e arte militar ..................................................................... 48 3.1 As «artes liberais» e a tradição clássica ............................................................. 49 3.2 A representação do espaço tridimensional ........................................................ 51 3.3 Os arquitectos e a nova fortificação militar ....................................................... 53 3.4 A situação em Portugal ........................................................................................ 57

CAPÍTULO III – A TRAÇA ARQUITECTÓNICA DO EXÉRCITO ........................................... 69 1. Capitanias, terços e esquadrões ................................................................................ 743 2. A Unidade e as Partes ................................................................................................. 76 2.1 A unidade: O esquadrão .................................................................................... 776 O caracol .................................................................................................................. 77 A galé, ou galé cerrada ............................................................................................. 78 O esquadrão em forma de mitra ............................................................................... 78 O esquadrão em dente de serra................................................................................. 78 O esquadrão em cruz ................................................................................................ 78 2.2 As partes: mangas, guarnição e alas ................................................................... 83 As mangas ................................................................................................................ 84 A guarnição .............................................................................................................. 87 As alas…………………………………..…………………………………....…….89 3. As regras de construção .............................................................................................. 91 3.1 Grelha ortogonal e proporção ............................................................................. 91 3.2 A tripartição ......................................................................................................... 95 3.3 A simetria .............................................................................................................. 99 4. Ordenar o esquadrão ................................................................................................. 102 4.1 Construção do esquadrão quadro de gente ..................................................... 103 4.2 Construção do esquadrão quadro de terreno .................................................. 104 4.3 Construção do esquadrão prolongado ............................................................. 105 PARTE II: PRÁTICA ...................................................................................................... 107 CAPÍTULO I – O TRAÇADO DO EXÉRCITO...................................................................... 108 1. O planeamento da formatura .................................................................................... 108 2. Da marcha à formação de batalha ........................................................................... 111 CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO DO EXÉRCITO .............................................................. 117 1. Primeira linha – vanguarda: a gente mais escolhida e honrada ............................ 120 2. Segunda linha – batalha: a gente bisonha ............................................................... 123 3. Terceira linha – retaguarda: a gente acostumada aos rebates................................ 127 4. A gente de cavalo ....................................................................................................... 130

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CAPÍTULO III – O EXÉRCITO EM ACÇÃO: ALCÁCER QUIBIR ....................................... 135 1. Portugal e o Norte de África ..................................................................................... 135 1.1 A expedição portuguesa de 1578 ....................................................................... 138 1.2 A marcha por terra ............................................................................................ 140 Terça-feira, 29 de Julho.......................................................................................... 143 Quarta-feira, 30 de Julho ....................................................................................... 143 Quinta-feira, 31 de Julho ........................................... Erro! Marcador não definido. Sexta-feira, 1 de Agosto ......................................................................................... 143 Sábado, 2 de Agosto ............................................................................................... 144 Domingo, 3 de Agosto ........................................................................................... 144 2. O dia da batalha, ou a vida útil de uma forma militar ............................................ 146 Cerca das 07.00h: Ordena-se o exército ................................................................. 147 9.00-10.00h: O exército português põe-se em marcha ........................................... 148 10.00-11.00h: Rompe-se a batalha ......................................................................... 151 Os mouros aproximam-se ...................................................................................... 154 2.1 A vanguarda: «a gente mais escolhida e honrada» ......................................... 155 Cerca das 11.00: Ataque da vanguarda e retirada dos inimigos ............................ 156 A morte de Abd al-Malik ....................................................................................... 160 O coronel dos aventureiros é atingido .................................................................... 163 Contra-ataque dos mouros...................................................................................... 164 12.00h: O destroço da vanguarda do exército português ....................................... 168 2.2. A segunda linha do exército: «a gente bisonha» ............................................. 171 2.3 Os «terços» da retaguarda................................................................................. 174 2.4 A «cabeça do exército»: o rei ............................................................................. 177 Na vanguarda ......................................................................................................... 178 Na retaguarda ......................................................................................................... 178 Na segunda linha .................................................................................................... 181 De novo na retaguarda ........................................................................................... 182 A morte de D. Sebastião......................................................................................... 183 2.4 Os mortos na batalha ....................................................................................... 183 CONCLUSÃO……………………………………………………………………..…….187

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APÊNDICE 1: A IMAGEM DO EXÉRCITO EM ALCÁCER QUIBIR .……….… 191 1. Os efectivos ................................................................................................................ 191 2. A formatura prevista ................................................................................................. 192 2.1 O terço dos castelhanos .................................................................................... 192 2.2 O terço dos aventureiros .................................................................................. 193 2.3 O terço dos tudescos ......................................................................................... 194 2.4 Os terços de soldados das ordenanças ............................................................ 194 3. A ordem de batalha no dia 4 de Agosto de 1578 ...................................................... 190 APÊNDICE 2: A IMAGEM DOS SOLDADOS PORTUGUESES NO SÉC. XVI… 191 BIBLIOGRAFIA E FONTES ICONOGRÁFICAS ...................................................... 207

ÍNDICE DAS IMAGENS Imagem 1 – Formaturas em Orão, Azamor e batalha dos Alcaides .................................... 20 Imagem 2 – O «caracol»……………………………………………………………...…...22 Imagem 3 – Esquadrão em forma de «galé» ........................................................................ 22 Imagem 4 – Auxiliares de cálculo: «taboadas de esquadrões» ............................................ 40 Imagem 5 – Formas fortificadas «arcaicas» e «modernas» ............................................ 55-56 Imagem 6 – As linhas de tiro e a fortificação angular ......................................................... 57 Imagem 7 – Fortificações portuguesas no Norte de África ................................................. 59 Imagem 8 – «Cortine piegate» ou «muros dobrados» ......................................................... 60 Imagem 9 – O sistema abaluartado no território português ............................................ 61-62 Imagem 10 – O baluarte angular em Portugal na segunda metade de quinhentos............... 61 Imagem 11 – Igrejas «militarizadas» da segunda metade de quinhentosErro! Marcador não definido. Imagem 12 – Reparo de artilharia segundo Filippo Terzi (1578) ........................................ 65 Imagem 13 – A arte e a guerra ............................................................................................. 66 Imagem 14 – A forma quadrada na arquitectura.................................................................. 70 Imagem 15 – Triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos ........................................ 71-72 Imagem 16 – Representações em perspectiva da cidade e do campo de batalha................. 73 Imagem 17 – A forma da cruz na arquitectura e na guerra .............................................. 79-80

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Imagem 18 – O Todo e as partes...........................................................................................83 Imagem 19 – As mangas dos «esquad.rões»........................................................................ 84 Imagem 20 – Os arcabuzeiros nas «quinas do esquadrão» .............................................. 86-87 Imagem 21 – A guarnição dos «esquadrões»....................................................................... 88 Imagem 22 – As alas ............................................................................................................ 90 Imagem 23 – Grelhas geométricas de construção ........................................................... 92-93 Imagem 24 –Tipologias de esquadrões «que a gente española aprova» .............................. 95 Imagem 25 – A proporção ................................................................................................... 96 Imagem 26 – Formaturas militares tripartidas ..................................................................... 99 Imagem 27 – A posição das bandeiras segundo o princípio da simetria ........................... 100 Imagem 28 – Ordenar um «esquadrão quadro de terreno», M. Erguiluz......................... 1103 Imagem 29 – Esboços de edifícios e formaturas militares..................................................108 Imagem 30 – Formatura do exército prevista para Alcácer Quibir.................................11109 Imagem 31 –Companhias em marcha de acordo com a teoria quinhentista .................... 1121 Imagem 32 – O processo de «dobrar as fileiras» ............................................................. 1175 Imagem 33 – O exército português em marcha, de 28 de Julho a 4 de Agosto de 1578 . 1197 Imagem 34 –Vanguarda: «A gente mais escolhida e honrada» ....................................... 1219 Imagem 35 –Segunda linha: a gente bisonha ................................................................... 1253 Imagem 36 –Retaguarda: A gente acostumada aos rebates ............................................. 1297 Imagem 37 – Os esquadrões de cavalos.............................. Erro! Marcador não definido.0 Imagem 38 – O batalhão de cavalos «adonde ia la persona real»Erro! Marcador não definido.1 Imagem 39 – A viagem da frota portuguesa até Arzila ..................................................... 139 Imagem 40 – Localização de Arzila ................................................................................ 1398 Imagem 41 – Larache no século XVII ................................................................................. 141 Imagem 42 – A marcha do exército ..................................................................................1430 Imagem 43 – Acampamento de 3 de Agosto e local da batalhaErro! Marcador não definido.43 Imagem 44 – A ordem de batalha do exército português ............................................. 145-46 Imagem 45 – Os combates iniciais entre as vanguardas dos dois exércitos ...................... 156 Imagem 46 – Os aventureiros ............................................................................................ 158 Imagem 47 – O ataque e retirada da vanguarda do exército português ............................. 158 Imagem 48 –Batalha: A gente bisonha .............................................................................1729 Imagem 49 –Retaguarda: A gente acostumada aos rebates ............................................... 175

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Imagem 50 – As alas de cavalaria ...................................................................................... 182 Imagem 51 – D. Sebastião e Jorge de Albuquerque .......................................................... 193 Imagem 52 – A formatura do terço dos castelhanos ........................................................ 1829 Imagem 53 – A formatura do exército cristão, 4 de Agosto de 1578 ................................ 193 Imagem 54 – Fresco da Conquista de Azamor………………...……………………..193-95 Imagem 55 – Tapeçaria da série D. João de Castro, «Cortejo triunfal»…………………193 Imagem 56 – Do sargento……………………..………………………………………....193 Imagem 57 – «Aos homens grandes, ou meãos, esta lhes melhor o corsolete o pique»…………………………………………………………………………………….193 Imagem 58 – A manobra dos piqueiros – «terçar os piques»……………………….1939200 Imagem 59 – ……….....201 Imagem 60 – «Das obrigaçoes que tem um Soldado particular principalmente Arcabuzeiro»…………………...........................................................................................202 Imagem 61 – «Ao Alferez toca levar a bandeira na ordenança»……………………...…203 Imagem 62 – «Do atambor geral»………………………...……………………………...203 Imagem 63 – Cavalos portugueses de Quinhentos………………………………………204 Imagem 64 – As «armas brancas» de Gonçalo Nunes Barreto …………...…… ……….205 Imagem 65 – Meiai ( .1580)…………….………...………………...205 Imagem 66 – As «armas azuladas» de D. Sebastião…………………………...………...206 Imagem 67 – A influência clássica na armaria…...……………………………………...206

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INTRODUÇÃO A UM NOTÁVEL ENSAIO SOBRE A ARTE DA GUERRA NO PORTUGAL QUINHENTISTA A Arte da Guerra no Portugal Quinhentista, da autoria do arquitecto e historiador Luís Filipe Guerreiro da Costa e Sousa, constitui uma valiosa abordagem científica de âmbito pluri-disciplinar sobre a teoria e a prática militar portuguesa no tempo dos Descobrimentos, onde se cruzam os conhecimentos de organização e de estratégia, os princípios da defesa militar, as concepções da arquitectura e da fortificação ligadas a novas formas de urbanismo e, ainda, a ‘i g fi g ’ i vi i i consumo propagandístico e imagem credibilizadora dos poderes instituídos. A Guerra, como «inevitabilidade da História» e como «processo determinante da evolução do Homem» em termos de conquista e de auto-defesa, assume-se uma forma específica de comunicação com as suas regras e estruturas funcionais, ou seja, um modelo fundamental de ocupação de espaços que é também garante de um processo de sedentarização pré-determinado e forma de anulação civilizacional do «outro», tal como foi descrita pelos muitos estudiosos que à sua análise se têm dedicado ao longo dos séculos. Como escreveu Paul Valéry ( f íg f v ‘A G A ig i II’ A ó i R S José Varandas), «ela não passa de um massacre entre gentes que não se conhecem para proveito de gentes que se conhecem e que não se massacram». Mas a expressão da Guerra não se resume a uma mera história da armaria, da estratégia ou da fortificação – há componentes teórico-concepcionais a explorar e que são importantes, como importante é a própria iconografia que envolve, a representação dos

conflitos bélicos, a sua mediatização propagandística, a sua expressão ao serviço dos poderes instituídos. De tudo isso fala, em relação à Guerra no século XVI em contexto português, o livro de Luís Costa e Sousa. O discurso do autor i vi j ‘ ç ’ D. João III e de D. Sebastião, inseridas no quadro de conhecimentos das ‘ ii ’ P í I éi ái pormenor sobre a essência da tratadística militar (de Diego de Salazar e Diego Gracián a Francisco de Valdès e Diego de Avala y Viamont, e aos portugueses Isidoro de Almeida, Martim Afonso de Melo e Luís Álvares Seco), a fim de melhor se entenderem as linhas-mestras da concepção e prática da fortificação militar, tanto no quadro metropolitano como no espaço imperial português, com as suas regras de construção e de funcionamento, a representação do espaço tridimensional, o ordenamento dos esquadrões, não deixando em esquecimento, também, as relações com o urbanismo e a arquitectura ivi fi x ‘ ’ i ‘ xé i ç ’ i i i da batalha de Alcácer-Quibir, vista à luz dos testemunhos presenciais, da cronística disponível e as formas adoptadas na estratégia de combate. Pensamos que o ensaio de Luís Costa e Sousa, até pelo esforço de ligação de questões de conhecimento teórico de arte militar com outras vertentes eminentemente práticas, como a formatura militar e como a realidade da construção arquitectónica no século XVI português – vista como um caso sui generis no contexto europeu do seu tempo –, até à representação iconográfica de temas militares e de trechos de guerra – um campo ainda mal estudado pelos historiadores nacionais, apesar da relativa abundância de testemunhos artísticos --, representa um contributo importante para o alicerçar de um estudo que importa ser

visionado nas suas múltiplas facetas caracterizadoras: a Arte da Guerra. O livro corresponde, assim, a um investimento pluri-disciplinar dotado de evidenciado pioneirismo, que lhe garante um papel de destaque no campo da historiografia da Idade Moderna na sua área de especialidade.

estatuto do engenheiro-arquitecto ligado às empresas da guerra é substancialmente renovado, à luz das inovações técnicas, dos preceitos humanísticos, e dos intercâmbios e contacto com os centros italianos, a alargarem em substância o campo de acção na «arte das fortificações».

A arte da fortificação recebeu com o impulso da teoria e da prática renascentista um novo estatuto e uma nova base concepcional, que alterou em substância as características e condicionantes em que, face às regras da balística e à estrutura obsoleta das defesas, ainda se inseria a produção de alguns mestres da engenharia militar da época manuelina. Conhecemg g i ‘ g ’ de então, desde os irmãos Arrudas a Diogo Boitaca e a João de Castilho, que serviram nas praças norte-africanas. Diversos mestres saídos do estaleiro de Santa Maria de Belém trabalharão como «engenheiros de obra militar» (e simultaneamente como construtores de igrejas) na costa do Malabar, casos de Leonardo Vaz, João e Manuel de la Ponte, e outros «reinóis». As obras de fortificação de Arzila, ordenadas em 1508 pelo governador D. Vasco Coutinho, conde de Borba, levam Boitaca a Marrocos com fama de «grande mestre de obras, para renovar a vetusta fortaleza, erguendo torre de menagem (de características medievas), casa do governador, baluartes e cubelos, mas com características que a breve trecho se revelariam inadequadas face à v ç i áv ‘ gi g ’ à desastrosa expedição de Mamora (1515) e abrem passo para uma fase mais esclarecida da fortificação portuguesa, com João de Castilho, o italiano Benedetto da Ravena, e alguns outros. O papel de outro bom ‘ i f ifi ç ’ g i F i D i (que em 1511 dirigiu em Tâmger uma equipa de oitocentos pedreiros e lavrantes de cantaria, e que também era pintor, pois mandou para a corte um desenho representando a Conquista de Azamor em 1517 pelas tropas de D. Jaime, Duque de Bragança), merece também atenção. Mas é com o reinado de D. João III e a assimilação da tratadística renascentista que o

Em contexto imperial, verifica-se o progressivo reconhecimento estatutário de mestres activos por todo o espaço imperial, com um artista da estirpe de Inofre de Carvalho, que ergue fortalezas em Bahraim, Ormuz, Muscat e outros lugares (1551-1568) e será designado «mestres das obras de el-rei na Índia» -- um título honroso que na época da Monarquia Dual filipina será redefinido por decreto da Coroa como «arquitecto-mor da Índia», primeiro com o engenheiro italiano João Baptista Cairato, depois com o arquitecto Júlio Simão, a ocuparem o cargo. Outro destaque das páginas que se seguem cabe ao arquitecto Isidoro de Almeida, autor do 4º Livro de Instruções Militares (1573) e que também foi tradutor de Durer e estimável projectista de obra militar, religiosa e civil. O estatuto destes artistas-construtores liga-se intimamente à sua condição preferencial de engenheiros militares experimentados na re-fortificação das fronteiras do Reino, incluindo o espaço do Maghreb e as praças do Oriente, mas que também teorizavam e escreviam, propunham soluções urbanísticas modernas, intervinham no campo da construção de igrejas e mosteiros (como o referido Isidoro, que traçou em 1560o mosteiro domínico de Coimbra ao mesmo tempo que pensava, e fazia, obra de fortificação). Um aspecto que suscitou especial interesse a Luís Costa e Sousa foi a vertente da chamada iconografia da guerra, partindo a análise da diversificada representação da Guerra, tanto na gravura, como na cartografia, na iluminura, na escultura e na pintura portuguesas do século XVI. De facto, e ao contrário do que se tem pensado, essa iconografia artística é abundante, e não se reduz apenas a uns quantos retratos de aparato de ilustres do tempo ligados a feitos militares, pois

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inclui também os fundos e as cenas complementares de muitos retábulos religiosos renascentistas e maneiristas (onde trechos militares marítimos e terrestres se desdobram), e ainda a decoração fresquista para encomenda privada de palácios da aristocracia, como sucede com os nobres Castros, Condes de Basto, que em Évora mandaram pintar para um dos salões do seu Paço de São Miguel, por volta de 1578-1580, trechos específicos de feitos militares ligados ao historial familiar, caso da Tomada de La Goleta e da Conquista de Tunis, feitos em que tinham estado envolvidos e eram, por isso, razão legitimadora de propaganda em nome da Fama e da Honra à luz dos preceitos vigentes. O mesmo sucede no Palácio dos Duques de Bragança em Vila Viçosa, onde se encontram pintados a fresco trechos de batalhas (tanto na escadaria ‘g i ’ é D. T ó i II) Conquista de Azamor por D. Jaime I em 1517, um feito militar onde a grande casa aristocrática se envolvera com milhares de homens e á i g .Ag ‘ i g ’ i aquando da visita que o Cardeal Alexandrino, legado papal, faz a Portugal em 1571, pelo seu secretário Jerónimo Bonelo, que enaltece ç ‘cose belle da vedere’, na exaltação das vitórias alcançadas pelos Duques. Valores clássicos como a strenuitas, continentia, beneficentia e gratituto, as virtudes do herói da Roma Antiga, são acentuadas em decorações como estas, por vezes associadas a fábulas mitológicas (saga de Perseu e Pégaso, trabalhos de Hércules, etc). A propósito, importa lembrar que a historiadora de arte Sylvie Deswarte-R ó i i L’ x é i i T i (1535): images, interprétations, répercussions culturelles», integrado nas actas do congresso Chrétiens et Musulmans à la Renaissance (C ’É S éi R i P i 1998) i pistas precisas para um levantamento histórico-artístico organizado em torno destas relações entre a representação iconográfica e as estratégias da guerra. O Dr. Luís Costa e Sousa atenta nestas relações e nesta visão

pluri-disciplinar para melhor intuir, no seu discurso caracterizador da Guerra em Quinhentos, as valências e singularidades do caso português. Devemos referir, a terminar, que este livro desenvolve os conteúdos de uma Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa sob o título A Teoria e a Prática Militar em Portugal durante a segunda metade do Século XVI: uma abordagem construtiva (orientada por um dos signatários) que foi defendida em provas públicas em 21 de Maio de 2007, com máxima classificação, tendo justificado de seguida a atribuição do Prémio Defesa Nacional – 2006 da Comissão Portuguesa de História Militar. A criação deste prémio de História Militar portuguesa integra-se no referido por Despacho do Ministério da Defesa Nacional publicado em Diário da República (DR nº 23, II série, 28-I-1991): «o estudo e a divulgação dos feitos e dos vulto da nossa História são fruto dos trabalhos de pesquisa que, indo ao encontro do subconsciente histórico, de sobrevivência, tem contribuído de forma importante para o enriquecimento do nosso património cultural». O prémio visa, por isso, dar maior visibilidade à pesquisa sobre «a história dos acontecimentos militares portugueses numa perspectiva de defesa nacional», de modo a possibilitar uma «melhor definição da consciência colectiva». Importa lembrar, enfim, que este galardão premiou já, entre outros autores de renome no campo universitário ou militar, estudos importantes de Mário Jorge Barroca sobre o Castelo português desde a Reconquista aos tempos românicos, de Saúl António Gomes sobre o Castelo de Leiria, de Armando da Silva Saturnino Monteiro sobre os combates da marinha portuguesa no tempo de D. João III, de Nuno Severiano Teixeira sobre os conceitos de neutralidade e beligerância no contexto da Grande Guerra, de João Gouveia Monteiro sobre as guerras em Portugal no fim da Idade Média, de António Dias Farinha sobre a é ‘C ó i A S M ’ J g P i Caervalho de Freitas sobre a guerra no tempo da Restauração anti-

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R iB i ‘ i g ’ P g Europa entre os séculos XVI e XVIII, incluindo temas da História recente, como o ensaio de Telmo Faria sobre as chefias militares no Estado Novo, o de Francisco Miguel Gouveia Pinto Proença sobre a guerra colonial em Moçambique, de António da Silva Ribeiro sobre a organização superior de Defesa Nacional, ou o de Isilda dos Santos Braga da Costa Monteiro sobre o Parlamento e as questões de Defesa Nacional. O livro de Luís Costa e Sousa constitui um sólido ponto de partida para novas abordagens da História Militar portuguesa da Idade Moderna, que são necessárias. Os signatários, na sua qualidade de, respectivamente, seu orientador de Mestrado e seu docente no Seminário de Arte Colonial do referido Mestrado, sublinham a importância teórico-metodológica deste ensaio de História Moderna e congratulam-se pelo curto espaço de tempo em que, pela editora Tribuna da História, foi dado à estampa e disponibilizado aos leitores, junto dos quais se pode cumprir a partir de agora o seu papel de informação e reflexão científicas.

Francisco Contente Domingues Vítor Serrão (Professores da Faculdade de Letrar da Universidade de Lisboa)

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INTRODUÇÃO

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ão será necessário sublinhar a importância do papel da actividade militar no âmbito da expansão portuguesa, feita de encontros entre culturas e, por isso mesmo, também de confrontos de interesses. Assim sendo, parece pertinente o tratamento do tema proposto – a articulação entre o conhecimento teórico com a prática militar – no âmbito da História dos Descobrimentos e Expansão. Relativamente ao estudo da guerra no período moderno, J. R. Hale continua a constituir uma referência incontornável e, como todos os trabalhos pioneiros, lançou pistas para investigação em diversas direcções, em particular no que respeita à relação entre guerra e arte. Ao definir a fortificação quinhentista como o «primeiro estilo internacional da História», Hale estabeleceu a possibilidade de considerar temas até aí entendidos como de âmbito estritamente militar, como sendo passíveis de uma abordagem no plano da História da Arte, como veio a suceder a partir dos anos 80 com a arquitectura militar Nos últimos anos, para lá da ênfase no impacto social, tecnológico, político ou económico, associam-se com crescente frequência os temas militares à produção cultural, situação que se encontra expressa nos títulos dos trabalhos que entretanto vão surgindo, como seja A Pena de Marte, Guerra y Cultura en la Época Moderna, ou ainda mais recentemente a colectânea de textos Art and Warfare in Early Modern Europe. Enquadrar a guerra no âmbito do panorama cultural, em particular no que respeita à sua ligação com as artes e a sua teoria, constitui uma área de investigação relativamente em aberto, justificando abordagens segundo perspectivas exteriores ao campo da investigação historiográfica mais clássica.

da arquitectura, a par de um interesse suscitado pela História Militar, pretendemos estudar o processo que leva à construção da formatura militar. Procurou-se encontrar paralelos com o processo de concepção e realização da forma arquitectónica nos aspectos teórico e prático, e a forma de se estabelecer a formatura de um exército, tendo como objecto a realidade portuguesa da segunda metade de Quinhentos. Assumindo uma problemática cara ao século XVI, o formato do presente trabalho reflecte esta dualidade dividindo-se em duas partes, a primeira dedicada à teoria e a segunda à prática militar. À semelhança do que foi feito por Alexander Tzonis e Liane Lefaivre em relação à arquitectura, analisaremos as regras específicas preconizadas pela produção teórica militar da época enquadradas num ponto de vista construtivo, tal como apresenta Galindo Diaz no seu trabalho, embora este autor se ocupe fundamentalmente da fortificação militar dentro de um intervalo temporal muito mais alargado, que se estende até ao século XVIII. A base de que nos servimos para fazer a avaliação das características do conhecimento teórico assenta nos textos quinhentistas sobre arte militar, que no caso português se resume a um pequeno número de obras. Sendo uma desvantagem pela escassez de material, permite, contudo, estabelecer mais facilmente uma eventual relação com os textos estrangeiros de referência que influenciaram a realidade militar portuguesa da segunda metade do século XVI. Será sobre este corpo de textos de carácter militar que se desenvolverá a primeira parte, que inclui tanto autores portugueses, desde Martim Afonso de Melo, Isidoro de Almeida e Luís Mendes de Vasconcelos – este último um pouco fora do intervalo de tempo em estudo –, como também alguns dos autores estrangeiros mais significativos, como Diego Salazar, Girolamo Cataneo, Francisco de Valdéz ou Diego de Alava y Viamont.

Assim, fazendo uso da prática profissional exercida no âmbito

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Na segunda parte avaliaremos com o máximo rigor e pormenor possíveis, a aplicação das regras teóricas na construção da formatura do exército. Naturalmente que a ordem de batalha dos exércitos oferece um meio privilegiado para aferir como se desenvolve, na prática, o conhecimento teorizado pela produção teórica escrita. A batalha de Alcácer Quibir, que consiste na etapa final do percurso da evolução militar portuguesa durante o século dezasseis, permite observar a articulação entre o conhecimento teórico e a construção do exército no campo de batalha. Recorrendo primeiramente aos diversos testemunhos presenciais, fazendo assim o enfoque na perspectiva dos participantes da batalha, o processo será analisado estudando a qualidade das tropas intervenientes – gente escolhida, gente bisonha, etc. – mas tendo ainda em consideração a forma adoptada pelo exército e o comportamento daquela no desenrolar do encontro. Para isso procedeu-se à avaliação das numerosas relações à disposição, algumas das quais não se encontram ainda exploradas em pormenor, como seja a Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, editada há já alguns anos por Sales Loureiro. Cabe ainda uma referência à selecção de imagens incluída no trabalho, que constitui um aspecto fundamental do tema desenvolvido. Como refere Pia Cuneo, a iconografia quinhentista, para além de um papel documental, desempenha um papel estético que cumpre, entre outras funções, a de veículo de difusão das formas. As imagens referenciadas no texto consistem, na verdade, num conjunto de iconografia de proveniências diversas que permitem ilustrar a utilização de uma mesma forma em contextos distintos, e que se pretende que construam uma narrativa paralela. A título de exemplo, e conforme veremos mais adiante, é possível observar no tratado de Diego de Alava y Viamont ou Diego de Palacio a forma da cruz grega para representar um esquadrão em forma de cruz, desenhada também por Francisco de Holanda representando uma formação naval, e ainda em tipologias de

plantas centralizadas provenientes do tratado de Sebastiano Serlio e Pietro Cataneo. O trabalho realizado não constitui, de forma alguma, um levantamento exaustivo dos textos quinhentistas sobre teoria militar. Dado o tempo limitado para a elaboração da Tese de Mestrado, a investigação resumiu-se fundamentalmente às bibliotecas de Lisboa, para além de uma selecção limitada de bibliografia editada fora de Portugal. Apesar deste constrangimento, verifica-se que o fundo documental da Biblioteca Nacional ainda tem muito para oferecer ao investigador na área da tratadística militar. Este trabalho, na sua forma original, consiste na disertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e Expansão apresentada à faculdade de Letras de Universidade de Lisboa em 2007, com o título A teoria e a prática militar portuguesa na segunda metade do século XVI: uma abordagem arquitectónica. Algumas alterações foram introduzidas, fruto da investigação que continua – e espero continuará – dentro do tema. A selecção iconogáfica foi revista; por um lado, procurou-se uma sintetização, incluindo as imagens mais significativas; alargada porque se procurou diversificar as fontes iconográficas, incluindo alguns autores importantes que não haviam sido inicialmente contemplados. A alteração ao título da tese de dissertação confere um maior relevo a Alcácer Quibir, fechando assim um círculo sobre este tema, uma vez que a investigação que originou o presente texto teve origem, precisamente, no estudo aprofundado da «batalha dos três reis». Não é possível abarcar o agradecimento a todos os que contribiram para uma investigação que se alargou por mais de uma década. Será mais fácil começar pelo fim, isto é, pela realização objectiva do trabalho – a prática. Assim, o presente texto não teria sido

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corporizado sem o professor doutor Francisco Contente Domingues, que demonstrou desde o início – mesmo antes de assumir a orientação da tese – a maior abertura e interesse por uma abordagem menos convencional a um tema sobejamente estudado. O meu agradecimento alarga-se, contudo, a todos docentes e colegas do curso de pósgraduação, uma vez que sendo um estranho na área da História, foi preciosa a troca de impressões sobre o tema e o material disponibilizado, em particular pelo Luís Falcão Fonseca. Fora do contexto académico, foi a família próxima o principal motor de todo o esforço dispendido, tendo em conta que o desenvolvimento do trabalho em regime pós-laboral se revelou muito difícil de concretizar. O alicerce teórico do trabalho – «a fortificação do corpo» – deve-se ao meu irmão Jaime, enquanto que a «fortificação da alma» se deve aos pais, à Ana e ao João, que espero um dia tenha a paciência de folhear o trabalho do pai.

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PARTE I: TEORIA «E tendo já mostrado as regras com que geralmente se formarão os esquadrões de qualquer numero & proporção que se quiserem fazer, & forem necessários, & o que aos oficiais, & soldado toca a respeito do que nesta parte hão de exercitar.»

Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Militar, Alenquer, 1611

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Capítulo I – A nova escola militar «La epopeya imperial de España debia de ser dela infanteria, en 1 concreto de lo de la ordenanza.»

1. A arte militar em Espanha e Portugal

A

evolução militar em Espanha ocorre em paralelo com uma longa sequência de conflitos, dos quais a queda de Granada constitui um marco fundamental. Por um lado, o fim da presença do Islão como entidade autónoma no espaço da Península Ibérica marca o fim de um ciclo durante o qual a actividade militar era entendida em forma de «razzias» ou «algaradas», e da qual não fizeram parte habitual os confrontos campais de grandes proporções. De facto, a generalidade da guerra consistia fundamentalmente em acções entre pequenas unidades militares; as tropas envolvidas eram recrutadas com base em objectivos limitados, muitas vezes em apoio de actividades associadas a mera subsistência, como a apropriação de gado2. Contudo, longe de constituírem acontecimentos esporádicos, estas escaramuças faziam parte do quotidiano das populações da fronteira, sendo mais tarde transferidas para os teatros de operações dos territórios recémconquistados do Norte de África. Por outro lado, a introdução dos novos armamentos – as armas de fogo – na fase final deste confronto, vulgarizou o seu uso no seio dos exércitos espanhóis, ao contrário do que se passava com outros países da Europa pelo menos até à batalha de Seminara em 1495. Esta é a data do primeiro grande embate entre espanhóis e franceses no contexto das 1

René Quatrefages, La Revolución Militar Moderna: el Crisol Español, Madrid, 1996. 2

Esther Merino Peral, El arte militar en la época moderna: los tratados de «re militari» en el renacimiento 1536-1671. Aspectos de un arte español, Madrid, 2002.

guerras de Nápoles, e é geralmente considerado como primeiro sinal da emergência de Castela como potência militar de primeiro plano no espaço da Europa continental, facto ao qual não terá sido estranho o emprego generalizado de armas de fogo. Não constituindo o arcabuz novidade para os castelhanos, a sua utilização corrente terá eventualmente facilitado o posterior desenvolvimento de novas tácticas no campo de batalha. De facto, um ano depois da derrota de Seminara (1495), o comandante castelhano Gonçalo de Córdova adoptará em Atela (1496) uma táctica diversa da utilizada pelos soldados franceses, o que evidencia a consciência das novas possibilidades das novas armas; estas experiências no campo de batalha resultaram numa nova combinação entre armamento e táctica, inaugurando a cadeia de vitórias que lhe valeram o epíteto de Gran Capitán. Nesta nova forma de fazer a guerra, tinham papel determinante os troços de soldados experimentados no uso de armas de fogo, em conjunto com uma posição defensiva fortificada e guarnecida por peças de artilharia. Assim, as guerras de Granada podem ser vistas como ponto de partida para a construção do poder militar castelhano, estabelecendo a base humana de um novo exército. As primeiras campanhas em Itália, no final do século XV, permitem aos generais castelhanos, Pedro Navarro ou Gonçalo de Córdova, a experimentação e aperfeiçoamento dos novos modelos tácticos que vão dominar os campos de batalha europeus no século seguinte. A evolução da milícia em Espanha acompanhará, assim, os conflitos armados que surgem ao longo do percurso da construção imperial, desde as primeiras campanhas em Itália, passando pela expansão no Norte de Áfica, os vários episódios internos de sublevação, até à revolta nos Países Baixos já na segunda metade do século XVI. Será neste último teatro de operações que é posto em prática o modelo militar final; este mantém-se em vigor até bem dentro do século XVII, altura em que é finalmente ultrapassado pelas novas propostas militares, primeiro da escola holandesa de Johann

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conde de Nassau, depois a de Gustavo II, rei da Suécia. Com a especialização dos diversos componentes tácticos, tornando a manobra dos diferentes corpos do exército mais complexa, surge a necessidade de reduzir o número de tropas presentes em cada unidade táctica, de forma a facilitar o comando e controlo dos soldados. Durante todo o século XVI, assiste-se a uma redução dos efectivos das unidades militares «nucleares» em uso. De facto, embora os terços originalmente criados por Carlos V mantenham um efectivo elevado, as unidades militares que mais tarde se levantam, sobretudo no reinado de Filipe II, eram geralmente mais pequenas; muitas vezes designadas como regimentos, o seu efectivo seria constituído apenas por 4 ou 5 companhias. Ao contrário, a tendência geral observada durante o século XVI caminha no sentido de um aumento da dimensão dos exércitos, tendência essa que se vai acentuar com o decorrer do tempo. Ambas as situações se podem explicar através do aumento de complexidade técnica das operações militares, como já o demonstrou Geoffrey Parker. De facto, a evolução que entretanto se verificou na arquitectura militar, torna o trabalho de cerco complexo e extremamente laborioso. Para concretizar a tomada de uma praça fortificada «à moderna» era necessário o concurso de elevado número de efectivos, incluindo uma grande quantidade de soldados inexperientes que entretanto eram disponibilizados pelos sistemas de recrutamento em vigor. Durante as guerras na Flandres, que decorreram na segunda metade do século XVI, a frequência das operações de assédio contrasta com o pequeno número de encontros campais com grandes dimensões desde a batalha de Pavia em 1521; e ainda assim, quando estes têm lugar acontecem normalmente na sequência do cerco a determinada praça. Para além de contar com um fluxo mais ou menos constante de soldados, os efectivos dos terços novos serão daqui para diante bastante flexíveis, com tendência para um decréscimo no seu total, o que tem

como consequência directa a necessidade de um maior enquadramento dos soldados por oficiais. Ao contrário, o efectivo dos tercios viejos é mantido perto do estipulado pelos regulamentos, de forma a conservar estas unidades militares como os verdadeiros núcleos de contingentes destinados às campanhas consideradas mais difíceis ou decisivas. Durante a invasão de Portugal em 1580, por exemplo, o nervo dos soldados de infantaria foi constituído pelos tercios viejos de Nápoles, Lombardia; a estes juntavam-se ainda outros dois terços de italianos e um de alemães também veteranos das campanhas da Flandres, e o comando das tropas estava a cargo dos generais e oficiais espanhóis mais experimentados, como o duque de Alba e Sancho de Ávila. Em Portugal, a evolução da arte militar desenvolverá sobretudo a vertente naval do poderio militar. Concluída desde cedo a separação de Portugal do território castelhano, e abandonada uma eventual expansão continental desde o reinado de D. Afonso V – definida portanto a sua fronteira oriental –, concentraram-se os esforços e recursos no objectivo de constituir uma área de influência virada essencialmente para o mar. Assim, no que respeita ao poder naval, é consensual que o país se encontrava a par das inovações que iam surgindo, tanto ao nível do armamento como no campo da construção naval. Se neste último capítulo é certo que Portugal foi pioneiro com a introdução do primeiro navio de alto bordo construído para a guerra no mar, a caravela redonda1, também a utilização da artilharia embarcada nos navios se fez de uma forma se não inovadora, pelo menos generalizada e extremamente eficiente. Desde cedo se procedeu à instalação generalizada de artilharia nos navios, permitindo explorar a fundo um novo tipo de combate, o confronto naval à distância, em contraponto ao combate por abordagem praticado pela generalidade das potências da época. Esta foi uma combinação suficientemente versátil, abrindo novas possibilidades ao desempenho de operações militares de desembarque e 1

Ver Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, Lisboa, 2004.

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ataque a objectivos terrestres, normalmente com localização costeira. O poder de fogo das embarcações artilhadas, para além de conferir uma enorme superioridade sobre o adversário, permitia o apoio próximo às tropas que executavam o assalto por terra dotando-as de uma potência de ataque concentrado sem paralelo com o que era praticado no passado. Diversas operações militares são desde cedo desenvolvidas tirando o máximo partido destes vectores de projecção do poder militar, nomeadamente no assalto a Malaca (1511) e em Beadalá (1538). Nesta última, embora de menor envergadura, o poder naval dos portugueses permitiu, para além do reforço do assalto principal, o desdobramento das forças em ataques secundários ao mesmo objectivo, que são também executados com elevado grau de coordenação tendo em consideração a época em que ocorrem. Estas acções foram, aliás, efectuadas sob o comando de duas figuras fundamentais da expansão portuguesa no Oriente, Afonso de Albuquerque e Martim Afonso de Sousa, ambos adeptos da introdução de práticas de combate modernas. Será, pois, o domínio do poder naval que explicaria a rapidez, extensão e efectividade da expansão portuguesa, na qual desempenha ainda um papel crucial a arquitectura militar. Também neste capítulo, os portugueses se colocaram a par das evoluções que aconteciam na Europa; as deambulações de Francisco de Holanda em Itália, ou a participação em expedições militares de grande envergadura – como o assalto a Tunes em 1534 –, permitiram, como referiu Rafael Moreira, o contacto com as mais recentes tendências no campo dos sistemas de fortificação directamente no local onde se procedia à experiência de novos modelos; a este propósito será curioso notar que são contemporâneos próximos do tratado da pintura antiga de Francisco de Holanda (1552) o texto de Isidoro de Almeida sobre fortificação militar (1552), e a Arte da Guerra do Mar, de Fernando de Oliveira (1555).

classificar como «exército terrestre» – parece, contudo, não acompanhar o radical desenvolvimento do poder naval, ficando assim evidente que a criação e implementação de tal estrutura não foi tida como premente no território português metropolitano. De facto, não existindo na altura uma ameaça militar por parte de Espanha, o desenvolvimento de uma arte militar destinada especificamente ao campo de batalha terrestre não terá sido visto como prioritário pelos diferentes corpos sociais, uma vez que os compromissos imperiais de Portugal se desenrolam em teatros de operações onde predominam os confrontos de carácter naval ou de defesa de um sistema fortificado. De facto, para além de algumas operações de assalto com grande envergadura, a guerra que os portugueses praticavam será aquilo que se pode denominar «pequena guerra», cujas raízes se misturam com o tradicional modo árabe de combater, na qual se cultivavam as audácias e os feitos individuais de fidalgos ou cavaleiros. A actividade militar nas praças de Norte de Áfica ou no Oriente foi feita da mesma forma, mantendo a continuidade da forma medieval de fazer a guerra, émotive et désordonnée, nas palavras de Jean Aubin. Os confrontos entre cristãos e muçulmanos na península são assim transferidos para as novas fronteiras de Marrocos, de maneira que nos presídios marroquinos a guerra mantém características próprias que aparentemente se podem considerar ultrapassadas. Estas práticas serão imputáveis a uma tradição militar mais antiga, que se transfere para um teatro de guerra particular mais favorável a este tipo de operações, como se prova pela sobrevivência destes métodos ainda nos finais do século XVI. De facto, quando da jornada de D. Sebastião ao Alentejo e Algarve em 1573, os exercícios de cavalaria nos diversos «alardos» incluem a manobra das tropas a modo de África, nomeadamente os soldados montados que se apresentam à comitiva real armados de lança e com escudos de origem mourisca – a «adarga» – e o emprego de

A estrutura militar do reino – no capítulo do que se poderá

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«facheiros»1 a cavalo, tal como existiam no efectivo militar das praças do Norte de África:

expansão dos interesses da coroa espanhola, cuja área de influência se confrontou, desde cedo, com a grande potência militar da França.

Meia légua da cidade estava Rui Barreto, Capitão e Alcaide-Mor dela, com 80 de cavalo, muito bem concertados (...) estavam afastados da estrada, postos em cilada detrás de um outeiro, e tinham seu facho a modo de África, para darem rebate, quando fosse necessário.2

As campanhas no Norte de Áfica serviram também para consolidar o novo modelo militar, embora o teatro de operações não fosse especialmente favorável à actuação das novas tácticas, tendo em consideração o número e gravidade das derrotas espanholas. De facto, logo em 1507 assiste-se a uma incursão desastrosa ao Reino de Tlemcém, onde de um total de 4000 homens se salvaram menos de 500; em 1510, na sequência de um dos vários ataques efectuados à ilha de Jerba, de um total de 12 000 homens perderam-se 2000 contra um adversário que rondaria igual número de homens; mais tarde, no decurso do assalto a Argel, que ocorre em 1541, o exército espanhol foi completamente destroçado, tendo o imperador Carlos V corrido sério risco de vida. Estes são apenas alguns exemplos da dificuldade da situação militar no Norte de Áfica na primeira metade do século, pois este teatro de operações será ainda mais desfavorável a Filipe II na segunda metade de Quinhentos; os reveses militares então suportados pelos espanhóis passam pela pesadíssima derrota de Jerba em 1560, onde se perderam numerosos soldados veteranos incluindo alguns capitães de nomeada, como o futuro capitão-geral dos Países Baixos, D. Luís de Resquesens, e culminaram com a perda de Tunes em 1574.

Como vemos, os cavaleiros de Rui Barreto utilizam métodos próprios de um tipo de guerra irregular, «feito de emboscadas e razias»; a chegada da comitiva real põe em marcha a «cilada» que havia sido cuidadosamente preparada, conforme nos relata o mesmo cronista: Vindo El-Rei, mandaram-no descobrir por duas atalaias de cavalo, as quais chegando El-Rei voltaram, dando grandes gritas, e o facheiro deu com o facho no chão, dando rebate, ao que acudiram os de cavalo com toda a fúria dos cavalos (...) foram um pedaço escaramuçando pelo caminho.3

Em Espanha surgem desde cedo os compromissos militares em solo europeu a par do assédio à costa do Norte de Áfica; primeiro as campanhas de Nápoles, que têm início ainda no final do século XV, e depois as guerras dos Países Baixos. Será sobretudo no contexto da guerra em Itália, que a nova milícia se estrutura pelas exigências da

1.1 Os regulamentos em Portugal: as ordenanças

1

O facheiro tinha a missão de vigiar o campo numa torre situada dentro do perímetro fortificado ou nas torres de atalaia que se localizavam à volta das fortalezas. O facho era um sistema de alerta existente nas praças do Norte de Áfica: «Está no alto um maestro ou facho com um modo de cesto ou canastra sem fundo, coberto de pano breado e preso em uma roldana, por que sobe e desce; quando está no alto, é sinal que está seguro e ocupado das atalaias o campo que se toma, e quando desce ao meio de que a gente se recolha» (David Lopes, A expansão em Marrocos, Lisboa, 1989, p. 42). 2 Francisco de Sales Loureiro, Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve, Livros Horizonte, 1984, p. 113. 3 Id., ibid.

As ordenanças manuelinas Desde D. Manuel até D. João III assiste-se a sucessivas tentativas de implementação de um moderno sistema de ordenanças, falhando contudo a sua aplicação até ao reinado de D. Sebastião, altura em são publicados os vários regimentos que finalmente reorganizam o sistema militar até então vigente. Decorrendo o ano de 1508, publicaram-se dois

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alvarás designados por «ordenanças manuelinas». Estes diplomas procedem à reorganização dos soldados da guarda de D. Manuel, estabelecendo dois corpos, um apeado e o outro a cavalo, e instituindo para o seu comando o cargo de capitão-mor, atribuído a D. Nuno Manuel. As cem lanças desta guarda, cujos soldados deveriam ser recrutados em Lisboa, seriam divididas por cinco capitães subalternos, «Villalobos e Diogo Alvares e o Soares e Morales e Rui Gonçalves»1, experimentados na guerra moderna – «pessoas que são vindas de Itália»2 – definido o regime de treino a efectuar e o soldo e as armas com que seriam equipados; as cem lanças tinham peito com espaldeira, armadura da cabeça, celada e braceiras, alabarda, sendo pagos a dois cruzados; as vinte lanças a cavalo – a «Guarda da Câmara» – deveria usar «coiraças, capacetes, babeiras, espadas ou gocetes, e coxotes, e faldras ou escarcelas, e lanças e adagas, com vinte reais de soldo»3. Da mesma maneira que os castelhanos experimentam o novo sistema militar logo nas primeiras campanhas militares no Norte de África, também os soldados portugueses da ordenança vão actuar em Marrocos, organizados em companhias e enquadrados por oficiais. Nesse mesmo ano de 1508, são organizadas três companhias tendo em vista a intervenção em Marrocos, treinados por oficiais como Gaspar Vaz, Pêro de Morais e João Fernandes; a guarda real de D. Manuel é também destacada, sendo treinada por outro capitão veterano de Itália, Cristóvão Leitão. Em Agosto, estas tropas participam num primeiro assalto fracassado ao castelo de Azamor, e em Setembro encontram-se entre os socorros enviados a Arzila por ocasião do ataque dirigido pelo rei de Fez, e em Outubro são de novo enviados à cidade de Azamor, que é finalmente conquistada. No intervalo de tempo decorrido entre 1

A. F i M i ç gi ’ R y Histórico Militar, v. 24, Lisboa, 1954, pp. 161-165. 2 Id., ibid. 3 Id., ibid.

S .

Boletim do Arquivo

estas três acções militares, a prestação dos soldados da ordenança terá eventualmente melhorado; na última destas – a conquista de Azamor –, a gente de ordenança foi dividida em quatro «esquadrões» apoiados por atiradores besteiros e espingardeiros segundo os preceitos militares em vigor. A forma como as tropas manobraram revela já algum domínio das novas práticas militares adoptadas, certamente fruto da experiência entretanto adquirida em três operações sucessivas (Imagem 1). Imagem 1 – Formaturas em Orão, Azamor e batalha dos Alcaides

B A

B

B

A A B C

B

B

Orão, 1509

A

A

A

B C

B

B

Azamor, 1513

B

B

Batalha dos Alcaides, 1514

Legenda: A (cavalaria); B (infantaria); C (atiradores)

Também na Índia se revela ser necessário a reformulação do sistema militar, tornando-o mais apropriado à nova realidade que surge com o governo de Afonso de Albuquerque que, como se sabe, dá início a um movimento expansionista com um cunho mais marcadamente territorial. Este movimento será acompanhado pela introdução de uma nova estrutura militar desde pelo menos 1510, quando da primeira conquista de Goa. É nesta altura que vemos pela primeira vez referência

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A

ao emprego de gente de ordenança no Oriente, organizada por Albuquerque em unidades cuja estrutura orgânica inclui oficiais conhecedores da arte militar moderna: De toda a outra gente mais baixa mandou fazer rol, como seus nomes, como vinham assentados do Reino, e os ordenou que fossem suíços e andassem em ordenança.1

Logo nesta passagem constatamos que se pretendia que os soldados se agrupassem em formaturas regulares – andassem em ordenança –, formações essas designadas pelo nome «suíços» ou «suíças», em referência à ordem de batalha dos soldados suíços, que revolucionou os campos de batalha europeus no fim do século XV. Pera o que fez dois capitães que sabiam do mester, que já servirão em Itália, hum chamado João Fidalgo, outro Rui Gonçalves, a que deu ordenados como capitães de naos, e a cada hum deu doze homens para cabos de esquadra, e dois tambores e dois pífaros, e duas bandeiras, e iv ii (…) qual mantimento se pagava cada mês, que todos iam receber com seu tambor tangido, ordenados com seus piques em suíça, e cada cabo ’ i i v .2

A partir de 1512, coincidindo com a chegada dos referidos capitães da suíça «que já servirão em Itália», as companhias de ordenança assim criadas vêem fixado o seu efectivo em quatrocentos homens, divididos de acordo com o tipo de arma que cada soldado utiliza, a saber, 300 piques, 50 arcabuzes e 50 bestas, numa conjugação de armamento que reproduz os princípios militares empregados pelos castelhanos. Terá sido também por esta altura que foram introduzidos

os piques na Índia, ao mesmo tempo que os soldados eram pela primeira vez sujeitos a um adestramento regular, «os piqueiros ordenados com seus piques em suíça», e os atiradores «praticando o tiro na barreira aos domingos»3. Nesta orgânica encontramos os oficiais de enquadramento dos soldados de escalão mais baixo da «ordenanza» espanhola, conhecidos como cabos de esquadra, bem como oficiais superiores, experientes – «dois capitães que sabiam do mester, que já servirão em Itália» – isto para além de outros soldados presentes na orgânica das companhias castelhanas, como sejam as bandeiras, tambores, etc. Um aspecto a ter em consideração será a proporção entre oficiais e soldados, sensivelmente inferior ao preconizado nas ordenanças de Carlos V. De facto, os 10 cabos de esquadra para 25 soldados da «ordenanza» castelhana, comparados com os 12 cabos para 50 soldados previstos por Albuquerque, revelam a evolução que ocorreu no enquadramento hierárquico dos soldados em cerca de duas décadas. A nova estrutura militar não tardará a ser posta à prova no Oriente. Logo em Setembro desse mesmo ano de 1512, o capitão Pero de Mascarenhas comanda uma batalha de gente da ordenança, com fidalgos por cabos de esquadra, evoluindo no terreno utilizando manobras tácticas modernas. A acção, que ocorre durante o assalto a Benastarim, é descrita por Gaspar Correia com grande detalhe: Pero de Mascarenhas andou com a ordenança, e chegando onde ora está S. Lázaro fez o caracol com muita ordem...4

3 1

Gaspar Correia, Lendas da Índia, prefácio de M. Lopes de Almeida, v. 2, Porto, 1975, p. 44. 2 Gaspar Correia, op. cit., p. 44.

Vítor Luís Gaspar Rodrigues, «As Companhias de Ordenança no Estado Português da Índia, 1510-1580: Ensaios de criação do insucesso», Oceanos, n.º 19/20, 1994, p. 214. 4 Gaspar Correia, op. cit., v. 2, pp. 303-304.

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O caracol (Imagem 2) era uma formação comum entre os soldados portugueses durante todo o século XVI, e as referências ao seu emprego estendem-se muito para lá de 1512, chegando ao ano de 1573. Imagem 2 – O «caracol» segundo Melo (?) e Cicogna (1567) «Fará volta larga em redondo, irá demandar com a vanguardia a retroguardia, e chegando a ela, tornará pela banda de fora que lhe fique a retroguardia dentro, e desta maneira irá caminhando sempre bem j à (…) rregará a gente para dentro para que o caracol vá (…) é fi i ç . Martim Afonso de Melo, «Regimento de guerra», in Provas do livro IV da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, v. 4 - Provas, Coimbra, 1948

a. Martim Afonso de Melo (?)

também designada por alguns autores por galé (Imagem 3), da qual temos referência no texto de Martim Afonso de Melo e no tratado de Giovanni Matheo Cicogna.

Imagem 3 – Esquadrão em forma de «galé» «Fica parecendo esporão, e a retaguardia popa de Galé; e se vos sobejarem arcabuzeiros metereis um, e um entre fileira, e fileira de piques pelas ilhargas, então fica a Galé formada, os do meio por coxia, os piqueiros por remeiros.» Martim Afonso de Melo, op. cit., p.365

b. Giovanni Matheo Cicogna (1567)

Outra figura mencionada por Gaspar Correia é a galé fechada,

Giovanni Matheo Cicogna (1567)

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Também no Norte de Áfica se pode observar o emprego de soldados das ordenanças integrados nas novas estruturas militares orgânicas, que operam segundo conceitos tácticos modernos. Como já vimos, durante a conquista de Azamor em 1513 os soldados recrutados no reino foram inseridos em companhias, que no campo de batalha se formaram em quatro esquadrões guarnecidos por arcabuzeiros e besteiros, numa formatura semelhante à adoptada pelo exército castelhano na conquista de Orão em 1509. Este não foi certamente um mero acaso, dado que o exército de socorro enviado a Arzila em Setembro de 1508, por ocasião do cerco a esta praça, foi comandado por Pedro de Navarro que no ano seguinte dirigiu o assalto a Orão, e revela como os portugueses recolhiam a experiência militar castelhana.

deveriam depois aglutinar os contingentes «bisonhos» recrutados para uma campanha específica. Este modelo teve um período de maturação de cerca de uma década, durante a qual os exércitos castelhanos sofreram derrotas e conquistaram vitórias, mas que no final permitiu a consolidação de um sistema militar que vigorou sem grandes alterações até ao início do século seguinte. Com efeito, constata-se que já em 1510 se procedia ao pagamento regular a um corpo de soldados com cerca de 3000 homens o que, como refere Renée Quatrefages, indica que por esta altura se havia chegado à fase de consolidação de um processo antes iniciado.

Em 1513 e 1515, os soldados da ordenança marcam novamente presença – embora com uma prestação pouco convincente – nas expedições militares no Oriente e em Marrocos, primeiro na conquista de Azamor, depois na pesada derrota de Mamora. Talvez este revés fosse uma das razões para que no ano seguinte D. Manuel procedesse à extinção do seu corpo da guarda, o que na prática marca um fim prematuro para o processo de implementação da estrutura militar das ordenanças. Também na Índia, com o desaparecimento de Albuquerque do governo, foram extintas pelo seu sucessor as companhias de ordenança anteriormente criadas. Observa-se assim, em Portugal, que o pequeno intervalo de tempo durante o qual vigoram as sucessivas ordenanças não permitiu que o sistema pudesse usufruir do amadurecimento necessário à sua consolidação

Por duas vezes, primeiro em 1526, depois em 1549, data do regimento de 7 de Agosto, D. João III tentou introduzir um sistema de recrutamento e adestramento controlado pelo estado, que pretendia organizar os soldados em companhias de ordenança enquadradas por oficiais, estipulando ainda um regime fixo de treino; uma vez mais, será notória a incapacidade do rei – o poder central – para levar a cabo uma reforma profunda do sistema militar tradicional.

Ao contrário, em Castela, onde a intervenção em vários teatros de operações geograficamente muito diferenciados foi intensa – com particular ênfase para a Itália –, desde cedo foi premente a necessidade de existir um corpo de tropas regulares, experimentadas e imediatamente disponíveis, sob as ordens do rei, em torno dos quais se

As ordenanças de D. João III

Frustrados os objectivos perseguidos, as companhias de ordenança serão reactivadas pontualmente, sobretudo nas praças fortificadas do Norte de Áfica, onde era evidente uma penúria crónica de soldados nas guarnições. Contudo, a falta de soldados portugueses para preencher os seus efectivos obriga a frequentes recrutamentos em Espanha, especialmente na Andaluzia, o que acaba por contornar o problema. Esta é uma situação que se vai repetindo ao longo do tempo em virtude do crescente agravamento da situação militar, sobretudo no teatro de operações do Norte de Áfica. De facto, já na regência do cardeal D. Henrique, e na perspectiva de um ataque de grande envergadura a Tânger, o reforço da guarnição fez-se com o auxílio de

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homens recrutados na sua maioria na Andaluzia, organizados em quatro companhias, enquanto em Portugal se levantaram apenas três. Apesar de tudo, embora no decurso acções militares específicas, é possível observar o emprego em campanha de tropas utilizando formas modernas de fazer a guerra. No Oriente, descrevem-se acções militares nos anos de 1530 e 1535, onde os soldados portugueses manobram em formações ordenadas segundo figuras que vão desde o caracol até ao emprego do fogo de arcabuz por descargas controladas, que Martim Afonso de Melo descreve da seguinte forma: A carga de vanguarda se deve dar toda junta no inimigo antes que chegue, e para isto deve ser melhor que a tiro de arcabuz, a primeira fileira se ponha de joelhos, e a segunda em pé, e a terceira por entre uns soldados, e outros e disparem todos juntos a tiro de arcabuz.1

Outra acção interessante ocorre em 1541, quando um pequeno exército português enviado a socorrer o reino cristão da Abissínia desenvolve, durante mais de um ano, uma campanha militar terrestre, o que de algum modo se encontra desenquadrado do modelo de intervenção que os portugueses então praticavam no Oriente. O comandante do contingente, Cristóvão da Gama, revela dominar vários aspectos da arte militar moderna. Assim, faz enquadrar cada cinquenta soldados em capitanias separadas com os seus respectivos oficiais, que depois manobram na já mencionada formação em caracol, numa demonstração militar perante a comitiva real etíope. Em batalha, adopta também dispositivos defensivos com recurso a fortificações de campo temporárias, guarnecidos por soldados espingardeiros, artilharia, e ainda por um corpo de cavalaria, que embora com um efectivo limitado, desempenha um papel fundamental no decurso das operações. Como se vê, as formas de combater utilizadas por Cristóvão da Gama encontram-se perfeitamente enquadradas no contexto das práticas

militares do século XVI; podemos mesmo detectar grandes semelhanças com os dispositivos de combate adoptados por Gonçalo de Córdova durante as guerras em Itália, nas batalhas de Cerignola (1503), Ravena (1511), e Bicocca (1522), embora numa escala muito reduzida. Assim, o suposto atraso militar que se observa em Portugal pode associar-se mais à posição marginal – geográfica e política – que ocupa na Europa e que permitiu um afastamento dos conflitos que ocorriam a leste da sua fronteira. Contudo, a rivalidade entre os estados do continente europeu exerce uma crescente pressão sobre o império português que se intensifica com o progredir dos anos, e que obrigará a uma futura revisão de fundo de todo o potencial militar do reino, em particular no que concerne às forças terrestres. As ordenanças sebásticas Um dos aspectos fundamentais da reestruturação militar do reino prende-se com a necessidade de controlar as fontes de recrutamento que, de uma maneira ou outra, é possível observar por todo o continente europeu. Efectivamente, no decurso do século XVI, os principais estados da Europa procuram reformular o sistema militar vigente de forma a obter a sua subordinação ao poder central, seja o estado ou o monarca. A Espanha, em particular, para manter a sua situação de ascendente nos territórios sob a sua influência, necessita de um fluxo permanente de soldados para alimentar os exércitos nos diversos teatros de operações. O motor da implementação de novas atitudes e modelos militares, seja no domínio da arte militar na sua vertente «táctica», ou no âmbito da fortificação, está naturalmente associado à própria existência de conflitos que forçam a introdução de novos métodos de combate. Poder-se-á perguntar se a ausência do teatro de operações de

1

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 335.

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Itália e Flandres teria permitido o desenvolvimento do extraordinário sistema militar espanhol; o caso da Inglaterra poderá sugerir pistas neste sentido. Sendo um dos países que exerce uma crescente pressão sobre Portugal, a Inglaterra apresenta na evolução das instituições militares algumas semelhanças, devido também à sua posição marginal geográfica e política – tal como Portugal – relativamente à Europa. Depois do fim da presença em França, os efectivos militares terrestres da coroa inglesa são empregados sobretudo nos conflitos militares provocados pelas guerras internas que assolaram o território, não forçando um contacto directo com o espaço da Europa continental onde se desenvolvem as novas práticas militares. O sistema de milícias que então vigorava na Inglaterra previa o serviço obrigatório de todos os homens com idade entre os 16 e 60 anos, contando com um efectivo global que poderia ascender aos 120 000 homens, mas cujo valor militar das tropas se traduzia numa relação inversamente proporcional ao seu elevado quantitativo. A pressão militar exercida por inimigos exteriores é reduzida até ao momento em que cresce o antagonismo com outras potências. O evoluir da tensão com a Espanha chama a atenção das autoridades para a falta de adequação dos soldados da antiga milícia face às exigências da guerra moderna; de facto, na Inglaterra quinhentista a evolução militar encontrava-se de tal maneira desfasada das práticas em vigor na Europa continental, que armas então consideradas arcaicas, como o arco tradicional de origem galesa, ainda continuavam ao serviço em 1588, embora em números reduzidos. Assim, o sistema será alterado em 1573, obrigando a instituição militar a enveredar por uma actualização rápida em face das circunstâncias. A principal alteração à milícia toma forma na criação de um corpo de soldados escolhidos armados pelos particulares, as «trained bands», de acordo com a respectiva capacidade financeira. A intenção do novo sistema seria proporcionar o serviço de uma força militar escolhida, cujos soldados seriam devidamente

adestrados na utilização das modernas armas de fogo, e não implicava a extinção da antiga milícia, cujos efectivos adoptaram a designação de «untrained bands». Em Portugal, sobretudo a partir das cortes de 1562-63, foi perceptível um recrudescimento do movimento favorável a uma reorientação no império, pretendendo-se novamente transformar o Norte de Áfica como o centro de gravidade da expansão ultramarina. Em apoio desta estratégia, podemos descortinar uma maior preocupação do rei com a reestruturação do poder militar do reino, que procura adoptar formas de organização orgânica e táctica actualizadas que permitissem sustentar esta política. Num momento em que a política imperial pretende assumir um carácter mais territorial procurando aumentar a extensão dos domínios ultramarinos através de novas conquistas, o governo de D. Sebastião empenha-se igualmente no reforço do seu poder, no qual o exercício do controlo régio na condução da guerra desempenha um lugar privilegiado. Como se sabe, o seu reinado é profícuo na produção de legislação de carácter militar (tabela I), que procura uma vez mais organizar a estrutura militar do reino contemplando a normalização do armamento, passando pela fortificação costeira, construção naval e, por fim, a introdução de um sistema orgânico que enquadre os soldados recrutados no reino. Com a instituição das ordenanças, procura-se uma vez mais introduzir e controlar o recrutamento e adestramento dos soldados com base na população do reino que, não sendo inovador, resume todo o esforço legislativo anterior – desde D. Manuel – numa única série de diplomas publicados entre 1569 e 1574, reestruturando o poder militar do reino segundo um sistema único e coerente. Em Portugal seguiu-se de perto a prática do país vizinho, uma vez que a supremacia militar pertencia, então, aos seus exércitos e generais.

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Numa perspectiva estritamente militar, as ordenanças sebásticas adoptam a orgânica militar de base do sistema castelhano, a companhia, designada também como bandeira ou capitania. Os castelhanos tinham

como principal comandante da companhia o capitão, que por sua vez tinha a seu cargo um barbeiro, um capelão e músicos, estes últimos destinados a transmitir as ordens aos soldados.

Tabela I Data 1563 3 de Agosto

Local

Lei

Lisboa

Lei que trata da defensão dos meus lugares e conservação do estado da Índia

1568 1569 16 de Maio 6 de Dezembro

Capitania-mor da cidade do Porto Lisboa Évora

1570 3 de Janeiro

Évora

28 de Janeiro 10 de Dezembro

Salvaterra Almeirim

1571 14 de Agosto 3 de Novembro

Sintra

Capitania-mor e Capitanias da cidade de Lisboa Lei das armas que cada pessoa é obrigada a ter em todos os Reinos e Senhorios de Portugal Provisão sobre as rendas aplicadas para a fortificação dos lugares de África Regimento das Alçadas Regimento dos capitães-mores e mais capitães, e oficiais das companhias de gente de cavalo e de pé; e da ordem que terão em se exercitarem

«Provisão sobre os Oficiais de fazer limpar e guarnecer as armas» Lei de como hão-de ir armados os navios que deste Reino navegam

Almeirim 1572 6 de Fevereiro 1574 15 de Maio

Almeirim

Regimento e Estatutos sobre a Reformação das três Ordens Militares

Almeirim

Provisão sobre as Ordenanças

Nota: O Regimento das Alçadas, não se tratando de legislação com carácter especificamente militar, regulamentava contudo a vistoria e reparação das fortificações dos portos

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A unidade base de combate era a «cuadrilla», que agrupava 25 soldados comandados por um cabo, o que reforça a semelhança entre a orgânica espanhola e a que foi implementada pelas ordenanças de 1569: E toda a gente (…) repartirá por esquadras de vinte e cinco em vinte e cinco homens, tomando para isso os mais vizinhos que melhor se possam ajuntar. E para cada esquadra elegerá o Capitão da companhia um homem da terra que for mais para isso, que seja seu cabo, ao qual serão obrigados a acudir os vinte cinco de sua esquadra todas as vezes que ele requerer (...) cada companhia será de duzentos e cinquenta homens em que haverá dez esquadras, e terá um Capitão, e um Alferes, e um Sargento, e um Meirinho, e um Escrivão, e 10 cabos.1

O corpo de oficiais e as suas funções militares preconizadas pelo regimento, enquadram-se no modelo castelhano. O comandante da companhia é o capitão, coadjuvado pelo sargento; a hierárquia compreende, tal como em Espanha, um meirinho e um escrivão, responsáveis pela prática administrativa como o assentamento dos soldados da companhia. Quando existem várias companhias, a capitania destas será entregue a um capitão-mor, secundado por um sargentomor. Outras formações de maior dimensão teriam provavelmente um comandante nomeado pelo rei, como sucedeu com os quatro terços ou «coronelias» levantadas para a expedição de 1578. O soldado portabandeira tem uma função militar distinta, não de comando, mas como centro de congregação dos soldados, quer nos alardos quer em batalha, função que nestas situações será desempenhada pelo alferes abandeirado, o terceiro oficial na hierarquia da companhia. A implementação dest sistema teve o seu início oficial a 6 de Março de 1568 com a criação, no Porto, de companhias com o efectivo 1

«Regimento das companhias», in D. António Caetano de Sousa, Provas do livro IV da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, v. 4 – provas, Coimbra, Atlântida,, 1948, v. 4, p. 298.

de trezentos homens. Estas eram comandasa por um capitão-mor, cargo desempenhado por João Rodrigues de Saa, alcaide-mor da cidade. Ainda no ano de 1568, D. Luís de Ataíde é nomeado para governador do estado da Índia com regimento para assentar os soldados em bandeiras, estendendo-se assim o regime das ordenanças ao Oriente. Deste regimento apenas ficou registo na guarnição de Ormuz, cujo efectivo de 400 homens se encontrava enquadrado por 8 cabos, 1 sargento e 1 alferes. O facto de o total destas companhias não coincidir com o preconizado para as capitanias do Porto, demonstra a ausência de uniformidade. Aliás, se consultarmos a tratadística da época, verificamos que os totais recomendados para o efectivo das companhias varia – quase podemos dizê-lo – de autor para autor. Em 1569, são reactivadas companhias de ordenança em Lisboa, tsendo D. João de Mascarenhas, do Conselho do Rei, como capitãomor. O efectivo seria também de trezentos homens, devendo este levantar uma companhia em cada freguesia da capital. Data também desse ano de 1569 a Lei das Armas, que apesar de não apresentar diferenças substanciais relativamente à lei de 1569 é, contudo, o primeiro diploma que D. Sebastião promulga e que marca o início de um novo processo visando a reestruturação do sistema militar português. Logo no ano seguinte, em 1570, o Regimento dos Capitães Mores generalizou o levantamento das capitanias à totalidade do território – agora designadas como companhias –, reduzindo o seu efectivo para duzentos e cinquenta soldados, e fixando definitivamente uma orgânica idêntica para todo o país. Esta lei restabeleceu também um regime de adestramento obrigatório para os soldados, fixando a periodicidade dos exercícios de campo. Destes exercícios – designados por alardos, seguindo ainda uma nomenclatura antiga de raiz árabe, o «al-ard» – existem registos nas obras dos cronistas João Cascão e Pero Roiz Soares, através dos quais podemos estabelecer uma listagem, ainda que provisória (tabela II), para a sua realização.

Tabela II Data 16 (?) de Abril de 1569 Março de 1570 Dom. Julho 30 de Julho

Local Porto: campo do Olival Évora: rossio de S. Braz Porto: campo do Olival Lisboa: Stº Amaro

Cavalos -

Lisboa: Stº Amaro Lisboa: Stº Amaro Lisboa Lisboa: Stº Amaro

Companhias Mecânicos ? 300 homens 2 (300): freguesia de S. Nicolau Freguesia da Madalena 10 (?) 30 (?) Lisboa Lisboa

? ? -

Comandante Capitão-mor Italiano prático Capitão-mor ? Braz Carracão João de Brito ? ? ? ?

3 de Setembro 29 de Setembro 14 de Junho de 1571 31 de Outubro 2 de Janeiro de 1573 3 de Janeiro 3 de Janeiro 7 de Janeiro 9 de Janeiro 14 de Janeiro 18 de Janeiro 19 de Janeiro 22 de Janeiro 23 de Janeiro 24 de Janeiro 24-25 Janeiro 25-26 de Janeiro 27 de Janeiro 28 de Janeiro 28 de Janeiro 29 de Janeiro 30-31 de Janeiro

Viana do Alentejo Cuba Beja Castro Verde Ourique Colos Odeceixe Lagos Lagos Raposeira Alvor Vila Nova de Portimão Monchique Silves Alcantarilha Albufeira Loulé Faro: ermida de Stº António

? ? 5 (?) 2 (?) 5 (1000) 1 (150) 5 (?) ? ? 2 (?) 3 (?) 1 (?) 9 (?) 1 (250) 2 (?) 3 (?) 9 (?)

Ginetes (?) 20 ginetes 69 ginetes ? ? 14 ginetes 14 ginetes 150 ginetes 7/8 ginetes 30 ginetes 100 ginetes 80 ginetes

? ? ? ? ? ? ? Corregedor ? ? ? ? ? Juiz Juiz ? Juiz Alcaide

31 de Janeiro 3 de Fevereiro 3 de Fevereiro 5 de Fevereiro 6 de Fevereiro 7 de Fevereiro 9 de Fevereiro 10 de Fevereiro 11 de Fevereiro 22 de Janeiro de 1578 ? Março 14 -15 de Junho

Tavira: ermida de Nª Sª da Luz Castro Marim Alcoutim Mértola Serpa Moura Mourão Olivença Elvas Lisboa: Alvalade Cascais: rossio grande Lisboa: campo de Stª Clara

Conforme se conclui desta listagem, a realização dos exercícios militares faz-se, como seria de esperar, logo a seguir ao início da implementação da nova legislação, em 1570; se nos anos seguintes a ordenança não se exercitou, será um assunto ainda sujeito a uma verificação mais cuidadosa. Em todo o caso, o recrutamento de soldados não terá corrido como o previsto, uma vez que a 24 de Junho de 1571 o rei, dirigindo-se por carta à câmara de Lisboa, solicita que se aplique a lei promulgada no ano anterior no respeitante ao recrutamento de soldados e respectivo adestramento: Para a câmara auxiliar o corregedor Diogo da Fonseca a recensear de novo a gente da cidade e ordenança da companhia; e bem assim para se proceder ao alistamento da do termo, a fim de que se exercite também conforme à da cidade. E depois da dita gente do termo ser toda escrita e assentada me escrevereis quanta é, e os capitães que para ela serão necessários.1 1

Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do município de Lisboa, 1.ª p., t. 1, Lisboa, 1885, p. 579.

7 (?) 2 (?) 5 (?) 5 (?) 7 (?) 11 (?) 2 (?) 4 (?) 3 (?) 13 (2500) 12 (alemães) 12 (terço)

100 ginetes 10/12 ginetes ? ? 92 ? 100 10/12 50 ? 200 ? ? -

? ? ? ? ? Alcaide Alcaide ? ? Coronéis dos Terços Coronel Martim da Borgonha Coronel

Apesar da insistência do rei, apenas a 31 de Outubro desse ano temos conhecimento de um exercício militar, provavelmente envolvendo todas as companhias da capital; pelas grandes proporções deste exercício, que envolveu alguns milhares de homens, talvez se procurasse obstar à fraca assiduidade dos exercícios da ordenança em relação ao que havia sido regulamentado. Apenas em 1573, um ano antes da primeira jornada a África de D. Sebastião, podemos detectar uma maior preocupação com o funcionamento do novo sistema militar, com a inspecção do sistema ao nível «nacional». Não será certamente coincidência o rei proceder a uma viagem pelo Alentejo e Algarve, onde as ordenanças se apresentaram de forma bastante favorável, pelo menos em termos quantitativos. De facto, durante a deambulação do rei pelo sul do país, que teve lugar entre 2 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 1573, foram inspeccionadas cerca de cento e vinte e duas companhias de ordenanças Também a preparação militar da gente da ordenança no sul de Portugal parece ter desfrutado de algum sucesso, como se pode deduzir

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da descrição feita por João Cascão, que viajou integrado na comitiva real. São cinco as ocasiões em que o cronista se refere de forma elogiosa relativamente aos soldados que pelo caminho vão sendo inspeccionados:

acostumados às movimentações no terreno agrupados em formação regular – «uma “ i ” de perto de 100 moços vestidos à mourisca, com seus arcabuzes – manobrando de seguida em «caracol cerrado, e deram sua salva de arcabuzaria».

Sábado, 10 de Janeiro (...) partiu da forma costumada e veio jantar a Ourique, ao caminho o vieram receber, como se costuma, os homens bons da terra, e achou mais num outeiro, pegado a um lugar, um esquadrão de cinco bandeiras que tem mil homens. E foi a melhor Ordenança que em todos estes lugares achámos.1

6.ª feira, 30 de Janeiro (...) às 7 horas dadas, partiu para a cidade de Faro (...) e meia légua da cidade estava Rui Barreto, Capitão e AlcaideMor dela, com 80 de cavalo, muito bem concertados (...) foram um pedaço escaramuçando pelo caminho e adiantaram-se, puseram-se todos numa ala e, ao passar El-Rei, puseram – os que tinham bandeirinhas – os ferros no chão (...) mais perto da cidade estavam em muito boa ordem nove bandeiras da ordenança, e passando El-Rei por cada uma abaixavam três vezes – como é costume de quem sabe – e faziam sua salva de arcabuzaria.3

O cronista, ao referir «um esquadrão de cinco bandeiras que tem mil homens», dá-nos a indicação de que em Ourique a ordenança havia sido rigorosamente observada; de facto, cada companhia tinha no seu efectivo os 250 soldados estipulados no regimento de 1570. 2.ª feira, 19 de Janeiro, partiu El-Rei de Odeceixe, duas horas antemanhã, e veio ouvir missa a Aljezur, que são duas léguas (...) partiu El-Rei deste lugar, às duas horas, para Lagos; veio pelo caminho só, sem o senhor D. Duarte, nem o Duque de Aveiro, até chegar a uma ribeira a uma légua de Lagos, onde os chamou por aqui o estarem já esperando 69 homens a cavalo, com suas lanças e adargas. E assim suas pessoas com os cavalos muito bem concertados, posto todos em uma ala (...) mais adiante achou uma «soisse» de perto de 100 moços, vestidos à mourisca, com seus arcabuzes, e seu capitão, e oficiais que, passando El-Rei, fizeram um caracol cerrado, e deram sua salva de arcabuzaria; alguns de cavalo arremeteram com eles, e se defenderam com ordem.2

O alcaide da cidade, Rui Barreto, demonstra ser um soldado prático, dirigindo um corpo de cavalos «muito bem concertados», executando um ataque próprio de guerra irregular – «escaramuçando» – para logo de seguida se reagruparem, manobra sempre difícil de realizar com cavalaria, demonstrando que tanto o comandante como os cavaleiros se encontram acostumados às movimentações militares. Na passagem seguinte, o mesmo Rui Barreto provará que também domina os movimentos colectivos das grandes formações de soldados próprios dos encontros campais, exibindo todas as companhias de ordenanças da cidade de Faro – que deveriam totalizar mais de 1000 homens – devidamente formadas, «em boa ordem» para usar as palavras do cronista. Sábado, 31 de Janeiro, esteve El-Rei ouvindo missa na ermida de Santo António (...) e num campo, que está pegado à ermida, estava-o esperando Rui Barreto a pé, com todas as bandeiras de Ordenança em boa ordem, cada uma por si e com toda a gente a cavalo (...) Às dez

Aqui, podemos observar que os soldados, devidamente enquadrados pelo «seu capitão, e oficiais», demonstram estar 1 2

Francisco de Sales Loureiro, op. cit., p. 89. Id., ibid., p. 97.

3

Id., ibi, pp. 112, 113.

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horas partiu para a cidade de Tavira (...) até chegar a uma igreja da advocação de Nossa Senhora da Luz, uma légua de Tavira, onde da cidade o esperavam a gente de cavalo, e seriam 100, muito bem concertados; e muitos deles à mourisca, e todos com suas lanças e adargas, e sete bandeiras de Ordenança, as quais antes de chegar El-Rei um bom pedaço fizeram sua salva muito bem feita.1

No ano seguinte – em Maio de 1574 – é publicada a provisão sobre as ordenações, clarificando e alterando algumas das disposições do anterior diploma, uma das quais será a abolição do alardo previsto para o mês de Maio. Torna-se assim evidente uma tentativa de aligeirar o sistema militar, tornando-o um pouco menos pesado para a população – reduzindo assim o seu não cumprimento – embora sem prescindir do que era entendido como conveniente para a preparação militar do reino. A propósito das provisões de 1574, devem-se sublinhar duas situações. Em primeiro lugar, a publicação de nova legislação é feita na sequência de uma viagem que se pode considerar como destinada a verificar o funcionamento do aparelho militar instituído com as ordenanças. Depois de um ano de reflexão, aligeira-se o encargo das populações com os exercícios periódicos – «por escusar opressão, e trabalho ao povo», parafraseando Caetano de Sousa – e agravam-se, ao mesmo tempo, as penas pelo incumprimento das disposições do regimento, nomeadamente no que respeita às faltas dos soldados ou inexistência de armas. Por outro lado, o novo documento é promulgado pouco antes da primeira jornada de D. Sebastião ao Norte de Áfica, que teve lugar em Junho do mesmo ano, pelo que parece que o rei pretende dar novo fôlego ao sistema de forma a conseguir os efectivos militares necessários à expedição. De facto, o levantamento da gente para esta 1

Francisco de Sales Loureiro, op. cit., p. 115.

jornada inicia-se a 2 de Junho de 1574, estando prevista a sua conclusão a 20 do mesmo mês. D. Sebastião tinha calculado levar um total de mil cavalos e seis companhias de gente a pé; os cavaleiros das guarnições das praças do Norte de Áfica – «gente de Tânger, Mazagão, e Ceuta»2 – deveriam enquadrar um corpo de cavalos levantado no reino, «que vão com o Sr. D. António»3, e da mesma forma se procederia com o contingente de infantaria, a «gente de pé»: Como se fará a gente de pé e em que lugares. Fazendo-se conta de quinhentos soldados que pode haver em Tânger se farão mil e quinhentos mais.4

Estes soldados foram agrupados em companhias de 250 homens enquadrados por oficiais, seguindo o estipulado pelo regimento de 1570. Este corpo expedicionário foi, pois, organizado com recurso directo às reformas militares entretanto instituídas. Que para as seis companhias desta gente se busque seis capitães e seis Alferes dos mais práticos da ordenança e guerra dos que houver das comarcas ou andarem por cá, e buscar-se-ão seis sargentos práticos, e de cada quatro companhias deve haver um coronel fidalgo para maior autoridade, e escolher-se-ão dos que vão. Nomeando-se por Coronéis António de Távora, D. Gastão Coutinho.5

A 19 de Julho, D. António parte para Tânger com instruções para aguardar o rei na cidade. Ia acompanhado de 400 aventureiros com muitos fidalgos, que juntos com as tropas estacionadas em Tânger totalizavam 800 cavalos; os soldados de infantaria rondariam os 1400 2

5.º conde de Portalegre, Relação das coisas principais que sucederam em Portugal em tempo del rei D. Sebastião, 1640, p. 213. 3 Id, ibid. 4 Id, ibid, p. 215. 5 Id., ibid.

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homens divididos em quatro companhias, duas levantadas em Lisboa e as outras duas no Porto1. Nas palavras do próprio rei, o embarque prévio deste contingente tinha um objectivo – «para que se exercitasse nesta guerra, e do exercício dela sairiam Capitães e soldados experimentados com que melhor se pudesse prosseguir e fazer ao diante»2. Finalmente, a 17 de Agosto, D. Sebastião embarcou em Lisboa com destino ao Norte de Áfica, juntando-se às forças de D. António, que já se encontravam na cidade de Tânger. O período final, em que novamente se observa uma intensa preocupação com o funcionamento do novo sistema militar tem, naturalmente, lugar nos anos de 1577-78 com a preparação da segunda jornada ao Norte de Áfica. A situação que se vivia na altura em Marrocos foi entendida por D. Sebastião como favorável a uma intervenção militar, e a tomada do poder pelo xarife Abd al-Malik em 1576, com o auxílio de um contingente de mercenários proveniente de Argel, foi o catalisador para o início de um longo movimento de dois anos para a preparação da expedição, usufruindo também da experiência adquirida na primeira jornada ao Norte de Áfica. A forma de efectuar o recrutamento das tropas para a campanha não diferiu dos sistemas utilizados por outros países, nomeadamente da Espanha; é feita a contratação de tropas no exterior – os mercenários – e o alistamento compulsivo dos homens válidos no interior das próprias fronteiras. Em meados de 1577, definido já como objectivo principal atacar o porto de corsários de Larache, D. Sebastião solicita um encontro com o seu tio, Filipe II, no sentido de este lhe proporcionar um auxílio que o monarca português já havia estimado em cinco mil soldados e cinquenta galés. O elevado número de galés – navios 1

5.º conde de Portalegre, Relação das coisas principais que sucederam em Portugal em tempo del rei D. Sebastião, 1640, p. 215. 2 Joaquim Veríssimo Serrão, Itinerários de El-Rei D. Sebastião (1568-1578), Lisboa, 2.ª ed. corrigida e aumentada, 1987 [1.ª ed. 1962], p. 332.

imprescindíveis no apoio ao desembarque de tropas – pretendido por D. Sebastião não deixa margem para dúvidas de que o objectivo inicial da expedição seria, de facto, o desembarque e tomada do porto de Larache. Filipe II negociava então tréguas com o sultão otomano. De facto, a perda de diversas fortalezas no Norte de Áfica por parte dos castelhanos por um lado, e as derrotas navais dos turcos por outro, obrigaram as duas principais potências no Mediterrâneo a procurarem um entendimento que lhes permitisse concentrar os esforços militares noutros teatros de operações. As manobras dilatórias do monarca castelhano daqui decorrentes, relativamente ao auxílio acordado no encontro de Guadalupe, levaram D. Sebastião a procurar o concurso de soldados mercenários, primeiro em Itália e depois na Alemanha, onde recrutou cerca de 3000 tudescos veteranos das guerras da Flandres. A estes haveria de se juntar mais tarde um contingente de soldados castelhanos, que segundo os vários cronistas se situava entre 1600 e 2200 homens, e ainda um pequeno número de italianos que fortuitamente aportou em Portugal. A esta tropa escolhida, o rei mandou juntar alguns soldados veteranos retirados da guarnição de Tânger, substituindo-os por outros que viriam no contingente levantado no reino; curiosamente, tendo solicitado o mesmo ao capitão de Ceuta, este escusou-se a prestar auxílio. Quanto ao efectivo nacional a integrar na força expedicionária, deu-se início, entre 1577 a 1578, ao levantamento de gente da ordenança por todo o reino, bem como aos exercícios necessários para adestrar as tropas recrutadas. Uma primeira decisão para levantar 4000 homens sob as ordens de dois coronéis, nomeando por mestre-decampo-general D. Manuel de Portugal, foi tomada pelo rei a 15 de Junho de 1577, rectificada logo a 26 do mesmo mês de forma a aumentar para 4 o número de coronéis. A três de Setembro de 1577, Pero Lopes, que será mais tarde nomeado sargento de um dos terços na

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Batalha de Alcácer Quibir, foi incumbido do levantamento de gente da ordenança nos lugares das comarcas de Coimbra, Porto e Viana. Os soldados, recrutados em pequeno número devido, segundo Sales Loureiro, à «esterilidade do ano de 1574, causa da fome de 1575»1 e ainda por causa da peste de 1577, foram depois distribuídos pelos quatro terços que se levantaram no reino. O primeiro terço a ser organizado seria comandado por D. Miguel de Noronha, e deveria contar com os homiziados para preencher o seu efectivo. Para isso, foi emitido a 10 de Outubro um alvará que impedia a sua prisão, revogado a 15 de Dezembro, e é de supor que a incorporação destes homens deverá ter começado mais ou menos por esta altura. Por meados de Dezembro de 1577, foram nomeados três coronéis destinados aos restantes terços, de três mil homens cada um. Ficava entregue a Francisco de Távora o levantamento de gente no Alentejo e Algarve; Diogo Lopes de Sequeira e Vasco da Silveira ficavam encarregados das regiões da Estremadura e Lisboa. Estes contingentes foram chegando a Lisboa, com excepção dos soldados comandados por Francisco de Távora, que depois de arregimentados foram juntar-se à frota expedicionária em Lagos. No que respeita ao treino da gente da ordenança destinada à jornada de África, este parece ter começado em Lisboa no início de 1578, conforme podemos verificar pela listagem da tabela II. A 22 de Janeiro, o embaixador espanhol, D. Juan da Silva, faz alusão a uma saída do rei para o campo – Sto. Amaro ou Alvalade, a julgar pelo local onde se costumavam realizar os alardos da capital – ver «un golpe de infanteria desta comarca», cerca de dois mil e quinhentos homens 1

Francisco de Sales Loureiro, O Porto e Alcácer Quibir, Porto, 1979, p. 15. Estas calamidades afectaram as regiões de Entre-Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras, regiões que foram ainda sujeitas à pressão da peste de 1577, que teve o seu início no norte de Portugal.

distribuídos por treze companhias. O embaixador castelhano notava que, por esta altura, os soldados já começavam a perder «el miedo al arcabuz», o que indica que o adestramento tinha lugar há algum tempo com alguns resultados positivos no comportamento militar da gente bisonha levantada no reino. Apesar da diferença entre os números de soldados pretendidos pelo rei – 12 000 – e aqueles que os cronistas referem com tendo sido de facto levantados no reino – cerca de 9000 –, verifica-se que o novo sistema militar terá, de facto, funcionado, e foi com a gente da ordenança que se construiu a base quantitativa do exército, até porque havia sido dispensada a participação dos homiziados. As grandes dificuldades sentidas no arrolamento dos homens destinados à expedição é situação comum também em Espanha, onde as exigências de um crescente número de soldados para prestar serviço militar nas várias possessões e teatros de operações – o Norte de Áfica, as Américas, as guerras da Flandres, a invasão de Portugal ou a campanha contra a Inglaterra – constitui um peso significativo nos recursos humanos do país. Geoffrey Parker refere estas dificuldades no recrutamento já em 1575, quando de 2500 soldados previstos para prestar serviço em Itália, apenas terá sido possívelobter cerca de 1750. Em Portugal, embora até meados do século XVI a população seja suficiente em face das exigências do Império, sente-se, contudo, uma maior dificuldade na resposta em situações de crise, recorrendo-se ao recrutamento externo, em especial na Andaluzia. No último terço de Quinhentos, o país foi assolado por diversas calamidades, como a peste de 1569 e a fome que lhe sucedeu, e que afectou em particular o Norte; em consequência, o recrutamento de tropas em 1577-78 não conseguiu nesta região mais do que um magro efectivo. Em todo o caso, pode-se estabelecer a comparação entre o

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efectivo do exército levantado para a expedição ao Norte de Áfica de 1578, e outras expedições levadas a cabo pelos castelhanos durante o século XVI. As campanhas de maior vulto de Carlos V no Norte de Áfica revestem-se de particular importância para melhor compreender a expedição portuguesa de 1578, em particular a conquista de Tunes, que ocorreu em 1534. O corpo expedicionário reunido abarcou soldados voluntários de diversas nações da Europa, pelo que Tunes representará, durante muito tempo, o modelo de referência para as intervenções das potências cristãs neste teatro de operações, até porque Carlos V personificava, como se sabe, o monarca cristão de referência para D. Sebastião. Da comparação entre os efectivos das várias expedições castelhanas (tabela III), com o exército que D. Sebastião levou a África em 1578, não encontramos diferenças substanciais entre os quantitativos das tropas envolvidas. Já do ponto de vista qualitativo, a avaliação poderá ser, eventualmente, de outra ordem. Tabela III Ano

Campanha

Efectivos de infantaria

Efectivos de cavalaria

1534

Tunes

Total: 2000 cavalos

1541

Argel

Total: 26 000 homens 10 000 italianos e 2400 portugueses Total: 20 000 homens 7000 acstelhanos, 6000 alemães e 6000 italianos

1560 1563 1573 1580

Jerba Pinhão de Velez Tunes Alcântara

10 000 homens 2000 castelhanos e 1500 portugueses 9000 castelhanos, 5000 Alemães e 13000 Italianos 12 000 homens

2000 cavalos Castelhanos (?) e 300 Portugueses

Total: 1100 cavalos

1500/2000 cavalos

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Capítulo II – Os tratados e os seus autores 1. A tratadística militar espanhola

A

produção teórica quinhentista espanhola, excluindo os textos específicos dedicados à fortificação, pode dividir-se em dois períodos distintos, o primeiro que vai de 1536 a 1565, e outro de 1578 até ao fim do século. 1.1 De 1536 a 1565 O primeiro período abarca as obras que têm como referência o tratado de Nicolar Maquiavel, e compreende um intervalo que vai de 1536, data da publicação do Tratado de Re Militari, de Diego Salazar, até ao texto com o mesmo título escrito por Diego Gracián, datado de 1565. Diego de Salazar (1536) Diego de Salazar comandou em 1506 um contingente de tropas recrutado em Toledo, por ocasião da expedição a Orão organizada pelo cardeal Cisneros, tendo depois militado nas guerras de Nápoles sob as ordens de Gonçalo de Córdova. A partir de 1523, retirado da vida militar activa, dedicar-se-á à escrita, cuja primeira obra conhecida será o Tratado De Re Militari. A obra de Diego de Salazar – que juntamente com Diego de Montes, marca o início da produção teórica militar em Espanha – consiste numa versão espanhola da Arte de Guerra de Maquiavel, onde o autor faz um discurso, se não apologista da guerra, pelos menos sublinhando a importância de os estados possuírem uma milícia de cidadãos como forma de afirmação de soberania, enquadrado no

contexto da realidade peninsular. Devem-se, contudo, referir dois importantes aspectos que distinguem a obra de Salazar da de Maquiavel. Em primeiro lugar, observe-se o carácter da milícia. Se bem que perfilhando a crítica feita por Maquiavel aos exércitos constituídos por mercenários, Salazar entende a milícia como uma instituição «nacional», não a instituição cívica que defende o italiano no sentido em que os soldados são tidos como súbditos que servem o estado – este cristalizado na pessoa do rei –, indo assim ao encontro da noção de monarquia centralizada adoptada em Espanha. Por outro lado, a experiência militar do autor adquirida em Itália sob as ordens de Gonzalo de Córdova está patente em toda a obra, juntamente com advertências do «gran capitán» relativas à prática militar. No decurso das guerras de Itália, Salazar adquiriu a experiência necessária que lhe permitiu propor alterações significativas ao modelo teórico de Maquiavel, dando ao seu texto um carácter distinto daquele que lhe serviu de base. A nova organização militar proposta por Diego Salazar também introduz modificações fundamentais à fonte original, a mais importante das quais será o facto de preconizar o uso de armas de fogo portáteis – os arcabuzes – pelos soldados como parte integrante da orgânica das novas unidades militares Na sequência do tratado de Salazar, surgiram vários textos que se podem considerar subsidiários deste. No ano seguinte, em 1537, publica-se a obra de Diego de Montes, Instrucción y Regimiento de Guerra, que da mesma forma que o seu predecessor se define também como uma das primeiras tentativas dos tratadistas espanhóis no sentido de sistematizar as novas formas de fazer a guerra. Um ano depois, em 1538, Pedro Luís Scrivá escreve um manuscrito que, não tratando da arte militar propriamente dita é, contudo, considerado como o primeiro texto espanhol sobre as novas formas de fortificação de tipo abaluartado. Contemporâneo de Albrecht

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Dürer, Scrivá terá sido ainda autor de um tratado sobre fortificação escrito em italiano, hoje desaparecido. Terá ainda traduzido partes da obra de Tartaglia, Quesiti et inventione diverse, noutro texto que se conserva anónimo mas de que se lhe atribui a autoria. Embora seja também um veterano das campanhas de Itália, a sua área de intervenção situar-se-ia sobretudo no âmbito da fortificação militar, pelo que os seus trabalhos se enquadram na sequência do tratado de Dürer1 e de outros italianos. O facto de Luís Scrivá traduzir o texto de Tartaglia é significativo, pois revela a crescente importância dada aos problemas relacionados com o emprego da artilharia. Diego Gracián (1565) Diego Gracián será o primeiro autor espanhol quinhentista a escrever uma obra com forte influência clássica, como aliás já o havia feito em 1530, mas noutro contexto2. O seu Tratado de Re Militari, impresso em 1565, inclui ainda a tradução de um texto militar da antiguidade, conforme se encontra explícito no título – Onossandro Platónico, de las calaidades y partes de un exelente capitán general y sobre su oficio y cargo, traducido del griego en castellano por el secretario Diego Gracián. Gracián inclui também a tradução de Fourquevaux, Instrucions sur le faict de la guerre, datada de 1548, fechando assim um círculo que tem como ponto de partida a Arte della Guerra, de Nicolau Maquiavel, uma vez que a obra do francês também deve grande parte do seu conteúdo ao texto italiano. A arte militar havia evoluído muito para além do preconizado por Maquiavel, que não previra a amplitude da importância entretanto adquirida pela artilharia e armas de fogo portáteis. De facto, as alterações que se vão implementando no campo de batalha tornaram inevitável uma profunda reformulação das suas propostas, de tal maneira que muitos dos textos 1 2

Etliche underricht, zu befedtigung der stett, schlob, und flecken, Nuremberga, 1527. La coronación imperial com todas sus cerimonias de Carlos V.

apresentavam pouco em comum com a forma original. 1.2 De 1578 até final de Quinhentos Uma segunda fase começa em 1578, data da primeira impressão do texto de Francisco de Valdés, Espejo y Disciplina Militar. Neste período constatamos o desenvolver e uma tendência para a fragmentação do conhecimento militar em áreas especializadas, como a artilharia, fortificação, e a prática das formaturas e manobras militares. Ao mesmo tempo, torna-se patente o crescente protagonismo na autoria dos textos de Re Militari por parte dos militares profissionais de «extracción nobiliário-castrense», nas palavras de Esther Merino Peral. A acompanhar esta tendência, também os textos teóricos sobre arte militar evidenciam nesta segunda metade do século XVI – em especial no último quartel de Quinhentos – um sensível e progressivo aumento na produção impressa. Francisco de Valdés (1578) Francisco de Valdés terá iniciado a sua carreira militar nas primeiras campanhas das guerras de Nápoles, como capitão de uma companhia de cavalos ligeiros. Já nas guerras da Flandres da segunda metade de Quinhentos se encontra documentada a sua participação em várias acções militares de relevo, como a batalha de Mook ou o assédio à cidade de Leida. Assim, em 1567 desempenha o cargo de «sargento mayor» na capitania do terço da Lombardia, um dos «terços viejos» de soldados veteranos do exército espanhol; em 1573 dirige o cerco a Leida, ocupando diversos postos de comando até Janeiro de 1577, quando termina a sua intervenção nas guerras de Flandres e na vida militar activa. Impresso pela primeira vez em 1578 mas escrito ainda em 1571, o Espejo y Disciplina Militar é construído em forma de diálogo e tem

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como interlocutores outros dois soldados veteranos do exército do duque de Alba com os quais Valdés serviu na Flandres, Sancho Londoño e Alfonso de Vargas, o primeiro também autor de um texto versando matéria militar. A obra de Valdés teve larga divulgação na Europa, sendo traduzida em italiano (1598), dois anos depois de uma tradução em inglês. O texto de Valdés revela um carácter eminentemente prático, como aliás a quase totalidade daqueles que se lhe seguem; são destinados, sobretudo, a transmitir um conhecimento que resulta directamente da experiência militar dos seus autores. O texto de Sancho Londoño – Discurso sobre la forma de reducir la Disciplina Militar a mejor y antiguo estado – enquadra-se neste âmbito. Publicado em 1591, foi escrito em 1568, portanto ainda antes da obra de Valdés. O autor foi um soldado prático que, à semelhança de Valdés, desempenhou também o cargo de «sargento mayor» dos terços na Flandres; o texto reflecte a larga experiência militar do seu autor sob as ordens do duque de Alba, e aborda os mesmos temas embora de uma forma mais «terra-a-terra», sem recorrer à forma de diálogo.

Em 1548, ainda com Carlos V no poder, Bernardino de Escalante embarca para o teatro de operações europeu onde permanece longos anos. Mais tarde, em 1583, participou na invasão da Ilha Terceira, que acontece no contexto da guerra de anexação de Portugal. Dedicou-se mais tarde à Igreja abraçando a vida de clérigo, à semelhança de outros veteranos de guerra, como os portugueses João da Gama e Estêvão Pinheiro que apesar da vida religiosa que haviam seguido, ainda estiveram presentes na batalha de Alcácer Quibir Escalante transcreve extensas partes do texto de Francisco de Valdés, embora o tema a merecer um maior desenvolvimento nos seus diálogos militares seja a sistematização dos sistemas defensivos; será um dos primeiros autores espanhóis que formalizam a separação entre arquitecto civil e engenheiro militar. Uma nota curiosa, o autor refere a morte do sargento-mor do contingente castelhano, D. Alonso de Aguilar, e do seu filho, D. Pedro, durante a batalha de Alcácer Quibir. Diego de Alava y Viamont (1590)

Assim acontece com a Arte militar de Juán de Funes que, declarando-se Alferez de la compañia del Capitan Alonzo de Corgaya, será o primeiro hispânico a incluir num tratado tabelas destinadas a agilizar o cálculo e a disposição dos soldados em formação, à semelhança do que já havia sido feito pelos italianos Girolamo Cataneo (1563) e Giovanni Matheo Cicogna (1567). Em 1583 publicam-se os Diálogos militares, de Bernardino de Escalante. Este homem, filho de um veterano da Flandres, «el capitán de navio Garcia de Escalante», escreveu também outro importante texto dedicado ao tema da navegação, o Discurso de la navegacion que los Portugueses hacen a los reinos y provincias del Oriente y de la noticia que se tiene de las grandezas del Reino de China, datado de 1577.

Diego de Alava y Viamont era filho de Francés de Alava y Beamonte, general da artilharia espanhola na batalha de Alcântara, que ocorreu no decurso da invasão de Portugal, em 1580. A obra de Viamont constitui outro marco fundamental na produção teórica espanhola. Publicado em 1590, o tratado El perfecto capitán instruido en la discilplina militar y nueva ciencia de la artillería consiste num trabalho que, para além da teorização da arte militar – incluindo tabelas aritméticas, idênticas às já mencionadas –, trata sobretudo do conhecimento técnico relativo ao uso da artilharia, na sequência de trabalhos de outros autores, como Da Vinci e Tartaglia, e cujas tabelas para cálculo do alcance dos projécteis representam um

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avanço notável relativamente aos seus antecessores. Como se verá adiante, outros autores citam a sua obra, pelo que somos levados a crer que nos encontramos perante um autor de grande divulgação na altura.

tempo ogni medíocre ingegno omprender possa; e da qui conosca, come i if i ’i g g f à 2 ’i i i v i .

Diego de Alava estabelece, definitivamente, a base de um conhecimento diferenciado com características próprias; com a especialização de áreas com especificidades próprias, o conhecimento militar adquire um carácter «científico», nomeadamente através do estabelecimento de regras que sujeitam os processos que envolvem a utilização da artilharia. Estas regras constituem o fundamento teórico da «nueva ciencia de la artillería», tal como já havia acontecido com outras artes mecânicas. Adquirindo uma base «científica» com o recurso à geometria e à matemática, a actividade militar adquire um prestígio que lhe permitirá ocupar posição ao lado das artes liberais:

Com efeito, à medida que se caminha para o final do século, é norma encontrar-se nos tratados de arte militar referência à necessidade de os oficiais encarregados das tarefas de ordenar os soldados – tarefas estas desempenhadas pelo sargento-mor –, serem ágeis no cálculo aritmético. Diego de Alava, por exemplo, refere em 1590 que o sargento-mor deverá saber «sacar las raíces cuadradas, que son el fundamento de todo lo que es formar Escuadrones», tal como Girolamo Cataneo havia escrito mais de duas décadas antes:

Siendo la milícia tan noble como es, há de tener sus reglas y preceptos, de onde sale el arte militar (...) la qual disciplina sierve de leal consejero (...) principalmente si estribare en los generales fundamentos de prudencia y fuere acompañada con las artes liberales.1

A utilização da matemática alarga-se ainda de forma a abarcar os aspectos mais tradicionais da guerra, como seja os métodos de organizar os soldados no terreno – ordenar os soldados em esquadrão, para seguir a terminologia da época. De facto, um dos autores de referência da segunda metade do século XVI, o italiano Girolamo Cataneo, preconiza no seu tratado a utilização da aritmética neste âmbito, para projectar a construção das formaturas dos soldados:

El fundamento de la Geometría y Aritmética, sobre el que está fundado gran parte del Arte Militar (...) estas formas (...) podrá alcanzar el Sargento Mayor com un buen discurso y de la Aritémica, en donde todo lo que es formar Escuadrones está fundado3.

A situação que ocorre em Espanha confirma a tendência para uma afirmação do estatuto social do militar de carreira. Francisco de Valdés é disso um exemplo. Foi sargento-mor, cargo frequentemente atribuído a soldados sem extracção aristocrática, mal pagos para a enorme responsabilidade associada. Afinal, era o sargento-mor que organizava os soldados em formação de batalha, e da sua destreza resultaria um exército preparado – ou não – para combater com eficácia. Contudo, mesmo sem remuneração adequada, o cargo de sargento-mor conferia 2

Assine che tutto quello, cher io per lo spatio di trente e piu anni o da prudenti apitani osservato, et com la esperienza dell persona própria, cosi alla guerra, ome nelle discipline matamatiche imparato, in poço 1

Francisco de Valdés, op. cit., pp. 35-36.

Girolamo Cataneo, Tavole brevissime per sapere com prestezza quante file vanno à formare una giustissime bataglia. Con li suoi armati di corsaletti, da cento fin à ventiduemilia e sei cento huomini. Et apresso un facilissimo, et aprovato modo di armarla di archabugieri, e di ale di cavalleria secondo l’uso moderno, Brescia, 1563. 3 Diego de Alava y Viamont, El perfecto capitán instruido en la discilplina militar y nueva ciência de la artílleria, Madrid, Ministerio de Defensa, 1994 [1.ª ed. 1590], p. 27.

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enorme prestígio, como atestado pelo facto de D. Sebastião ter solicitado a Filipe II a presença de dois destes oficiais, Alonso Vargas ou Sancho de Ávila, para a jornada de 1578, pedido que o monarca castelhano recusou1. Diego de Alava, veterano das campanhas militares ao serviço do poder central, junta os conhecimentos militares acumulados ao longo da vida militar e adquiridos também por via teórica através da leitura dos clássicos, somando ainda o conhecimento das artes liberais, como a Geometria e a Matemática. Desta forma, será por intermédio dos textos antigos e dos escritos pelos tratadistas contemporâneos, que os homens que se propõem iniciar uma carreira militar adquirem toda a panóplia teórica necessária ao exercício da prática das armas. Fruto de uma evolução constante, este conhecimento cristaliza progressivamente em torno de modelos que se vão também alterando, cuja transmissão será facilitada pela da circulação das obras de cariz militar que vão surgindo um pouco por toda a Europa. Em 1595 são publicadas várias obras importantes. Uma delas, o Breve Tratado del Arte de Artillería, cujo autor, o genovês Lázaro de la Isla, foi artilheiro ao serviço de Filipe II de Espanha. Tecnicamente actualizado e seguindo a tendência corrente, o tratado de Lázaro de la Isla confirma a separação dos conhecimentos ligados à artilharia, com a sua especificidade técnica, do conjunto da arte militar, à semelhança do que havia feito Niccolò Tartaglia em 1537 e Bernardino Escalante em 1583. É de notar que este texto é publicado em Espanha e não em Itália, o grande centro de produção de obras sobre teoria militar. Neste final de século, contudo, absorvida que foi a coroa portuguesa – juntamente com o seu império –, a Espanha é, de facto, a grande potência europeia, com uma profícua produção destes textos. Ainda em 1595 surge o texto de Bernardino de Mendoza, que resultou numa das obras de arte militar mais emblemáticas, que inclui 1

Enviou em seu lugar o capitão Aldana, que se juntou ao exército quando este se encontrava já a caminho.

pesadas referências a autores da Antiguidade Clássica. Assim, não será de surpreender que o texto de Mendoza tenha recolhido uma grande aceitação, como se verifica pelas diversas edições de que foi objecto; três edições em castelhano, e posteriormente traduzido para italiano, francês e alemão. Mendoza constitui o arquétipo do militar de final de Quinhentos, um veterano das campanhas em Itália e na Flandres – no ano de 1573 comanda a cavalaria espanhola na batalha de Mook – cuja experiência em campanha se alia a outros domínios, e o seu texto pode ser visto como contraponto a Carrión Pardo, no que respeita à carga teórica de pendor erudito que lhe está associada, como veremos. O tratado de Juán Carrión Pardo, Tratado de como se deven formar los quatro esquadrones en que milita nuestra nación Española, é publicado em Lisboa no mesmo ano e dedicado a D. Juan da Silva, o embaixador de Filipe II em Portugal durante o reinado de D. Sebastião, que combateu em Alcácer Quibir, onde foi ferido e feito prisioneiro. Carrión Pardo apresenta-se como «Capitán de Infanteria Española», e também ele combateu nas guerras da Flandres sob as ordens do duque de Alba, sabendo-se que comandou a guarnição espanhola na defesa de Beriscot; no seu texto faz ainda referência a outro veterano da Flandres, o «Maestro de Campo Valdez», que como já vimos foi também autor de um texto sobre arte militar. O tratado inclui tabelas do mesmo género das de Cataneo, Cicogna e Diego de Alava, embora muito simplificadas em comparação com o modelo original de Girolamo Cataneo como podemos confirmar pela Imagem 4. As tabelas que Carrión Pardo publica são, como vimos, um instrumento destinado a agilizar o processo organizar os soldados em formações geométricas regulares – ordenar os esquadrões. Este é um processo extremamente laborioso, como adiante se verá, e tem lugar pouco antes de iniciar a batalha, portanto em circunstâncias particularmente difíceis.

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Imagem 4 – Auxiliares de cálculo: «taboadas de esquadrões»

a. Juan de Carrion Pardo (1595)

b. Girolamo Cataneo, Tavole brevissime (1563)

c. Martim Afonso de Melo (?)

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Trata-se, pois, de um trabalho eminentemente utilitário dedicado aos quadros militares intermédios – os capitães das companhias –, que condensa e simplifica a informação contida em anteriores textos, conforme se depreende do próprio título – Tratado de como se deven formar los quatro esquadrones en que milita nuestra nación Española –, referindo-se às formaturas mais correntes adoptadas pelos generais espanhóis nos finais de século. O carácter pragmático do texto de Carrión Pardo pode comparar-se, como adiante veremos, com duas das obras portuguesas quinhentistas – o Regimento de guerra e as Anotações de Luís Álvaro Seco –, também elas despidas de quaisquer conteúdos teóricos para além de uma descrição sucinta dos novos métodos de combater. Três anos depois, publica-se também em Portugal a Doctrina militar, de Bartolome Scarion de Pavia. O seu avô, o capitão Melchior Scarion, terá servido sob as ordens de Gonçalo de Córdova na batalha de Cerignola (1503), enquanto o autor se dá a conhecer como um soldado prático de muitos anos, veterano de várias batalhas e campanhas, uma das quais a de Portugal, reportando-se à campanha da conquista de Portugal chefiada pelo duque de Alba no ano de 1580. Também terá combatido em Itália, ocupando diversas posições militares nos exércitos espanhóis, quer como subordinado quer em lugar de chefia. Para além da sua importância no contexto português, uma vez que o texto de Scarion de Pavia foi impresso em Lisboa, este tratado permite estabelecer ligação com autores anteriores por referência explícita ou por semelhanças no conteúdo.

2. Os tratados de arte militar em Portugal «Pelo último quartel de quinhentos começavam a encontrar-se entre alguns portugueses – provavelmente em ligação com os ímpetos de natureza belicista

suscitados pelo próprio D. Sebastião e pela sua entourage – a percepção da necessidade de rever as práticas guerreiras mais tradicionais.»

Rui Bebiano, A Pena de Marte. A escrita da guerra em Portugal e na Europa (Sécs. XVI-XVIII), Coimbra, 1997, p. 389. Em Portugal, os autores dos textos teóricos enquadram-se também na tendência generalizada em Espanha, que aponta para o protagonismo dos práticos da guerra na veiculação de um conhecimento militar mais actualizado. São apenas três os textos teóricos portugueses conhecidos que se sabe terem circulado durante o século XVI, quatro se juntarmos a Arte militar de Luís Mendes de Vasconcelos, que apesar de publicado em 1612 foi escrito no final do século XVI. Passando a enumerar as obras em causa, estas são, o Regimento de Guerra, de Martim Afonso de Melo, o 4.º Livro de Isidoro de Almeida das instruções militares, de Isidoro de Almeida, e as Anotações ao 4.º livro das instruções militares de Isidoro de Almeida, de Luís Álvaro Seco. Martim Afonso de Melo (?) – Regimento de Guerra O Regimento de Guerra tem um carácter essencialmente prático, o que indica claramente que o seu autor teria formação militar sólida, adquirida no Norte de Áfica e na Índia, conforme podemos deduzir de várias das suas afirmações ao longo do texto. É assim um texto escrito por um soldado veterano e experimentado no comando de tropas, quer em batalha quer nas evoluções próprias destinadas ao campo de parada. O autor do regimento de guerra segue assim o percurso clássico dos militares portugueses, combinando a experiência adquirida nos teatros de guerra africanos e asiáticos. Este texto é invulgarmente rico pela quantidade de informação prática contida – um autêntico manual de doutrina táctica do século XVI –, combinando os temas abordados no livro de Isidoro de Almeida e no

tratado de Luís Mendes de Vasconcelos, ambos posteriores ao Regimento de Guerra. Para além da inverosímil associação a personagens como o guarda-mor de D. João I e de D. Duarte e D. Afonso V, podem-se sugerir alguns potenciais candidatos que se enquadram no perfil do autor. Um deles será o primeiro capitão da fortaleza de Mazagão, cujo nome era Martim Afonso de Melo, que foi nomeado para o cargo a 10 de Agosto de 1514 em substituição do seu pai, Jorge de Melo. O cargo que ocupava ao ser nomeado para capitão da fortaleza, anadel-mor dos besteiros a cavalo, e a missão que mais tarde desempenharia – construir uma fortaleza na China –, indicam que se tratava de um personagem com experiência militar. De facto, no ano da sua nomeação para Mazagão participa num dos raros encontros campais em Marrocos ao lado do capitão de Safim, Nuno Fernandes de Ataíde, na qual participaram 2 companhias de ordenança. Outro Martim Afonso de Melo é assinalado por Gaspar Correia em 1535, no comando de um esquadrão de soldados que evoluem em caracol, junto do sultão Badur em 1535. Mais significativo, será o Martim Afonso de Melo capitão de Ormuz em 1540, que foi responsável pela construção do «baluarte novo» e o «baluarte redondo» destinados à instalação artilharia «grossa».Ainda na Índia, durante o primeiro vice-reinado de D. Luís de Ataíde, encontramos outro personagem que dá pelo mesmo nome de Martim Afonso de Melo. Seria capitão da fortaleza de Baçaim e participou em vários combates, muitos dos quais navais. Serviu juntamente com D. Duarte de Meneses, o futuro capitão de Tânger, e com Álvaro Pires de Távora, irmão de Cristóvão de Távora. O primeiro, na altura capitão da recémconquistada Braçalor, comandou na batalha de Alcácer Quibir uma unidade de soldados escolhidos, o terço dos aventureiros, em substituição do irmão, que acompanhava D. Sebastião. O nome de

Martim Afonso de Melo encontra-se também numa listagem de fidalgos que terão servido durante o grande cerco de Mazagão de 1562, sem no entanto precisar qualquer pormenor que permita a sua identificação. Por fim, vários cronistas sebásticos referem o nome de Martim Afonso de Melo como capitão de um dos seis galeões que foram incluídos na frota enviada ao Norte de Áfica em 1578. Um dado que poderá atribui uma datação do texto de Martim Afonso de Melo para depois do final de década de 30, será a publicação em 1537 do texto atrás referido, Instrucción y Regimiento de Guerra, do espanhol Diego de Montes. No entanto, embora semelhantes no título – situação vulgar no panorama da tratadística quinhentista, especialmente quando estamos perante versões (ou cópias) de obras publicadas –, o conteúdo não revela grandes pontos de contacto, para além de uma estrutura com uma eventual filiação a Vegécio. Outro dado importante que se apreende deste texto será o conhecimento do autor de outros trabalhos teóricos em circulação: A maneira que se deve ter em fazer um Esquadrão de pouca, e muita gente me parece necessário escrever aqui (...) porque em muitas partes esteja escrito por excelentes Capitães.1

De facto, já no século XV se produzem textos sobre arte militar cuja relevância se estende para o século seguinte, como as Reglas Militares de António Cornazzano, que ainda se julgou merecer uma tradução para castelhano em 1558, mais de meio século depois da sua primeira edição impressa. A situação no século XVI será, contudo, bem diferente pelo menos a partir da década de 50. Assim, e embora exista já uma produção teórica significativa à entrada do primeiro quartel de Quinhentos, será sobretudo a partir da obra de Maquiavel, na segunda metade da década de 30, que se dá origem ao grande surto de 1

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 375.

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publicação de textos militares feita de forma continuada, que efectivamente ocorre depois de 1540-50. Em Espanha, terá a sua época de ouro nas duas últimas décadas de Quinhentos, prolongando-se até meados da segunda metade do século XVII. Relativamente ao conteúdo do Regimento de Guerra, em particular no que respeita aos diagramas propostos para a organização dos soldados no terreno, alguns apresentam grandes semelhanças com os incluídos no tratado de Diego Salazar, que já vimos datar de 1526. Embora o Regimento apresente alterações importantes – que levam a situá-lo num período posterior –, pode-se, no entanto, estabelecer alguma conexão entre os dois textos por esta via. Um aspecto crucial no Regimento consiste na existência de tabelas – «taboada», como refere Martim Afonso de Melo – com algumas semelhanças com as publicadas em 1524 no tratado de Battista Della Valle. Se tivermos em consideração que não é conhecida a publicação de semelhantes tabelas em obras anteriores, este facto poderá assumir uma importância crucial na aproximação a uma eventual datação do texto português. Este tipo de tabelas vão surgir novamente em 1563 integradas na primeira obra impressa de Girolamo Cataneo, e serão reproduzidas com maior ou menor complexidade por outros autores posteriores, como Cicogna em 1567, Alava y Viamont em 1590, ou Carrion Pardo em 1595, isto para nomear apenas alguns deles (Imagem 3). A orgânica das unidades militares descrita no Regimento de Guerra também poderá dar algumas pistas no sentido de uma datação. Em 1536, Diego de Montes preconiza companhias com o efectivo de quinhentos homens, em cuja composição encontramos ainda uma componente com soldados armados de espada, à semelhança do que havia sido indicado por Maquiavel. O Regimento de Guerra parece

mais avançado neste aspecto; as companhias, onde apenas se encontram os piqueiros e arcabuzeiros, têm um total de trezentos homens, mais reduzido portanto do que no texto espanhol, seguindo a tendência geral que aponta para a redução da dimensão das unidades militares; aliás, o texto parece militarmente evoluído, pelo menos em alguns dos seus aspectos, como seja a proporção de arcabuzeiros para piqueiros: Alguns Capitães querem, e se costuma, que haja uma companhia de 3.ª ’ i i i causa disto é, porque onde se costuma pelejão com homens de armas, e gente bem armada (...) mas nós, que não pelejamos, senão com gente desarmada, pouca força nos basta de piques, e temos necessidade de mais arcabuzes, para com eles ofendermos o inimigo de mais longe, e por isso dou mais arcabuzes às companhias, que piques, segundo meu juízo (...) dou a cada companhia de 300 homens, como são estas que tratamos, 170 arcabuzeiros, e 130 piqueiros.1

Se tomarmos em consideração que as últimas companhias com efectivo de 300 soldados datam das companhias de ordenanças implementadas para Lisboa e Porto em 1569 e 1568, respectivamente, e dado que o Regimento dos Capitães-mores de 1570 determina que as companhias deverão ter 250 homens, poderemos ver assim definido um possível limite temporal inferior ao redor do ano de 1569. Algumas das formações militares preconizadas no Regimento de Guerra são pouco comuns, como sucede em particular com a «galé» ou «galé fechada», que encontramos também referida no tratado de Giovanni Matteo Cicogna de 1567, e da qual nos chegou notícia do seu emprego em batalha, no primeiro quartel de Quinhentos, através de Gaspar Correia2. Outra formatura mencionada por Martim Afonso de 1

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 334. Não encontramos outras referências à formatura em galé, para além das duas situações mencionadas. Evidentemente, seria necessário proceder à investigação em 2

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Melo é, como vimos, o caracol, que se encontrava vulgarizado por toda a Europa. Temos referência da sua utilização em Portugal, durante a década de 70, através dos relatos de Pero Roiz Soares nos alardos das ordenanças em Lisboa, ou a propósito das inspecções militares no Alentejo e Algarve. Segundo Charles Oman, caracol seria inicialmente uma manobra utilizada pela cavalaria alemã armada de pistolas; caído em desuso como formação de combate, a sua utilização destinou-se depois ao treino dos soldados: Como se fazem os caracóis (...) é um dos exercícios, que hão-de ter os soldados para serem destros, os quais não servem para outra coisa, e para regozijo.1

Diego Salazar também menciona brevemente o caracol, que ainda podemos ver representado por Henry Barrett em 1562. Ambos os esquemas gráficos se poderão comparar com os representados na obra de Martim Afonso de Melo. Em 1583, Diego García de Palacio também menciona o caracol, que «comúnmente se usa, pués jamás se pelea en él», portanto confirmando que esta formação seria destinada a outro fim que não o emprego directo em combate: Las causas que hubo para ordenar el caracol (...) para ver si los guerreros están bien armados o si llevan bien las picas o buen paso en la ordenanza (...) para enseñarles a andar guardando la orden (...) y esto se hace para que los que no lo hicieren bien puedan ser corregidos y enmendados.2

É ainda curioso notar que García de Palacio propõe, à semelhança toda a bibliografia militar de Quinhentos, o que não é possível no âmbito deste trabalho. 1 Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 361. 2 Diego Garcia de Palacio, Diálogos militares, Madrid, Ministério de Defensa, 2003 [1.ª ed. 1583], p. 266.

de Martim Afonso de Melo, modelos extraídos da experiência que os castelhanos adquiriam nas campanhas militares na América – em contraponto com a arte militar praticada na Europa –, onde é normal o emprego de pequenos contingentes desde o tempo de Cortez e Pizarro. Relativamente ao limite superior para a datação do Regimento de Guerra, este não deverá ultrapassar o ano de 1536, data de publicação do tratado de Diego Salazar, e coincide aproximadamente com as manobras militares destinadas ao sultão Badur em 1535 descritas por Gaspar Correia. Contudo, não nos devemos esquecer que em 1512 já eram referidas algumas das formações militares preconizadas por Martim Afonso de Melo, de maneira que será ainda necessário proceder a uma investigação mais alargada, para conseguir – eventualmente – uma datação mais aproximada. Isidoro de Almeida (1573) – O 4.º Livro das Instruções Militares Para além do Regimento de Guerra, o texto militar de maior importância publicado em Portugal na segunda metade do século XVI é, como se sabe, o 4.º Livro de Isidoro de Almeida das instruções militares. Esta obra surge aparentemente relacionada com o esforço para proceder à reorganização militar do país, que conheceu particular intensificação durante o reinado de D. Sebastião. D. Sebastião, educado dentro dos princípios da disciplina tridentina, parecia entender a actividade bélica não só como a reacção natural às pressões exercidas sobre uma zona de influência que Portugal exercia à escala mundial, mas também como uma forma de moralizar a própria sociedade. Para ilustrar esta atitude, podemos referir que um dos terços destinados à expedição de 1578, cujo efectivo deveria ser preenchido pelos homiziados, foi posteriormente disperso «porque não levasse gente de tão maus procedimentos, porque não era serviço de

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Deus, nem lhe sucederia bem»1. A sociedade portuguesa, vítima de uma suposta perversão dos costumes, necessitaria de uma reconversão moral de forma a inverter a tendência que anunciava a fragmentação do império. O facto de nesta época as correntes maneiristas enquadradas no espírito do Concílio de Trento se reafirmarem com vigor em Portugal, permite também enquadrar a própria atitude belicista de D. Sebastião num panorama mais geral na qual a Companhia de Jesus, quase funcionando como uma organização de cariz militar, desempenha um papel fundamental. Com efeito, a «milícia de Cristo», ao defender princípios de estrita disciplina, obediência e sacrifício, acaba por estabelecer uma relação próxima da própria postura militar que se exige aos soldados, no contexto das mais recentes práticas da guerra moderna. Este novo esforço no sentido de introduzir em Portugal novas formas de combater enquadra-se assim num âmbito mais geral, onde a guerra actua como agente moralizador de uma sociedade que se confronta com múltiplas tensões. A opção pela expansão no Norte de Áfica, reabilitando a guerra contra o infiel em todas as suas vertentes – incluindo uma faceta épica, que não se deverá subvalorizar –, confirma este carácter moralizador. Não se trata apenas da introdução das técnicas de combate mais recentes mas, como escreveu Francisco de Holanda em 1571 a propósito «da fortificação e reparo de Lisboa», pretendia-se enquadrar o esforço militar no plano da virtude, numa percepção católica em que o mundo se encontrava submetido a uma ordem de matriz fundamentalmente religiosa. Havendo que tratar da fortificação da cidade material de Lisboa, parece razão dizer alguma coisa primeiro do que mais releva, que é a reedificação da cidade da nossa alma; porque sem esta estar fortalecida e guardada, em vão trabalha quem vela e guarda Lisboa. Assim, que

muito primeiro se há-de fortalecer e reedificar a cidade interior de nossa alma, que a de pedra e cal exterior (...) com toda a mais armadura que o Apóstolo manda armar.2

Publicado em 1573, é hoje aceite que o texto de Isidoro de Almeida fazia parte de uma obra mais vasta abrangendo diversas áreas do conhecimento militar, como seja as movimentações dos diferentes componentes tácticos no campo de batalha, aliás abordadas pelos tratados militares da época. Disso nos dá conta, sem qualquer margem de dúvida, o próprio autor quando escreve, «do modo deq se dev armar os soldados, se tratou no livro segũdo largam te, pelo q nã se repetirá aqui»3, deixando claro que o autor já havia escrito, pelo menos, quatro livros. Para além da autoria da obra mencionada, já referimos que Isidoro de Almeida trabalhava, em 1552, numa tradução ou versão do tratado de fortificação de Dürer. Concluímos assim que teria uma formação sólida no âmbito da arquitectura militar, que lhe terá eventualmente proporcionado a participação em diversas obras importantes. Datam da década de 50 as principais intervenções de Isidoro de Almeida no campo da fortificação, como o castelo de S. Braz em Ponta Delgada, ou integrando um grupo destinado a avaliar o sistema defensivo dos Açores. Ainda durante a regência de D. Catarina, é enviado a Tânger juntamente com Diogo Teles, onde trabalha com o mestre-de-obras André Rodrigues nas obras de melhoramento do sistema defensivo da praça. É também autor de intervenções no âmbito da arquitectura civil, das quais a mais conhecida será o projecto do convento de S. Domingos, em Coimbra, de 1560. 2

Francisco de Holanda, Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, 1984, p. 11. Isidoro de Almeida, «O 4.º Livro das Instruções Militares», in A Faria de Morais, Arte Militar quinhentista, sep. do Boletim do arquivo Histórico Militar, vol. 23, Lisboa, 1953, p. 131. 3

1

José Pereira Baião, Portugal cuidadoso e lastimado com a vida e perda do senhor Rey D. Sebastião o desejado de saudosa memória, Lisboa, 1737, p. 455.

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O facto de dominar uma área com a importância da fortificação, torna-o habilitado a participar em operações militares de envergadura, encontrando-se documentada a sua participação activa na defesa de Mazagão durante o grande cerco de 1562 na qualidade de responsável pelos trabalhos de mina e contra-mina. Assim completa um leque variado de intervenções em áreas como seja a arquitectura civil, fortificação e arte militar, mantendo ainda ligação à evolução das novas tendências fora de Portugal. Apenas se lhe não conhece ter-se dedicado à «nuova arma de artilleria». Um dos objectivos da publicação do Quarto livro das instruções militares terá sido dar resposta específica aos problemas levantados pela publicação das ordenanças sebásticas, como seja definir as «obrigações dos oficiais de gente a pé e de cavalo». Daí que seja possível presumir que o texto tivesse um cunho pedagógico implícito, relacionado inclusivamente com o próprio rei. Aliás é pela dedicatória do Quarto livro das instruções militares, dirigida a Martim Gonçalves da Câmara – que como sabemos acumulou vários cargos importantes durante o reinado de D. Sebastião –, que podemos descortinar uma eventual relação entre Isidoro de Almeida e pessoas influentes do aparelho do estado, até porque Martim Gonçalves da Câmara era irmão de Luís Gonçalves da Câmara, confessor de D. Sebastião até à data do seu falecimento, em 1575. Este jesuíta, que já havia estado no Norte de Áfica em serviço da companhia, foi nomeado mestre de D. Sebastião na sua menoridade tendo como adjunto o padre Amador Rebelo, sendo ainda confessor do rei outro jesuíta, o castelhano frei Luís de Montoya, cujo lugar havia de ser mais tarde também ocupado pelo mestre. Manteve uma grande proximidade com o rei, que sentiu grandemente a sua morte quando esta ocorreu. Como se sabe, a companhia de Jesus mantinha uma poderosa intervenção em assuntos de natureza política, pela sua posição dominante na própria hierarquia do estado. Os jesuítas foram consolidando o seu ascendente na sociedade portuguesa desde a

sua chegada a Portugal, com D. João III, conforme se verifica pelo protagonismo assumido na expansão. Em 1574, já haviam marcado presença na primeira expedição de D. Sebastião ao Norte de Áfica seis membros de companhia, «quatro sacerdotes, Maurício Serpe, confessor do rei, Inácio Martins, seu pregador, João Soeiro e Álvaro Pereira, e os dois irmãos, Manuel Soudos e Brás Fernandes»1. Na segunda jornada a África de 1578 estiveram presentes quinze membros da companhia, por vontade do rei, e desempenharam um papel de relevo na própria batalha. Um destes, o padre Vallareggio teve um papel de destaque na própria batalha – «à frente do exército levantou um crucifixo ao alto para ser adorado de todos, e com ele arvorado continuou gritando e alentando os soldados»2 – dando origem a um episódio que pela forma como o cronista Franchi Connestaggio o relatou, levantou mais tarde grande polémica em Portugal. Luís Álvaro Seco (1597) – Anotações ao 4.º livro das instruções militares de Isidoro de Almeida Avançando no tempo 24 anos em relação a Isidoro de Almeida, chegamos ao trabalho de Luís Álvaro Seco. É um militar de formação, como se depreende do seu texto, onde se apresenta como «capitão de arcabuzeiros»; o seu pai, Jorge Seco, também teria servido Filipe II. As anotações de Luís Álvaro Seco destinar-se-iam a aclarar certos assuntos do Quarto livro das instruções militares, incluindo matéria não constante do livro impresso. À semelhança do Regimento de Guerra ou de outras obras espanholas, como o texto de Carrion Pardo, o manuscrito de Álvaro Seco pretende oferecer indicações práticas sobre a organização das componentes tácticas de um exército. Embora 1

Francisco Rodrigues, S.J., História da Companhia de Jesus na assistência a Portugal, v. 2, 1931, p. 358. 2 Id, ibid, p. 359.

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o seu conteúdo não seja tão abrangente como o texto de Martim Afonso de Melo, revela, ainda assim, que o autor tem largo conhecimento prático da actividade militar. A obra não apresenta um carácter sistemático; limita-se a seguir o texto de Isidoro de Almeida, e as referências ao texto de base levam a crer que Luís Álvaro Seco terá tido acesso às partes não impressas dessa obra. Assim, o texto das anotações é especialmente importante,

pois permite concluir que as outras partes do texto de Isidoro de Almeida circularam de facto. Este texto é ainda uma peça fundamental no quadro da tratadística nacional, na medida em que faz referência a dois teóricos de origem espanhola, D. Diego de Alava y Viamont e Juan de Carrion Pardo. Podemos assim traçar uma filiação directa com os textos internacionais de referência nesta época, dando-nos alguma perspectiva sobre as fontes utilizadas pelos autores dos textos teóricos militares em Portugal no final do século (Tabela IV).

Tabela IV Ano

Nacionalidade

Autores citados

Espanhóis 1536 1565 1566 1578 1583 1583 1590 1592 1595 1598 ? 1597 1611

Diego Salazar Diego Gracián Jiménez de Urréa Francisco de Valdés Bernardino de Escalante Diego García de Palacio Diego de Alava y Viamont Martin de Erguiluz Juan de Carrion Pardo Bartolomé Scarion de Pavia Portugueses Martim Afonso de Melo Luís Álvaro Seco Luís Mendes de Vasconcelos

Vegécio, Maquiavel Maquiavel, Fourquevaux Niccolò Tartaglia, Girolamo Cataneo, Juan de Carrion Pardo Vegécio, Francisco de Valdés Vegécio Vegécio, Girolamo Cataneo, Giovanni Matheo Cicogna Girolamo Cataneo, Francisco de Valdés, Jiménez de Urréa Vegécio, Francisco de Valdés, Diego de Alava y Viamont Vegécio, Battiste della Valle, GIrolamo Cataneo, Diego de Alava y Viamont

No seu conjunto, os três autores portugueses que aqui se analisaram – Martim Afonso de Melo, Isidoro de Almeida e Luís Álvaro Seco – levam-nos a concluir que em Portugal – tal como em

Diego Salazar, Duarte da Costa Diego de Alava y Viamont, Juan de Carrión Pardo Girolamo Cataneo Espanha – são os veteranos das campanhas militares, ou os indivíduos práticos nas actividades relacionadas com a arquitectura e fortificação, que se encarregam da redacção das obras teóricas sobre arte militar

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No que respeita a Martim Afonso de Melo, cujo texto foi escrito antes do tratado de Isidoro de Almeida, pode-se enquadrar o autor num modelo que se encontrará mais próximo de Francisco de Valdés, um personagem talvez sem extracção aristocrática mas profundamente conhecedor do seu mester. As funções militares de Martim Afonso seriam, desta forma, talvez equivalentes à de sargento-mor, dado a escala das movimentações militares que descreve no seu trabalho. Também digno de nota será a sua preocupação com o carácter específico da guerra praticada pelos portugueses nos territórios ultramarinos, quer no Norte de Áfica quer no Oriente, uma faceta que não encontramos em nenhum dos restantes autores, nem mesmo em Luís Mendes de Vasconcelos. Luís Álvaro Seco não se enquadra como um oficial de patente superior, mas sim como capitão de uma unidade subsidiária – a companhia. As preciosas indicações que faculta ao leitor situam-se neste plano intermédio, não tomando em consideração os métodos para proceder a grandes movimentações de tropas que encontramos noutros textos, como o de Diego Salazar, Francisco de Valdés ou mesmo de Carrion Pardo. Dentro do panorama da produção teórica nacional, será Isidoro de Almeida que se constitui como autor modelar, à semelhança dos exemplos provenientes de Itália ou de Espanha. Veterano das guerras em Itália, como ele próprio refere na sua obra, junta a experiência militar à actividade no âmbito da arquitectura – militar e civil –, não lhe faltando inclusivamente uma componente erudita, conforme se observa nas variadas citações clássicas que encontramos ao longo do texto, e os assuntos sobre os quais escreve versam tanto sobre arte militar como sobre a arquitectura. No conjunto dos três autores, Luís Álvaro Seco acompanha de perto – mais do que qualquer outro – a evolução que se observava nas

características dos autores dos textos sobre arte militar. Como vimos, ao longo do século os soldados veteranos vão tomando a seu cargo a escrita da teoria militar, registando a prática adquirida no campo de batalha que depois circulará como forma de divulgação das últimas experiências realizadas no terreno. O conhecimento assim veiculado tem um carácter essencialmente prático, conforme os títulos das obras indicam. Desde as tabelas de Girolamo Cataneo – Tavole brevissime per sappere como formare una giustissima bataglie –, que sugerem um método expedito de organizar os soldados em formação militar, ao texto de Carrion Pardo – Como se deven formar los quatro esquadrones –, que explana sucintamente os métodos de Diego de Alava para ordenar as diversas tipologias de esquadrões em uso, até às Anotações ao 4.º livro de Isidoro de Almeida, que resume os métodos dos dois castelhanos que o antecedem, os tratados procuram agora actualizar o conhecimento militar anterior, circunescrevendo-o ao repositório das mais recentes inovações tácticas. Para além disso, estes autores fazem o enfoque no mester específico dos militares, e na organização do exército no campo de batalha segundo os métodos mais recentes, onde desempenha um papel primordial o domínio da matemática. 3. Arquitectura, fortificação e arte militar «Habiendo de escribir acerca de la Pintura en estos breves comentários, tomaré de los Matemáticos, para hacerme entender com más claridad, todo aquello que conduzca á mi asunto.»

Leon Baptista Alberti, «Los tres libros de la Pintura», in El tratado de la Pintura por Leonardo da Vinci, y los três libros que sobre el mismo arte escribió Leon Baptista Alberti, edição fac-similada de 1784, Lisboa, Alcalá, 2005, p. 197 Como se sabe, durante o Renascimento a arte encontra-se no centro de diversas mudanças fundamentais que têm como pano de

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fundo uma reavaliação da herança da Antiguidade Clássica. Tratandose daquilo que poderá ser classificado como ruptura com a situação estabelecida – pelo menos aparentemente –, não se limita, contudo, a um movimento único, tendo-se desenvolvido ao longo do tempo com diversos períodos de fim e reinício, até porque o período clássico consiste numa referência sempre presente no panorama das artes na Europa mesmo antes do período que se convencionou designar por Renascimento. Não sendo possível demarcar com exactidão uma fronteira entre os dois momentos – anterior e posterior ao movimento do Renascimento –, considera-se que na primeira metade de quatrocentos Filippo Brunelleschi constitui um marco decisivo, trazendo não só alterações ao processo criativo mas envolvendo também um crescente protagonismo dos artistas enquanto criadores individuais do «objecto artístico», que vão progressivamente ocupar uma posição de relevo na sociedade da época. 3.1 As «artes liberais» e a tradição clássica Na Itália de Quatrocentos que o estudo aprofundado dos vestígios da antiguidade romana, nomeadamente as ruínas dos edifícios, permite restabelecer para a arquitectura um corpo coerente abarcando princípios de harmonia de composição formal com base nos cânones clássicos. Brunelleschi estudou cuidadosamente a herança clássica no próprio local de origem, em Roma, tanto na vertente construtiva – «vió el modo de construir de los antiguos y sus simetrias»1 – como nos aspectos da concepção formal – «se propuso reencontrar el modo excelente y de gran artificio de construir de los antiguos»2. Uma das contribuições cruciais de Brunelleschi prende-se com o facto de ter eliminado a carga interpretativa introduzida ao longo de séculos desde o fim do antigo poderio do Império Romano que, contudo, foi sempre considerado

como a grande referência para toda a península italiana. Procedeu à observação directa dos vestígios da antiguidade romana, juntamente com Donatello, procedendo inclusivamente à sua prospecção arqueológica, e o seu trabalho de reavaliação da arte clássica será continuado por outras figuras do humanismo italiano, como seja Leon Battista Alberti, Donato Bramante e António de Sangallo: Se didicó a medir las cornisas y levantar las plantas de aquellos edifícios y la perfección de los cuerpos de los templos, y ni él ni Donato escatimaban tiempo o gastos (...) Observo todas las cúpulas antiguas, y constantemente las estudiaba (...) Si por ventura se encontraban enterrrados restos de capiteles, columnas, cornisas o basamentos de los edifícios, hacían que se escavaran hasta tocar fondo.3

A arquitectura já não se circunscreve ao âmbito da prática de uma actividade mecânica. Se na Idade Média constituía uma ocupação própria de mestres maçãos, objectivamente ligada à construção do edifício, a partir do Renascimento passa a ocupar um lugar de maior destaque à semelhança do que se julgava ter acontecido durante a Antiguidade. Neste contexto, a reapreciação da cultura clássica teve, como se sabe, um papel crucial. Ainda no início de quatrocentos, Filippo Brunelleschi terá sido pioneiro na forma como se ocupa de uma nova abordagem da arquitectura feita em grande medida através do estudo dos vestígios da antiguidade romana; será, contudo, Leon Battista Alberti que leva à prática a intenção de sistematizar um corpo de regras transversal à totalidade da actividade artística das artes visuais, nomeadamente a pintura, escultura e arquitectura. A formação humanista de Alberti, a que junta um profundo 3

1

Giulio Carlo Argan, Brunelleschi, Madrid, 1981 [1.ª ed. 1952], p. 10. 2 Id, ibid.

Frederico Arévalo, La representación de la ciudad en el Renacimiento, levantamiento urbano y territorial, Barcelona, Fundación caja de arquitectos, 2003, p. 187.

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interesse pela arquitectura, confere-lhe uma sólida bagagem teórica que lhe permitirá realizar a teorização das artes através do texto escrito – o tratado. De facto, Alberti terá estudado primeiro Latim, Retórica, Filosofia e Arte Poética, e ingressou depois na Universidade de Bolonha, onde completou a sua formação clássica nas disciplinas de Matemática e Física; o facto de não pertencer ao meio corporativo, permite-lhe manter-se receptivo às novas ideias que surgem durante o período de quatrocentos, dedicando-se à teorização dos princípios que haviam sido antes formulados por Brunelleschi. A forma privilegiada para a propagação das novas ideias, será feita através das obras teóricas, quer manuscritas quer na forma impressa; o conhecimento transmite-se livremente já fora do círculo restrito da corporação, atingindo desta forma uma audiência que vem de outros quadrantes e que conta tanto com especialistas como com amadores. O fulcro desta emergente «estética do renascimento» prende-se o conceito de ordem, onde a beleza é uma propriedade objectiva das coisas que consiste na ordem, na harmonia, na proporção (cocinnitas e decorum)»1. No centro da teorização de Alberti encontra-se a certeza de que as artes deveriam estar sujeitas a normas objectivas, que lhe conferiam a noção de harmonia. Essas regras seriam racionalmente apreensíveis, podendo ser formuladas e ensinadas com precisão através da matemática. Estas regras podiam apreender-se mediante a razão e o método, pelo que a arte se deveria entender como uma ciência cujas regras podem ser deduzidas objectivamente. Na apreensão destas regras de harmonia desempenhou papel fundamental não só o estudo dos vestígios das realizações antigas, mas também a observação da própria natureza, que se entendia como o paradigma de uma perfeição formal, tal como se verifica na definição feita por Francisco de Holanda no seu

1

Harold Osborne, Estética e Teoria da Arte; Uma introdução histórica, S. Paulo, s/d., p. 128.

texto, «pintura é imitação de Deus e da natureza»2. Também Alberti já havia escrito no seu tratado de arquitectura, the Greeks (...) as with other arts, so with building, they sought it in, and drew it out from, the very bossom of Nature»3, ou da Vinci que entendia não possuir o Homem capacidade para abarcar toda a diversidade dos «efectos de la Naturaleza»4, sublinhando o seu carácter arquetípico. O novo lugar ocupado pela arquitectura levou Alberti a afirmar que um arquitecto já não era apenas um mero executante de uma actividade manual, devendo possuir um conhecimento perfeito das «ciências mais nobres e exactas». De facto, os artistas procuram assimilar o carácter global da cultura científica da sua era, dotando-se de uma carga teórica simultaneamente matemática e especulativa. Desta forma, o âmbito da actividade artística alargou-se para lá de uma mera actividade mecânica, de maneira que a pintura, escultura e arquitectura se equipararam às artes liberais, «los Griegos, entre los quales los jovenes de ilustre nacimiento aprendian, ademas de todolo perteneciente á la literatura, la Geometría, la Música y la Pintura»5. Até ao Renascimento, o código de regras usado pelos construtores parece não derivar de princípios gerais, isto é, não contempla uma base teórica que se afaste decisivamente do âmbito da actividade mecânica tal como a exercem os membros da corporação de mestres maçãos. Ao mesmo tempo, não são inteiramente desconhecidas representações gráficas relativas à prática construtiva, como o caderno de desenhos de Villard de Honnecourt, datado do segundo quartel do século XIII; aqui é 2

Francisco de Holanda, op. cit., p. 26. Leon Battista Alberti, On the Art of Building in Ten Books, traduzido por Joseph Rikwert, Neil Leach, Robert Tavernor, M.I.T., Massachusetts, 1988, pp. 157-158. 4 El Tratado de la pintura por Leonardo de Vinci, y Los Tres Libros sobre el mismo Arte escribió Leon Bautista Alberti, op. cit., p. 10. 5 El Tratado de la pintura por Leonardo de Vinci, y Los Tres Libros sobre el mismo Arte escribió Leon Bautista Alberti, op. cit., p. 224. 3

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possível encontrar esquemas geométricos de composição, destinados a determinar a construção de plantas e alçados com base num mesmo esquema proporcional, ou «harmónico». Estes métodos, por razões que eventualmente podem ter estado associadas ao carácter corporativo do próprio círculo profissional dos construtores, seriam mantidos em segredo como um conhecimento restrito pelos estaleiros medievais, de tal forma que só em finais do século XV é que terão sido tornados públicos por Mattew Roriczer, o construtor da catedral de Regensburg. A sua eventual circulação e utilização fora do âmbito profissional do grémio colidirá, contudo, com a inexistência de convenções métricas gerais, como se pode verificar pela própria variação nas unidades de medidas que ocorre entre diferentes regiões geográficas. Em todo o caso, é um dado adquirido que os construtores medievais já utilizavam sistemas geométricos de proporção com vista a obter uma forma harmónica para as realizações arquitectónicas, e cujo ponto de partida seria a aplicação modular de polígonos regulares, fundamentalmente o quadrado. Isto à semelhança do que se passava, desde cedo, com a arte islâmica, que manteve vivos vários aspectos da tradição clássica, entre os quais um gosto particular pelas construções geométricas utilizadas sistematicamente não só na definição planimétrica dos edifícios, mas sobretudo em toda a panóplia de motivos presentes nas chamadas «artes decorativas». No confronto com a cultura islâmica, o Ocidente terá eventualmente reencontrado certos aspectos da herança da Antiguidade que continuaram presentes no Oriente, embora assimilados sob uma perspectiva diferente. Em resumo, é possível concluir que uma reaproximação à poética aristotélica – «the harmonic mathematical structure of all creation»1 – no plano da arquitectura, não se limitará a quatrocentos e quinhentos, já 1

Rudolf Witkower, Architectural Principles in the Age of Humanism, Londres, Academy, 4.ª ed. 1988 [1.ª ed. 1952], p. 113.

se encontrando presente nas catedrais góticas. Com efeito, a forma destas tem subjacente a utilização de um esquema de harmonia construído segundo um sistema de proporções, embora Arévalo chame a atenção para o facto de o sistema utilizado na Idade Média ter como base a geometria de figuras simples, enquanto a partir do Renascimento se a proporção e´baseada na relação aritmética entre os números. 3.2 A representação do espaço tridimensional Outra mudança fundamental que ocorre no domínio das artes com o Renascimento prende-se em primeiro lugar com uma alteração progressiva na forma de percepção e representação do espaço. Antes de quatrocentos, já se podiam detectar sinais evidentes de se encontrarem em curso transformações significativas no horizonte artístico europeu, com os primeiros ensaios empíricos de Giotto (1266-1337) no domínio de uma representação da perspectiva. Estes sinais evidenciam já existir, na altura, uma maior preocupação dos pintores com a expressão dos vários planos visuais, conferindo um sentido de profundidade ao quadro. A técnica da pintura a óleo, inventada por Van Eyck (1390?1441), constituiu uma inovação técnica crucial. As propriedades desta nova técnica –um tempo de secagem mais demorado – permitiu, entre outras coisas, a possibilidade de um tratamento cuidado da luz e profundidade. Estas duas novas situações, a primeira ao nível da concepção do espaço, a segunda nas técnicas de representação gráfica, possibilitaram ultrapassar definitivamente a dimensão bidimensional ainda presente na arte do Gótico. A visão espacial de Brunelleschi enquadra-se nesta tendência que caminhava no sentido da aquisição de uma terceira dimensão, em contraste com o entendimento medieval do espaço como entidade bidimensional. Brunelleschi iniciou-se profissionalmente como ourives e escultor e aprendeu geometria com Paolo del Pozzo Toscanelli, facto

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que certamente teve influência na forma como relaciona a forma artística e a visão ou conhecimento do real. O estudo da geometria ocupa um lugar de destaque em toda a sua obra, encontrando-se associada a uma procura de um novo método de representação do espaço que tornasse possível a reprodução rigorosa, segundo regras precisas, da tridimensionalidade. Este novo método, a perspectiva, baseia-se na observação directa dos fenómenos centrada no ponto de vista do observador e consiste, de um ponto de vista conceptual, na afirmação do valor do indivíduo frente ao mundo. O facto de este método não surgir através de uma formulação matemática de carácter teórico, mas como uma verificação prática de uma reflexão teórica – uma atitude de carácter «experimentalista» própria da época –, permite, segundo Victor Nietto, o seu enquadramento no plano do humanismo. Atribui-se a Brunelleschi a invenção da perspectiva, que se encontra representada em duas imagens hoje perdidas – o Baptistério e a Piazza della Signoria em Florença – que terão sido realizadas «según precisas reglas de perspectiva»1. Contudo, foi Leon Battista Alberti quem codificou e sistematizou o sistema na sua primeira obra teórica, Da pintura antigua, onde o descreve detalhadamente. O método da perspectiva irá transformar-se num instrumento essencial de toda a cultura figurativa de Quatrocentos. A partir deste momento, os artistas italianos debruçaram-se sobre a matemática não só com o objectivo de estudarem as leis da perspectiva, mas também noutras situações, como no caso dos métodos de medição aplicados ao levantamento urbano. As artes, e a arquitectura em particular, adquiriram um novo estatuto, que podemos ver sintetizado por Francisco de Holanda: Era o desenhador ou pintor de que falo mestre de arquitectura, mais que outro algum pedreiro moderno, para saber a ordem e simetria no

edificar, assim para ele dar as traças e invenções dos nobres edifícios.2

Alberti dedicou-se em particular ao estudo da matemática, tendo escrito um tratado sobre este tema intitulado Ludi matematici, no qual recorreu extensivamente ao conhecimento da geometria euclidiana. Como vemos, a arquitectura assumiu progressivamente uma base teórica em relação directa com a matemática, tomando um lugar entre as chamadas «artes liberais», nomeadamente no «quadrivium» da antiguidade constituído pela Aritmética, Geometria, Astronomia e Música; como escreveu Francisco de Holanda, «pintura, arte pelo passado estimada (...) tanto que nenhuma outra coisa tinham por maior admiração, nem milagre, e recebida dos Gregos no primeiro lugar das artes liberais»3. Será esta a grande conquista dos artistas de quatrocentistas, dotar as artes de um sólido fundamento teórico de base matemática, estabelecendo uma estreita relação entre conceitos de harmonia visuais e auditivas. Como já demonstrou Witkower, existe na arquitectura uma analogia próxima entre a estrutura de composição formal de um edifício e os princípios de harmonia da teoria musical da antiguidade helenística, sem os quais «si discorda tutta quella musica»4, ou como disse Francisco de Holanda: Sentirá a música e números, para conhecer a verdadeira harmonia e consonância suavíssima do perfil, da sombra, dos sentidos, da diminuição, do colorir, do recursar, do realço, altíssimas proporções da nova música.5

Dotados de um vasto horizonte teórico que abarca desde o conhecimento técnico dos métodos de representação baseado em regras 2

Francisco de Holanda, op. cit., p. 69. Id,,ibid, pp. 6-7. 4 Rudolf Witkower, op. cit., p. 113. 5 Francisco de Holanda, op. cit., p. 65. 3

1

Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 10.

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objectivas até ao conhecimento da cultura da Antiguidade, incluindo as técnicas de construção dos antigos arquitectos romanos, figuras como Alberti ou Miguel Ângelo vão desempenhar um papel de grande relevo na génese de propostas inovadoras no âmbito de outras áreas de actividade, elegendo a fortificação como tema privilegiado. 3.3 Os arquitectos e a nova fortificação militar «The cult of harmony, proportion and symmetry among artists fitted the need for precisely angled fire and regular, coherent planning (...) such an interest in the new fortification – which, from its dependence on aesthetic theory, its connection with town planning and its interest in the writings of the ancients, “ i ” wi j ifi i i i architecture of the period.»

arquitectos, em particular, já desde o fim do século XV se haviam debruçado sobre o tema da arte militar. O prestígio que entretanto adquiriram em Itália está patente na autoridade de Brunelleschi como especialista em fortificação, multiplicando-se as incumbências que lhe atribuem no campo da engenharia militar, como a inspecção e reforma das fortificações de Pisa, Lucca, Castellina, Rencina, Staggia, Vicopisano, e permitiu ainda que Alberti afirmasse que as vitórias militares se deviam mais à competência do arquitecto do que à conduta ou sorte dos generais: Should you examine the various military campaigns undertaken, you would perhaps discover that the skill and ability of the architect have been responsible for more victories than have the command and foresight of any general; and that the enemy was more often overcome y i g iy f fi wi ’ w y 1 ’ w wi f ’ g .

J. R. Hale, Renaissance war studies, Londres, Hambledon, 1983, p. 6. A arte militar do século XVI enquadra-se num âmbito mais geral que compreende outras formas de organização do espaço. A fortificação, pelas características comuns que apresenta, quer com a arquitectura quer com a própria arte militar, vai constituir a charneira entre estas duas realidades. Curiosamente, as alterações que se operam com o Renascimento no panorama das artes em geral, e que têm lugar com particular incidência na segunda metade do século xv, atingem igualmente as actividades militares pela estreita relação estabelecida entre as duas. Neste processo de mudança desempenham um papel crucial a Geometria e a Matemática, que também se vão revelar cruciais na radical evolução do conhecimento militar durante o século XVI. O interesse demonstrado pelos artistas na área da arquitectura militar ocorre numa altura em que o âmbito da sua intervenção se estende a outras áreas, abarcando como um todo as actividades que, de um forma ou outra, se ocupam também da modelação do espaço. Os

De facto, conforme refere Hale, «men like Francesco Laparelli or P ii ’ w x vi f and public fountains as well i “enceintes”»2. Assim, a intervenção do arquitecto na esfera militar constitui um desenvolvimento coerente da sua actividade profissional, designadamente no caso específico da arquitectura militar, pois para além de o objecto se prestar à experimentação de formas abstractas no espaço de implantação de uma fortificação, é possível aplicar toda a retórica de combinações numéricas e geométricas numa escala que abarca as dimensões da própria cidade. Da mesma forma que se incutiu uma base científica naquelas que outrora eram classificadas como artes mecânicas – pintura, escultura e 1 2

Leon Battista Alberti, On the Art of Building in Ten Books, op. cit., p. 4. J. R. Hale, Renaissance War Studies, op. cit., p. 215.

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arquitectura –, também se pode estabelecer um «tríptico» no âmbito do conhecimento militar constituído pela artilharia, fortificação e arte militar, esta última dedicada aos aspectos tácticos da guerra, generalizou os aspectos teóricos e técnicos da arquitectura ao conhecimento militar. Desde a segunda metade do século XV que a arquitectura militar se encontra em profunda renovação depois de a artilharia ter tornado obsoleto – do ponto de vista estritamente militar – o antigo castelo medieval. Os arquitectos vão eleger o campo da fortificação como objecto de estudo e experimentação privilegiado, alargando assim o âmbito da sua actividade aos assuntos de carácter militar e permitindo a aplicação dos modelos e conceitos formais que emergem do Renascimento. Estes são postos à prova, submetidos a uma intensa experimentação desenvolvida no decurso das intermináveis guerras que ocorrem durante todo o século XVI. Constituem o laboratório onde se irá testar a validade das novas soluções, num processo contínuo que dura até meados de quinhentos. A dialéctica entre teoria e prática que está na génese das novas propostas da arte renascentista também se encontra, desta forma, na base daquela que será a principal inovação que ocorre na arquitectura militar do Renascimento. Esta consistirá na introdução de uma nova estrutura militar defensiva, radicalmente diferente das estruturas medievais, e que será conhecida pela designação de «sistema abaluartado». Como protagonistas da génese deste novo modelo arquitectónico vamos encontrar, desde o início da sua implementação, algumas das principais figuras do humanismo. De facto, Brunelleschi e Leonardo da Vinci ocuparam-se do desenho e obras de fortificação, Miguel Ângelo e Alberti trataram de aspectos técnicos relacionados com a artilharia propondo novas soluções de baluartes. Também Francisco de Holanda defendia, na sua obra Da Pintura Antiga, a

necessidade da intervenção do arquitecto em assuntos relacionados com a prática militar, «por ser proveitosa nos negócios e empresas da guerra»1; o envolvimento dos arquitectos abrangeu assim as três áreas distintas do conhecimento militar, que se pode considerar possuírem uma especificidade própria no âmbito da arte militar em geral: a artilharia, «para a feição das bombardas trabucos, canhões reforçados e arcabuzes (...) para estranheza e desenho das armas»2; a formatura do exército, «para o sitiar dos campos; para a ordem das fileiras, medida dos esquadrões»3; a fortificação, «para a forma e proporções de todas as fortalezas e rocas, bastiões, baluartes, fossados, minas, contraminas, trincheiras, bombardeiras, casamatas; para os reparos e cavaleiros, revelinos, gabiões, merlões, ameias»4. Os problemas técnicos levantados pelo novo modo de fortificar são, assim, insistentemente tratados pelos teóricos do Renascimento, uma vez que o interesse pelos problemas da fortificação militar se converteram numa «moda» conforme avançamos pelo século XVI. Pietro Cataneo, por exemplo, que escreveu um tratado de arquitectura, dedica também parte significativa da sua obra ao tema da fortificação de castelos e cidades. Em 1433, durante as obras de fortificação de Pisa, Brunelleschi utiliza um sistema cujo principal elemento consiste no baluarte circular. Este, designado por rondela, é um dos elementos principais das fortificações de transição, consistindo num torreão redondo cuja forma permitia a implantação de peças de artilharia. É ainda um sistema defensivo estático, que se encontra fortemente associado ao antigo castelo medieval, mas que será levado ao limite máximo de aperfeiçoamento formal a partir do último quartel do século XV pela família Sangallo. O aperfeiçoamento do bastião como elemento 1

Francisco de Holanda, op. cit., p. 281. Id, ibid, p. 283. 3 Id, ibid., p. 281. 4 Id, ibid. 2

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do novo sistema fortificado será a primeira contribuição dos italianos, e encontra-se na base do conceito do baluarte angular. Da mesma forma que Alberti sistematizou a experiência de Brunelleschi, também em 1480 Francesco di Giorgio propôs no seu Tratatto dell’Architeture civile e militare este novo modelo da fortificação de transição, que combinava de uma forma revolucionária a torre e o bastião triangular. Este protótipo esteve na base do trabalho da família Sangallo, que se desenvolveu desde a segunda metade do século XV, com Francesco Gianberti (1405-80), até meados do século XVI, com os filhos, Giuliano (1445-1516), António o Velho (1455-1534), e António o Novo (14851546). Uma das primeiras intervenções desta família de arquitectos são as muralhas da cidade de Poggio, planeadas em 1487, e que combinavam pela primeira vez a cortina amuralhada e o bastião integrados num sistema fortificado único; Giulliano Sangallo trabalhará aqui no ano seguinte – 1488 –, seguido em 1495 por António Sangallo o Velho. Este modelo de transição consolida-se no final de Quatrocentos, e embora obras posteriores, como o Castelo Sto. Ângelo (1492) e Civitacastellana (1494), sugiram uma aproximação mais arcaica que Poggio – em termos da utilização dos bastiões angulares –, já Sanzanello (1493) tem forma regular, com um bastião angular e 2 redondos. Estas realizações representam o culminar da utilização e aperfeiçoamento da forma fortificada arredondada. Ainda poderemos observar a mesma tipologia nas fortificações de Sto. António em Florença, embora estas tenham sido construídas numa época em que o baluarte angular já se impunha como a forma mais adequada ao moderno campo de batalha. Talvez tenha sido por essa razão que a solução adoptada para o traçado das fortificações florentinas fosse objecto da crítica contemporânea, constituindo por isso o capítulo final do papel preponderante de uma «estética curvilínea» de carácter orgânico, que

vai sendo substituída por uma «estética rectilínea», objecto de uma aproximação mais «científica» aos problemas. Em todo o caso, daqui para a frente o futuro da fortificação residirá numa aproximação mais funcional e objectiva; plataformas de planta simples, com implantação de bombardeiras largas ou de baixo parapeito, a coberto das quais os canhões podem disparar em qualquer direcção (Imagem 45). Imagem 5 – Formas fortificadas «arcaicas» e «modernas»

a. Fogo cruzado com baluartes redondos, Girolamo Maggi (1564)

b. Fogo cruzado com baluartes angulares, Girolamo Maggi (1564)

O início do fim da predominância de uma «estética curvilínea» é já patente em 1515, quando as plantas propostas por António Sangallo o Novo para Civitavecchia são analisadas e aprovadas por uma junta que integra comandantes militares de nomeada, entre os quais se encontra Pedro Navarro. Navarro já havia inspeccionado as muralhas de

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Florença em 1526, juntamente com Nicolau Maquiavel, e a presença dos militares na apreciação final das novas soluções fortificadas implicou alterações de fundo nos princípios de concepção das formas destinadas aos dispositivos fortificados. De facto, o recinto defensivo de Florença de 1533 do mesmo António Sangallo será dos primeiros exemplos em que uma cintura amuralhada foi tratada como plataforma artilhada contínua, integrando os baluartes num único sistema defensivo. A inovação introduzida por esta solução foi fundamental, constituindo para os contemporâneos o «arquétipo» do sistema fortificado moderno. Por essa razão foi classificado por Francisco de Holanda como o mais belo forte da Europa, e classificado por Giorgio Vasari como praticamente inexpugnável, o que demonstra que se encontrava aberto o caminho para um ascendente da comoponente funcional sobre a componente estética. Apreciado de um ponto de vista estritamente formal, o baluarte angular encontra-se subordinado a linhas de direcção convergentes num onto de fuga – o inimigo –, linhas essas que correspondem às trajectórias de tiro da artilharia (Imagem 6). Assim, na origem conceptual do sistema abaluartado encontra-se presente uma forma de percepção espacial de tipo cónico – fundamento de toda a representação em perspectiva –, estabelecendo uma base comum com a arquitectura civil. Este facto poderá explicar, pelo menos em parte, a incursão dos arquitectos no domínio do conhecimento militar, que como já vimos se tornou numa situação habitual desde Filippo Brunelleschi. Durante o período de transição situado sensivelmente entre 1450-1530, não existiu uma clara distinção entre arquitectura civil e militar. O novo tipo de arquitectura militar abaluartado, baseado em princípios de composição geométricos sem se prender exclusivamente com conceitos de carácter utilitário, constitui um domínio de manifesto

c. Bastiões circulares e baluarte angular, Pesaro, F. de Holanda (1538-40)

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Imagem 6 – As linhas de tiro e a fortificação angular

a. Linhas de construção geométricas, Girolamo Cataneo (1571)

c. Método de desenhar em perspectiva cónica, Sebastiano Serlio (1545)

b. Perspectiva das linhas de trajectória da artilharia, Girolamo Cataneo (1571)

d. Perspectiva cónica de uma fortificação regular, Pietro Cataneo (1554)

interesse para os arquitectos. Estes podiam dedicar-se exclusivamente à concepção de formas idealizadas, um propósito implícito nas intervenções que se efectuam na esfera da arquitectura civil. De alguma forma, a fortificação permite ao arquitecto uma intervenção mais livre; o próprio conceito militar na origem da fortificação abaluartada envolvia a concepção de sistemas construídos que se pretendiam dinâmicos, expandindo-se ou contraindo-se conforme a situação militar objectiva em que se encontravam – na ofensiva ou na defensiva. Como elemento arquitectónico, o baluarte foi alvo de um estudo específico por parte de vários personagens do humanismo renascentista, como Leonardo da Vinci ou Miguel Ângelo, este último responsável por algumas das soluções formalmente mais bizarras. Curiosamente, foi com a consolidação de um modelo definitivo cristalizado na forma do baluarte angular – embora fruto do trabalho pioneiro de Brunelleschi, Da Vinci, ou Miguel Ângelo, Vasari atribui a sua invenção a Michele Sanmichele no início da década de 301 –, que ficaram criadas as condições para uma separação definitiva entre arquitectura civil e arquitectura militar. Terá agora lugar uma nova fase de aperfeiçoamento do modelo estabelecido, em cujo processo encontraremos um novo protagonista, o Engenheiro militar. 3.4 A situação em Portugal «En la arquitectura española de las dos primeras décadas del siglo XVI, se produjo un fenómeno de indeterminación estilística, que inicia su desaparición a partir de los años veinte. Desde estos años se aprecia un replanteamiento en la utilización del vocabulário y de la sintaxis clásica.»

Victor Nieto, Arquitectura del Renacimiento en España 1488-1599, p. 91.

Ao contrário do que se passava nos territórios ultramarinos, a evolução das formas fortificadas em Portugal não acompanhou o mesmo impulso no sentido da introdução de novas formas. Como refere Rafael Moreira, o facto de a pressão militar não se efectivar em território continental, levou a uma inércia que entravou a evolução da arquitectura militar no continente, mantendo o apego às soluções tradicionais. Terá sido no âmbito dos processos visuais que se centraram as primeiras preocupações dos autores das obras construídas, sendo perceptível a associação da arte a uma manifestação do poder central. Trata-se, contudo, da utilização de modelos militares com carácter já arcaizante, mas que poderá elucidar-nos sobre a forma como se processa a evolução das formas da arquitectura militar, sem o pressuposto funcional que geralmente se pretende que esteja na génese destes tipos construtivos. A arquitectura manuelina constitui campo fértil para motivos decorativos, cujas características estão próximas daquelas que encontramos na produção da armaria do início do século, onde deparamos com uma plêiade de motivos bizarros e grotescos que, no conjunto, conferem à arte militar um cunho que se aproxima do carácter «festivo» atribuído por Paulo Pereira à arte manuelina. Este pendor para uma elevada carga decorativa terá talvez relação com a situação de improviso que se observava no início do século, onde os capitães actuavam muitas vezes como autores ou mesmo como mestres-deobras, como no caso de Afonso de Albuquerque depois da conquista de Aden em 1513; sob a sua orientação iniciou-se a construção de uma fortaleza, em cujos trabalhos participaram também os fidalgos que acompanhavam o vice-rei que, no entanto, abandonariam o estaleiro das obras por considerarem que tal actividade se não coadunava com as prerrogativas inerentes ao seu estatuto. Em todo o caso, a sempre presente necessidade de manter uma

1

Hale não aponta uma autoria definitiva para a invenção do baluarte angular.

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função militar efectiva, sobretudo nos territórios recém-conquistados onde a pressão militar era mais forte, favoreceu o cruzamento de intervenções de mestres nacionais com as soluções técnicas mais avançadas no campo da arquitectura militar. Foi assim que Diogo de Arruda colaborou com Giorgio Martini na reformulação do sistema fortificado de Nápoles em 1485-86, e que esteve certamente na origem das soluções que mais tarde empregou noutros locais.

Imagem 7 – Fortificações portuguesas no Norte de África

No Norte de África, podemos observar em Safim (1511) esta evolução progressiva nas estruturas defensivas. Aqui, verificamos que a estrutura designada por «castelo do mar» possui um perfil arcaico ainda próximo do castelo medieval, enquanto que no «castelejo» é perceptível uma maior preocupação com uma nova função militar; de facto, o baluarte redondo do «castelejo» não é mais que uma «rondela» de silhueta baixa e grande diâmetro, que se apresenta como um alvo mais difícil, ao mesmo tempo capaz de albergar várias peças de artilharia. Podemos mesmo considerar que est emos perante uma evolução na direcção do conceito de baluarte circular, implantado no ângulo formado pelos dois panos de muralha (Imagem 7).

a. Safim, (1516?), vista das fortificações e implantação do castelo do mar e «castelejo»

b. Safim, vista do «castelejo» onde sobressai o baixo perfil do baluarte circular

c. «Castelo do mar» com bombardeiras abertas na torre circular à esquerda

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A persistência das formas circulares está patente no tratado de Dürer, do final da década de 20, que segundo Galindo Diaz1 foi um dos últimos textos teóricos a conservar laços com a fortificação de tradição medieval. Como já vimos, Isidoro de Almeida terá escrito ou traduzido este texto em 1552, pelo que podemos concluir que por esta altura o tratado de Dürer ainda era tido em Portugal como uma referência.Efectivamente, se observarmos o traçado da praça de Mazagão, ainda podemos descortinar a utilização de formas circulares ou arredondadas no desenho dos bastiões e baluartes, e isto apesar de a fortaleza ter sido construído já na década de 40 e ser considerada como obra maior, tanto em termos estéticos como do ponto de vista militar – «tão honrado edifício que é o melhor que se faz no mundo nem se achará em Itália»2. Aliás, pertencendo o traçado principal da cintura fortificada ao engenheiro militar Benedetto de Ravenna, que servia Carlos V, concluímos que a fortificação de Mazagão não deveria estar desfasada da realidade militar mais avançada da época. De facto, os muros exteriores foram construídos em cortinas rectas até 300 metros de extensão, inclinando-se depois para o interior, formando ângulos muito abertos entre dois baluartes adjacentes; esta era uma solução recente, designada pelos italianos como cortine piegate (Imagem 8).

Imagem 8 – «Cortine piegate» ou «muros dobrados»

a. Linhas de construção para «cortine piegate», Girolamo Maggi (1564)

Este sistema correspondia a um recurso para aumentar a capacidade de vigilância e alargar a zona de tiro, que segundo Moreira poderá ter sido inventado por Giuliano da Sangallo e mais tarde objecto de publicação por Tartaglia e Zanchi. É interessante verificar nos desenhos que Holanda realizou em Itália a existência de alguns baluartes já com forma angular, pelo que se pode concluir que terá sido 1

Jorge Alberto Galindo Díaz, El Conocimiento Constructivo de los Ingenieros Militares del Siglo XVIII, Un estudio sobre la formalización del saber técnico a través de los tratados de arquitectura militar, Tese de doutoramento, Barcelona, 1996. 2 Rafael Moreira, A Construção de Mazagão, cartas inéditas 1541-1542, Lisboa, IPAAR, 2001, p. 48.

b. Traçado em forma de «cortine piegate», Mazagão (1541)

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precisamente por esta altura – por finais dos anos 20 – que se procedia à introdução destas novas formas nos sistemas defensivos. Curiosamente, as edificações realizadas pelos irmãos Arruda em Portugal na década de 30 recuam na actualidade das suas concepções militares. De facto, embora construído em 1530, portanto num período claramente posterior à edificação de Safim, pode-mos observar em É vora Monte a persistência de modelos de fortificação funcionalmente mais arcaicos, como se pode aferir pela maior altimetria do edifício, tanto mais que esta situação tem lugar numa altura em que já se encontram estabelecidas as formas angulares do sistema abaluartado.

Imagem 9 – O sistema abaluartado no território português

Se foi entre os anos 30 e 50 que os portugueses deram um impulso de cisivo no âmbito da fortificação, será na segunda metade do século, depois de Miguel de Arruda deixar implantadas as bases para a difusão do sistema abaluartado, que se implanta definitivamente esta forma no espaço nacional. Assim, o intervalo de tempo que decorre entre os anos de 1545-1560 abarca várias intervenções no âmbito da fortificação onde é notória a utilização desta nova tipologia, desde as campanhas de obras em Tânger, a cintura fortificada de S. Salvador no Brasil, o alargamento das praças de Ormuz, Bahrein ou as fortificações de defesa do Porto e Cascais (Imagem 9).

a. Fortaleza de Ormuz, Inofre de Carvalho (1560?) e. Fortaleza de Q ’

-Bahrain, Barein (1527-1546 e 1570-1578)

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b. e c. Tânger, gravura (1669-71) e proposta para o traçado das fortificações de 1541 d. Fortaleza de S. João da Foz, (1527-1546 e 1570-1578)

O sistema abaluartado será formalizado em Portugal por volta da década de 70, no único tratado de arquitectura português conhecido, atribuído a António Rodrigues, arquitecto-mor do reino desde 1564. Este tratado remete-nos para obras de de referência na época, funcionando como um repositório das influências que se fariam sentir em Portugal nas décadas de 60 e 70 no conjunto da arquitectura civil e militar, e em particular nesta última. O texto de Rodrigues apresenta traçados de baluartes angulares, muito próxmos dos esquemas no tratado de Girolamo Cataneo (Imagem 10), evidenciando semelhança com estudos de Fratino, Calvi e Capellino ou mesmo de Pietro Cataneo. O facto de os teóricos da guerra se dedicarem frequentemente à fortificação acumulando funções como arquitectos, permte estabelecer um paralelo com o pragmatismo de carácter militar da arquitectura portuguesa tal como definido por George Kubler.

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Imagem 10 – O baluarte angular em Portugal na segunda metade de quinhentos

a. Santa Maria da Graça, Setúbal (1570?) a. António Rodrigues (?)

b. Girolamo Cataneo (1584)

Ao compararmos edificios como a igreja de Santa. Maria da Graça em Setúbal, que António Rodrigues terá desenhado depois de 1570, e Santa. Maria da Atalaia em Fronteira (1577-94), podemos descortinar nas fachadas uma austeridade militar que subsiste juntamente com o rigor clássico; embora com grandes semelhanças entre si, estas duas igrejas são talvez mais compactas relativamente a Santa Maria dos Livreiros, de Afonso Álvares (Lisboa 1572), mas não deixam de constituir um conjunto esteticamente coerente (Imagem 11). Assim, não será por acaso que grande parte das imagens incluídas no único tratado português de arquitectura civil quinhentista, que terá sido precisamente escrito pelo mesmo António Rodrigues, digam respeito à fortificação.

Imagem 11 – Igrejas «militarizadas» da 2ª metade de Quinhentos b. Igreja de Santa Maria do castelo, Estremoz (1559-62)

O movimento que se observa no contexto da arquitectura militar foi também acompanhado, na sua evolução, pelo desenvolvimento das práticas militares. No Oriente, nas intervenções militares comandadas pelo vice-rei Martim Afonso de Sousa, ou sob as ordens de capitães

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como Cristóvão da Gama, utilizam-se as formas de combater mais modernas, algumas delas extraídas directamente das páginas dos tratados militares. A actividade militar de Martim Afonso de Sousa, em particular, evidencia não só o conhecimento dos aspectos tácticos mais recentes, mas também um elevado grau de adestramento das tropas envolvidas nas campanhas, indicando assim que existe alguma experiência na guerra moderna, por parte dos soldados portugueses e respectivos oficiais: Saiu ao campo com sua gente bem armada posta em ordem, com sua espingardaria prestes, porque os de cavalo eram muitos (...) António da Silveira cerrou sua gente como em caracol e se foi chegando para a gente de cavalo a que de súbito deram um surriada de espingardas.1

Esta fase do combate é decisiva, pois indica que os soldados se encontram adestrados no processo de fazer fogo por descarga, que Martim Afonso de Melo descreve como destinado a a «quebrar a fúria dos inimigos permitindo que estes facil se desbaratem, e os rompam com pouca perda»2, o que de facto veio a acontecer: Com que os cavalos foram fugindo (...) com que os mouros foram em desbarato; mas nem por isso António da Silveira consentiu que nenhum homem saísse fora da ordem em que iam.3

Só com tropas muito disciplinados era possível manter a formatura frente a inimigos destroçados, sem ceder ao ímpeto de iniciar imediatamente uma perseguição desordenada. Os soldados reiniciam de seguida a progressão, mantendo a formatura intacta, aproximando-se de uma segunda posição dos adversários: Foram correndo a borda do rio até darem em uma tranqueira em que

estava muita gente de pé (...) ao que António da Silveira ordenou dar nos mouros disparando as espingardas. Então abalroando às lançadas (...) derão Santiago nos mouros com uma surriada de espingardas, e as largando a seus escravos, com as lanças entraram com os mouros às lançadas fortemente, que os mouros não puderam aguardar e foram (…) A ó i Si v i i seguissem o alcanço.4

Pela segunda vez consecutiva o comandante contém o ímpeto dos soldados, que como já foi referido evidencia um elevado grau de disciplina apenas demonstrado por soldados veteranos. O capitão das tropas, certamente prático de outros encontros, demonstra pleno conhecimento na utilização das armas de fogo, em conjunto com o rigor das formaturas militares, cuja articulação é decisiva no resultado deste encontro: Teve a gente assim em corpo juntos, porque os de cavalo andavam rodeando para cometer, mas como chegavam a tiro logo as espingardas os arrecadavam; com que não ousavam chegar, com que António da Silveira esperou que foi a maré cheia, e se embarcou à sua vontade.5

Inserido num período de prática construtiva intensa, durante o qual são introduzidas as mais recentes formas defensivas da nova arquitectura militar, o Regimento de Guerra – a ser escrito depois do texto de Diego de Montes, portanto após 1537 – ganha assim uma importância acrescida. De facto, demonstra que a produção teórica militar nacional, embora reduzida em número, acompanha as inovações que surgem no campo militar. Constitui, por isso, um caso interessante de estreita ligação entre teoria e prática, o que indica a existência de reflexão teórica sobre assuntos onde a carga utilitária tem um evidente

1

Gaspar Correia, op. cit., v. 3, p. 347. Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 355. 3 Gaspar Correia, op. cit., p. 347. 2

4 5

Id., ibid. Id., ibid.

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ascendente. Permite ainda estabelecer paralelo com a época sebástica, durante a qual assistimos de novo ao recrudescimento do interesse na actualização militar no reino, tida agora como crucial para a resposta que se pretende como resolução da crise do império e, em última análise, com o objectivo de sublimar as tensões que se revelam no país. É numa atitude militarizada que se poderá enquadrar Filippo Terzi. Personificando o modelo do arquitecto/engenheiro militar, domina sobretudo a faceta racional mais rígida da normativa de carácter clássico, introduzindo em Portugal o «frio classicismo internacional»1. A sua vinda para Portugal em 1576, durante o reinado de D. Sebastião, reflectiu as opções de carácter militar do rei, cuja educação foi ministrada pelo jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, portanto perfeitamente enquadrado no espírito tridentino. O tratado de Filippo Terzi sobre as Ordens de Arquitectura, para além da dimensão reduzida é limitado no conteúdo. Como se deduz do próprio título do texto, Terzi reduz o tema das «três ordens de arquitectura» a uma vertente essencialmente descritiva dos elementos decorativos das ordens, não contemplando uma visão de conjunto do objecto arquitectónico. De facto, o texto é omisso relativamente à concepção espacial do edifício, quer do ponto de vista da planimetria quer dos alçados dos edifícios. Sem a carga retórica de referência aos clássicos presente noutras obras, aborda apenas aspectos formais, desde os métodos de construção de figuras geométricas e regras de composição arquitectónica, como seja a definição das ordens, elementos de fachada, etc. São dados exemplos desenhados, acompanhados de curtas anotações escritas, de forma que o trabalho tem um carácter essencialmente gráfico. 1

Rafael Moreira, «Arquitectura: Renascimento e Classicismo», in Historia da Arte Portuguesa, coord. de Paulo Pereira, 2.º vol., Temas e Debates, 1985.

Em resumo, trata-se de conhecimento de natureza eminentemente prática sem qualquer carga teórica paralela, e que permite a sua consulta por indivíduos sem qualquer formação clássica mais profunda. O caminho percorrido deste a publicação do tratado de Pietro Cataneo, muito mais abrangente quanto ao tema da arquitectura do que Terzi, reflecte a preocupação com os aspectos mais formais das regras clássicas, despojando-as de significados exteriores ou ocultos que não se situem no contexto cristão, e encontra-se no cerne do espírito tridentino. O tratado de Terzi inclui ainda uma curiosa referência a matéria de carácter militar; depois de diversos tipos construções geométricas, o leitor é confrontado – inesperadamente – com vários estudos para um reparo de artilharia, provavelmente a proposta para um novo modelo concebido pelo autor (Imagem 12), e esta atenção de Filippo Terzi a aspectos práticos da actividade militar pode enquadrar a sua participação na expedição de 1578 ao Norte de África sob uma perspectiva mais objectiva, uma vez que na batalha desempenhou o cargo de «capitão de artilheiros»2. Imagem 12 – Reparo de artilharia segundo Filippo Terzi (1578)

2

Filippo Terzi, «Lettere di Fillippo Terzi», in Documenti Inediti dell‘Archivio di Stato di Firenzi e della Biblioteca di Persaro, v. 3, intr. e notas de Henrique Trindade Coelho e Guido Battelli, Florença, 1935.

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Nicolau de Frias poderá ser dado como exemplo dos destinatários do pequeno manual de Terzi. Não se lhe conhece obra teórica, e teria uma formação com carácter mais técnico recolhida na escola oficina do pai. Contudo, o facto de ter participado na batalha de Alcácer na qualidade de «engenheiro de sítio», ao lado de Terzi, e depois da morte deste – em 1597 – lhe ter sucedido no cargo de mestre-de-obras dos paço da Ribeira, leva a supor tratar-se de uma figura com algum relevo no panorama artístico nacional. Se a matemática e geometria permitem dominar os aspectos técnicos do uso da artilharia, como seja o cálculo da trajectória dos projécteis, o conhecimento dos autores clássicos que escreveram sobre a guerra coloca na ordem do dia o estudo da arte militar da antiguidade, cuja influência – à semelhança do sucedido no panorama das artes – contemplará as suas diversas vertentes, como seja o armamento, a preparação dos soldados, e as formações e manobras no campo de batalha. Efectivamente, ainda no século XV, assistiu-se à reintrodução de armas com origem na tradição greco-romana, como a sarissa macedónica que foi baptizada com o nome de pique ou pica, e que rapidamente se tornou na arma mais reputada dos exércitos europeus quinhentistas: Este género de arma, que es la pica, se ha ydo perfeccionando tanto, que oy dia tiene nombre de Reyna y la mas antigua de todas las armas, como verdaderamente lo es.1

O pique terá sido introduzido de forma sistemática ainda no decurso do século XV, conforme refere Isidoro de Almeida, «dos Suizaros em que ficaram tamb as Sarisas, & a ordem das phaianges

dos Gregos, nos seus esquadrões»2. Em conjugação com o emprego dos piques, os soldados suíços adoptaram ainda um tipo de formação extremamente compacta, réplica das falanges macedónias. Estas formações, consideradas com sendo praticamente invencíveis até ao início de Quinhentos, foram também um dos factores que aceleraram o declínio da cavalaria pesadamente armada de tipo feudal. Da mesma forma que foi responsável pela utilização de formações maciças, a arte militar da Antiguidade será mais tarde responsável – pelo menos em parte – pela situação oposta. Por exemplo, num dos dois textos sobre arte militar que Hale atribui a Andrea Palladio, já na segunda metade de Quinhentos, renova-se uma ligação directa com a arte militar da Antiguidade. Usando precisamente como referência a falange macedónica e a legião romana, preconiza-se a redução do número de fileiras, obtendo assim formações militares menos densas. A influência clássica também se introduz em actividades especializadas, como a fabricação do armamento ou das peças defensivas individuais – as armaduras. Formalmente mais diversificadas na primeira metade do século XVI, a posterior racionalização dos modelos das armaduras tem como consequência o seu enriquecimento visual através do ornamento, desenvolvendo-se um rol de motivos para a decoração das peças de armaria cuja origem se pode encontrar nas artes decorativas, como seja a ourivesaria, azulejaria, ou mesmo na gravura impressa. A fonte de motivos decorativos mais importante que então se adoptou, para além dos «arabescos» ou dos temas mitológicos ou da Antiguidade, consistiu nos grotescos que, como se sabe, tinha também uma raiz clássica. Para além se encontrarem frequentemente representados edifícios, os motivos decorativos da armaria têm ainda relação com alguns artistas do Renascimento, como Lucas Cranach o

1

Bartolomé Scarion de Pavia, Doctrina militar en la qual se trata de los principios e causas porque fue hallada en el mundo la milicia, Lisboa, 1598, p. 88.

2

Isidoro de Almeida, op. cit., pp. 184-185.

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Velho (primeiro quartel do século XVI), Verrocchio (fim do século XV) ou Albrecht Dürer, que representam muita da decoração utilizada no armamento quinhentista (Imagem 13). A armaria também irá desenvolver técnicas específicas, nomeadamente a gravação com ácido, precursora da técnica da gravura, que terá tido um papel fundamental na própria disseminação dos padrões decorativos.

que se vão multiplicando com o avançar do século procurarão, cada vez com maior insistência, transpor os modelos clássicos para a realidade militar quinhentista. Valdés, por exemplo, associa a orgânica do terço «o regimiento que es como una legión romana»2; Luís Mendes de Vasconcelos, já no início de Setecentos, recupera a própria etimologia das formações de batalha dos gregos:

A quase totalidade dos tratadistas militares quinhentistas é unânime no elogio feito à eficácia do sistema militar romano. Um dos aspectos referidos como cruciais era o treino a que os soldados romanos eram sujeitos, que lhes conferia um grau de disciplina sem paralelo com os exércitos contemporâneos, permitindo-lhes executar de forma mecanizada manobras militares complexas. Será interessante transcrever uma passagem do texto de Francisco de Valdés a este respeito:

Devese (& com razaõ) seguir a doutrina dos Gregos (...) & assi se farà nesta Arte chamando ás batalhas de hum sò esquadrão simplez, & ás de dous dobradas, & ás de 3 & 4 redobradas, como os Gregos Phalangarchia, Diphalangarchia, & Tetra Phalangarchia.3

Había en Roma muchas escuelas, donde eran ensinados los tirones, que ahora llamamos soldados bisoños, no sólo a ser diestros de todas armas, sino que eran doctrinados del ordnen que habían de guardar, y del lugar próprio que habían de tener. En lo cual estaban instruídos, que poco o ningún trabajo se tenía en formar los escuadrones; y tanto más de cada dia se hacían más diestros, cuanto no faltaba jámás entre ellos un perpetuo ejercicio. Pues dice el mismo Lívio, que los tirones dos veces al día se ejercitaban, y los veteranos una.1

Será Nicolau Maquiavel que no seu tratado sobre a arte da guerra vai sistematizar, pela primeira vez, a aplicação da táctica romana ao moderno campo de batalha. O estudo da doutrina operacional das legiões por mais do que uma vez alterará por completo as formações militares que então se usavam – as novas tácticas de Nassau, já no fim do século XVI, reflectem precisamente este facto – e os textos teóricos

Em resumo, à semelhança do que sucedeu com a arquitectura, também no campo da arte militar se absorveram os modelos da Antiguidade Clássica. Ao mesmo tempo, o conhecimento militar será também codificado num sistema de regras precisas, onde a fortificação desempenha um papel crucial; funcionando como charneira entre duas realidades aparentemente tão diversas, será através da fortificação que o respeito conferido à arquitectura é transferido para a engenharia militar de onde, por sua vez, influenciará a arte militar. Os princípios de harmonia utilizados na arquitectura, e que depois se enquadraram de forma natural nas necessidades conceptuais do novo sistema de fortificação – o estudo das linhas de fogo, e o traçado regular das fortalezas –, estendem-se, progressivamente, à organização dos soldados no campo de batalha. A prática da guerra adquire uma faceta teórica, considerando-se agora como um actividade mais prestigiada, como podemos ler nas palavras de Francisco de Valdés:

2 1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 37.

3

Francisco de Valdés, op. cit., p. 35. Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Militar, Alenquer, 1611, p. 157.

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Imagem 13 – A arte e a guerra

a. Morrião quinhentista com «crista» decorada com motivos de tipo «grotesco »

b. M iv

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(1552)

68

c. M iv

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(1552)

d. Peito de armadura de parada

Siendo la milicia tan noble como es, ha de tener sus reglas y preceptos, de onde sale el arte militar, y como no se permite usar en público del ejercicio de médico, ni letrado, ni teólogo al que no ha estudiado en dichas Facultades y sea docto en ellas, tampoco será bien que mande y gobierne en la guerra, el que no fuere docto en la disciplina militar. La cual disciplina sierve de leal consejero, de luz en medio de tiniebla, de guía en camino dudoso y dificultos, principalmente si estribare en los generales fundamentos de prudencia y fuere acompañada con las artes liberales.1

1

Francisco de Valdés, op. cit., pp. 35-36.

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Capítulo III – A traça arquitectónica do exército

Imagem 14 – A forma quadrada na arquitectura

«Del uso de las Armas, y del Arte, de plantas de esquadrones, que aqui leo, ninguno tratar pudo (segun creo), com tan docta, tan breve, y subtil Arte (...) del Arte Militar, tiene perfecta, Sciencia, que com su ingenio, nos la mide.»

Juan de Carrión Pardo, Tratado de como se deven formar los quatro esquadrones em que milita nuestra nación española, Lisboa, 1595, soneto. um facto que, durante o Renascimento, a produção arquitectónica tem subjacente a utilização de um sistema de regras de composição, isto é, pode-se encontrar no desenho das plantas e alçados dos edifícios uma estrutura normativa coerente de base geométrica e matemática. Alberti empregou figuras geométricas simples, como o quadrado, e as suas linhas notáveis como auxiliares para a composição formal dos edifícios. Na igreja de Sta. Maria Novella, por exemplo, a fachada encontra-se circunscrita por um quadrado, observando-se ainda que a composição da fachada obedece ao princípio de subdivisão do quadrado em metades, ou justaposição do mesmo em forma de quadrado duplo, utilizando as medianas e diagonais (Imagem 14).

É

Estes «jogos formais» generalizaram-se durante o Renascimento, e foram apreendidos pelos arquitectos através do estudo dos monumentos antigos; a proporção de 1:2, que Alberti observou no esquema «harmónico» do Panteão, terá sido posteriormente utilizado em Sta. Maria Novella. Pretendia-se assim organizar o edifício e os elementos que o constituem, tais como colunas, portas, janelas, segundo uma proporção determinada; por outras palavras, tratava-se de estabelecer uma relação de harmonia do todo com as partes.

a. Diagramas na fachada de Stª. Maria Novella, Florença segundo Witkower

«T (…) figure is called Dupla (…) for it is made of two four square forms joined together» Serlio, op. cit., pp. 12-13

b. Linhas notáveis do quadrado, Serlio

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Andrea Palladio, outra figura de referência no panorama da arquitectura do Renascimento, também parece «aceptar el principio proporcional pitagórico, según el qual la armonía nace de proporciones simplicísimas, tal como viene enseñado por los teóricos de la música»1. Estes são conceitos matemáticos de harmonia de origem pitagórica/platónica, que se traduzem por medidas simples relacionadas entre si, correspondendo ainda a determinadas consonâncias musicais, a principal fonte para o sistema de proporções cuja utilização, durante o Renascimento, não apresenta hoje grande margem para dúvidas. A criação de um objecto – seja uma peça musical ou um templo – mediante a utilização das regras de composição confere-lhe, no contexto da poética aristotélica, unidade, tornando-o numa entidade coerente, perfeita e completa2.

a. Triângulo, Francisco de Holanda (1571)

b. Quadrado, Castelo de Évora Monte, Diogo de Arruda (1533)

Alargando o âmbito da concepção arquitectónica de forma a envolver o conjunto dos saberes militares, desde a fortificação até às formaturas militares, constatamos que também era corrente não só a aplicação de construções geométricas, mas também o uso de relações de harmonia com base matemática. No caso da arquitectura militar, as cinturas fortificadas tinham como base o emprego de figuras geométricas regulares, como o pentágono, o hexágono, o quadrado ou o triângulo, embora a sua utilização dependesse, naturalmente, da escala de intervenção e da topografia existente (Imagem 15).

Imagem 15 – Triângulos, quadrados, pentágonos, hexágonos

1

Eugenio Battisti, En Lugares de Vanguardia Antigua: De Brunelleschi a Tiepolo, Madrid, Akal Arquitectura, 1993 (1.ª ed. 1981), p. 153. 2 Alexander Tzonis, Lianne Lefaivre, Classical Architecture, The Poetics of Order, Londres, MIT, 1999 (1.ª ed. 1986).

a. Hexágono e a sua construção, Diego Conçalez de Medina Barba (1599)

Para além da utilização de formas de composição de carácter geométrico, os arquitectos militares recorriam também a relações de harmonia com base numérica. Para mencionar um exemplo no contexto da arquitectura militar portuguesa, na fortaleza de Mazagão a forma encontrada para o perímetro fortificado da cidade tem subjacente, segundo Rafael Moreira, um esquema rectangular de proporções sesquitércias (um quadrado mais um terço). O quadrado era, aliás, uma forma recorrente na planimetria da arquitectura quinhentista. Em Portugal, podemos encontrar esta tipologia em várias igrejas da segunda metade do século XVI; Sta. Maria do Castelo em Estremoz, da autoria de Pero Gomes em (1559), a Igreja matriz de Monsaraz (1563), S. Vicente de Fora e Sta. Maria do Castelo, em Olivença, ambas de 1570. As planimetrias destes edifícios compreendem um corpo quadrangular com três naves a três tramos, numa forma de composição tripartida que, como se verá mais adiante, será frequentemente utilizada na organização dos exércitos. Como já vimos, o desenho das fortificações abaluartadas tem uma relação directa com o estudo dos ângulos de tiro e das linhas de fogo da artilharia. Estas formas têm como base não só a utilização da geometria, como sejam os métodos de construção de figuras poligonais

Pentágonos, d. Girolamo Cataneo (1571), e. António Rodrigues (1576?)

regulares, mas também o recurso aos princípios da perspectiva, dado que o estudo das linhas de fogo é feito a partir de um ponto de fuga. A perspectiva era também utilizada não só como um recurso na construção de figuras no plano gráfico, mas também como forma de representação. De facto, tornou-se comum nos diversos tratados De re militari quinhentistas, não só a representação da fortificação como figura tridimensional, mas também do campo de batalha e das próprias formações militares (Imagem 16). Desta forma observamos a transferência do uso de técnicas de representação especializadas da arquitectura para a a teoria militar, em particular nos textos teóricos; aparecem pela primeira vez no tratado de Maquiavel, e vulgarizam-se depois nos diversos tratados que posteriormente vão sendo publicados. Pelo seu carácter analítico, estas imagens determinam os diversos elementos de uma formatura militar – cumprindo um papel idêntico aos desenhos técnicos de um edifício – estabelecendo o traçado que se pretende para um agrupamento de soldados – «as plantas e alçados» de um exército. Através destes dois instrumentos, perspectiva e diagramas, era possível analisar uma batalha nos seus vários detalhes, fornecendo à arte militar técnicas de representação específicas, espelhando assim a progressiva especialização que a actividade militar vai adquirindo.

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Imagem 16 – Representações em perspectiva da cidade e do campo de batalha

a. Perspectiva aérea de fortificação regular, Pietro Cataneo (1554)

A crescente complexidade da guerra exigiu não só um maior cuidado no planeamento das campanhas militares, mas também uma atenção especial à própria organização formal do exército. O desenho da ordem de batalha passou a revelar-se extremamente útil para os comandantes militares, em particular nas operações de cerco que implicavam um estudo cuidadoso das linhas de tiro da artilharia. Assim, a construção das formaturas, como entidades físicas onde se agrupam os soldados, foram sujeitas a um processo de concepção prévio, tal como os objectos de trabalho específicos da arquitectura – as plantas e fachadas – se convertem num edifício.

b. Perspectiva de uma operação de cerco, Girolamo Cataneo (1571)

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1. Capitanias, terços e esquadrões «The term escuadrón appears proeminently in the works of all Spanish writers, the usage even passed into the Dutch army.»

Geoffrey Parker, op. cit., p. 11. A evolução militar castelhana tem como ponto fulcral a organização dos soldados de infantaria da milícia em grandes unidades militares com orgânica regular, os terços. Foi sobretudo a partir da «ordenanza» dos reis católicos, introduzida no fim do século XV depois da conquista de Granada, que se desenvolveu o novo sistema militar que será empregado até à entrada em vigor, em 1526, da legislação militar de Carlos V. Desde a conquista de Mers el Kebir, em 1505, que se processa uma evolução rápida do sistema militar espanhol da «ordenanza», evolução essa que se torna evidente com o aparecimento de novos elementos orgânicos do exército. De facto, quatro anos depois de Mers el Kebir, na expedição de Orão em 1509, é possível observar pela primeira vez a utilização do termo «coronelia» para designar uma nova unidade orgânica que entretanto havia surgido. O termo terá surgido do italiano «colonnella», cuja origem primitiva seria a «collonna». O comandante desta nova unidade orgânica seria o «colonello», adaptado ao espanhol como coronel, da mesma forma que o capitão comandava a capitania. Terá certamente sido introduzido no vocabulário militar castelhano pelo contacto estabelecido entre os exércitos espanhóis e a escola militar italiana, que ocorreu logo nas primeiras campanhas das guerras de Nápoles. Surgindo num âmbito essencialmente pragmático que resulta da experiência desenvolvida com vários modelos militares, a coronelia compreende um número variado das antigas capitanias, preenchendo

um vazio que até aí existia na cadeia de comando entre o comandante do exército e os comandantes das capitanias. Consolidado a partir de 1510, será esta a base de onde partirá a posterior evolução para o modelo definitivo do terço, que se manterá em funções na prática militar castelhana por um longo período de tempo. Na sequência das guerras de Itália, os acordos celebrados em Dezembro de 1532 em Bolonha entre o Papa, os duques de Ferrara e de Milão e o imperador Carlos V, procuraram estabelecer as bases para um contingente de tropas permanente fornecido por este último, e que seria destinado a proteger os territórios italianos das ambições dos franceses. Para tal, seria organizado um corpo expedicionário destinado a defender os interesses de Carlos V na península itálica. Dividiu-se este contingente em 3 unidades militares distintas, a estacionar nas regiões de Nápoles, Sicília e Lombardia; dado representar a terça parte do quantitativo, cada um destes corpos terá recebido o nome de terço. De acordo com Olesa Muñido1, o termo também poderia ter a sua origem nas tropas romanas que haviam estacionado em Espanha – «a tercia Legión» –, tal como mencionado por Justo Lípsio. Será com a legislação que Carlos V promulgou em Génova, logo após a conquista de Tunes no mês de Novembro de 1536, que os terços adquirem a sua forma final, organizando-se sobre um efectivo teórico com um total de 3000 homens. Segundo Oman, a orgânica então instituída para os três terços criados em Itália – os terços de Lombardia, Nápoles e Sicília – seria a seguinte: The 12 (sometimes only 10) companies, 6 of arquebusiers, 6 of pikemen (or 5 and 5), each consisted of- 1 captain (...) 1 alferez (ensign) (...) 1 1

Francisco-Filipe Olesa-Muñido, La organización Naval de los Estados Mediterráneos y en especial de España durante los Siglos XVI y XVII, t. 2, Madrid, Editorial Naval, 1968.

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sergent (...) 10 corporals (...) 1 furriel (quartermaster) (...) 240 privates (...) 1 captain's page (batman) (...) 1 drummer and 1 fifer (...) 1 chaplain (...) Total in the companies, 3096 of all ranks for a 12-company «tercio».1

Outro elemento de importância crucial era o enquadramento das companhias por um corpo de oficiais, também ele com orgânica fixada num total de 19 homens: Staff - 1 maestre de campo (colonel) (...) 1 serjeanto mayor (major) (...) 1 furriel mayor (adjudant) (...) 1 municionario (quartermaster and armament officer) (...) 1 staff captain (capitan barrichel) (...) 1 lieutenant of the above captain (...) 1 physician (...) 1 surgeon and 1 apothecary (...) 1 chief chaplain (...) 1 drum major (...) 8 halbardiers, attached to the colonel.2

A conquista de Orão foi, segundo Quatrefages, um marco fundamental na génese dos terços. É nos registos dos soldados levantados para esta expedição que se pode encontrar pela primeira vez o vocábulo coronelia; «a sua utilização implica uno avance adicional» que, como vimos, deu origem ao novo agrupamento de companhias, que mais tarde se formalizou nos «tercios», vocábulo que em território nacional se aportuguesou na forma de «terços». Estas unidades, que como já vimos são constituídas com uma orgânica fixa, só foi alterada na segunda metade de Quinhentos com a introdução de emendas de pormenor, deixando ainda assim intacta a sua estrutura anterior. A evolução dos terços seguiu uma tendência no sentido de um aligeiramento das formações militares, reduzindo a sua profundidade, e que será acompanhada por uma substancial redução nos efectivos das 1

Charles Oman, Art of War in the sixteenth Century, Londres, Greenhill, 1992 [1.ª ed. 1987], pp. 59-60. 2 Id, ibid, pp. 59-60.

novas unidades – «de 6.000 por Tercio, en un primer momento, pasaron a 4.000 y después a 3.000, para terminar en unos 1.500, como versión adelantadas del regimiento moderno»3. As alterações introduzidas durante o reinado de Filipe II trazem um reajustamento da orgânica anterior, definindo um quantitativo fixo para o total de cada tipo de arma utilizada pelos soldados, os piques – as armas brancas – e os arcabuzes e mosquetes – as armas de fogo. Um dos aspectos do sistema militar castelhano a sofrer alterações com as reformas de Filipe II foi a orgânica do exército estacionado na Flandres, e a nova estrutura será mais tarde adoptada – três anos depois – pelas ordenanças instituídas por D. Sebastião. Assim, desde 1567 cada terço da «primera plana» deveria contar com duas companhias de soldados arcabuzeiros para 10 companhias de cossoletes. O texto de Sancho Londoño, escrito em 1568, ainda preconizava companhias de 300 homens, enquanto três anos mais tarde Francisco de Valdés já refere 250 soldados, que consiste numa redução substancial. Curiosamente, em Portugal assiste-se a uma situação idêntica uma vez que o regimento de 1570 altera para 250 o anterior efectivo das companhias de ordenanças que haviam sido instituídas em 1568-69 – que perfazia 300 homens –, o que revela que os portugueses seguiam de perto a realidade militar espanhola. Ainda segundo a orgânica castelhana, do total de 250 soldados de cada companhia, deveria também fazer parte um número fixo de mosquetes, 15 nas companhias de atiradores, 20 nas de piqueiros. As companhias de piqueiros deveriam ainda contar no seu efectivo com metade de soldados «desarmados», isto é, sem protecção corporal – armadura –, designados por picas secas. Esta nova orgânica decorreu, naturalmente, das alterações introduzidas entretanto nas práticas militares da segunda metade do século, verificando-se a importância crescente que 3

Esther Merino-Peral, op. cit., p. 45.

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as armas de fogo adquirem, em detrimento dos soldados armados de uma forma mais convencional com armas brancas e usando peças de armadura. Por outro lado, o enquadramento dos soldados não parece ter sofrido alterações significativas, com 19 oficiais por companhia, o capitão e o seu pajem, um alferes – que poderia levar também a bandeira, tomando o nome de «alferes abandeirado» –, o soldado portaestandarte, um sargento, um furriel, um barbeiro, o capelão e dez «cabos de escuadra», que dirigiam dez «escuadras» de 25 homens cada1. A redução do número de efectivos de cada companhia, que como já referimos se verificou com o progredir dos anos, foi acompanhada por um aumento do número de atiradores nos exércitos. Se a orgânica de um terço de meados do século mantém as duas companhias de arcabuzeiros, autores como Francisco de Valdés referem o incumprimento do estipulado oficialmente: En la infantería española hay más arcabucería que piquería, en tanto grado que vemos juntarse nueve mil infantes, y apenas haber en tan gran número mil y quinientas picas, siendo todos los demás arcabuceros.2

brancas e as armas de fogo, que na sua forma clássica se resumem a dois tipos fundamentais, o pique e o arcabuz. Como se verifica pela orgânica acima discriminada e que data, como já se referiu, da segunda metade do século XVI, os piques – também designados por «cossoletes», em referência às peças de armadura corporal com que deviam estar equipados – constituíam o maior grupo dos soldados previstos para um terço, embora a evolução militar acarrete, posteriormente, uma alteração na proporção entre armas brancas e armas de fogo, com uma cada vez maior preponderância destas últimas. Esta orgânica estendeu-se até mesmo ao século XVII, usufruindo assim de uma longevidade que abarcou um período de tempo com cerca de dois séculos. Em resumo, conforme diz Merino-Peral, «el modelo del Tercio se ultimó en las reformas de 1534-36, con un retoque definitivo en 1562, y sobre la base de los fondos de milícia instituídos en 1495-96»3. Também em Portugal era patente, nesta época, uma preponderância do arcabuz sobre o pique, embora talvez devido às características particulares da guerra desenvolvida pelos portugueses em teatros de operações tão diversos, desde o Norte de Áfica ao Oriente: Nós, que não pelejamos senão com gente desarmada, pouca força nos basta de piques, e temos necessidade de mais arcabuzes, para com eles ofendermos o inimigo de mais longe, e por isso dou mais arcabuzes às Companhias, que piques, segundo meu juízo (...) e posto que nos achemos em campo de inimigos, nem por isso seremos mais fracos, levando mais arcabuzeiros que piqueiros (...) para poder fazer arcabuzeiros soltos, que é a coisa que mais em África serve, e de que mais usamos.4

Contudo, no seu conjunto, a orgânica prevista para os «tercios viejos» – como serão depois conhecidos os terços originais da Lombardia, Sicília e Nápoles, organizados por Carlos V – manteve ao longo do tempo o mesmo número de companhias previsto inicialmente; apenas no final de Quinhentos, em 1598, Bartolome Scarion de Pavia mencionava uma eventual terceira companhia de arcabuzes. O terço apoiava-se num sistema onde se combinam as armas 1 2

Geoffrey Parker, op. cit., p. 233. Francisco de Valdés, op. cit., p. 47.

3 4

Esther Merino-Peral, op. cit., p. 45. Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 334.

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2. A «unidade» e as «partes» «Pelo que a cidade que é um ajuntamento, e congregação de homens não só tem como as coisas que carecem de vida o seu governo semelhante à harmonia, fazendo consonância a ordem dos nobres, que às altas vozes correspondem, com a dos medianos e ínfimos (...) assim sendo a concorde união do corpo místico da cidade semelhante à música, ou harmonia.»

soldados que compunham as companhias de um ou mais terços; se o terço era uma organização com carácter administrativo, o esquadrão era uma unidade com um cunho essencialmente táctico. Este seria formado no terreno, em parada ou para combater, sendo para tal trabalhado ao nível formal, isto é, «ordenado na forma que mais convém», como escreveu Luís Mendes de Vasconcelos: Esquadrão é gente que conforme ao seu modo, armada de piques, e cossoletes está na forma que convém, para se defender ou ofender.1

Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Militar, 1611, p. 31. 2.1 A unidade: O esquadrão O «esquadrão» constitui uma situação singular no contexto da evolução da arte militar, pois para além de uma evidente alteração à linguagem utilizada, parece também denotar a intenção de criar uma fronteira clara entre os hábitos guerreiros anteriores e a nova forma de fazer a guerra. De facto, até ao século XV designavam-se os diferentes blocos tácticos do campo de batalha com o nome de «batalhas» ou «azes», a que se juntavam sufixos – «batalha, retaguarda, saga, alas», etc. – de forma a indicar a posição de cada um no conjunto do exército. É no início do século XVI que podemos encontrar em fontes espanholas as primeiras referências a um novo tipo de unidade militar, o esquadrão, que como já se referiu tem lugar pela primeira vez em 1509 quando da expedição a Orão. Este novo termo militar poderá ter a sua origem noutro tipo de unidade militar, a «esquadra», ou «quadrilha», que segundo Olesa-Muñido designariam a mesma entidade. De facto, já nesta altura – durante a segunda metade de Quatrocentos – cada companhia era subdividida em várias esquadras cujo conjunto, ordenado no terreno segundo as normas tácticas vigentes, adoptaria então o termo esquadrão. Assim, o esquadrão designaria uma unidade autónoma que se organiza no campo de batalha sem um efectivo orgânico pré-definido, e onde se agrupavam os

Nas definições da palavra que se encontram disseminadas pelos diferentes tratados, é ainda corrente a referência à «ordem» segundo a qual os soldados devem ser postos ao formar o esquadrão. Assim, a maneira de organizar este conjunto de soldados no terreno, na terminologia da época «ordenar o esquadrão», não era aleatória, antes obedecia a regras precisas que se destinavam a agrupar os soldados no terreno em entidades autónomas segundo uma matriz regular. Sublinhando a noção de unidade que havia de ter o esquadrão, Francisco de Valdés definia-o como «una congregación de soldados ordinariamente puestos por la cual se pretende dar a cada uno tal lugar que sin impedimento de otro pueda pelear y unir a fuerza de todos juntos, ficando o esquadrão tão unido que parecerá todo uma só peça, como se dizia da falange»2, da mesma maneira que Bartolome Scarion de Pavia, «dize se esquadron estando todas las fuerças en la orden unidas»3. A maior riqueza formal das formações militares da primeira centúria de Quinhentos demonstra o crescente interesse atribuído a assuntos que antes eram da estrita competência dos práticos da guerra. Assim, numa primeira fase que se estende, talvez, até ao primeiro quartel 1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109. Francisco de Valdés, op. cit., p. 38. 3 Bartolomé Scarion de Pavia, op. cit., p. 64. 2

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do século XVI, os esquadrões são formados segundo um leque formal ecléctico que comporta analogias de índole conceptual/visual de diversas origens, como a galé cerrada ou o caracol, aos quais já se fez atrás referência, para além de outros: O caracol O caracol compreendia um conjunto de manobras visualmente apelativas ao gosto da época. Quando a cavalaria começou a usar armas de fogo adoptou também como formação de combate o caracol, que Oman define como uma manobra própria da cavalaria pesada armada com pistolas; na sequência da descarga das suas armas retirava para a retaguarda da formatura, onde procedia à sua recarga. Até pelo menos aos anos 40, temos descrições do caracol empregado em batalha, embora posteriormente este tipo de manobra seja relegado para o adestramento dos soldados, tal como refere Martim Afonso de Melo, Diego García de Palacio ou Pero Roiz Soares, este último descrevendo um alardo das companhias de ordenança em Lisboa durante o ano de 1571. Também quando D. Sebastião inspeccionou em 1573 as companhias de ordenança de várias povoações no sul do país, vários esquadrões de soldados manobravam em caracol:

A galé, ou galé cerrada Referida por Mattheo Giovanni Cicogna e Martim Afonso de Melo, apresenta uma analogia directa com a galé, um tipo de embarcação empregada frequentemente no apoio às tropas desembarcadas. Martim Afonso preconiza a adopção desta formatura para «regozijo e passatempo»3 embora, como já se referiu, Gaspar Correia mencione o seu emprego em batalha no início do século. O esquadrão em forma de mitra Referido por Diego de Alava y Viamont e Mattheo Cicogna, para além de outros, esta tipologia está certamente relacionada com um elemento do sistema de fortificação abaluartada muito utilizado no século XVII, a «tenalha». Esta consiste numa obra exterior destinada a ocupar pontos salientes à semelhança do «revelim», um elemento fortificado relativamente vulgarizado no século XVI. A «tenalha composta»4, que Medina Barba representa no seu tratado de 1599 era, por vezes, designada por chapéu de bispo por se assemelhar a uma mitra, daí a associação ao esquadrão em forma de mitra. O esquadrão em dente de serra

É sair a primeira fileira de guarnição junta, e vai tirar, e em se recolhendo, vai a segunda, e põem-se no posto, e a que vem se mete debaixo dos piques para ali carregar, e em se recolhendo a segunda, sai a terceira a fazer o mesmo.1

Pedro Roriz Soares refere no seu Memorial outra manobra relacionada com o caracol, designada por roda viva, mas que não apresentaria a «graciosa desenvoltura»2 da primeira.

Referido por Alava y Viamont e García de Palacio, encontra-se também aparentado com um traçado específico do sistema de fortificação moderno, o «traçado em cremalheira ou dente de serra», referido pela primeira vez por Alberti e desenhado por Leonardo da Vinci ainda no século XV. O esquadrão em cruz 3

1

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 326. 2 Diego Garcia de Palacio, op. cit., p. 266.

Id, ibid. António Lopes Pires Nunes, Dicionário de arquitectura militar, Caleidoscópio, Casal de Cambra, 2005. 4

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Mencionado por Francisco de Valdés como uma formatura «que usa la nación italiana», Francisco de Holanda apresenta-o aplicado a uma formação naval. As variantes a este tipo de esquadrão são numerosas, e é possível estabelecer paralelos com diversas tipologias

arquitectónicas, tanto retiradas aos tratados como de edifícios construídos (Imagem 17). Na segunda metade do século XVI, as formações militares tendem a

Imagem 17 – A forma da cruz na arquitectura e na guerra

a. Esquadrões em cruz segundo Salazar (1536), b. Ferreti (1568), c. Cicogna (1567).

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d. Formação naval idealizada, Francisco de Holanda (1571)

tornar-se de novo mais compactas. Estas são essencilamente fruto da aglomeração de um maior número de soldados menos capazes, em grandes formações; são os chamados «escuadrones» castelhanos que, desdobrados em ordem de batalha, se apresentam «más nutridos y macizos»1, conforme podemos observar na iconografia da época. Assim, numa segunda fase que acompanha a evolução táctica de Quinhentos, a arte militar acaba por aderir a formas geométricas simples de carácter mais abstracto, como os polígonos regulares de onde se destacam o quadrado e o rectângulo, cuja construção irá depender, cada vez mais, de um exercício que permite estabelecer relações numéricas entre as suas componentes geométricas, nomeadamente os lados das figuras – «frente e

1

Esther Merino-Peral, op. cit., p. 45.

e. Planta centralizada, Serlio (1545), f. Claustro da Manga, Coimbra (1533-34)

fundo». Este jogo, cuja base é essencialmente matemática, vai desempenhar daqui para a frente um papel preponderante na construção das formatura das unidades militares – «ordenar os esquadrões». Como se vê, desde o início do século XVI que é desenvolvida uma vasta panóplia de diferentes formaturas militares, algumas delas com uma filiação directa na arquitectura militar. De facto, observamos nos textos da tratadística militar várias analogias que permitem também estabelecer uma estreita ligação entre a arte militar e a fortificação. Francisco de Valdés, por exemplo, relaciona certos elementos tácticos de uma formatura ao traçado das fortalezas e dos elementos que as constituem, como sejam os baluartes: Como un castillo tiene su entera perfección junto en uno las cortinas, caballeros y fossos, un esquadrón será perfecto cuando puestas las picas

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en conveniente orden estuviere guarnecido de la arcabucería y fortalecido de las mangas de arcabuceros.1

Também Juan de Carrion Pardo associava o esquadrão a uma fortaleza, «porque un esquadron bien formado es lo mismo que un castillo, y las mangas sirven de baluartes, o traveses: porque la arquebuzeria franca la una, y la outra parte»2; e ainda nos finais do século XV, António Cornazzano preconizava o emprego de fortificações de campo provisórias articuladas com as formações regulares de soldados, fazendo todas parte de um mesmo sistema defensivo: A bien que, mas seguros tus guerreros, estan, que seriam reforçadas nas esquinas con palizada en cada cabo (...) hazer un ancho fosso, y con la tierra, cubrirte de bastion.3

Como veremos adiante, este aparato – reforçar as «esquinas con palizada en cada cabo» – apresenta funções idênticas a um elemento táctico crucial, as mangas de atiradores, revelando assim paralelos funcionais entre a fortificação e arte militar, e ainda na segunda metade do século XV, Leon Battista Alberti preconizava aproximações a novas formas de fortificação que estabeleciam analogia com algumas das formaturas militares já referenciadas. Assim, para além de recomendar a adopção da forma circular para as zonas expostas ao fogo de artilharia inimigo, Alberti sugeria a adopção de dispositivos construídos de forma angular para estas zonas críticas – que associa à forma da proa de um barco, que poderá estar na génese da formação em galé – ou a construção de panos de muralha com projecções triangulares semelhantes aos dentes de uma serra, estabelecendo uma analogia directa com o «traçado em cremalheira» ao qual atrás se fez 1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 47. Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 8. 3 Lorenzo Suarez de Figueroa, Las reglas Militares de António Cornazano, traduzidas en Romance Castellano, Veneza, Joan de Rossi, 1558. 2

menção. As disposições formalmente mais elaboradas tendem, contudo, a desaparecer do campo de batalha conforme nos aproximamos do final do século XVI; algumas são posteriormente relegadas para os exercícios de adestramento dos soldados ou das movimentações em parada. As formaturas adoptadas para a batalha vão-se reduzindo, progressivamente, a um leque cada vez mais restrito e formalmente muito mais simplificado que cristalizará em duas variantes principais que a terminologia da época designaria por «esquadrão prolongado» e «esquadrão quadro». Estas duas formas consistiam em formas poligonais abstractas, a primeira rectangular e a segunda, conforme o nome indica, de configuração quadrada. No fim de Quinhentos a arte militar castelhana restringiria ainda mais este leque, ao preconizar a utilização generalizada do esquadrão quadro, que na sua versão mais simples – o esquadrão quadro de gente – consistiu num modelo de formação militar de uso praticamente universal. É também interessante observar que existe uma ligação entre tipologias de formaturas militares e a proveniência geográfica dos soldados que as integram. De facto, podemos encontrar associado o emprego do esquadrão prolongado aos soldados tudescos, uma vez que os soldados suíços foram pioneiros no emprego de formações de configuração regular com grande profundidade; o texto de Valdés é explícito neste sentido, «de los prolongados» – os esquadrões – «usan mucho tudescos y esquizaros, teniendo entre ellos por suerte el escuádron, que tiene gran fondo»4, da mesma forma que podemos observar um estilo alemão na decoração das armaduras ou uma forma particular adoptada nas armas, como a coronha curva característica do arcabuz de tipo «espanhol» ou a coronha recta designada como «alemã». 4

Francisco de Valdés, op. cit., p. 40

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Ao contrário daquilo que é corrente afirmar, desde cedo os portugueses parecem seguir alguns dos modelos de formatura explanados nos textos teóricos contemporâneos. De facto, logo em 1512, quando do assalto a Benastarim, na Índia, Gaspar Correia descreve a infantaria formada em esquadrões – «batallas» no texto – compactos: O Governador se armou, e mandou armar toda a gente e sair fora ao campo, e primeiro a gente de ordenança com seus piques e tambores e bandeiras, que passavam de oitocentos homens (...) todos outros capitães com seus guiões, e cavaleiros e pessoas honradas com ricas armas de que o Governador fez três batalhas.1

Depois de formado o exército, com os efectivos de infantaria de ordenança, «fez o caracol» – uma das formaturas correntes na altura – «com muita ordem, e pôs a gente em galé fechada, com seus piques tendidos e oito bandeiras»2. Conforme avançamos pelo século XVI, à semelhança da prática militar castelhana, também as formaturas utilizadas pelos portugueses se vão resumindo a um modelo principal – para não dizer único –, o esquadrão quadro de gente, conforme podemos ler na seguinte passagem do Regimento de guerra: O Esquadrão debe ser cuadrado assim de pouca gente, como de muita; porque este é o que serve em todas as partes, e a todo o tempo.3

Mais à frente no texto, o autor retoma a defesa da forma quadrada como formação «mais forte» e formalmente apelativa – «mais formosa» –, associando o aspecto funcional a uma mais-valia estética: A qual para mim é mais cuadra para a maneira de ordenar um esquadrão; e

também porque vai caminhando assim mais forte, e em mais ordem, e mais formosa.4

Assim, a arte militar portuguesa parece assumir, desde cedo, um carácter formalmente minimalista, que parece resultar de uma atitude essencialmente pragmática que terá raízes nas características da própria actividade militar, essencialmente virada para a resolução de situações muito objectivas. Assim, e para além do emprego do esquadrão quadrado tal como era utilizado pelos castelhanos e italianos, Martim Afonso de Melo descreve ainda um procedimento táctico que pode eventualmente constituir um exemplo precoce do emprego do fogo por salva, que mais tarde será desenvolvido na Suécia por Gustavo Adolfo, já bem dentro do século XVII: A carga de vanguardia se deve dar toda junta no inimigo antes que chegue (...) e para isto deve ser melhor que a tiro de arcabuz, a primeira fileira se ponha de joelhos, e a segunda em pé, e a terceira por entre uns soldados, e outros disparem todos juntos a tiro de arcabuz.5

Com a anexação espanhola a partir de 1580, a prática militar castelhana passou a ser seguida mais de perto pelos portugueses, agora integrando a utilização da tipologia de formas que, como escreveu Luís Álvaro Seco em 1597, «as figuras de esquadrões que ha a gente española aprova»6. A impressão de alguns dos textos teóricos castelhanos em Lisboa parece indicar que se caminhava no sentido daquilo que poderemos designar como uma escola militar ibérica. Em resumo, a importância do esquadrão, que se constitui como objecto principal no processo de construir a formatura de um exército, é

1

4

2

5

Gaspar Correia, op. cit., v. 2, p. 303. Id, ibid., v. 2, p. 304. 3 Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 332.

Id, ibid. Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 332.. 6 Luís Álvaro Seco, op. cit., pp. 211.

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equivalente à planta ou fachada de um edifício, onde todos os demais elementos, a «guarnição», as «mangas» e «alas» – que a seguir se vão analisar – são dispostos em sua volta: O lugar do esquadraõ é no meyo de todas as mais cousas nomeadas, e ao lado se põe a guarniçaõ, e mangas, & por fora as alas, & os cornos, como se disse nos angulos exteriores das mangas, & tudo na figura se compreenderà melhor.1 (Imagem 18)

Imagem 18 – O todo e as partes «O lugar do esquadrão é no meio das mais cousas nomeadas»

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109

2.2 As partes: mangas, guarnição e alas «Once an architectural composition has been ordered by taxis, once it has been laid out (that is, sectioned and subsectioned), then it is ready to be occupied, if you will, by architectural elements.»

Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, op. cit., p. 35.

a. Girolamo Cataneo, Cinque libri, op.cit., (1583)

O sistema de regras clássico, retomado com o Renascimento, tem como ideia principal estabelecer relações de harmonia do todo com as partes. No âmbito da arquitectura, procura-se estabelecer relação entre o edifício, tanto ao nível da fachada como do ponto de vista planimétrico, entendido como uma entidade singular provida de uma unidade intínseca, com as diferentes partes que consistem nos diversos elementos arquitectónicos, como sejam as paredes, vãos, etc. Neste conjunto, destacase um elemento a coluna – segundo Alberti o mais belo ornamento do edifício2 – não apenas um simples acrescento decorativo, mas uma peça fundamental da sua estética. Embora integrados no todo de um edifício são, contudo, elementos singulares dotados de uma existência autónoma, também construídos segundo as mesmas regras de harmonia. 1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109. In tota re edificatoriaprimarum certe ornamentum in columnis est, Bernd Envers, Teoria da Arquitectura do Renascimento aos Nossos Dias, coord. Petra Lamers, Taschen, 2003, p. 16. 2

b. Luís Mendes de Vasconcelos (1612)

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Como vimos, na arte militar o todo será constituído por uma figura base – o esquadrão – ao qual se associam diversos elementos com funções tácticas diversas, que funcionam como os genera clássicos, «the individual elements that populate the parts as divided by taxis»1. Estes múltiplos componentes individuais assumem um papel análogo ao dos diversos elementos arquitectónicos, como as colunas, também objecto de uma construção específica, embora posteriormente integrados no «todo» constituído pelo edifício. Estes diversos elementos são baptizados de acordo com a função militar que desempenham relativamente ao esquadrão, resumindo-se a três tipos principais, as «mangas», a «guarnição» e as «alas».

Imagem 19 – As mangas dos «esquadrões»

As mangas «As mangas são sempre de arcabuzeiros; tem este nome porque ordinariamente se fazem de forma de mangas compridas, e estreitas.»

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109. As mangas eram agrupamentos de soldados constituídos exclusivamente por atiradores e que existiam com o intuito de proporcionar apoio ao esquadrão, aquilo que hoje se designa por «apoio directo». Embora posicionados na proximidade do esquadrão, as características das mangas de arcabuzeiros permitia-lhes manobrar independentemente, mantendo uma certa autonomia em relação ao corpo principal. OlesaMuñido define as mangas como «la formación en ala de los atiradores con idea de manobra de carácter envolvente»2. Assim, se a guarnição fazia a defesa próxima do esquadrão, como a seguir veremos, as mangas actuavam de forma semi-independente, executando ataques limitados sobre o adversário – escaramuçar, segundo a terminologia da época (Imagem 19): 1 2

Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, op. cit., p. 6. Francisco-Filipe Olesa-Muñido, op. cit., p. 817.

a. Esquadrão a duas mangas segundo Ferretti, (1568)

b. Esquadrões a 2 e 1 manga, pormenor da imagem 15.b

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O soldado, que andar em uma escaramuça, nunca deve de estar quedo, e sempre andar de uma parte para outra, porque o inimigo não faça pontaria nele.1

As mangas eram invariavelmente constituídas por arcabuzeiros. Pela orgânica seguida em meados de quinhentos, o terço deveria contar no seu efectivo com duas companhias de atiradores, como já anteriormente se referiu. Estas destinavam-se a fornecer os soldados necessários para as mangas conforme nos diz Francisco de Valdés, a manga de arcabuzaria da mão direita do esquadrão é de ordinário de 1 companhia de arcabuzes das duas que havia de ter o tercio»2.

À spala di questa manica si venirà à formare la battaglia com gli suoi armati di corsaletti attorno, come di sopra è detto, lontana della manica otto piedi, infino à dodeci; et il resto de gli archibugieri, che marciano di dietro delle picche armate e disarmate; formaranno una manica ’ fi gi i i .5

Porque a percentagem de arcabuzes nas unidades militares vai aumentando com o decorrer do século XVI, naturalmente também a composição das mangas tenderá para maior número de efectivos; assim, dobra-se o seu número de dois para quatro agrupamentos, mas de dimensão cada vez mais reduzida: No han de ser mas de quatro (...) no han de ser mayores que de trezientos arcabuzeros, ni menos que de docientos, y en caso que sobrasse mucha arcabuzeria, después de guarnecido el esquadron, haria antes quatro mangas del numero que he dicho (...) porque sin duda se goviernan mejor dos mangas de á trezientos soldados, que no una de seiscyentos.6

O emprego dos atiradores, distribuídos em dois corpos localizados na vizinhança do esquadrão, já era recomendado em finais do século XV por António Cornazzano, «es costumbre, hacer dos esquadrones, suelto infantes, en mangas»3, e todos os autores quinhentistas apontam para uma mesma localização, «nas ilhargas do esquadrão», como podemos ler no Regimento de Guerra: Em cada terço de soldados há duas companhias de arcabuzeiros, fora os que há em cada companhia, os quais não servem de mais, que guarnecer os esquadrões e as companhias de mangas.4

Outro autor, Girolamo Cataneo, para além de referir a mesma localização para as mangas de soldados arcabuzeiros, discrimina a que distância se devem posicionar em relação ao corpo principal – a «bataglia», uma vez que os italianos frequentemente designavam o esquadrão como «batalhão» ou «batalha».

Esta evolução destinar-se-ia a facilitar aos oficiais o controlo dos atiradores; estes, por sua vez, vêem aumentada a complexidade das manobras necessárias para disparar as armas com que se encontram equipados. Pela mesma altura, nos anos 70, Isidoro de Almeida referia também «que este modo das mangas é mui usado agora, e melhor que guarnecer de fora o esquadrão com os arcabuzeiros como se costumava»7. De facto, no Regimento de guerra de Martim Afonso de Melo, apenas se faz uma breve alusão às mangas. Ao contrário, Almeida encontra-se numa fase nitidamente posterior, ao preconizar a constituição de duas ou quatro mangas de arcabuzeiros – «os

1

5

2

6

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 326. Francisco de Valdés, op. cit., p. 52. 3 Lorenzo Suarez de Figueroa, op. cit., p. 334 4 Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 334.

Girolamo Cataneo, op. cit., p. 35. Bernardino de Escalante, op. cit., pp. 37-38. Esta passagem reproduz integralmente uma parte do texto de Francisco de Valdés. 7 Isidoro de Almeida, op. cit., p. 170.

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arcabuzeiros fará meter em duas mangas, ou quatro se lhe parecer, fora do esquadrão»1: A causa porque as mangas se usam mais, é porque todos juntos, jogando com a arcabuzaria, fazem mais efeito, assim em flanquearem os esquadrões, com mais força, com encarregarã mais facilmente, todos a um tempo, onde mor dano podem fazer ao inimigo.2

A utilização de mangas de atiradores tende a tornar-se cada vez mais comum, sofrendo algumas alterações com o aproximar do século XVII. O crescente efectivo de atiradores orgânicos aos terços tem como consequência que o número de fileiras das mangas tende, com cada vez com maior frequência, a exceder a profundidade do esquadrão, o que levava a que os atiradores se distribuíssem por 4 mangas; estas podiam assim alternar a sua localização, nas ilhargas do esquadrão ou tomando lugar em cada uma das quatro esquinas – ou quinas – do esquadrão, «os cornos são esquadrões pequenos de arcabuzeiros, que se põe nos ângulos exteriores das mangas»3. (Imagem 20)

quantitativo. Aproveitando o excesso de atiradores, Luís Mendes de Vasconcelos indicava ainda a maneira de dispor estes soldados nas esquinas do esquadrão – «ordenar-se-ão as mangas de sorte que tendo mais fileiras que o esquadrão sobejem tantos na vanguarda, e retaguarda, que fiquem servindo de cornos»5. Imagem 20 – Os arcabuzeiros nas «quinas do esquadrão» «Far-se-

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Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 14

Aproveitando o excesso de atiradores, Luís Mendes de Vasconcelos indicava ainda a maneira de dispor estes soldados nas esquinas do esquadrão – «ordenar-se-ão as mangas de sorte que tendo mais fileiras que o esquadrão sobejem tantos na vanguarda, e retaguarda, que fiquem servindo de cornos»4. O posicionamento dos arcabuzeiros nas quinas do esquadrão será uma rotina que se vulgariza com o decorrer do tempo, passando a constituir uma prática corrente durante o século XVII, facto que coincide também com a crescente importância adquirida pela componente de atiradores que integra o terço, tanto do ponto de vista qualitativo como a. Edifício, Sebastiano Serlio (1537), b. fortificação, Pietro Cataneo (1554) 1

Isidoro de Almeida, op. cit., p. 171. Id, ibid. 3 Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109. 4 Id, ibid., p. 137. 2

5

Id, ibid.

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A figura do esquadrão guarnecido de arcabuzeiros nos ângulos é um exemplo perfeito de uma importação directa de uma solução, do campo da arquitectura militar para as formaturas militares. Esta situação pode-se confirmar pelas semelhanças formais apresentadas pelos esquadrões com as quinas guarnecidas de arcabuzeiros, e a colocação de bastiões nos ângulos das modernas cinturas fortificadas; Luís Mendes de Vasconcelos fez essa mesma associação: Agora se usaõ, quatro esquadrões de toda a arcabuzaria, que não for necessária em outros lugares, os quais se colocarão nos ângulos, ou cornos do esquadrão, de modo, que fiquem servindo de travezes ao esquadrão, fazendo cortinas dos seus lados.1

A semelhança não era só formal mas também funcional, uma vez que a colocação dos arcabuzeiros nas esquinas do esquadrão permitia lançar fogo cruzado sobre os atacantes, à semelhança do papel desempenhado pelos baluartes: As mangas que hão-de estar em defesa do esquadrão não devem escaramuçar, pois tirando-se do seu lugar fica por aquela parte o esquadrão mal defendido, como uma fortalez a que falta um baluarte, pois as mangas este efeito fazem sendo elas os baluartes do esquadrão que é uma segura fortaleza.2 c. Esquadrões a 4 mangas, Vasconcelos (1612), d. Giovaccino da Coliamo (1548)

O posicionamento dos arcabuzeiros nas quinas do esquadrão será uma rotina que se vulgariza com o decorrer do tempo, passando a constituir uma prática corrente durante o século XVII, facto que coincide também com a crescente importância adquirida pela componente de atiradores que integra o terço, tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo.

Sublinhando ainda esta afinidade funcional e formal, os ângulos do esquadrão podiam também ser reforçados com peças de artilharia, sendo esta prática adoptada em algumas ocasiões com que o exército deparou na expedição ao Norte de Áfica em 1578. Durante a marcha de aproximação ao campo contrário, as tropas foram ameaçadas por um contingente de forças do xarife Abd al-Malik, estimado em alguns milhares de cavalos. Os soldados da ordenança que seguiam na 1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 143. Id, ibid.,p. 147.

2

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retaguarda construíram uma formatura defensiva, «posto em ordem os dois terços incorporados com o rosto atrás»1, juntando-se os dois terços num único esquadrão; os terços foram depois «guarnecidos de mosqueteria (...) sendo trazidos ali dois esmerilhões» – canhões de pequeno calibre – «com que se guarneceram as quinas do esquadrão»2. Na batalha que se travou a 4 de Agosto, a linha da retaguarda foi também ordenada da mesma forma, como adiante se verá.

Imagem 21 – A guarnição dos «esquadrões» «Coseletes, com los cuales se guarnecem frente y costados, y quedan en el centro las picas secas»

Martin de Erguiluz, op. cit, p.144

A guarnição Claramente mostra a expiriençia que o esquadrão sempre se deve guarnecer por os lados de arcabuseiros maiormente quando o enemigo tem alguns cavalos a qual respeito se fará (...) de mais ou menos fileira como de 2, 3, 4, 5 ou 7, que são o que cobrem as picas largas.»

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 225. A guarnição era o corpo de soldados que se encontrava físicamente mais próximo do esquadrão. Dispostos em fileiras pouco densas, os soldados da guarnição encontravam-se adjacentes ao esquadrão dos soldados piqueiros, e o seu efectivo consistia, tal como nas mangas, num certo número de soldados armados com arcabuzes (Imagem 21). Conforme refere Olesa-Muñido, a guarnição era a protecção «arcabucera imediata del esquadrón», apoiando os soldados cossoletes quer na defesa quer no ataque. O objectivo desta disposição é duplo, defendendo a formação principal – o esquadrão de piqueiros – e possibilitando, ao mesmo tempo, que os piqueiros protegessem a guarnição de atiradores:

a. Esquadrão de «picas secas» com guarnição de «cossoletes», G. Cataneo (1563)

b. Quatro esquadrões e respectiva guarnição na batalha de Tournhout (1597)

1

Anónimo, Crónica do Xarife Mulei Mahamet e el-Rei D. Sebastião, introdução e notas de Sales Loureiro, Odivelas, Europress, 1987, p. 171. 2 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e Del-Rei D. Sebastião, op. cit.

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Será un esquadrón perfecto, quando puestas las picas en conveniente orden, estuviere guarnecido de la arcabuzeria.1

Numa primeira fase, a guarnição ocupava lugar em todas as faces do esquadrão, conforme descrito por Vallo, Diego Salazar ou Martim Afonso de Melo que diz, precisamente, «dos arcabuzes farei o quiser na guarnição, para os fazer ficar certos, porque como guarnecer tantos de vanguardia, como de retaguardia, e tantos de um costado, como do outro, de força há-de ficar certo»2; Isidoro de Almeida também preconizava que a guarnição se formasse junto ao corpo principal dos piqueiros, «estend das mangas ao derredor, mui depressa, & fica ho esquadrão guarnecido»3. De um ponto de vista estritamente militar – ou «funcional» – a guarnição permitia quebrar o ímpeto do exército atacante, alvejando-os com uma « g ’ i á i i igo, lhe faz quebrar a fúria, que traz, e quando chega às mãos e romper vem já meio desbaratado»4, tal como nos explica Martim Afonso de Melo: A guarnição deve-se guardar para depois de um esquadrão estar aferrado com outro, e para seu tempo, mas a carga de vanguardia se deve dar toda junta no inimigo antes que chegue (...) e desta maneira ficarem tais os inimigos, que facilmente se desbaratem, e rompam com pouca perda do que estiver guarnecido.5

A proximidade da guarnição relativamente ao esquadrão dos piqueiros possibilitava ainda, como já se referiu, proporcionar aos soldados protecção imediata por debaixo dos piques. Os piques que armavam os soldados cossoletes eram lanças compridas cuja origem remonta, como

vimos, à tradição militar da Grécia. O comprimento destas armas, que em Portugal atingia os 24, segundo a lei das armas de 1559, ou 26 palmos, de acordo com Martim Afonso de Melo6, permitia que o esquadrão proporcionasse uma protecção eficaz. De facto, a «guarnición no debería ser mayor de quanto la pica pudiese guardar»7, de maneira que o número de soldados preconizado para cada fileira não deveria exceder os 5 homens. Este seria considerado o número máximo de arcabuzeiros da guarnição que se poderiam abrigar, de forma eficaz, por debaixo dos piques dos soldados cossoletes, em particular na eventualidade de um ataque por parte da cavalaria do adversário: Nuestras picas, como no passan de veynte e dos palmos, no pueden cobrir estando en esquadron, mas de cinco soldados arcabuceros de la guarnicion.8

Com o avançar do tempo, a guarnição tornar-se-á um elemento cada vez mais obsoleto, pelo menos na sua forma inicial, cingindo o esquadrão de piqueiros por todos os lados, ao passo que as mangas de soldados arcabuzeiros vão desempenhar um papel cada vez mais preponderante no dispositivo táctico. De facto, a crescente mobilidade demonstrada pelos atiradores vai alterar o seu papel no campo de batalha, condicionando o desenho das formaturas em que operam. Em 1573, Isidoro de Almeida refere esta mudança, este modo das mãgas, he mui usado agora, & melhor que guarnecer de fora ho esquadrã cõ os arcabuzeiros como se costumava»9. São os soldados «cossoletes» que vão ocupar o lugar da guarnição, protegendo as «picas secas», isto é, os soldados desarmados. Os piqueiros, que inicialmente formavam o 6

1

Bernardino de Escalante, op. cit., p. 88. 2 Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 341. 3 Isidoro de Almeida, op. cit., p. 171. 4 Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 355. 5 Id, ibid.

Segundo Juan de Carrion Pardo, os piques utilizados pelos soldados castelhanos mediam «veynte y dos palmos», enquanto as «picas Macedónicas, que son de veynte y ocho palmos» (Juan de Carrion Pardo, op. cit., pp. 9-10). 7 Francisco de Valdés, op. cit., p. 46. 8 Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 10. 9 Isidoro de Almeida, op. cit., p. 170.

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elemento de choque do terço – e ainda considerados como «o nervo» dos exércitos – são progressivamente relegados para uma posição defensiva. As alas D

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i v i ggi i.

distância de la cavalleria a el esquadron»3. Esta disposição dos soldados, esquadrão de infantaria ao centro, apoiado por duas alas de cavalos, era conhecida e utilizada pelos portugueses na primeria metade do século. De facto, em 1535, Diogo de Mesquita descrevia ao sultão Badur a formatura que pretendia para o pequeno exército sob o seu comando, «dando-lhe a entender como havia de levar as batalhas ordenadas com a vanguarda e retaguarda, e as batalhas das alas»4.

Girolamo Cataneo, op. cit., p. 37. Imagem 22 – As alas Já na Idade Média se utilizava o termo ala para designar os corpos do exército em apoio dos flancos de uma formação. A sua função militar destinava-se a um eventual envolvimento do exército inimigo, uma manobra comum nas batalhas medievais, embora com uma eficácia variável (Imagem 22). Los esquadrones sigan, si ultrages la orden de Romanos avisados (...) mucho los imitan, pero en los antiguos tres esquadrones eran, y las alas.1

No dispositivo militar quinhentista, as alas designavam as formações que ocupavam os flancos do exército, tal como acontecia na ordem de batalha dos romanos, e eram geralmente constituídos pelos homens a cavalo; a cavalaria pesada com os homens de armas, a cavalaria ligeira com os ginetes e os estradiotas – palavra derivada do grego, segundo Isidoro de Almeida, «de que naceo dizermos agora q cavalgam a estardiota, os que nisto imitam os Gregos da Albânia»2 e arcabuzeiros montados. Um exército disposto em várias linhas podia ter a sua vanguarda – eventualmente a soma de vários esquadrões – apoiada nos flancos por alas de cavalaria dispostas de forma simétrica a «por lo menos de quinze a veynte passos de

Esquadrões a quatro e duas alas de cavalos segundo Girolamo Cataneo (1563)

1

3

2

Lorenzo Suarez de Figueroa, op. cit. Isidoro de Almeida, op. cit., p. 126.

Pode-se estabelecer uma analogia entre as alas do exército e a fortificação, como nos diz Diego Núnez de Alba: En la frente del campo, el cual estaba rodeado de nuestro foso y

4

Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 24. Gaspar Correia, v. 3, op. cit., p. 606.

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trinchea, y donde ella faltaba, teníamos por fuerte la caballería.1

Como vemos, existe uma associação directa entre a posição da cavalaria – agrupada em alas –, que na situação descrita funcionava tal como os baluartes, aliás tal como sucedia com as mangas dos esquadrões.

cavalo.3

Em conclusão, as alas desempenham um papel equivalente ao das mangas de arcabuzeiros, embora o lugar que ocupam na ordem de batalha estabeleça relação com o exército na sua totalidade, e não com as suas partes – os esquadrões:

O lugar que as alas de cavalaria ocupavam relativamente ao exército acompanhou, por essa razão, a evolução observada no posicionamento das mangas. Juan de Carrion Pardo determinava uma localização específica para cada tipo de cavalos, conforme se tratasse de homens de armas, cavalos ligeiros ou arcabuzeiros a cavalo:

Os respeitos que se tiveram nas batalhas apontadas para acomodar a cavalaria se hão-de considerar na batalha de grão fronte, ordenando a cavalaria com a mesma proporção que o esquadrão dos piques e arcabuzeiros se ordenar.4

3. As regras de construção

En lo que toca a la cavalleria, para ser abrigada del esquadron, si a caso es inferior la nuestra, cosa sabida es, que hade tener por lo menos de quinze a veynte passos de la cavalleria a el esquadron (...) hombres de armas, seran los primeros abrigados a la guarnicion del esquadron en la distancia ya dicha; y luego los cavallos ligeros en la misma forma, y encima de todos los arcabuceros de a cavallo, que estos sirven de cobrir, como los arcabuceros a las picas.2

3.1 Grelha ortogonal e proporção «Taxis, which divides architectural work into parts (...) contains two sublevels, which we call schemata: the grid and the tripartition.»

Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, op. cit., p. 9. De facto, desde o fim do século XVI até cerca da segunda metade do século XVII, a cavalaria é organizada em esquadrões pequenos localizados nas quinas do esquadrão, à semelhança do que acontece com os atiradores: Na batalha quadra de gente se repartirá a cavalaria do mesmo modo que os arcabuzeiros em quatro partes; porque há que guardar os mesmos respeitos (...) e pressupondo que estão com o terço (...) 200 cavalos ligeiros, 100 ’ 100 i e cavalo, cada uma destas espécies de cavalaria se dividirá em 4 partes, e cada uma delas se porá no ângulo das g (…) ’ ê j à g g v ig i j ’ f i 1 2

Diego Nuñez Alba, op. cit., p. 108. Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 24.

Um dos aspectos mais objectivos dos tratados militares diz respeito à forma de organizar as formaturas militares, isto é, a maneira de posicionar os soldados no terreno em formação, que nos textos teóricos vemos designado como «ordenar os esquadrões». A formação de batalha do exército, tal como um edifício, era planeada e construída como um todo, na qual os seus elementos, desde o soldado – visto como uma peça de um conjunto – até aos outros componentes, como a guarnição, mangas, ou alas, eram ordenados segundo princípios precisos de carácter matemático e geométrico. O posicionamento dos 3 4

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., pp. 154-155. Id, ibid, p. 156.

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Imagem 23 – Grelhas geométricas de construção

soldados no esquadrão tem subjacente, tal como sucede frequentemente na arquitectura quinhentista, uma forma geométrica de base que se encontra estruturada por uma «malha» recticulada de traçado ortogonal (Imagem 23). A geometria e as dimensões desta grelha são definidas segundo determinadas medidas que os tratados estabelecem, tendo em consideração o espaço que cada soldado ocupava quando inserido na formatura. Estas dimensões encontram referência nas normas militares da Antiguidade, nomeadamente na doutrina dos romanos – «todos los antiguos (como refiere Vegecio) resuelven que entre soldado y soldado, de cada hilera, ha de haber siete pies en lo longo y tres en lo ancho»1 – outras razões existiam, estas de carácter estritamente militar, e estavam relacionadas com o espaço necessário para um soldado manobrar as suas armas em formatura:

(A:alas; M: mangas; Q: quinas)

Los Romanos (...) siempre que peleaban com sus enemigos, jugaban de estocada por parecerles que com esta queda el cuerpo cubierto (...)y así, pues el brazo anda de ordinário más tendido cuando se alarga con esta i (…) ió i i g y tan poço en lo ancho, pués la espada no se jugaba hacia los lados como en nuestros tiempos se usa.2

Revelando uma abordagem fundamentalmente prática, Martim Afonso de Melo determinava que a distância que os soldados deveriam guardar entre si se devia apenas a factores de índole militar: Se vaõ muyto largos, vaõ fracos, e facilmente se podem romper; e se juntos, se embaraçaõ huns nos outros, e naõ podem manear as armas que levam. Isto se entende nos piqueiros, mas antes nelles he mais necessário, pelas armas serem mais compridas.3

a. Composição do esquadrão segundo grelha geométrica

Não existia unanimidade quanto a esta métrica. Alava y Viamont refere que «está recibida casi la misma distância entre algunos soldados prácticos. Otros quieren que en lo ancho haya cinco pies; opinión que tengo por más acertada»4; por seu lado, Álvaro Seco indica que «deve haver de soldado a soldado 3 passos por os lados e de fileira a fileira 7»5.

1

Diego de Alava y Viamont, op. cit., p. 128. Id, ibid. 3 Martim Afonso de Melo, op. cit., pp. 321-322. 2

4 5

Diego de Alava y Viamont, op. cit., p. 128. Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 217.

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b. Grelha orotogonal, Rodrigues (?), c. planta de edifício, Giorgio Martini (1492)

Os números indicados por Vegécio são, contudo, uma referência praticamente comum a toda a tratadística, pelo menos desde o final da década de 30. Voltando a Martim Afonso de Melo, este definiu apenas a distância entre fileiras, que «devem ir afastadas umas das outras, como 8 ou 9 palmos»1, coincidindo aproximadamente com o preconizado por Girolamo Cataneo – «non viene ad havere per lungo sette pie di spatcio; cioè tre dinanzi, e tre di dietro, per caduno di loro, e uno per la sua persona»2 – e mais tarde por Luís Mendes de Vasconcelos: Para combater daraõ a cada soldado na fileira 3 peis hum em que està, & outro por cada lado, de sorte que ficão entre hum & outro soldado 2 peis; & ao espaço q ha de hua a outra fileira se darão 6 e assim, cada soldado te por fronte 3 peis, & por fundo 7.3 1

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 321. Girolamo Cataneo, op. cit., Dechiaratione. 3 Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., pp. 126-127. 2

d. Planta segundo grelha ortogonal «prolongada», Sebastiano Serlio, 1619

Assim, temos duas situações distintas que implicam também o uso de medidas diferentes; a primeira define o espaço entre soldados, medido numa linha paralela à frontaria do esquadrão, isto é, de soldado a soldado; a segunda regra estabelece qual o espaço que deve existir entre as fileiras, medido na perpendicular à frente do esquadrão. Como se vê, os soldados eram posicionados na formação segundo uma grelha ortogonal cuja forma sofreu uma evolução, iniciada desde os finais do século XV, no sentido de uma progressiva abstractização da sua forma. As formas dos esquadrões reduzem-se, por finais de Quinhentos, às duas configurações principais já referidas – quadrada e rectangular – e tomam os nomes de «esquadrão quadro» e «esquadrão prolongado», respectivamente. Cada uma seria, por sua vez, subdividida em duas variantes; no caso dos esquadrões prolongados, designavam-se de «grande frente» ou «grande fundo», conforme a posição do lado maior do rectângulo; os esquadrões quadros dividiam-

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se em «quadros de gente» e «quadros de terreno», o primeiro quando os lados do quadrado tinham igual número de soldados, o segundo quando os lados tinham uma medida igual. Autores como Girolamo Cataneo, Martim Afonso de Melo ou Francisco de Valdés demonstram uma nítida preferência pela forma quadrada, como «más proporcionado con igual fortaleza en vanguardia y retaguardia, y que ocupa menos lugar»1, enquanto que a forma rectangular era associada à escola militar alemã, como escreveu Carrion Pardo – «este genero de esquadron mas le acostumbran los Alemanes»2. A tendência caminhou, contudo, no sentido da adopção do esquadrão em forma de «quadro de gente» por ser mais fácil de construir, exigindo menos cálculos aritméticos para o efeito, uma vez que para formar um esquadrão quadro de terreno «lo tiengo por una de las dificultosas cuentas de aritmética»3, como escreveu Juan de Carrion Pardo. Finalmente, a «tipologia» de esquadrões em forma de polígono regular parece encontrarse definitivamente fixada à data do texto de Valdés, a partir de 1571, discriminando as quatro formas já apontadas – «al presente más se usan, como son cuadros de terreno, cuadros de gente, prolongados, de gran frente»4. Em Portugal, o texto de Isidoro de Almeida apenas refere «formar seu esquadram, quadrado ou como melhor lhe parecer»5, pelo que aparentemente este autor mantém a preferência pela utilização do esquadrão quadro, que aliás seria o preferido pela escola militar italiana pelo menos até finais dos anos 60, e não devemos esquecer que Isidoro de

Almeida deixou explícito no seu texto que militou em Itália. Em todo o caso, aparentemente só vinte anos mais tarde, depois da anexação de Portugal por parte da Espanha – portanto numa altura em que a doutrina militar castelhana seria seguida com mais ênfase –, Luís Álvaro Seco discriminará objectivamente as «duas figuras de esquadrões que ha a gente española aprova»: Entre as figuras de esquadrões que ha a gente española aprova (...) os quais acomodão como pode ser a qualquer sítio que se offerece tendo as demais por desnecessarias e impertinentes e são estas quadro de gente, quadro de terreno; porlonguado de gran frente, e porlonguado de gran fondo e estes 2 ultimos tambem se nomaeão e entende polos sobrenomes.6 (Imagem 24)

Portanto, o quadrado está presente em diversas situações da arte militar associadas à configuração dos esquadrões. No caso do esquadrão «enrexado», uma formação essencialmente destinada ao campo da parada, é clara uma base modular formada a partir da multiplicação do quadrado, que nas palavras de Carrion Pardo «parecen mui bien aquellas casas como axadrez»7; o resultado é uma «malha» de traçado ortogonal que claramente se associa ao alçado de um edifício. Na arquitectura, a proporção estabelece relações numéricas – ou geométricas – entre as diversas partes de um edifício, com vista a obter um desenho harmónico. Segundo Alberti, as plantas rectangulares de igrejas eram construídas sobre uma grelha de 24 quadrados por 12, ou seja, com a proporção de 2:1. Podemos também observar a utilização de outras

1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 40. Juan de Carrion Pardo, op. cit., pp. 10-11. 3 Id, ibid. 4 Id, ibid, p. 39. 5 Isidoro de Almeida, op. cit., p. 170. 2

6 7

Luís Álvaro Seco, op. cit., pp. 211-212. Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 19.

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Imagem 24 – Tipologias de esquadrões «que a gente española aprova»

b. “Quadro de terreno”, Girolamo Cataneo (1584)

a. “Quadro de gente”, Aurelio Cicuta (1566) Q

é

(…) fronte nos soldados dupla se tercia ao fundo»

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 110

c. “P

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(1548)

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relações de aritméticas, como seja a proporção 3:1 no desenho dos edifícios. Francesco Giorgi, por exemplo, sugere, para o desenho da planta da igreja S. Francesco delle Vigna, em Veneza, um comprimento de 27 passos para uma largura de 9, o que evidencia a utilização sucessiva de uma proporção 3:1; de facto, 9 é o triplo de 3 e 27 é o triplo de 9. Nestes dois casos utiliza-se uma grelha rectangular cujos lados têm uma relação de seis para dois, ou seja, proporção de três para um (Imagem 25). Segundo Serlio, a forma de construir o desenho do vão de um pórtico resulta da manipulação de um quadrado e das suas linhas geométricas principais, utilizando ainda determinadas relações de proporção numéricas. A altura da porta é encontrada sobrepondo dois quadrados – a «dupla», um quadrado duplo – e a sua altura e largura estão relacionadas com o quadrado maior que inscreve toda a construção geométrica nas proporções de 1:3 e 2:2 respectivamente; esta última corresponde ainda, segundo a escala musical clássica, a uma oitava, como demonstra a Imagem 25.c. Da mesma maneira, embora de uma forma mais simplista, a tratadística militar também preconizava a utilização de relações de proporção para determinar a forma a adoptar na organização dos esquadrões. A proporção de 3:1 era de utilização corrente; um soldado deveria ocupar um quadrado com um pé de lado, e as fileiras deveriam distar seis pés umas das outras. Assim, temos uma grelha ortogonal para colocar os soldados no terreno, onde as linhas horizontais – as fileiras – se encontram separadas por 6 pés, e as verticais por uma distância de 2 pés. Diego de Alava y Viamont alargava este leque, referindo quatro proporções distintas:

Noutro caso objectivo tomamos como exemplo os esquadrões prolongados atrás referidos; para o esquadrão prolongado de grande frente, Bernardino Escalante definiu uma proporção de três para um, portanto um sistema tripartido, proporção confirmada, alguns anos mais tarde, por Luís Álvaro Seco: Os esquadroes prolonguados ordinariamente se fazem das 3 partes a hũa como 9 a 3, 7 a 21, 20 a 60, e de grão fronte são os que tem por fronte 21 e 7 por fondo ou 60 e 20 por fondo.2

Esta era uma proporção vulgar na estética do Renascimento; Diego de Alava y Viamont estabelece as suas raízes nos autores da antiguidade: Vegecio da a entender que un número determinado de gente tiene superioridad a outro (...) aludiendo a los números y ciência de los Pitagóricos (...)3

Assim, parece claro que as relações de tripartição se encontram na base da composição das formaturas militares, desde a divisão do exército nas várias linhas de batalha, até á própria proporção das formas dos esquadrões. 3.2 A tripartição «Com todo me paresce, que convenga al campo, el tercio mas en la largura, que en el anchura, y esto assi se tenga.»

Lorenzo Suarez de Figueroa, op. cit.

Verá el Sargento Mayor en la proporción que quiere disponer los lados del Escuadrón y entrará en la tabla que tuviere el título de aquella proporción. Supuesto que quiere ordenarle en una de estas cuatro: 1/3, 2/3, 1/5, ó 2/5.1 2 1

Diego de Alava y Viamont, op. cit., p. 241.

3

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 221. Diego de Alava y Viamont, op. cit., p. 264.

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Imagem 25 – A proporção

a. Esquadrão «prolongado» de proporção 3:1, Vasconcelos (1611)

b. Grelha ortogonal com proporção 2:1, Sebastiano Serlio (1545)

c. Harmonias musicais segundo Juan Batista Villalpando

Utilizando uma terminologia arquitectónica, o esquadrão formado pelos soldados cossoletes corresponde àquilo que se poderá designar como os alicerces do edifício, enquanto as diferentes partes – guarnição, mangas e alas – estão associadas às partes individuais, equivalentes aos elementos de composição arquitectónicos. A guarnição ocupa um lugar fixo em relação ao esquadrão; já no caso das mangas, a sua localização tem uma maior autonomia, como se pode verificar pela maneira como por vezes são designadas – «mangas soltas de arcabuzeiros» – reflectindo a sua função militar. Assumindo diversas formas – embora sempre como polígonos regulares –, as mangas ocupam sempre uma posição lateral ao esquadrão, confinando-o ao interior. Constituem-se por isso como fronteira do esquadrão segundo o

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princípio de tripartição do espaço, diferenciando a esfera interna da externa. De um ponto de vista arquitectónico, a «tripartição» divide o edifício em três partes, o espaço interior e duas fronteiras. As colunas desempenham este papel de fronteira na composição da fachada de um edifício, também objecto de construção segundo um esquema tripartido com a sua divisão em capitel, coluna e pedestal. Outros elementos da fachada organizam-se da mesma maneira como o entablamento, que se divide também em três elementos principais, cornija, friso e arquitrave. A tripartição será aplicada de uma forma hierárquica, desde o mais básico elemento arquitectónico até à mais insignificante partícula de matéria. De um ponto de vista formal, as mangas de arcabuzeiros desempenham um papel idêntico ao das colunas no conjunto da arquitectura. Por exemplo, quando Scarion de Pavia descreve a posição relativa dos soldados cossoletes – que formam em esquadrão – e dos soldados que usam armas de fogo – os arcabuzeiros –, refere a posição lateral destes últimos, flanqueando uma e outra parte, definindo-os as duas fronteiras do esquadrão, este confinado a um corpo central; « “w ”, 1 states Aris i i i :I “beginning, a middle and an end”» . Esta associação não é uma referência invulgar nos textos militares da época, e podemos encontrá-la também mencionada por Francisco deValdés ou Luís Mendes de Vasconcelos que, como já vimos, também faz menção ao princípio da tripartição indicando a posição central do esquadrão – no meio de todas as mais coisas nomeadas» – em relação aos restantes elementos que são posicionados nos lados do corpo principal – «e ao lado se põe a guarnição, e mangas, e por fora as alas, e os cornos».

proporções mais vulgarmente adoptadas na arte militar é de três para um e, seguindo este princípio, também o esquadrão se pode tripartir conforme refere Vasconcelos, a mão direita da fileira é vanguarda, o meio da fileira é a batalha, e a mão esquerda da fileira é a retaguarda». Este mesmo autor designa as «batalhas de três esquadrões» pelo nome de «redobradas, tendo vanguarda retaguarda e corpo»; constituídas por três partes distintas, são por essa razão tripartidas (Imagem 26). Aurelio Cicuta associa cada uma destas partes às três linhas de batalha dos exércitos romanos da República – «gli astati, Prinicpi, e Triarii nella legion Romana erano vanguardia, battaglia, e retroguardia»2 – sublinhando, uma vez mais, a sempre presente influência clássica na arte militar quinhentista. A noção de tripartição não era desconhecida dos autores portugueses; Isidoro de Almeida também refere a divisão de uma batalha em três partes: He de saber q assi como nos esquadrões, nas ordenanças, e nos alojam tos, ha estes tres lugares, a vanguardia, & retroguardia da, assi tãb em cada fileira do esquadrão, ou da ordenãça ha estes tres lugares. A mão direita da fileira he avãnguardia, o meio da fileira he a batalha, & a mã esquerda da fileira he a retaguardia.3

O esquadrão constitui assim o corpo central que, flanqueado pela arcabuzaria ordenada em mangas – uma de cada lado –, marcam as suas fronteiras, fechando-o de tal maneira que o conjunto esquadrão/mangas/guarnição funciona como uma entidade autónoma, quer do ponto de vista militar quer de um ponto de vista formal:

De um ponto de vista estritamente formal, a tripartição também se pode associar às próprias relações de proporção. Como se viu, uma das

Como a cidade é uma multidão segundo a natureza (como diz 2

1

Alexander Tzonis e Lianne Lefaivre, op. cit., p. 14.

3

Aurelio Cicuta, op. cit., p. 171. Isidoro de Almeida, op. cit., p. 174.

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Aristóteles) se lhe faltar alguma das partes que constituem o seu corpo ficará um monstro (...) a cidade que não tiver todas as partes necessárias (...) fará imperfeitissimamente todas as suas acções (como diz Platão) o mundo foi criado à semelhança do simulacro, ou ideia, que desta obra, tinha Deus na sua mente.1

Imagem 26 – Formaturas militares tripartidas

Batalha tripartida, Giovanni da Coliamo, 1548 Exército em marcha utilizando uma formação tripartida segundo Albrecht Dürer (1527)

1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., pp. 28-29.

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3.3 A simetria

Imagem 27 – A posição das bandeiras no esquadrão segundo o princípio da simetria

«Symmetry, the relations between individual elements.»

Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, op. cit., p. 6. Outro princípio fundamental presente na arte militar quinhentista consiste na noção de simetria, uma das formas de composição mais utilizadas nas artes visuais em geral, e na arquitectura em particular. A simetria define as relações entre os diferentes elementos e o corpo principal, este estruturado através da grelha ortogonal1. Será a maneira de posicionar os diferentes elementos uns em relação aos outros, e em relação ao somatório de todos eles – a unidade. A simetria simples em relação a um eixo é comum na organização das formaturas militares. As bandeiras, por exemplo, colocam-se no ponto médio da formatura – «ho meyo das ordenanças»2 – que se encontra na mediana da figura geométrica do esquadrão, portanto segundo uma relação de simetria (Imagem 27), conforme escreveu Vasconcelos: De todo se fará o esquadraõ que se determinar, & logo se fará outro sô do número das bandeiras: o qual se collocarà no centro de todo o esquadrão.3

O posicionamento das mangas, que atrás se descreveu, também se faz numa relação de simetria relativamente ao esquadrão, colocando uma de cada lado. A própria tripartição também tem subjacente a noção de simetria, uma vez que estabelece um ponto médio, «no meio de todas as mais coisas nomeadas», em relação ao qual se colocam a guarnição, mangas ou alas segundo os mesmos princípios formais. 1

Alexander Tzonis e Lianne Lefaivre, op. cit. Isidoro de Almeida, op. cit., p. 155. 3 Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 139. 2

Luís Mendes de Vasconcelos (1611)

100

Reportando-nos de novo à arquitectura, a utilização das colunas e dos vãos na composição da fachada de um edifício pode ser feita pela repetição de relações tripartidas. Assim, uma porta ocupa a posição central, com uma coluna de cada lado – uma relação tripartida relativa a um eixo de simetria –, e este conjunto pode ser agora organizado segundo o mesmo princípio, por sua vez repetidas também em relação a outro eixo de simetria. Do mesmo modo, tal como as mangas e guarnição se organizam à volta do esquadrão utilizando uma relação de simetria, também a posição de vários esquadrões na ordem de batalha do exército obedeceriam ao mesmo princípio, embora naturalmente dependendo dos efectivos disponíveis. 4. Ordenar o esquadrão Cũpre logo ao (...) sargento moor ter ho perfeito entendimeto della: nan tam g i ig x i i (…) v i (…) j y ajuntar & dividir, fazendo com elles seus esquadrões, sabendo os mudar, & variar em muitas formas segundo o sitio, & lugar ho requerer, & ho seu capitão geral lho mandar. A outra que he a pratica, pera com presteza effectuar sem intento, i ig g .”

Isidoro de Almeida, op. cit., p. 167. Definida a configuração a adoptar para uma formação de batalha, em forma quadra ou prolongada, proceder-se-ia à fase de construção da formatura. O método de ordenar o esquadrão compreendia diversas operações aritméticas, destinadas a organizar os soldados disponíveis segundo a forma geométrica escolhida. Este seria um processo laborioso, envolvendo «as quatro primeiras espécies de aritmética e a primeira regra de três, e tirar raízes quadras»1, e atingiam um elevado grau de complexidade. No caso particular dos esquadrões quadros de terreno, era 1

necessária uma ginástica aritmética notável (Imagem 28), que frequentemente ultrapassaria as capacidades de cálculo dos oficiais com a função de organização do exército. Vários auxiliares de cálculo foram experimentados. Giovan Battista della Vallo publica em 1521 aquelas que devem ser as primeiras tabelas destinadas a facilitar o trabalho dos oficiais. Estas eram ainda meras listagens com determinados quantitativos e as repectivas raízes quadradas. No fim da década de 50 e início de 60, Hale dá-nos conta de dois autores ingleses cujos textos manuscritos incluem o mesmo tipo de listagens de Vallo, destinadas aos oficiais que, na sua maioria, não dominavam as operações de cálculo aritmético. Estas listagens, bem como os diagramas que acompanham o texto, parecem contudo prever apenas a construção de esquadrões quadros e foram, muito provavelmente, copiados das tabelas e diagramas de Battista della Vallo, aliás, à semelhança do que Martim Afonso de Melo já havia feito vários anos antes. Com a publicação das «tavole» de Girolamo Cataneo, estes auxiliares aritméticos tomaram a sua forma definitiva. As tabelas de Cataneo, que como já se referiu, foram publicadas em 1563 e sistematizaram toda a informação necessária para a construção de esquadrões quadros, incluindo os dados relativos à formatura que os soldados adoptam para marchar nas ordens mais vulgarmente utilizadas, e que eram de 3, 5, 7, e 9 soldados por fileira. Várias versões das tabelas de Girolamo Cataneo terão depois aparecido, publicadas nos textos de Matteo Cicogna (1567) e Juan de Funes (1582), Diego de Alava y Viamont (1590) e Juan Carrion Pardo (1597). O texto de Viamont, em particular, é notável pelo facto de desdobrar as tabelas de Girolamo Cataneo, acrescentando ainda outras necessárias para a construção de esquadrões prolongados – algo que o italiano não contemplava, dedicando-se apenas ao estudo dos esquadrões quadros da

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 212.

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Imagem 28 – Ordenar um «esquadrão quadro de terreno», M. Erguiluz

escola militar italiana – segundo proporções específicas de 1:3, 2:3 e ainda 1:5 e 2:5; assim, da mesma forma que corrigiu o texto de Tartaglia, Diego de Alava parece ter pretendido aperfeiçoar as «tavole brevissime» de Cataneo, o que mostra bem o ascendente da teoria militar dos castelhanos. Reduzido o soldado a uma entidade geométrica proporcionada – de acordo com o espaço físico que ocupa no terreno –, integrado depois no esquadrão como «retícula» de uma «malha» ortogonal, a arte militar quinhentista transformou-se numa arte de construção de figuras geométricas, feita através de una razón aritmética concreta, que era susceptible de várias combinaciones»1. Tal como nas artes e na arquitectura, onde as relações de harmonia de base geométrica e matemática parecem ocupar o espírito e letra dos teóricos, a utilização da matemática como método de ordenar os esquadrões pode enquadrar-se no contexto de uma preocupação – ou obsessão – dos humanistas com a mensurabilidade dos números. 4.1 Construção do esquadrão quadro de gente Para o fim do século XVI, o processo preconizado na literatura militar para ordenar o esquadrão exige aos oficiais dos terços cada vez maior agilidade de cálculo. Segundo Domenico Mora, um soldado profissional que como tantos outros foi autor de um tratado militar impresso em 1569, o sargento-mor deveria ser um bom aritmético; esta era uma exigência comum à quase totalidade dos «trattadisti», como se pode verificar no texto de Luís Álvaro Seco, que descreve em pormenor o método de ordenar um esquadrão na altura mais vulgarizado, que era o mesmo que já havia sido 1

Esther Merino Peral, op. cit., p. 46.

102

31 os quais multiplicados por 5 fazem 155 e tantos soldados arcabuzeiros terá a guarnição de um lado, e para fazer do outro se tomarão outros tantos soldados. 3

preconizado por Juan de Carrion Pardo, Diego de Alava y Viamont e Francisco de Valdés: O mestre de campo ou qu manda quer se faça hu esquadrão quadro de g (...) i (…) g das compañias me ten dado a rol (como dev ) e do que sumar tirarei a rais quadra e o numero que for tera o tal esquadrão por fronte e outros tantos por f i i (…) g i i fiquara quadrado de gente. Exemplo tenho 121 soldados piques tiro a rais quadra deste número 121 acho ser 11. Tantos soldados ha de ter o tal esquadr. de fronte, outros tantos de fondo e tantos de retroguardia.1

Querendo fazer a batalha proposta – «batalha quadra de gente» –, tomamos como base de trabalho o efectivo indicado por Luís Mendes de Vasconcelos para um terço de 3000 homens a dez companhias, com 1000 soldados armados com piques, 1800 armados com arcabuz. O ponto de partida será construir um esquadrão quadro de gente com os soldados piqueiros do terço, que terá 31 fileiras a 31 soldados cada, fazendo uma das fileiras a fronte do esquadrão:

As mangas constroem-se a partir dos restantes soldados arcabuzeiros do terço, depois de retirado o efectivo das guarnições: Fazendo todos 310 que abatidos dos 1800 arcabuzeiros ficarão 1490, os quais se partirão pelo meyo, & ficarão a cada parte 745. 4

A partir sensivelmente da segunda metade do século, as mangas alargam-se para lá da «fronte e retaguardia» do esquadrão, talvez numa antecipação dos esquadrões de atiradores nas esquinas, que se tornaram depois norma no século seguinte: Querendo que sejão 10 de vanguarda, & dez de retroguarda, q fazem 20 ajuntarsehão as 31 que se hão de dar pelo comprimento do lado do esquadrão, & assi virão a ter todas 51 (...) de que se há-de fazer uma manga, e darão 14 sobejando 31 de que agora naõ se trata (...) & assi virá a ser cada mãga de 51 fileiras a 14 soldados por fileira.5

Dos piques se tirará a raiz quadra, que serà 31 soldados em cada fileira.2

4.2 Construção do esquadrão quadro de terreno O esquadrão quadro de gente que assim se formará tem 31 soldados colocados em cada fileira e 31 fileiras, o que soma 961 homens, sobrando por isso 39 soldados. De seguida, organizam-se os soldados destinados à guarnição. Esta deve ter 5 soldados por fileira, que são o maior número de soldados que os piques podem proteger, e o mesmo número de fileiras que o esquadrão: Logo se ordenará a guarnição de cinco por fileira (...) a qual se fará multiplicando o lado do esquadrão (...) será também o número das fileiras

A utilização de regras com origem em princípios teóricos acarreta alguns problemas formais específicos, quando se trata da sua aplicação prática. No caso da arquitectura, um dos problemas prende-se com a existência concreta de um edifício, em que os seus elementos estruturais, como seja as paredes, não se resumem a meras linhas sem existência material. De facto, tais elementos ocupam um determinado espaço físico no conjunto da grelha ortogonal em que se inserem, 3

1

Luís Álvaro Seco, op. cit., pp. 212-213. 2 Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 137.

Id., ibid. Id, ibid. 5 Id, ibid. 4

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pasos que ha na fronte de soldado a soldado e vem no quociente 16 (...) e tornando a repartir a referida raiz quadrada 50 por 7 que são os passos que há de fileira a fileira pelos 2 lados do esquadrão vem no quociente 7 (...) por outra maneira direi que o tal esquadrão 4.º de terreno se há de fazer com 7 fileiras de 16 soldados cada hua, as quais prantadas ocuparão terreno quadrado.2

introduzindo assim um elemento de distorção no esquema teórico. Também a construção das formações militares levantou problemas construtivos que mereceram a adopção de técnicas de construção específicas. Um interessante problema levantado pela totalidade dos tratados prende-se com a construção de esquadrões segundo uma forma geométrica perfeita, o quadrado. Como se viu, o módulo que se utiliza para a grelha geométrica base do esquadrão será o espaço ocupado por cada soldado – cada soldado tem de fronte 3 pés e de fundo 7 –, o que tem por resultado que o esquadrão quadro de gente apresenta uma forma rectangular, e não quadrada. Embora a relação numérica aponte para um quadrado, a forma geométrica resultante não coincide com aquela que se pretendia; este desfasamento entre os dois tipos de construção – geométrica e aritmética – obrigou ao desdobramento do quadrado em duas tipologias de esquadrão; surgiu assim o esquadrão quadro de terreno, cuja forma seria um quadrado geometricamente perfeito: São aqueles em que se trata de ocupar terra quadrada segundo quantidade contínua e esta diferença de dos quadrados de gente que se naqueles se quadra o número naqueles se quadra a superfície da terra com a gente que ocupa aquele quadrado.1

Para formar um esquadrão quadro de terreno, o processo era consideravelmente elaborado, que para construir um esquadrão quadro de gente:

4.3 Construção do esquadrão prolongado Embora o esquadrão quadro gozasse de grande aceitação junto de espanhóis e portugueses, também não era desconhecida a forma prolongada, conforme refere Martim Afonso de Melo: Deve fazer do seu Esquadrão pequeno tão grande fronte, como traz o inimigo, porque não fique o inferior nas primeiras fileiras (...) se partirá o Esquadrão pelo meio, e se emparelhará a parte, que vai de retaguardia, com a que vai na vanguardia fileira com fileira, e as bandeiras se hão-de meter no meio do esquadrão, que ficará mais largo, que comprido.3

Como exemplo prático podemos referir Gaspar Correia, que descreve um exercício executado em 1535 com cem homens espingardeiros de cujo efectivo se constrói um esquadrão prolongado, designado como «ás atravessada». O esquadrão descrito por Martim Afonso de Melo faz-se com proporção 2:1, enquanto este, formado em 4 fileiras de 25 soldados cada uma, apresenta uma proporção de 5:1: Fez os espingardeiros em uma batalha de quatro em quatro, um após outro, que faziam ás atravessada de vinte e cinco, muito bem ordenados, e após eles vinte de cavalo em batalha, todos a la par, e atrás dele com os outros trinta, e diante dele seu alferes a cavalo, com um

Tenho 120 i f ũ esquadrão 4º de terreno. Primeiro multiplicarei os 3 pasos pelos 7, e fazem 21. E loguo estes 21 multiplicalos ei pelos 120 piques que tenho e produze 2520 dos quais 2520 tirarei a raiz quadra que acho ser 50 (...) ora os dittos 50 reparti los ei por 3 que são os 2 1

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 217.

3

Id, ibid. Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 370.

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guião da cruz de Cristo, todos em muita ordem, com suas trombetas a cavalo, e todos adargados.1

Em 1563, Girolamo Cataneo preconiza apenas o esquadrão quadro, enquanto Valdés já refere os esquadrões prolongados. Pela sua posterior generalização, estas duas formas podem-se considerar próximas daquilo que se poderá designar por um «programa tipo» que se pretende adoptar para a generalidade de formaturas militares. Curiosamente, em 1554 Pietro Cataneo defendia para a arquitectura religiosa uma preferência pelas plantas longitudinais em relação às centralizadas, aproximando-se do espírito – e letra – do programa artístico tridentino. Segundo Luís Álvaro Seco, a forma corrente – «a mais recebida» – que se utilizava para construir os esquadrões prolongados seria a seguinte:

utilizada. Luís Álvaro Seco descreve esta segunda forma de ordenar o esquadrão prolongado, mais expedita, e que usa o quadrado como módulo, repetindo a sua colocação no terreno de modo a construir uma figura rectangular: A outra maneira de ordenar estes esquadrões he a seguinte a qual se não pratica aprovando-se por milhor a primeira dãome 300 soldados para fazer hũ g (…) 300 i f 3 4º g " (…) j 3f esquadrão porlongado.3

Assim, o processo de ordenar os esquadrões compreende, de facto, a construção de figuras geométricas, tanto mais que no caso do esquadrão quadrado de terreno este é definido como uma forma geométrica perfeita – um quadrado.

Tenho 299 picas para fazer hũ esquadrão prolonguado (...) pois que dos 299 tirarei à rais 4ª e são 17 e sobeião 10 (...) a esta lhe acrecedo a sua ametade que são 8 1/2 advirtindo que quando nestas adições ouver meo lho farei inteiro como aqui que por 8 1/2 direi 9. Dos quais 9 tambe tomarei ametade que são 4 1/2 e porque nestas adições ouve dous meios 2/2 basta acrecentar hu inteiro na primeira adição (...) 17 rais quadrada (das 299 picas dadas), 9 sua ametade, e 4 seu quarto faze 30. Tantos soldados tera por a fronte se a tiver grade. Os quais 30 reparto por 3 ou lhe tiro a 3 parte que he o mesmo que são 10 e tantos terá por o fondo.2

Os esquadrões prolongados constroem-se, então, de duas maneiras. Para além do método acima descrito, o outro método envolveria a junção de três esquadrões quadros de gente num único esquadrão, que teria assim uma forma prolongada. Este modo de ordenar um esquadrão prolongado já havia sido descrito por Martim Afonso de Melo, com a diferença de que a proporção adoptada era de 2:1, em vez da proporção tripartida agora 1 2

Gaspar Correia, op. cit., v. 2, p. 654. Luís Álvaro Seco, op. cit., pp. 221-222.

3

Id, ibid.

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PARTE II: PRÁTICA «Agora se mostrarà como se há de armar hum esquadrão, & parte hão de exercitar ũ ũ outra cousa reduzir na forma necessária.»

Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Militar, Alenquer, 1611, p.136.

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Capítulo I – O traçado do exército

recomendavam ser desejável que «capitanes o sargentos mayores tuvieren alguna plactica en ingenios y geometria»1:

«Determinado enfim el-Rei de conseguir seu intento, mandou chamar os fidalgos a conselho, os quais depois que entraram na casa para isso reputada, esperando que el-Rei expusesse as razões que tinha para fazer esta jornada.»

Tomó un compás en la mano y en própria mesa señaló campaña, para alojar y pone en batalla, un ejército de número de treinta mil hombres, hizo sus escuadrones, mangas de arcabuceros (...) cinco mil caballos que señaló los puso en partes y lugares que pudiesen cerrar y retirarse, sin poner en desorden ni ocupar la infantería (...) señaló el lugar de la artilleria, hizo su plaza de armas, repartió el puesto de la bagage.2

Jerónimo de Mendonça, Jornada a África, v. 1, Lisboa, 1904, p. 33.

L

onge de constituir matéria puramente teórica, os métodos preconizados nos tratados eram efectivamente utilizados, na prática, para ordenar os soldados no terreno.

Tendo como objecto de estudo a batalha de Alcácer Quibir, iremos recorrer às diversas relações presenciais da batalha, em particular a Crónica de Mulei Mahamet e d'El-Rei D. Sebastião, particularmente fértil em pormenores de carácter militar. Aí encontramos explícita a aplicação prática dos métodos preconizados nos textos teóricos, descrevendo a forma de ordenar o exército no campo de batalha quinhentista e a sua posterior entrada em acção. 1. O planeamento da formatura Da mesma forma que a génese de forma do objecto arquitectónico se encontra submetida a uma fase de concepção, que compreende a execução de desenhos e modelos tridimensionais, também o exército se encontra sujeito a um planeamento prévio, que eventualmente poderia incluir desenhos esquemáticos ilustrativos da formatura dos soldados no campo de batalha. Se podemos encontrar provas da sua existência no século XVII (Imagem 29), já tal não acontece com eventuais esquemas gráficos quinhentistas relativos ao planeamento de formaturas de combate, dos quais não subsistem vestígios. Contudo, os métodos empregados no desenho da forma do exército estão, como vimos, muitas vezes próximos da actividade arquitectónica, os tratadistas

Francisco de Valdés determinava que o planeamento tivesse lugar num conselho de guerra, no qual os comandantes definiam objectivamente a forma a adoptar pelos esquadrões. Ordeno el duque de Alba que se juntasen los Maestros de campo y Sargentos Mayores de los tercios de la Infanteria Española com los demás personajes del Consejo de Guerra, y que sabidas las picas en sus banderas, votassen de la forma y frente que les parecia se debía hacer el escuadrón.3

Para utilizar um termo extraído da linguagem arquitectónica contemporânea, «projectava-se» a forma do exército, da mesma maneira que se projecta a planimetria e fachadas de um edifício, uma vez que o próprio fundamento da arquitectura consiste na concretização gráfica da intenção do arquitecto – «lineamenta» – e na sua posterior construção4. Relativamente à campanha norte-africana de 1578, o rei português teve intervenção activa em todo o processo de decisão.

1

Marcos de Isaba, Cuerpo Enfermo de la Milícia Española, 1594, ed. do Ministério da Defesa de Espanha, Madrid, 1991 [1.ª ed. 1594], p. 228. 2 Id, ibid, p. 229. 3 Francisco de Valdés, op. cit., p. 44. 4 Eugénio Battisti, op. cit.

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Imagem 29 – Esboços de edifícios e formaturas militares

a. Esboço para a ordem de batalha do exército sueco em Weissenfelds (1632)

Esta intervenção não se fez sem um conhecimento de causa dos diversos aspectos envolvidos, nomeadamente no que respeita à problemática militar de âmbito teórico. A leitura da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião não deixa dúvidas de que o rei tinha conhecimento da literatura corrente relativa à arte militar. Efectivamente, o autor refere que o rei tinha conhecimento da teoria militar contemporânea, «que tomara dos livros que lia e da comunicação dalguns homens da profissão da guerra»1; um destes «homens da profissão da guerra» poderia ter sido, eventualmente, o próprio Isidoro de Almeida, pois como se sabe, o 4.º Livro das Instruções Militares foi dedicado a Martim Gonçalves da Câmara, figura muito próxima do rei: 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 141.

b. Esboço para a cintura fortificada de Parma, Antonio da Sangallo «o Jovem» (1526) Mas El-Rei, enganado com a aparência de novidade que se lhe representavam, estava de todo afeiçoado, não somente aos usos e estilos estrangeiros, mas também aos termos novos que se lhe praticavam das partes da Itália e doutras, onde a guerra florescia; e tinha por tanta excelência introduzir em Portugal novos modos na ordem da milícia.2

Ainda em Arzila, D. Sebastião reuniu-se com os capitães, oficiais dos terços e outros homens que tinha por práticos», no intuito de definir os objectivos da campanha. Neste conselho de guerra, que teria tido lugar no dia 26 de Julho, terá ficado acordada a formatura do exército: 2

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 124.

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Mandou uma tarde ajuntar capitães e alguns oficiais dos terços e outros homens que tinha por práticos, perante Cristóvão de Távora, na sua tenda, para ali determinarem da picaria e arcabuzaria, qual seria muito maior força e com isso se ordenar a forma dos esquadrões como número que conviesse de cada uns.1

Numa carta que o embaixador espanhol escreveu a Filipe II, datada de 27 de Julho, é mencionada a entrevista que o embaixador castelhano terá tido com D. Sebastião, na qual o rei «me ha tornado a decir que mañana entrará en su camino»2, referindo-se portanto à intenção de pôr o exército em marcha, acrescentando ainda qual a formatura que havia sido decidida no referido conselho de guerra: Y me há tornado a decir que mañana entrará en su camino (...) que llevará 15 à 14.000 infantes en quatro escuadrones (...) que en el tercio de los castellanos meterá los aventureros portugueses de Cristóbal de Távora, y con los alemanes la arcabucería por mangas, que serán 500 arcabuceros, y de los otros quatro tercios de portugueses hará los otros dos escuadrones.3 (Imagem 30)

Imagem 30 – Formatura do exército prevista para Alcácer Quibir «En el tercio de los castellanos meterá los aventureros portugueses de Cristóbal de Távora, y con los alemanes (B) la arcabuceria por mangas, que serán 500 arcabuceros (A), y de los otros quatro tercios de portugueses fará los otros dos escuadrones (C)»

«Correspondencia de Juan da Silva con Felipe II», op. cit., p. 83. Análise geométrica da formatura: S1, S2, S3, S4: Eixos de simetria 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 129-136 Juan da Silva, Colección de los Documentos Inéditos para la Historia de España, t. 40, Madrid, 1861, p. 83. 3 Id, ibid., p. 83. 2

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A forma prevista para o exército, a saber, uma construção geométrica, regular e simétrica de quatro esquadrões divididos em duas linhas, tem tanto um vínculo com os modelos da tratadística se encontra próximo doa composição arquitectónica militar. Apesar da tendência que se observa nos campos de batalha da Europa, onde parece emergir uma preferência por formações lineares em oposição aos grandes blocos do início do século, a formatura quadrada era ainda defendida em finais de Quinhentos por autores como Martin de Erguiluz, em particular em situações em que o exército marchasse por território hostil. Para além disso, tratar-se-ia de um desenho com traçado regular onde o exército se encontra dividido em quatro esquadrões, dispostos segundo dois eixos de simetria perpendiculares entre si (Imagem 30).

A formatura adoptada para um exército marchar variava segundo as circunstâncias, que se podem resumir a duas situações básicas. Numa primeira situação, encontrando-se um exército afastado de qualquer ameaça das forças inimigas, caminharia pelas vias de comunicação normais ou pelo campo aberto, seguindo as companhias uma atrás das outra, em longas colunas, habiendo muchas veces 3 ó 4 millas de vanguardia a la retaguardia»1. Martim Afonso de Melo descreve a forma como era costume as companhias caminharem devidamente ordenadas, em ordenança simples»2 nas suas palavras. Os soldados seguiam em colunas individuais, distribuídos por fileiras de 5 em 5 ou de 3 em 3, entendendo-se por fileira a disposição dos soldados em formatura, alinhados perpendicularmente ao sentido da marcha.

A avaliar pela forma adoptada pelo batalhão de cavalos comandados pelo rei, podemos ainda deduzir que a infantaria deveria estar formada em esquadrões quadros de gente, culminando assim a utilização do quadrado tanto como a forma de base para a planta geral do exército, como no desenho das suas partes – os esquadrões. A disposição prevista não terá sido completamente posta em prática, aparentemente devido ao facto de os mouros rodearem o campo português de forma inesperada, precipitando o início da batalha. O exército manteve a ordem que trazia em marcha dividido em três corpos distintos, segundo aquilo que se designava por «ordem redobrada».

Até perto de finais do segundo quartel de Quinhentos, apenas se utilizaria uma única ordem de «poner para caminar estos infantes (...) a cinco por fila»3, conforme exposto por Diego Salazar em 1536. Este é, contudo, um texto que ainda apresenta diversas práticas que se podem considerar como arcaicas, se atentarmos, por exemplo, na presença de soldados armados de espada e escudo – as rodelas – na orgânica da companhia, ou no posicionamento dos arcabuzeiros atrás dos piqueiros: Puestos para caminar la infanteria a 100 filas como poco ha os dije, habéis de ordenar que el primer cabo de batalla guíe la ordenanza: y lleve trás sí 5 filas de picas, y trás ellas otras 5 de arcabuces, y 10 de rodelas, y otras 5 de picas que vienen a ser 25 filas: y tras destas se pongan junto otro cabo de batalla com otras tantas filas ordenadas de la misma manera.4

2. Da marcha à formação de batalha «Las obligaciones que el Sargento Mayor tiene primero que camine com su gente en campaña. Digo pués, que lo primero ha de ir a tomar la orden del Capitán General, y saber si le toca a su tercio la vanguardia, batalla o retaguardia.»

Com o avançar do século desdobra-se a ordenança de marcha em 1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 51. Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 332. 3 Diego Salazar, op. cit., p. 144. 4 Id, ibid. 2

Francisco de Valdés, op. cit., p. 49.

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quatro formaturas distintas para marchar – 3, 5, 7 e 9 soldados por fileira. O Regimento de guerra representa uma evolução em relação ao tratado de Salazar acrescentando a «ordenança singela de 3 em 3», o que confirma que o texto português foi redigido em época posterior. De facto, a partir de meados de Quinhentos, Cataneo (1563) preconiza repartir os soldados não só em fileiras de 5 em 5 ou de 3 em 3, mas também de 7 e 9 homens cada. A marcha, segundo Martim Afonso de Melo, fazia-se da seguinte maneira:

Imagem 31 – A companhia em marcha segundo Vasconcelos (1611)

M

Lo primero camine en la vanguardia la manga de arcabucería de la mano derecha del escuádron (...) que de ordinario es una compañia de arcabuceros, de las dos que tiene un tercio, y luego siga la guarnición de arcabuceros de la misma mano derecha, trás desta vayan las picas (...) detrás las picas vaya luego la guarnición de la arcabucería de la mano siniestra, y última y en retaguardia irá la manga de arcabuceros de las dos que siempre hay en el tercio.2 1 2

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 332. Francisco de Valdés, op. cit., p. 52.

51 fi i

i

fi i …

… e logo outras tantas traz delas do mesmo modo que fazem i í g …

T é i ’ maneiras, uma que se leva toda a arcabuzaria da vanguardia, e a bandeira entre os piques, e os arcabuzes; outra, que leva a metade da arcabuzaria da vanguardia, outra da retaguardia, e a bandeira no meio dos piques.1 (Imagem 31)

Esta organização de marcha é confirmada por Francisco de Valdés. As evoluções entretanto construção geométrica, regular e simétrica nas diversas componentes tácticas, decorrentes da consolidação das mangas de arcabuzeiros como elemento táctico, torna o dispositivo de marcha das companhias mais complexo. A «arcabuzaria» caminha desdobrada em dois corpos distintos, um dedicado a constituir o efectivo da manga, outro destinado a guarnecer o corpo principal de piqueiros. Este desdobramento regista-se tanto na frente como na retaguarda da coluna em marcha:

á

… á deles mandará marchar 31 fileiras a cinco por fileira para g iç …

… á

á g



31 fi i

i …



31 fi i



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g

111

As bandeiras são outro elemento crucial no tercio. Assim, Francisco de Valdés ou, mais tarde, Alava y Viamont situam as bandeiras noutro ponto notável da formatura, o meio da coluna no caso de os soldados se encontrarem em movimento, ou no meio do esquadrão para o caso de este se encontrar formado: Y porque entre las cosas que suceden en un escuadrón, de grande inadvertência y que parece muy mal es ver andar cruzar las banderas, mudandolas cuando a una parte, cuando a outra, advierta de ponerlas a tantas hileras de picas, que siempre se hiciere el escuadrón queden en su conveniente lugar, que es el centro.1

Outro tipo de soldados piqueiros, designados por picas secas em virtude de actuarem sem armadura, são colocados sob a protecção dos «cossoletes» – soldados piqueiros protegidos por armadura – e vão em «ordenança singela na vanguardia, e retaguardia» tal como é também preconizado por Cataneo de 1563 a 1584, que apresenta diversos esquemas com as posições relativas dos «picche armate e picche secche» num esquadrão em marcha (Imagem 31). É notório que cerca de 30 anos depois do texto de Girolamo Cataneo, é cada vez mais corrente a existência de «picas secas» nos terços enquadradas pelos cossoletes, como referido por Martin de Erguiluz em 1592 ou no texto de Luís Mendes de Vasconcelos em 1612. Este facto confirma a tendência no sentido de uma maior mobilidade dos soldados no campo de batalha, não só no que diz respeito à componente das armas de fogo, mas generalizando esta situação também para o caso das armas brancas. Em Portugal, este tipo de soldados é mencionado por Martim Afonso de Melo, portanto desde muito cedo, e em 1595 Carrion Pardo confirmava a sua existência em território nacional. A ordem de marcha de um exército era conseguida, segundo 1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 52.

Diego de Alava y Viamont, através de uma divisão rigorosa do efectivo em três partes distintas – «hará de la arcabucería três tercios»: Marchará delante una de las mangas, supongo que se a la derecha, ya que no importa que sea una o outra; tras ésta ha de venir la guarnición de arcabucería del mismo lado que era la manga; logo el Escuadrón de las picas a quien seguirán todas las banderas juntas, de suerte que facilmente pueda ponerlas en médio de él. Después irá la otra guarnición y trás ella la otra manga.2

As duas companhias de arcabuzeiros orgânicas do tercio, que como já se referiu vão fornecer o efectivo das mangas de arcabuzeiros, são posicionadas na frente e retaguarda da coluna, depois «la mitad del arcabucería de compañias de coseletes, y luego la piquería», com as picas secas «en médio de la gente armada»; as duas companhias de atiradores deveriam revezar-se, alternadamente, «de vanguardia hoy, y mañana de retaguardia de todo el tercio»3. No virar do século, Luís Mendes de Vasconcelos também descreve em pormenor o mesmo processo de organizar os soldados para marchar, colocando as armas de fogo na frente da coluna, os piqueiros atrás, e na retaguarda os restantes soldados arcabuzeiros. A grande diferença situa-se na proporção que então se preconiza entre as diversas armas – piques e arcabuzes – no efectivo total do tercio. Na prática, querendo o sargento-mor organizar o terço para marchar deverá, em primeiro lugar, separar o efectivo de soldados piqueiros do total de arcabuzeiros: Somarsehão os piques das dez companhias que tem cada terço, & farão 1000, e o mesmo se fará aos arcabuzeiros somando-os por si, e 2

Diego de Alava y Viamont, El Perfecto capitan instruído en la disciplina militar y nueva ciencia de la artillería, Madrid, 1994 [1.ª ed. 1590], p. 131. 3 Martin de Erguiluz, op. cit., p. 124

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farão 1800. E dos mosqueteiros se tratará noutro lugar.1

Mas quando fuesse forçado a hazer jornada, ser a grandissima parte para vencer, tener bien consideradas las cosas seguientes: El numero y calidad de los enemigos; El género y especies de armas; La experiência de haver combatido muchas o pocas veces; La confiança com que estan los enemigos, y de que manera vienen; La fuerça, aliento, y tolerância de todos; El tiempo, el dia, el sitio, y lugar; La forma de los esquadrones, y el numero dellos; Que naciones, y ordenanças de gentes de a pie o de cavallo son mas feroces, o robustos para oponerlos a los que lo fueren de los enemigos; Como yran mejor los apetrechos y artilleria; Para ofender la manera de começar a proceder; La manera de recoger los suyos, si furen rotos en la batalla; Saber seguir los enemigos rompidos para que no puedan rehazerse y rebolver.4

Aos soldados cossoletes, o sargento-mor divide-os em três partes, que Vasconcelos designa por «manípulos», segundo a nomenclatura de Girolamo Cataneo. Quanto aos arcabuzeiros, o sargento-mor deverá, primeiro, organizar a guarnição; esta deverá contar com o mesmo número de fileiras que os manípulos dos piqueiros, 31 fileiras a cinco por fileira. Dos arcabuzeiros restantes fará 2 mangas, que para marchar se dividem em 2 manípulos de 51 fileiras de arcabuzeiros, a sete cada fileira. Mandarà marchar 51 fileiras d'arcabuzeiros a sete cada fileira (...) & logo outras tantas traz delas do mesmo modo que fazem os dois manipulos da manga; traz elles mandará marchar 31 fileiras a cinco por fileira para a guarniçaõ de um lado, & logo marcharaõ os manípulos do esquadrão que saõ 3 como està dito de 31 fileiras cada hũ, dous a dez soldados por fileira, & outro a onze, & traz elles outras 31 fileiras ’ i a guarnição do outro lado, & os dous manipulos que formam a outra manga.2 (Imagem 31)

A véspera de um encontro campal era um momento crítico para os comandantes do exército. No conselho de guerra que então tinha lugar, seria tomada a decisão final respeitante à forma com que o exército havia de combater no dia da batalha. Este conselho de guerra, como Valdés explica, de ordinário se hace la noche antes que el ejército camine»3. Naturalmente, a decisão dos oficiais presentes teria em conta diversos factores, como as condições particulares do campo de batalha, os efectivos do adversário, qualidade das tropas envolvidas, e que os tratadistas sistematizaram numa listagem pormenorizada:

Enquanto a forma do exército era definida tomando em consideração os factores enquadrados na listagem acima transcrita, no respeitante à ordem de marcha do exército a teoria militar preconizava uma disposição tripartida: Porque para el escuadrón poder caminar com todo su frente, pocas veces se ofrece haber campaña tan larga, hará el orden no mayor que cuanto comodamente pueda caminar la gente, teniendo siempre en consideración a que no sea menor el orden (si el camino lo sufriere) de la tercera parte del frente de su escuadrón.5

A organização de um exército em três corpos distintos era uma formatura utilizada na época medieval, e tinha como objectivo a protecção de um corpo central onde, de um modo geral, se encontraria o núcleo mais frágil do exército; no fundo, a tripartição aplicada no contexto militar funciona com princípios de raiz aristotélica – um 4

1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., pp. 137-138. 2 Id, ibid. 3 Francisco de Valdés, op. cit., p. 49.

Bartolomé Scarion de Pavia, op. cit., Lisboa, 1598, pp. 26-27. A listagem apresentada por Scarion de Pavia é inteiramente retirada do texto de Sancho de Londoño, publicado em 1591. 5 Francisco de Valdés, op. cit., p. 50.

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elemento confinado, protegido por outros dois elementos que lhe servem de fronteira. Temos como caso exemplar a bagagem do exército, que deveria seguir enquadrada pelos diversos corpos combatentes, da forma que «menos moleste y más seguridad lleve»1. Assim, «cuando camina un campo, la consideración que se tie es que si el enemigo esta en vanguardia del camino que se hace, el bagage quede en retaguardia»2, ou se o inimigo estiver na retaguarda, a bagagem deverá seguir na vanguarda, e assim sucessivamente, de tal maneira que «va siempre lo campo o exército hecho muro y defensa del bagage»3. Como vemos, a prática militar quinhentista adoptava, como um procedimento habitual, a divisão tripartida aplicada ao dispositivo de marcha do exército. Recorrendo uma vez mais a Francisco de Valdés, este autor descreve o emprego de um esquema tripartido durante as guerras da Flandres, «cuando el Príncipe de Orange pasó el Mosa con su ejército y entró en Brabante»4. O exército castelhano compreendia os «tercios viejos» da Lombardia, Nápoles e Sicília, o primeiro com um efectivo de 320, 600 e 280 soldados piqueiros, respectivamente; pretendendo os castelhanos construir um único esquadrão com estes tercios, mas verificado não ser possível o exército marchar na sua formatura definitiva – «por algunas campañas que no eran muy abiertas, no podia el escuadrón caminar con todo este frente»5, foi determinado dividi-lo em três partes:

Os soldados agruparam-se assim em 3 colunas de 20 fileiras; o tercio Lombardia em ordenança de 16 soldados por fileira, o de Nápoles com «orden de 30 soldados», e o último tercio com 14 picas de fronte. As 3 colunas assim formadas caminhariam umas atrás das outras, formando assim uma longa fila com um total de 60 fileiras de soldados piqueiros. Respeitando a distância entre fileiras preconizada pela tratadística, nomeadamente nos textos de Cataneo, Valdés e Seco, e sem incluir no cálculo o efectivo dos atiradores dos tercios envolvidos que também deveriam caminhar integrados com os piqueiros, esta coluna, que totalizava cerca de 1000 homens, teria um comprimento que poderia atingir mais de 120 metros. Outro tipo de marcha seria adoptado pelo exército ao atravessar um território hostil, uma vez que a proximidade do inimigo criava condições próximas da batalha. Para marchar nesta situação, os soldados eram agrupados em corpos separados, mas de tal maneira que o seu conjunto deveria corresponder à formatura próxima da forma final planeada para o exército; assim, chegado o momento da batalha, estes corpos procederiam a uma movimentação no terreno que permitisse construir rapidamente a ordem de batalha definitiva. Todas estas tarefas cruciais respeitantes às fases de movimentação do exército deveriam estar a cargo do sargento-mor: O sargento maior cujo ofício (como está dito) é ordenar gente do seu terço mandará que os arcabuzeiros se ponham a uma parte, e os piques a outra.7

El tercio de Nápoles (...) caminasse com frente de treinta picas (...) el tercio de Lombardia (...) caminasse com orden de diez (...) y el de Sicília (...) su frente fuese de catorze picas.6 1

Francisco de Valdés, op. cit., p. 50. Id, ibid. 3 Id,, ibid, p. 53. 4 Id., ibid., p. 44. 5 Id., ibid. 6 Id., ibid. 2

7

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 321.

114

Capítulo II – A construção do exército

Imagem 32 – O processo de «dobrar as fileiras»

D

a mesma forma que se pode estabelecer o método que permitiria a transposição do desenho arquitectónico para o terreno, isto é, a execução do desenho da planta projectada no espaço físico, também será possível deduzir qual o tipo de «elaboración geométrica al que debía estar submetido el “ i ” 1 inicial» de um exército. Este seria o ponto de partida para o posicionamento dos soldados segundo a formatura decidida no conselho de guerra, e que na prática consiste na construção dos esquadrões em ordem de batalha. Alberti descreve como «transladar el dibujo de la planta al terreno, en escala efectiva, mediante el trazado de dos ejes, uno vertical y otro transversal, incluso allá onde las preexistências edilicias hacen dificultoso el trazado de estas coordenadas a nível del suelo»2, que permite pôr em prática o objecto arquitectónico que se encontra projectado. Assim, verificamos que existe uma metodologia que estabelece a ligação entre as diferentes fases de projecto, a teórica, que inclui o processo de concepção, e a fase prática, que compreende a construção da forma projectada para o edifício. A construção da forma planeada para o exército também parece seguir, pelo menos em determinadas situações, um traçado geométrico prévio no terreno. Assim, poder-se-ia desenhar «no chão o espaço que lhe parece o enchem de soldados a tantos por fileira como no espaço cabem»3. Contudo, o método que parece ter usufruído de maior unanimidade entre os diversos autores – e práticos – seria o processo designado por Diego Salazar como «redoblar las filas» (Imagem 32): 1

Eugénio Battisti, op. cit., p. 61. Id, Ibid. 3 Luís Mendes de Vasconcelos, op.cit., p. 136. 2

a. Battiste della Valle (1524)

b.

fi

(…)

v

115

Es hacer redoblar las filas, y este es que la segunda entre en la primera, y la cuarta entre en la tercera, y la sexta en la quinta; y así sucesive hasta tanto que donde el las eran ciento a cinco por fila, queden en cincuenta filas a diez hombres por fila. Y después hacerlos redoblar otra vez en la misma manera, metiendose la una fila en la otra, y así quedarán veinte filas a veinticinco hombres por fila.1

De facto, mais de 50 anos depois, Diego de Alava y Viamont continuava a recomendar o mesmo processo, dando ainda exemplo prático com um total de 3969 soldados, que em ordenança singela de 3 em 3 formariam uma longa coluna de 1323 fileiras – ou 21 manípulos de 63 fileiras a três soldados cada fileira. Estes 21 manípulos de «sesenta y três hileras», colocados lado a lado, corresponderiam a um esquadrão quadro de gente, com 63 soldados de frente distribuídos por 63 fileiras: Puestas todas en una línea recta (...) mandará que paren y hará que pasen adelante otras sesenta y três hileras y que se vayan poniendo al lado de las otras, teniendo correspondência la primera de las que van marchando, com la primera de las que están paradas.2

Assim, a manobra estaria completa quando «hubieren acabado de pasar veintiuna veces estas hileras de sesenta y tres», formando assim o esquadrão quadro que se pretendia.

«perde-se tanto tempo (...) que gastam mais nisso o mestre de campo general e sargentos maiores do que convém pelas mais coisas a que ter de acudir»4. No nosso caso particular de estudo, a jornada de 1578, o exército português terá feito a sua marcha pelo interior do sertão marroquino dividido em três corpos distintos, portanto segundo uma forma tripartida: A ordem com que se caminhou nesse dia, que foi a mesma que se levou nos seguintes, era com a infantaria dos terços ordenada em esquadrões, formados em forma não muito engrossada repartidos na vanguarda, rectaguarda e batalha, com elas situadas em distância conveniente para poder ir a bagagem no meio dos esquadrões.5 (Imagem 33)

Na vanguarda caminhavam os soldados de três terços, os fidalgos que se haviam agrupado num terço como soldados apeados – os aventureiros – e os mercenários contratados, alemães e castelhanos; nas segunda e terceira linhas caminhavam os terços levantados em Portugal. A bagagem seguia, provavelmente, entre os dois terços da batalha, tal como refere o cronista, para poder ir a bagagem no meio dos esquadrões», o que concorda com a tratadística quinhentista que, como já se viu, determina para a localização dos efectivos desarmados – civis, bagagens, ou reservas – o centro das formaturas: Se podría ofrecer ocasión donde en ninguna parte de las dichas fuese seguro el bagage, y así seria necesário llevarlo en médio del escuadrón, de la misma manera (...) se había de llevar la arcabucería que sobrase; como si caminase en Berbería o en outra cualquier parte donde los enemigos tuviesen caballería para acometernos y nosotros no la tuviésemos.6

Outra maneira de construir o mesmo esquadrão quadro de gente seria alinhar veintiuna hileras de a tres soldados, una al lado de otra, de suerte que todas vengan a hacer una línea derecha», repetindo a operação até que «puestos sesenta y tres ordenes de estas, quedará el ejército del todo cuadrado»3. Contudo, esta era uma operação demorada, 1

4

2

5

Diego de Salazar, op. cit., p. 143. Diego de Alava y Viamont, op. cit., pp. 227-228. 3 Id, ibid.

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 136. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 136. 6 Francisco de Valdés, op. cit., p. 53.

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Imagem 33 – O exército português em marcha, de 28 de Julho a 4 de Agosto de 1578

Partindo do princípio de que este terço seria ordenado num esquadrão quadro de gente, como veremos adiante, conclui-se da extracção da raiz quadrada de 1400 que o esquadrão teria 37 fileiras a 37 soldados por fileira. Em seguida iremos utilizar o método preconizado por Francisco de Valdés e Luís Mendes de Vasconcelos. Este método previa que o exército marchasse em terreno hostil com uma formatura próxima da ordem de batalha, isto para o caso de ser inesperadamente confrontado com a força adversária: a. Dividindo o esquadrão em três partes, obtemos 3 manípulos a 37 fileiras, dois deles com 12 soldados de fronte, e um com 13. b. Para caminhar, estes três manípulos posicionar-se-iam uns atrás dos outros.

Na frente 100 cavalos em exploração; na retaguarda cerca de 40 recolhendo os soldados que ficassem para trás. O resto da cavalaria «caminhava pelos lados do exército, segundo lhe parecia mais conveniente para segurança dele»

Para dar uma ideia da ordem com que os soldados marcharam, pode-se usar como exemplo o terço de aventureiros que totalizava, segundo as estimativas mais credíveis – a de Miguel Leitão de Andrada, por exemplo, que integrava este terço – cerca de 1400 soldados. Segundo todos os cronistas da batalha, neste efectivo contavam-se apenas soldados piqueiros, o que facilitará o nosso cálculo.

Temos assim o esquadrão quadro de gente dividido em 3 partes, que em marcha deveriam formar uma coluna com 111 fileiras. Usando a distância entre fileiras preconizada pela maioria dos autores – como já vimos, Cataneo, Valdés, Carrion Pardo ou Seco preconizavam, todos eles, as mesmas distâncias a manter entre soldados e fileiras –, esta coluna atingiria um comprimento de cerca de 230 metros. Usando este comprimento para as duas outras linhas – batalha e retaguarda – e tendo em consideração a distância que deveria existir entre todas e ainda o espaço destinado às carretas da bagagem, pode-se concluir que o exército português em marcha se estendia ao longo de quase um quilómetro, o que não será uma coluna demasiado longa para o efectivo global envolvido. No dia da batalha, «o exército ix ’ estava alojado ao espaçoso campo de Alcácer em três esquadrões com tão pouco intervalo em meio, que quase faziam todos um corpo»1. A 1

Jerónimo de Mendonça, op. cit., p. 57.

117

ordem de marcha adoptada seguiria, como se vê, um esquema tripartido; na frente três esquadrões formados com a gente mais escolhida – mercenários, voluntários e guarnições das praças africanas – e atrás os quatro terços dos soldados portugueses recrutados no reino. Com esta ordem de marcha o exército passaria rapidamente para a formatura de batalha; a primeira linha devia manter a formatura, enquanto os terços do segundo e terceiro escalões – batalha e retaguarda – deveriam formar a segunda linha, juntando quatro terços em dois esquadrões. Aparentemente, a disposição prevista não terá sido posta em prática, uma vez que um elevado contingente de cavaleiros mouros tinha envolvido as tropas cristãs de forma inesperada, precipitando a batalha. O exército manteve a ordem que trazia em marcha dividido em três partes, em ordem redobrada, apesar de esta não ser a formatura mais aconselhada para a situação. De facto, no tratado de Luís Mendes de Vasconcelos podemos ver referidas as circunstâncias em que se aconselhava o emprego da ordem redobrada, ou seja, a divisão do exército em três linhas: Se fará uso quando o inimigo tiver igual número e a gente for igualmente destra, e armada, porque estando assim em dúvida a vitória, não combatendo com toda a força a um tempo pode-se socorrer a quem primeiro combater quando for apertada, e sempre até ao último fica uma esperança de poder vencer.1

1. Primeira linha – vanguarda: a gente mais escolhida e honrada «Quando se combatter contra muitos inimigos mal armados, porque aos tais se deve opor na fronte a força toda, pois não podendo a gente mal armada e pouco destra prevalecer muito tempo contra soldados pratticos, e bem armados serão assi com mais facilidade rotos.»

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 158. Segundo Martim Afonso de Melo, «sempre nas batalhas se põem os melhores armados na dianteira, para que mais facilmente rebatam o inimigo, e lhe façam quebrar a fúria que traz»3. De facto, na vanguarda do exército português estavam as tropas mais escolhidas, «os tudescos e italianos e castelhanos e os soldados velhos de Tanger, no meio das quais gentes ficavam os aventureiros»4 (Imagem 34). Estes diferentes soldados encontravam-se agrupados em terços que por seu lado se organizavam depois em companhias, seguindo assim a orgânica específica da escola militar castelhana. Em particular, sabemos que os cerca de 2800 alemães vinham enquadrados em doze bandeiras, o que coincide rigorosamente com o efectivo teórico que a legislação castelhana preconizava para os tercios; já os restantes terços levantados em Portugal não totalizavam, contudo, o mesmo número de companhias (Tabela V).

Contudo, não só os terços da retaguarda não chegaram a ocupar o lugar previsto inicialmente, mas também «posto que estivesse ordenado que todo o exército fosse cercado das carretas e bagagem foi tão pouco o tempo e tanta a pressa de dar a batalha, por já virem os mouros carregando por costas e lados, que não teve efeito este desenho»2.

Os aventureiros constituíam a ponta de lança da vanguarda do exército português, e o lugar que ocupavam na ordem de batalha do exército confirma este facto:

1

3

2

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 158. Frei Bernardo da Cruz, Chronica D’El-Rei D. Sebastião, v. 2, Lisboa, 1903, p. 66.

4

Martim Afonso de Melo, op. cit., p. 356 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 182.

118

Todos ficavam assim pelos lados, em guarnição dos aventureiros, cujo rosto havia de sair um pouco adiante dos outros esquadrões (...) vinham a ficar como em mangas de arcabuzaria, os italianos pela mão esquerda, que seriam pouco mais de quinhentos arcabuzeiros que ficavam entre eles e os castelhanos, ficando-lhe da outra parte outro ou igual número de arcabuzeiros dos soldados velhos de Tanger que, da mesma maneira, vinham a ficar pela mão direita entre os aventureiros e tudescos.1

A disposição referida por Juan da Silva também não foi seguida na vanguarda, no dia da batalha. Conforme afirma o autor da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, os homens que compunham o terço dos aventureiros não consentiram que os castelhanos se lhes juntassem, pelo que os soldados da frente do exército ficaram divididos em três esquadrões: Por ser dia de jornada, le toco la vanguardia a la gente mas escogida del exercito, y asi se hiço frente del esquadron de los Aventureros, poniendo el de los Castellanos a su lado siniestro, y al diestro el de los Alemanes (...) Estos tres esquadrones, cada uno de por si, apartados poca distançia, en linea resta, hacian frente y vanguardia (...) Desta menera se formo aquel dia el campo de los Christianos, viniendo a ser en forma prolongada, porque no les pudiesen con façilidad circuir los enemigos, y también por ser la horden mas perfecta pêra caminar e combatirse, si se offreciese.2

Imagem 34 – Vanguarda: «A gente mais escolhida e honrada» «Tres escuadrones apartados poca distancia, en linea recta» (A): Os Aventureiros no meio, «um pouco adiante dos outros esquadrões»

(B): Italianos à esquerda e soldados de Tânger à direita, «como em mangas da arcabuzaria»

A infantaria da vanguarda terá adoptado uma formação designada prolongada de grande frente ou prolongada – tres esquadrones, cada uno de por si, apartados poca distançia, en linea resta» – que era aconselhada para o caso de existir o risco de envolvimento completo do campo pelo exército adversário. Como vimos atrás, uma das maneiras de formar esquadrões em ordem prolongada descrita por Luís Álvaro Seco, consistia em alinhar três «esquadrões quadros de gente (...) em linha recta». Esta forma de dividir um exército seguia de perto a teoria militar vigente, como se pode verificar pela leitura da seguinte passagem do texto de Vasconcelos:

(C): Esquadrão dos castelhanos na mão esquerda; tudescos na direita 2

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’el-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 183.

Luís de Oxeda «Relacion de la batalia de el-Ksar el Kebir», in Henry de Castries, Les sources inédites pour l’histoire du Maroc, 1.ª série, França, v. 1, Paris, 1904, p. 29.

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Tabela V As unidades militares presentes na batalha de Alcácer Qubir Terços Aventureiros

Terço das ordenanças de Lisboa Terço das ordenanças da Estremadura Terço das ordenanças do Alentejo

Comandantes Coronel: Álvaro Pires de Távora Sargento-mor: Pêro Lopes Alexandre Moreira Coronel: Martim de Borgonha Coronel: Thomas Stuckeley Sargento-mor: Cavaleiro Mazza Coronel: D. Alonso de Aguilar Sargento-mor: D. Luís de Córdova Coronel: Vasco da Silveira Coronel: Bezerra Castelhano Coronel: D. Miguel de Noronha

Terço das ordenanças do Algarve

Coronel: Francisco de Távora

Soldados Tânger Alemães Italianos Espanhóis

Companhias ?

Efectivo 1000-1500

? 12 4

500-600 2700-2800 600

8-11

1600-2200

10 10 10 Capitão: Pedro Pessoa 10

2000 2000 2000 2000

Nota: José Pereira Baião discrimina o efectivo do terço castelhano em 11 companhias (2200 homens); Juan da Silva refere 8 companhias (1600 homens), enquanto Pereira Baião aumenta o efectivo para 11 companhias (2200 homens), o que poderá incluir os 500 soldados que acompanharam Francisco Aldana quando este se juntou ao exército.

Esquadrão com suas mangas, e guarnição, cornos e alas de cavalaria, e assim dizemos que a batalha é um todo, constituído destas partes. Dividese a batalha em três partes, vanguarda, batalha e corpo: vanguarda se chama a parte que vai mais adiante, e retaguarda a que fica detrás, e a do meio corpo.1

Podemos supor que cada um dos esquadrões da vanguarda poderia seguir a mesma figura geométrica quadrada, uma vez que era comum 1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 109.

seguir o mesmo critério – usar a mesma figura geométrica – para todos os esquadrões de um exército. A vanguarda não tinha a frente alinhada, pois os aventureiros a ocupar uma posição avançada, um pouco adiante dos outros esquadrões (imagem 34). Dever-se-ia dever ao facto de este terço se encontrar em defesa da artilharia, situada na destes soldados como nos diz Amador Rebelo: «na frontaria da batalha, estiveram os aventureiros em guarda

da artilharia»1. Ou então por o rei ter atribuído uma posição predominante ao terço comandado por Cristóvão de Távora, com quem mantinha uma relação de grande proximidade. Qual seria o avanço deste esquadrão? Sabe-se que foram os aventureiros que primeiro investiram contra o campo inimigo e, estando avançados em relação aos restantes esquadrões, foram também os primeiros a entrar em contacto com o adversário. Miguel Leitão de Andrada, que fazia parte deste terço, avalia o seu efectivo em «1400 ventureiros a pé, pouco mais ou menos». Na Relação Feita por um Captivo2 avança-se o número de dois mil e quinhentos homens; porém, como não fala nas mangas em seu apoio, com cerca de mil arcabuzeiros, podemos supor estarem incluídas, confirmando assim o valor de Andrada. Ordenado o esquadrão dos aventureiros em forma de quadro de gente, os soldados distribuíam-se, como já vimos, por cerca de 37 fileiras. É possível serem cinco o número de fileiras que ficaram a sair «um pouco adiante dos outros esquadrões»3 e que, destacando-se ao iniciar do ataque – Miguel Leitão de Andrada refere que a retirada do esquadrão dos aventureiros se fez «desamparando as cinco primeiras fileiras da dianteira» –, serão depois aniquiladas. Sabendo ainda que as bandeiras ocupam o meio da formação, deveriam situar-se pela décima oitava fileira, pelo que se confirma que se retiraram com o resto do esquadrão, desamparando as cinco primeiras fileiras da dianteira (...) que ficaram sem bandeira»4.

encarregados de ordenar o campo – o capitão Aldana e D. Luís de Córdova, este último o sargento-mor dos castelhanos –, Barbosa de Machado dá-nos algumas pistas sobre a constituição das mangas de arcabuzeiros em guarnição destes esquadrões: Discorrendo Aldana com o sargento-mor dos castelhanos, assentaram em que o número de arcabuzeiros, que deviam ter as fileiras da ala esquerda, fosse de dezassete; mas depois de D. Luís de Córdova o ter ordenado assim, chegou o capitão espanhol, e fez tirar seis soldados de cada uma na presença de Cristóvão de Távora.5

Em primeiro lugar, a alteração no número de arcabuzeiros que deviam ter as fileiras da ala esquerda, poderá ser consequência de que ao «ordenar a vanguarda, começou a haver dissenção, não querendo consentir os aventureiros que os castelhanos se lhe juntassem»6 formando um único esquadrão, como havia sido previsto. Assim, ao juntar os aventureiros num esquadrão houve que guarnecê-lo com mangas de arcabuzaria – os italianos na esquerda, e os soldados de Tânger na direita. Assim, as mangas inicialmente previstas com 17 soldados por fileira foram reduzidas «seis soldados de cada uma». 2. Segunda linha – batalha: a gente bisonha «Vinha Vasco da Silveira com o seu terço e com outro que o seguia do coronel Diogo Lopes de Sequeira, que ficara no mar indisposto e vinha com sua gente o capitão Bezerra Castelhano, castelhano sargento-mor do terço encomendado a Vasco da Silveira.»

Não temos conhecimento do número de fileiras que compunha cada um dos terços da vanguarda e respectivo número de soldados que caberiam em cada fileira. Contudo, ao descrever uma desavença entre os oficiais 1

Padre Amador Rebelo, «Relação Vi D’ R y D. S i P. Amador Rebelo», introdução e notas de Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro, in Revista da Faculdade de Letras, n.º 2, 4.ª série, Lisboa, 1978, p. 540. 2 Anónimo, Relação da rota de D. Sebastião feita por um captivo; plano schematico da batalha; rol dos captivos, 1578. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 110. 4 Id, ibid, p. 195.

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 171. 5

José Pereira Baião, Portugal cuidadoso e lastimado com a vida e perda do senhor Rey D. Sebastião o desejado de saudosa memória, Lisboa, 1737, p. 603. 6 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 82-183.

121

O total de soldados que havia sido previsto levantar no reino – 12 000 homens distribuídos por quatro terços – pressupõe que cada terço havia de possuir 12 companhias seguindo a estrutura militar castelhana, pelo que destas companhias duas seriam, certamente, formadas por arcabuzeiros. Cada companhia devia ter um efectivo de 250 homens cada, tal como preconizado pelo Regimento dos capitães-mores instituído em 1570, e provavelmente contavam, tal como era prática em Espanha, com cerca de 20 mosquetes no seu total1. O facto de o exército incluir no seu armamento um número significativo de mosquetes, é atestado pelos 3000 mosquetes e 4000 arcabuzes adquiridos nos Países Baixos para a expedição, cujo total era, como se vê, suficiente para armar mais de metade do contingente português. A segunda linha do exército – «a batalha» – consistia nos soldados de Lisboa e norte do país. Bernardo da Cruz dá-nos conta de como «no porto de Aveiro, e outras partes do reino, estavam navios aviando-se com gente e munições, os quais se haviam de ajuntar em África debaixo da bandeira de D. Diogo de Sousa»2; seria portanto a esta cidade que chegavam os homens das comarcas de Coimbra, Porto e Viana do Castelo, que juntamente com outras levas incorporavam o terço de D. Diogo de Sousa. Dado ter sido depois nomeado para o cargo de capitão-mor da armada, foi substituído por D. Diogo Lopes de Sequeira, que não tendo ocupado o lugar teve oseu terço foi comandado por um oficial castelhano. O outro terço era comandado por Vasco da Silveira, e teria no seu efectivo a gente levantada na Estremadura. Terá sido, provavelmente, esta a região do país que sofreu maior pressão do recrutamento, pois a norte o arrolamento foi pouco mais que incipiente,não chegando para formar um terço. A estas dificuldades no recrutamento não será estranho o facto de 1

Geoffrey Parker, The Army of Flanders and the Spanish Road, 1567-1659, Cambridge, University, 2004 (1.ª ed. 1972), p. 233. 2 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 29.

um primeiro terço constituído pelos homiziados ter sido dissolvido – provavelmente em 1577 –, o que certamente levou a forçar o levantamento de mais soldados no centro do país, de forma a manter um número de tropas aproximado do pretendido inicialmente. Já no Norte de Áfica, estacionado o exército em Arzila, foi decidido que os coronéis seleccionassem dos seus terços dois mil soldados, o que nos dá para o efectivo de cada terço presente na batalha o número de 2000 homens, que supomos distribuídos por 10 companhias a 200 soldados cada uma. De acordo com a orgânica inicialmente prevista, é de supor que destas 10 bandeiras pelo menos duas seriam constituídas por arcabuzeiros que, como já se viu, se enquadra no preconizado pela teoria militar da época e pela escola militar castelhana em particular. As descrições dos cronistas no respeitante à formatura dos terços da segunda linha do exército não coincidem, antes chegam a ser contraditórias. A crónica do Xarife Mulei Hamet e d’El Rei D. Sebastião lança, contudo, luz sobre a ordem em que os dois terços formaram. O autor desta relação seguiu o curso de grande parte dos combates junto do coronel Vasco da Silveira, que comandava os soldados dos dois terços da linha «batalha». Ao longo desta relação, o autor denota também conhecimentos militares mais profundos do que a maioria dos autores de outras relações; demonstra grande familiaridade com o armamento, organização e nomenclatura militar da época, e a maneira como descreve a ordem do «esquadrão real» – o esquadrão de cavalaria comandado pessoalmente por D. Sebastião – revela conhecimento dos processos de formar os esquadrões, o que torna o depoimento de importância crucial para o tema desenvolvido. Os dois terços marchavam separadamente, provavelmente formados em outros dois esquadrões quadros de gente. Os cronistas não fornecem pistas que indiquem a sua geometria para além da referência à «forma não muito

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engrossada»1 com que marchavam (Imagem 35). Imagem 35 – Segunda linha: a gente bisonha (A): Um esquadrão prolongado com dois terços juntos num «esquadrão de vinte bandeiras, que tinha perto de cinco mil homens» (B): Duas mangas soltas de atiradores «guarneciam este esquadrão»

Na mão esquerda, onde se deveria situar outro esquadrão igual, ficou uma praça fechada com as carretas e quatro ou cinco arcabuzeiros em cada uma.

Utilizamos como base de trabalho o número de companhias e respectivo efectivo – 10 bandeiras a 2000 homens:

c. Tirando a raiz quadrada, temos um esquadrão de 35 fileiras a 35 soldados cada. Curiosamente, este número encontra-se perto do total de soldados que pertenciam ao terço dos aventureiros, o que poderá fazer sentido se tomarmos em consideração que o efectivo desta unidade terá sido completado com outros soldados. De facto, alguns cronistas referem que seriam entre 600 e 1000 o número de soldados que foram incorporados neste terço; ao completar o seu efectivo, é natural que se tivesse como referência a dimensão dos restantes terços portugueses. Os 2 esquadrões de 35 fileiras a 35 soldados juntaram-se depois num único esquadrão prolongado, de 35 fileiras a 70 soldados. Assim, e tal como havia sido previsto, a batalha era constituída por um único corpo sob o comando do coronel Vasco da Silveira, «dois terços juntos num esquadrão de vinte bandeiras que tinha perto de cinco mil homens»2. Possuía maior frente e menor profundidade – segundo uma proporção de 2:1 – apresentavam uma «forma não muito engrossada», nas palavras do autor da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião. Outro autor, Jerónimo de Mendonça, também parece indicar que os dois terços da batalha se encontravam juntos num único esquadrão: No esquadrão do meio (...) eram as gentes do coronel D. Miguel de Noronha e Vasco da Silveira.3

a. Das 10 companhias, 2 seriam constituídas por soldados armados com arcabuzes. b. Subtraídos os cerca de 20 atiradores armados com mosquetes, orgânicos de cada companhia, temos um total com pouco menos de 1300 soldados piqueiros.

Outra relação presencial, a Jornada de África del Rey D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, dá-se uma nova versão, na qual são os terços da retaguarda, e não da batalha, que se encontram agrupados num único esquadrão. Esta contradição mostra que o autor 2

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 136.

3

Id, ibid, p. 195. Jerónimo de Mendonça, op. cit., p. 57

123

teve conhecimento da forma como se agruparam dois dos quatro terços das ordenanças, embora confundindo o lugar que cada um ocupou na formação1. Aliás, faltando o tempo para completar a ordem de batalha, é lógico que fossem os terços da retaguarda – os últimos a tomar posição – A não cumprir a formatura planeada. Em todo o caso, estamos, uma vez mais perante uma ordem de batalha em sintonia com a teoria militar quinhentista, dado que era corrente a junção de vários terços num esquadrão único, como escreveu Bernardino de Escalante: Muchas vezes ordenan los capitanes Generales, que se haga esquadron de tres, ó quatro tercios juntos en dia de batalla, como se vió en la que el Duque de Alva dio sobre Lisboa a los enemigos rebeldes quando los venció, y desbarató, que mando y dió por orden, que de los tercios de Nápoles, Lobardia y Sicilia se formase un esquadron. Y del de don Rodrigo Çapata, y don Gabriel Niño outro, y del de Don Luys Enriquez outro.2

Os dois terços da batalha estão assim agrupados num único esquadrão, ao lado do qual terá sido posteriormente feita uma praça, para a cavalaria se poder reformar em caso de retirada; este espaço aberto estava situado por detrás do terço dos castelhanos (Imagem 35): Se foi meter num coche que tinha mandado ir à sua ilharga, de longo do terço dos castelhanos, um pouco atrás onde ficava uma praça para os pagens e cavalos, e o terço de Francisco de Távora.3

Ao lado desta «praça para os pagens e cavalos», e portanto ocupando o espaço na retaguarda dos aventureiros e alemães ficava, «um grosso

esquadrão»4 feito com os dois terços da ordenança e comandado por Vasco da Silveira. Sendo a linha da batalha constituída pelos homens menos adestrados, seria necessário reforçá-los com soldados que mantivessem o inimigo à distância. O duque de Alba, general de Filipe II nas guerras da Flandres, havia mesmo escrito uma missiva a D. Sebastião, na qual aconselhava a «guarnecer el cuerpo de la batalla com mangas sueltas de arcabuzeria»5. Os principais cronistas mencionam a existência de mangas de arcabuzeiros em apoio do esquadrão da batalha, apenas existindo dúvida quanto ao seu número – duas ou quatro. Luís de Oxeda e o autor da Relação da batalha de Alcácer feita por um captivo mencionam duas mangas; o autor da Jornada de El Rei D. Sebastião a África/Crónica de dom Henrique é o único que refere a existência de 4 mangas guarnecendo o corpo da batalha. As duas situações são aceitáveis, pois ambas se encontram de acordo com o preconizado pelos tratados, e o total de arcabuzeiros presentes em cada um dos quatro terços do reino permite contemplar os dois casos. Como já se expôs, D. Sebastião ordenou que cada coronel da gente da ordenança escolhesse do seu terço 2000 soldados, e dado que cada terço tinha 10 companhias, a 200 soldados cada, duas deviam ser constituídas por atiradores. Para Escalante, a «manga de arcabuzaria (...) é de ordinário de 1 companhia de arcabuzes das duas que havia de ter o tercio»6, podemos então concluir que o total de arcabuzeiros de cada terço poderia, de facto, andar por volta dos 400 soldados. De qualquer forma, também o terço de aventureiros se encontrava apoiado por arcabuzeiros e estes estavam repartidos por duas mangas – os italianos e os «soldados velhos de

1

O autor desta relação segue de perto a descrição de Frei Bernardo da Cruz, embora com a contradição apontada, relativa à posição dos terços das ordenanças, o que pode indicar que a contradição se deve a um lapso do autor. 2 Bernardino de Escalante, Diálogos del Arte Militar, Sevilha, 1583, p. 84. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 187.

4

Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 26. 5 Luís de Oxeda, op. cit., p. 22. 6 Bernardino de Escalante, op. cit., p. 92

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Tânger»1 – cada uma com cerca de 500 soldados, o que se aproxima do efectivo das mangas de arcabuzeiros da batalha, também repartidos por duas mangas com cerca de 400 soldados cada uma. Seria nesta segunda linha que se encontrava a bagagem do exército, enquadrada pelos corpos da vanguarda e retaguarda, embora os vários autores apontem diferentes posições. Por exemplo, na Jornada de El Rei D. Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, a carriagem estava na parte direita, «a cuja ilharga ia amparada a carriagem, entre a infantaria e cavalaria»2; Franchi Connestaggio3 confirma esta posição, mas Luís de Oxeda diz que ia «recogida en un vazio que, para este menester se hizo del centro de todos três cuerpos del exército»4. Segundo o autor da Crónica do Xerife Mulei Hamet e d’El Rei d. Sebastião – e o local onde estava permitiu-lhe uma apreciação de muito perto da situação –, as carretas com a bagagem foram dispostas, «de longo dos esquadrões, pela mão esquerda»5. Esta localização não foi adoptada de forma pacífica, em particular por parte do capitão Francisco Aldana, que estava encarregado da organização do exército. De facto, o autor da Crónica do Xerife Mulei Hamet e d’El Rei D. Sebastião atesta a «pouca satisfação do capitão Aldana que fez muito inconveniente da vizinhança dos carros, dizendo que receava de se acolherem a eles alguns fracos que os vissem perto, por não haver no campo algum outro sítio forte, onde pudessem pretender de se acolher»6. Tendo formado do lado esquerdo do exército – «de longo dos esquadrões» –, a carriagem permitia fechar o espaço vazio atrás do terço dos castelhanos «onde ficava uma praça para os pagens e cavalos». E só assim nos parece fazer sentido a pouca satisfação do capitão Aldana pela 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 183. Jornada de El Rei D. Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 100. 3 Franchi Conestaggio, «Relation de Franchi Conestaggio», in Henry de Castries, op. cit. 4 Luis de Oxeda, op. cit., p. 28 5 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 183. 6 Id, ibid. 2

proximidade dos carros, «por recear de se acolherem a eles alguns fracos que os vissem perto». Efectivamente, a bagagem ficaria confinada na sua direita pelo esquadrão da batalha, sem espaço para «onde pudessem pretender de se acolher» os soldados que pretendessem abandonar a formatura; do lado esquerdo, pelo contrário, os soldados desordenariam o terço ao ocupar o espaço da praça em busca de refúgio por entre os carros da bagagem. A defender os carros foram destacados alguns soldados atiradores – cinco, segundo a Relação de um captivo –, uma prática vulgar, como podemos observar cinco anos antes; num alardo apresentados ao rei em 1573 em Faro, encontramos referência à colocação de artilharia em carretas protegendo as alas de um esquadrão de soldados: Veio Rui Barreto outra vez esperar El-Rei, no terreiro das suas casas, com toda a gente da Ordenança num esquadrão. E pelas ilhargas do esquadrão, da banda de fora, trazia berços em carretas, as quais traziam e guardavam homens com espadas e rodelas.7

3. Terceira linha – retaguarda: a gente acostumada aos rebates «Siempre poniendo a la retaguardia la gente mas diestra e platica»

Luís de Oxeda, op. cit., p. 22. A gente do Algarve encontrava-se na frente da guerra no Norte de Áfica, fornecendo frequentemente reforços às praças do Norte de Áfica. Tal sucedeu em diversas situações, como no grande cerco de Mazagão em 1562, ou em 1564, na perspectiva de um ataque de grande envergadura à cidade de Tânger. Na verdade, o extremo sul do país comportou-se como uma verdadeira região de fronteira, constituindo 7

João Cascão, op. cit., p. 115.

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uma extensão das fortalezas africanas. Este estatuto de região de guerra continuava a ser reconhecido nas cortes de Tomar de 1580, reconhecendose não ser desejável o abandono das ordenanças instituídas por D. Sebastião no Algarve, «aonde se costumou e são necessários os haja para defensão daquele reino»1. Assim, não era por mero acaso que D. Sebastião visitava regularmente o sul do país, pois sabia ser nessa região que mais facilmente encontraria gente com ânimo para a guerra que pretendia mover, fortalecida pelo hábito adquirido nas frequentes incursões hostis decorrentes da proximidade do outro lado do Mediterrâneo. Depois da viagem de 1573, onde se inspeccionaram mais de uma centena de companhias, num total que ultrapassou os 20 000 homens, não parece descabido que cinco anos decorridos o rei espere recrutar as 24 companhias que iriam integrar os dois terços que se pretendia recrutar nas regiões do Alentejo e Algarve. A comprovar a opinião do rei, ficou devidamente atestada no decurso da batalha de Alcácer Quibir a solidez da gente recrutada no sul do país, onde os soldados levantados pelas ordenanças no Alentejo e Algarve foram os últimos a capitular, já por volta das quatro horas da tarde, depois de combaterem ininterruptamente desde cerca das dez horas da manhã. Francisco de Távora foi nomeado para proceder ao recrutamento da gente do sul do país. A este seguiu-se D. Miguel de Noronha. Tinha inicialmente a seu cargo os homiziados, mas depois de dissolvido este terço em finais de 1577, houve que recrutar novos efectivos, tendo-se depois concentrado na capital de onde, como D. Miguel escreverá mais tarde, «embarcou (...) no porto da cidade de Lisboa na armada»2. Quanto a Francisco de Távora, dirigiu-se ao litoral algarvio para se juntar ao seu terço, «onde el-Rei tinha mandado aparelhar aos portos do Algarve, para

passar a gente do Alentejo»3. As tropas do Sul só puderam reunir-se ao grosso do exército, quando este se encontrava já em Cádis – desde 28 de Julho – dado a falta de embarcações, «que não havia, e à míngua delas, ficaram ainda lá todos os bois e carros»4. A forma como se organizou a ordem de batalha da retaguarda do exército, deixa transparecer a precipitação com que se iniciaram os combates. Já referimos que a formatura adoptada não foi aquela que havia sido decidida em conselho de guerra; a retaguarda do exército foi organizada segundo uma configuração diversa da linha da batalha, apesar de ser constituída pelo mesmo número de terços: Na retaguarda (...) dos castelhanos (...) ficou uma praça vaga que Francisco de Távora e D. Miguel de Noronha houveram de ocupar, que, por não haver tempo, se não ordenaram, mas fizeram outra ordem de batalhões, que foi a terceira.5

Na retaguarda do exército, estariam assim os terços de Francisco de Távora e D. Miguel de Noronha6. O terço de Francisco de Távora ficava pela mão esquerda, um pouco atrás onde ficava a praça para os pajens e cavalos, e o terço de D. Miguel de Noronha estaria na mão direita. Estes dois terços estavam formados em dois esquadrões separados, na mesma forma com que caminhavam e, nas palavras dos cronistas, «ficavam em resguardo», o que implica que fechavam a retaguarda do exército (Imagem 36). Como se verá a seguir, colocamos a hipótese de estes terços estarem ordenados em dois esquadrões

3

Frei Bernardo da Cruz, op. cit, v. 2, p. 29. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 103. 5 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 67. 6 Não há concordância entre os diversos cronistas, quanto ao lugar ocupado pelos terços do reino no exército, pelo que se segue a relação anónima Crónica do Xarife Mulei Hamet e d’El Rei D. Sebastião, pelas razões já apontadas. 4

1

Fernando Dores Costa, «Milícia e sociedade», in Nova História Militar de Portugal, dir. de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, v. 2, Rio de Mouro, 2004, p. 75. 2 João de Souza da Câmara, «Quatro documentos inéditos sobre as jornadas de África de el-rei D. Sebastião» in Panorama, 3.ª série, v. 23, Lisboa, 1961, p. não num.

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quadros de gente que deveria ter combatido junta, formando um único esquadrão à semelhança dos terços da batalha. Imagem 36 – Retaguarda: A gente acostumada aos rebates (A): Esquadrão do terço do Algarve na mão esquerda; do terço do Alentejo na mão direita e uma praça aberta entre os esquadrões, destinada à bagagem;

Em resguardo, um corpo de mosquetes reforçado com algumas peçass ligeiras

Uma vez que os quatro terços levantados em Portugal tinham orgânica e efectivos idênticos – 2000 homens a 10 companhias de 200 cada –, é de concluir que os esquadrões que depois se ordenaram tivessem uma mesma forma. Assim, tal como na segunda linha do exército, os terços da retaguarda haviam de constituir outros tantos esquadrões quadros de gente de 35 fileiras a 35 soldados cada, que para combater se juntariam num único esquadrão. A maioria dos cronistas informa que se terá procedido ao reforço da retaguarda com um ou mais corpos de soldados armados com mosquetes. O exército contava com este tipo de arma de fogo, e segundo a orgânica

espanhola, cada companhia deveria ter entre 15 a 25 mosqueteiros1. Se os quatro terços portugueses tivessem o mesmo efectivo deste tipo de soldados, o seu total poderia rondar os 800, ou mesmo acima de 900. Este número é coerente com o total de mosquetes que alguns cronistas apresentam como tendo sido distribuído por dois corpos, cada um com um efectivo situado entre 300 e 500 homens2. Apesar da importância dos mosqueteiros, que se considerarava serem «de mucho efecto, particularmente contra la caballería morisca y contra sus escopeteros»3, não existia um local pré-determinado onde os agrupar na ordem de batalha, talvez pelo simples facto de estes soldados actuarem muitas vezes sem uma formatura definida, numa ordem dispersa mais adequada à guerra irregular. Segundo Vasconcelos, «os mosqueteiros de quem até agora não se tem tratado ê g (…) iv g g ou passo que defender, pôr-se-ão na batalha entre a cavalaria e as mangas de arcabuzeiros»4. O poder de fogo e alcance destas armas seria, contudo, de grande efeito ao dar uma carga no inimigo, «como foy a que derão aos rebeldes em Iemmingen, que foy a principal ocasião de os romper»5, ou como tantas vezes sucedia nas praças portuguesas, defendendo as muralhas do ataque de sitiantes. Podemos observar a eficácia da «mosqueteria» no dia anterior à batalha, a 3 de Agosto, quando «muita gente de cavalos dos mouros que

1

Segundo Erguiluz, deveriam existir «veinticinco mosquetes por compañia» (Martin de Erguiluz, Discurso y regla militar, Madrid, 2001 [1.ª ed. 1592]). 2

Todos os cronistas são concordantes ao afirmar que a retaguarda foi reforçada com um contingente de mosqueteiros; um dos cronistas acrescenta que se posicionaram «na frontaria da avanguarda outros tantos». (Jornada delrei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique), op. cit., p. 100. 3 Marcos de Isaba, op. cit., p. 80. 4 Id. Ibid. 5 Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 154.

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investiram contra a retaguarda em fio grosso»1. Foram então juntos num único esquadrão os dois terços de Vasco da Silveira que nesse dia caminhavam na retaguarda do exército «com o rosto atrás, guarnecidos de mosqueteria»2 – tal como formariam na jornada do dia seguinte. Os cerca de 800 mosquetes, de acordo com a teoria militar, haviam de estar divididos por 5 fileiras a cerca de 180 soldados cada, o que torna possível dividir este efectivo pela frente da vanguarda, como alguns cronistas pretendem3, e ainda «cingir o rosto da retaguarda». No caso de a bagagem se encontrar entre os esquadrões da retaguarda, como é muito provável que acontecesse, cerca de 400 mosqueteiros – metade do efectivo total – ocuparia uma frente com cerca de 270 metros, o que de facto parece suficiente para resguardar o efectivo não combatente do exército. Da mesma maneira, embora o posicionamento dos mosqueteiros poderá ter consistido num expediente destinado a fechar rapidamente o espaço livre entre os dois terços da retaguarda, «para nos não entrar o inimigo»4. Houve, portanto, o objectivo de proceder rapidamente à protecção das linhas mais recuadas do exército, o que leva a crer que a formatura foi construída sob pressão dos acontecimentos. Para além dos mosqueteiros, o autor da Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano também assinala dois canhões na retaguarda do exército, que Oxeda aumenta para um total de três. Era prática comum na época, como podemos verificar na iconografia europeia quinhentista. Também na acção atrás mencionada, durante a marcha do exército, se procedeu ao reforço da retaguarda com dois «esmerilhões» – peças de artilharia de pequeno calibre – «com que se guarneceram as 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 171. Id, ibid. 3 Nomeadamente Luís de Oxeda, e os autores da Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique e da Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano. 4 Relação da batalha de Alcácer feita por um captivo, op. cit, p. 656. 2

quinas do esquadrão»5, e como vimos mais atrás, nos alardos de1573 os soldados das ordenanças de Faro formaram um esquadrão, com os flancos reforçados com carretas artilhadas. 4. A gente de cavalo «Mas com mudança do antigo costume de Portugal, que na guerra não soia usar gente de cavalo (...) da gineta, como é a dos mouros de África, posto que modernamente se tenha começado a introduzir algum número pequeno de cavalos acobertados nas fronteiras de África para susterem o couce nos recolhimentos e tranqueiras.»

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 87. A par com a introdução do sistema das ordenanças procura-se adoptar, de uma forma sistemática, métodos militares mais modernos. Tendo em consideração a atitude agressiva que o rei pretendia imprimir nos territórios de África, foi necesssário a preparação dos recursos para recontros campais de grande dimensão, algo que não encontrava eco na prática militar portuguesa dos últimos 100 anos. A organização do contingente montado destinado à expedição de 1578difere relativamente ao tipo de tropas utilizadas pelos portugueses desde o início da expansão, e que estavam vocacionados para a guerra da fronteira, «onde não soia usar gente de cavalo senão da guerra, digo, da gineta, como é a dos mouros de África»6. Estes cavaleiros eram conhecidos como jinetes por uma forma de cavalgar específica, designada por Martim Afonso de Melo como «cavalgar à gineta». Para a expedição de 1578, o efectivo de cavalos contemplará um número 5 6

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit, p. 171. Id., ibid., p. 87.

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significativo daquela que era considerada a componente de choque por excelência, referida por Luís de Oxeda como «cavallos encubertados de coraças a la antigua usança portuguesa»1 – os acobertados – que ainda desempenhavam um papel crucial nas batalhas campais. Para além do seu papel de amparo do exército – «cubriendo la infanteria»2 –, constituem uma poderosa unidade de choque destinada a romper o campo inimigo; para além da função ofensiva, os cavalos acobertados destinavam-se ainda a «guardia y compañia de la persona real»3. Todas estas missões foram desempenhadas pelo contingente montado que integrou o exército. Em todo o caso, não esteve ausente da batalha a cavalaria característica das praças de África, «não apercebendo», contudo, «mais ginetes que os que lhe foram de Tânger dos fronteiros e moradores, porque do Reino, todos ordenou que fossem acobertados ou à ligeira estradiotes»4. Uma parte destes, comandados por Martim Correia da Silva, foram expedidos para Mazagão juntamente com o filho de al-Mutawakkil, viajando em três caravelas com quinhentos soldados que se tiraram dos terços5. Este contingente seguia como uma força de diversão, certamente na tentativa de criar alguma expectativa no adversário quanto ao local e objectivos do desembarque. Vimos que a teoria militar preconizava que o contingente de cavalaria deveria ser colocado lateralmente ao exército, em alas, uma (ou mais) de cada lado, e destinava-se a proteger os flancos do dispositivo: La cavaleria si formerà à parte in squadrone, à i fianchi delle maniche de g’ i gi i (...) gi ’

parte i cavalli leggieri.6

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gi i



i i ’

No caso de os cavalos possuírem um efectivo inferior ao dos adversários, como era a situação normal dos exércitos cristãos na Berberia, os cavalos deveriam procurar a protecção das formações de infantaria contíguas, de maneira que se pudessem acostar e recolher aos esquadrões quando tal fosse necessário: En lo que toca a la cavalleria, para ser abrigada del esquadron, si a caso es inferior la nuestra, cosa sabida es, que hade tener por lo menos de quinze a veynte passos de la cavalleria a el esquadron.7

Relativamente à disposição adoptada pela cavalaria do exército português em, os cronistas não são concordantes, pelo que temos de fazer uma análise cuidada das diversas relações. Segundo o autor da Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique, a cavalaria da «ala» esquerda compreendia «duzentos cavalos acubertados, e outros duzentos ginetes»8. Luís de Oxeda confirma esta disposição e efectivo total, indicando «400 cavallos encubertados e cien ginetes escogidos de las fronteras yvm por de fuera de la infantería, del lado siniestro, adonde ia la persona real»9. o autor da Jornada de África del rei D. Sebastião escrita por um homem africano concorda com estes números embora trocando a posição do rei, o que é manifestamente um erro. Já na Relação de D. Duarte de Meneses as posições da cavalaria estão completamente alteradas, não coincidindo com as restantes relações, o que não deixa de ser curioso dado o cargo exercido pelo autor, nada menos do que Mestre de Campo General.

1

Luís de Oxeda, op. cit., p. 7. Id, ibid, p. 28. 3 Id, ibid, p. 7. 4 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 124. 5 Id, ibid, p. 135. 2

6

Girlolamo Cataneo, Dell’Arte Militare, libri cinque, op. cit., p. 26. Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 24. 8 Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique, op. cit., p. 100. 9 Luis de Oxeda, op. cit., p. 28. 7

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Desta amálgama de detalhes, podemos concluir que a cavalaria portuguesa foi repartida em três batalhões (Imagem 37). Imagem 37 – Os esquadrões de cavalos (1): Dois esquadrões de “acobertados” nas ilhargas do exército, a esquerda comandada pelo rei; (2): A cavalaria das praças de Tânger e Mazagão na mão direita, avançada em relação ao exército.

duzentos ginetes que era a gente mais prezada»1. D. Jorge comandava cerca de duzentos «acobertados», aos quais se juntaram outros de maneira «que vieram a seguir o duque mais de trezentos de cavalo»2. Este batalhão ocupava a mão direita. Por fim, o mestre de campo general D. Duarte de Meneses encontrava-se à cabeça dos «cavaleiros de Tanger, também na mão direita, na dianteira do duque de Aveiro3. D. Sebastião havia dado ordem ao mestre de campo general para que «se fosse pôr na dianteira «com mais alguns fronteiros que o seguiam em som de batalha, para dar na dianteira dos mouros, quando ele lhe mandasse»4, confirmando a posição adiantada destes cavaleiros. Quanto ao reduzido contingente aliado de al-Mutawakkil, este encontrava-se também localizado na direita do exército: O Xerife com duzentas e cinquenta lanças suas e de mouros (...) tendo mais o Xerife à sua ilharga os seus arcabuzeiros de pé, que seriam quatrocentos, que se pôs na mesma parte direita mas afastado mais para trás que o duque.5

Na Crónica do xarife Mulei Mahamet e d'El-Rei D. Sebastião podemos ler a descrição detalhada da forma do esquadrão comandado por D. Sebastião, «em que havia 25 fileiras de 24 em fileira e cavalo, que ficava em forma quase quadrada»6. Multiplicando as 25 fileiras pelo número de soldados de cada uma, temos um total de 600 soldados, o que coincide com o quantitativo apontado pela generalidade dos cronistas para o efectivo da ala esquerda de cavalaria, permitindo concluir que se encontrava formada num esquadrão quadro de gente. (3): O contingente de al-Mutawakkil à direita, atrás do esquadrão comandado pelo duque de Aveiro (1).

O primeiro, comandado pessoalmente por D. Sebastião, encontravase na esquerda e compreendia «quatrocentos de cavalo acubertados, e

1

Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique, op. cit. , p. 100. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit, p. 181. 3 Id, ibid. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid. 6 Id, ibid. 2

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Fazendo o processo inverso, podemos verificar a validade dos métodos utilizados para construir um esquadrão quadro de gente. Assim, seguimos os passos indicados por Luís Álvaro Seco, de acordo com o método de Carrion Pardo baseado na extracção da raiz quadrada: O mestre de campo ou que manda quer que se faça hũ esquadrão quadro de g i (…) i os soldados piqueiros que os sargentos menores das compañias me ten dado a rol.1

Imagem 38 – O batalhão de cavalos «adonde ia la persona real» «Quem manda quer se faça um esquadrão quadro de gente» – 400 cavalos acobertados e 200 ginetes: 600 homens – «para isso tiro a rais quadrada do dito número»: 600 = 24 e sobram 24;

Com o total dos soldados que se pretende ordenar, «tirarei a rais quadra, e o número que for tera o tal esquadrão por fronte e outros tantos f i i (…) g i asi fiquara quadrado de gente»2. Seguindo estas indicações, tiramos a raiz quadrada do total dos seiscentos cavaleiros, que tem como resultado 243. Ainda de acordo com o texto de Seco, tomamos para número de fileiras o número inteiro, que é vinte e quatro, e «tantos soldados há-de ter o tal esquadrão de fronte, outros tantos de fondo e tantos de retroguardia»; contudo, como o quadrado de 24 é 576, sobram por isso vinte e quatro soldados dos 600 totais do batalhão. Uma última fileira, a vigésima quinta, é formada com os efectivos sobrantes das operações aritméticas s, dado «que não era defeito a hũ esquadrão (...) sobrar lhe ou faltar lhe hũa fileira»4, o que confirma a Crónica do Xarife Mulei Hamet e d’El Rei D. Sebastião, «25 fileiras de 24 em fileira» (Imagem 38). A restante cavalaria organizar-se-ia da mesma maneira, como descrito por Luís de Oxeda, «otros tantos cavallos encubertados e de gineta yvam en la forma de los demás»5. 1

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 212. Id, ibid. 3 O resultado rigoroso é de 24.49489742783. 4 Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 217. 5 Luís de Oxeda, op. cit., p. 28. 2

«O número que for tantos soldados terá o tal esquadrão por fronte e outros tantos por fundo»: 24 homens em 24 fileiras, acrescentando uma 25ª com as sobras: «25 fileiras a 24 em fileira»

131

Assim, os mais de 300 comandados pelo duque de Aveiro formariam um esquadrão quadro de gente de 18 fileiras a 18 soldados, confirmando outra descrição, agora da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião – «o duque de Aveiro da mão direita, com outro batalhão de cavalaria também posto em fileiras pouco mais delgadas, que passavam de trezentos de cavalo»1. A forma dos esquadrões a cavalo dá-nos a chave para apurar qual a figura geométrica adoptada pelos esquadrões de infantaria, pois como escreveu Luís Mendes de Vasconcelos, «ordenando a cavalleria con a mesma proporçaõ que o esquadraõ dos piques, & arcabuzeiros se ordenar»2.

métodos descritos na tratadística militar, adoptando também as formas geométricas preconizadas pela teoria em vigor.

A assimetria que se observa na distribuição dos vários batalhões de cavalos ao longo do exército poderá estar relacionada com a disposição das carretas da bagagem, que como vimos deveriam estar localizadas «de longo dos esquadrões pela mão esquerda». Assim, a esquerda do exército estaria protegida pelo batalhão do rei e pela carriagem, que fechava por este lado «a praça para os pagens e cavalos e o terço de Francisco de Távora3 onde sendo necessário se podesse recolher a nossa cavalaria»4. Os batalhões do duque de Aveiro, do mestre de campo, D. Duarte de Menezes, e o contingente do xarife posicionavam-se, como vimos, na ilharga oposta, «cubriendo la infanteria do lado diestro»5. Como se pode verificar, a ordem de batalha do exército de D. Sebastião segue o estipulado nas Anotações de Luís Álvaro Seco, escritas cerca de vinte anos depois da batalha, e que como já se viu condensa a teoria militar da segunda metade de Quinhentos. Ao ordenar a gente de cavalo sob o seu comando em esquadrão quadro de gente, o rei utilizou os 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 184. Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 156. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 187. 4 Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique, op. cit., p. 101. 5 Luís de Oxeda, op. cit., p. 28. 2

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Capítulo III – O exército em acção: Alcácer Quibir, 4 de Agosto de 1578 1. Portugal e o Norte de África

A

partir do terceiro quartel do século XVI, é possível encontrar-se um paralelo importante entre as realidades de Portugal e Marrocos, que consiste num processo de renovação das práticas militares. Com a chegada ao poder dos xarifes, assistiu-se à progressiva introdução em Marrocos de um aparelho militar com carácter regular, inspirado no exército otomano, ao passo que em Portugal a evolução da prática militar procurou ajustar-se aos modelos em vigor na Europa. Os otomanos faziam uso de uma forma de combater característica que evoluindo ao longo de vários anos atingiu, segundo Nicolle1, a sua forma clássica por meados do século XVI. Na Europa, foram os castelhanos que desenvolveram um novo sistema militar, desde fins de Quatrocentos, durante as guerras em Itália, até às campanhas da Flandres já na segunda metade de Quinhentos. As duas formas de fazer guerra irão confrontar-se na batalha de Alcácer Quibir. Neste intervalo de tempo, Portugal e Marrocos praticaram uma forma de guerra adaptada às suas realidades particulares, na periferia do espaço geográfico do Mediterrâneo onde se desenrolava o confronto directo entre os dois grandes impérios do século, a Espanha dos Habsburgo e a Turquia otomana. Durante todo o século XVI o conflito no Norte de Áfica foi contínuo, com Portugal a ocupar um lugar de destaque no primeiro quartel de Quinhentos, enquanto os castelhanos assumem um papel preponderante a partir desta altura, como se verifica pelas intervenções militares de Portugal e Espanha (Tabela VI).

Enquanto Carlos V se expande para leste, os portugueses tentam contrariar o avanço dos xarifes a sul. Será a partir da segunda metade do século que a situação se irá decidir. Com a queda definitiva de Trípoli em 1574, os Turcos forçaram finalmente o ferrolho de entrada no Mediterrâneo central, assumido o controlo do Magrebe Oriental. Filipe II foi obrigado a aceitar o facto de o Magrebe ficar definitivamente inserido na esfera de influência do Islão, atingindo-se assim, no Mediterrâneo, o ponto de equilíbrio entre as duas potências. O alívio da pressão exercida pela Turquia e Castela sobre aquela região deixou um espaço vazio, que Portugal e Marrocos tentarão preencher. Optando por uma postura agressiva, estes dois países foram obrigados a proceder à reorganização dos respectivos aparelhos militares para apoiar uma política de alargamento territorial continuada. Tal como a dinastia dos Xarifes procura afirmar a sua independência face à Turquia através da intensificação do combate contra o infiel, também «Portugal, se afirmaria no conjunto dos países europeus» – particularmente em relação a Castela – «em combate com os mouros e erguendo uma barreira contra o expansionismo turco no Mediterrâneo Ocidental»2. Em 1576, Abd al-Malik assumia o poder em Marrocos com o auxílio dos turcos de Argel, o que pode ser visto como uma tentativa dos otomanos estenderem a sua influência ao Magrebe Ocidental. Esta situação acontece numa altura em que existiam já negociações de paz entre Castela e a Sublime Porta; certamente no desconhecimento deste facto, o xarife destronado pediu auxílio a Castela – que naturalmente recusou –, procurando de seguida atrair o interesse do soberano de Portugal para a sua causa. Este foi aliciado com a cedência da fortaleza de Arzila, que havia sido abandonada em 1550. A situação interna em Marrocos, dois anos depois da ascensão de Abd al-Malik ao poder, não se encontrava totalmente estabilizada.

1

David Nicolle, Armies of the Ottoman Turks 1300-1774, Londres, 1988 [1.ª ed. 1983].

2

António Dias Farinha, Os Portugueses em Marrocos, Lisboa, 1999, p. 78.

133

Tabela VI Ano 1501 1503 1505 1506 1507 1508 1509 1510

1512 1513 1514 1515 1516 1519 1522 1529 1533 1534

Portugal Ataque a Mers el-Kebir Ataque a Alcácer Quibir Construção de Sta. Cruz do cabo Guer Construção de Mogador Conquista de Safim Cerco de Arzila Ataque a Azamor Cerco de Arzila

Conquista de Azamor Construção de Mazagão Batalha dos Alcaides Ataque a Marraquexe Derrota de Mamora Cerco de Stª Cruz do cabo Guer Cerco de Stª Cruz do cabo Guer Cerco de Safim

Espanha Conquista de Mers elKebir Conquista de Pinhão de Velez Conquista de Orão Conquista de Bougia e Trípoli Derrota de Jerba e Kerkena Cerco de Bougia Cerco de Bougia Ataque a Argel Derrota em Argel Perda de Pinhão de Velez Perda de Pinhão de Argel Conquista de Tunes

Ano 1535 1537 1539

Portugal -

1541

1551 1552 1555 1558 1560

Perda de Stª Cruz do cabo Guer Abandono de Azamor e Safim Abandono de Arzila e Alcácer Ceguer -

1562 1563 1564

Cerco de Mazagão -

1565 1570 1571 1573

-

1542 1543 1550

Espanha Conquista de Tunes Ataque a Sousse Sousse, Sfax e Monastir tributárias Ataque a Cairuão Derrota em Argel

Perda de Tunes Conquista de Tlemcem Conquista de Tunes Perda de Tripoli Perda de Bougia Ataque a Mostaganem Conquista de Jerba Perda de Jerba Ataque a Pinhão de Velez Conquista de Pinhão de Velez Cerco de Malta Perda de Tunes Vitória naval de Lepanto Conquista de Tunes Conquista de Bizerta

134

O simples facto de o sultão deposto se encontrar em território marroquino sob protecção dos espanhóis primeiro, e depois dos portugueses, ainda alimentava insubmissões que o novo xarife procurava submeter. De facto, quando Abd al-Malik decidiu partir de Marraquexe a 20 de Abril de 1578, não só «recolheu a gente que pode»; para além de juntar tropas para fazer facer à expedição portuguesa que sabia preparar-se, o novo xarife «visitou a todo o Reino, castigou e refreou a alguns, que se principiavam a favor do Xarife, perto de Turidante»1. Para além deste núcleo de revolta no sul do país, suspeitava-se de que o alcaide dos andaluzes2, al-Dugali, se preparava para trair o novo xarife. Assim, acordou com o irmão deixar na região do Sus os alcaides andaluzes, vigiados por tropas árabes Saraqa comandadas pelo filho, Muhammad-alSaydj3. Aliás, na véspera do dia da batalha ainda se levantavam fortes suspeitas quanto à lealdade de alguns contingentes; com efeito, o xarifrAbd al-Malik havia sido informado «de que havia três mil mouros arcabuzeiros que nem tinham balas nem pólvora, cousa suspeitosa em ocasião semelhante»4, o que o levou a tomar providências: Mandou publicar que o que não tivesse a munição necessária fosse ao seu provedor, que lha daria; e o escopeteiro que ao outro dia pela manhã não tivesse 50 balas e duas libras de pólvora perderia a vida.5

Abd al-Malik também se precaveu com as chefias do exército: «chamou aos Capitães, quis assegurar-se deles, trocou-lhes as ordens e as companhias, sem haver pessoa de qualidade no exército que não

removesse do lugar que tinha»6. Além de todas estas medidas, teve o cuidado de assegurar que os soldados não abandonassem o seu posto durante o combate, fazendo «mesclar sua gente, de maneira que não ficassem muitos juntos de uma só nação por não poderem haver conselho de se passarem ao Xarife que com el-Rei estava»7. Assim, as várias tensões existentes reflectiam a falta de uma consolidação efectiva do poder do novo xarife, dando um crédito indiscutível à intervenção portuguesa. Esta não se encontra assim desprovida de condições para ser bem-sucedida naquele que parece ser o seu objectivo estratégico, impor em Marrocos um poder político subsidiário dos interesses dos portugueses. Aliás, o apoio de Portugal a al-Mutawakkil seria certamente prestado mediante certas contrapartidas, tualmente reconhecendo a soberania portuguesa, como refere Henri Terrasse8. De facto, G. Melo também refere a possibilidade de o rei português pretender estabelecer um protectorado português no Norte de Áfica9, o que só seria possível com a eliminação do poder dos xerifes, e tal só poderia acontecer, na opinião de D. Sebastião, no decurso de uma campanha militar vitoriosa enfrentando directamente o xarife Abd al-Malik. Esta seria uma situação em tudo semelhante ao que Carlos V havia feito em Tunes. Depois da conquista desta cidade, em 1535, foi reposto no poder Mulei-Hassem, que assinou um tratado com os espanhóis, onde se comprometía a pagar un tributo anual, admitindo a presença de uma guarnição espanhola em la Goleta10; com a submissão da cidade de Tlemecem, ocorreu uma situação idêntica.

1

Jornada de África del Rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 18. Segundo Garcia-Arenal, «existia un clima de fuertes suspechas acerca de la lealtad y de las ambiciones personales de al-Dugali» (Mercedes Garcia-Arenal, «Vidas Ejemplares: S ’i I F y -Dugali», in Relaciones de la Península Ibérica con el Magreb siglos XIII-XVI, actas do colóquio, Madrid, 1988, p. 473). 3 Id, ibid, p. 472. 4 Jornada de África del Rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 22. 5 Id, ibid. 2

6

Id, ibid. Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 56. 8 Henri Terrasse, Histoire du Maroc, Paris, 1950 (ed. abrégée), p. 123. 9 G. de Melo e Matos, «Alcácer Quibir», in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, v. 2, 1963-86. 10 Ximenez Sandoval, Memórias sobre la Argelia, Madrid, 1853, p. 81 7

135

1.1 A expedição portuguesa de 1578 Para a expedição de 1578 a Marrocos foi reunida uma frota considerável, que «pela lista do armazém estavam providos setecentos e cinquenta de toda a sorte»1, contando com «5 galeões, 50 navios bem armados»2. Pode-se comparar a frota portuguesa com outras expedições navais de grande envergadura. Tunes (1534) contou com cerca de 300 velas, a expedição a Argel (1541) não terá contado com mais de 200, e a grande armada de 1588 destinada à invasão da Inglaterra contou com um número ainda menor, cerca de 130 navios. A frota saiu de Lisboa quarta-feira 25 de Junho pela manhã, e chegou a Lagos no dia seguinte mais «sobre a tarde»3, onde se contava embarcar as restantes tropas que se concentravam no Algarve. Contudo, a armada foi obrigada a partir sem os soldados «que estaban para embarcarse en el Algarbe»4, saindo de Lagos no domingo 27 pouco depois do meio-dia, aportando a Cádis no dia seguinte. O rei demorou-se no porto espanhol perto de 10 dias, até chegarem finalmente as embarcações que traziam o terço comandado por Francisco de Távora: Foi El-Rei ao sábado, 28 de Junho, ancorar na baía de Cales, onde se deteve dez dias esperando a carriagem e o terço do coronel Francisco de Távora, que ficaram por embarcar no Algarve, donde Francisco de Távora veio no cabo deles com sua gente, sem lhe ser possível chegar mais cedo por falta de embarcações, que não havia e, à míngua delas, ficaram ainda lá todos os bois e carros.5

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 90. Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 16. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, id., p. 103. 4 Juan da Silva, op. cit., v. 2, p. 56. 5 Id, ibid., p. 103. 2

Saindo de Cádis segunda-feira 7 de Julho, a armada chegou a Tânger no mesmo dia, «já muito sobre a tarde»6. A falta dos carros de bois, que ainda se reuniam em Portugal, impediu o desembarque das tropas em Tânger como inicialmente planeado – «ainda que partisse de Lisboa com assento de sair em Tânger, para daí marchar por terra, tinha-lhe desordenado este desenho a falta de carriagem, que ficara toda no Algarve»7. O exército acabou por se concentrar, três dias mais tarde, em redor da fortaleza de Arzila (Imagem 39). Em Arzila, o exército ficou «alojado junto dos muros da villa, e alguma parte dentro della»8, «fortificado pelas duas partes com trincheiras e carros»9 «e pelas outras duas com o mar e a Cidade»10 (Imagem 40), onde permaneceram por mais de duas semanas aguardando a chegada das embarcações com a carriagem. A permanência do exército em Arzila não terá sido desaproveitada, «por El-Rei ordenar que se dessem alguns rebates falsos para segurar e doutrinar os soldados»11; certamente também se pretendia «doutrinar» alguns dos oficiais dos terços, cuja inexperiência não era situação invulgar. De facto, durante a invasão de Portugal de 1580, parte das chefias de escalão médio não possuía qualquer experiência militar. Um dos conselheiros de Filipe II, Bernardino de Escalante, atribuíu-o ao facto «de no haverse exercitado los sargentos mayores 6

Id, ibid, p. 109. Id, ibid. 8 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 38. 9 Outros autores, ao contrário, afirmam que «nenhum modo de fortificação se fez do alojamento, de valo nem trincheira, salvo alguns valados que havia pelo meio nas extremas de algumas hortas e vinhas» (Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião op. cit., p. 117). 10 Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 17. 11 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 118. 7

136

vieren à hallarse al tiempo del efecto muy embaraçados, y á caer en muchas faltas en presencia de sus Generales»1;

Imagem 40 – Localização de Arzila

Imagem 39 – A viagem da frota portuguesa até Arzila

1

Bernardino de Escalante, op. cit., p. 83.

137

Isto apesar de o contingente contar as melhores tropas ao serviço de Espanha, os «tercios viejos» da Lombardia, Sicília e Nápoles. Outros alarmes que sucederam ficaram a dever-se à presença de inimigos nas imediações do «arraial». A este propósito, o embaixador espanhol refere que «de los rebatos, que nos han tocado três, y siempre el rey sale bien adelante. El ultimo fué á 23 por la mañana que corrieran dos mil caballos»1. 1.2 A marcha por terra A decisão de o exército fazer a marcha por terra foi tomada pelo rei na sequência de um conselho de guerra convocado para 20 de Julho2. Embora esta decisão estivesse longe de ser acolhida pela unanimidade dos oficiais, parece, ainda assim, obedecer a uma apreciação pertinente das condições objectivas com que o exército se confrontou no terreno. A este propósito, transcreve-se uma passagem de Jerónimo de Mendonça: Os inconvenientes que se alegavam eram primeiramente contra o parecer de ir el-Rei desembarcar em terra, estar a fortaleza de Larache situada sobre o banco de areia, à entrada da barra, de maneira que nem uma ave podia entrar por ela sem risco mui grande dos baixios e da artilharia, e que desembarcar no rolo do mar na costa brava, quando o tempo o i …3

De facto, a maioria dos portos da costa atlântica de Marrocos não apresentavam as melhores condições como ancoradouros. No caso particular de Larache, quando da entrega pacífica da praça aos

castelhanos, em 1610, foi frustrada uma primeira tentativa de ocupação da praça, por não ter sido possível efectuar o desembarque das forças4. …Também era notável perigo pela facilidade com que os mouros com trincheiras na praia se podiam defender da gente que havia de sair com tanto trabalho com a água pelos peitos, a risco de poder vir uma tormenta e ser forçado a levantar-se a armada, e deixar meia-gente em terra.5

Uma vez mais, podemos estabelecer um paralelo com as campanhas africanas de Carlos V. Durante o expedição a Argel de 1541, a frota acostou longe da cidade a fim de permitir que a operação de desembarque decorresse sem oposição; ainda assim foram necessários três dias para que o exército desembarcasse, cujo efectivo era idêntico ao da expedição portuguesa de 1578. Larache era uma povoação amuralhada, possuindo um pequeno reduto fortificado a defender a entrada do rio. Para além disso, existia outro forte onde «havia uma pequena enseada, onde está uma casa a modo forte que se chama Castil de Genoveses», embora de pequenas dimensões e provalmente construído em taipa, isto é, com muros de terra compactada. A fortificação frente à barra encontrava-se, contudo, «trincheirada e fortalecida com a gente que Mulei Hamet, irmão de Mulei Moluco ali tinha, que ficava o sítio inexpugnável»6, certamente que o mesmo sucederia com o «Castil de Genoveses» (Imagem 41). A comprovar o significativo armamento que existia na fortaleza, as «quatrocentas e vinte e oito velas» enviadas pelo rei para defronte de

1

Juan da Silva, op. cit., p. 73. Artur Barbosa Carmona, «O transporte da expedição de D. Sebastião em 1578», in Escola naval e escola do exército em Alcácer-Quibir, sep. da revista militar, v. 54, V. N. Famalicão, 1942. 3 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, pp. 40-41. 2

4

António Dias Farinha, Plantas de Mazagão e Larache no Início do Século XVII, Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1987. 5 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, pp. 40-41. 6 Id., ibid.

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Larache foram imediatamente alvejadas pela artilharia mal se aproximaram da cidade, «atirando-lhes a fortaleza muitos tiros os não passou algum, por sobrelevarem todos»1. Imagem 41 – Larache no século XVII

uma operação de desembarque já por si só demorada e delicada. De facto, Oxeda refere que Abd al-Malik havia enviado para Larache «Mahamet Açarian, su Cahaya o Mayordomo, com 2 mil andaluces y 2 mil Açuagos, todos escopeteros, y esta parte fue en que pusso mas reparo y recato, por entender que sin duda que alli fueran los Cristianos aportar»2, isto para além da guarnição regular que se encontrava na fortaleza. Outras relações, como a Jornada de África e Crónica de D. António e Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, confirmam que em Larache estava estacionado este contingente de quatro mil homens; e, ainda em Arzila, o embaixador castelhano dava conta de um possível reforço das guarnições inimigas: Á 23 por la mañana que corrieran dos mil caballos, segun el rey dice, y si son tantos es mas fuerza que la que habia en Alcázar, de onde se infiere que se han reforzado estas plazas que pretendemos ganar, y teniamos por cierto estaren desapercibidas.3

Os portugueses certamente recordavam desastres anteriores, como Tânger em 1437 e Graciosa em 1489, e mais recentemente em Mamora em 1515; aqui, o exército português foi cercado ficando em situação precaríssima, que teve como resultado uma pesada derrota que levou directamente ao abandono, por D. Manuel, da política de expansão em Marrocos. Por outro lado, a efectuar-se uma marcha por terra, esta poderia ainda ser utilizada como forma de adestramento do exército no que respeita aos movimentos colectivos em formação, como era prática corrente numa época em que o treino não consistia numa actividade sistemática que permitisse transformar um recruta inexperiente em soldado4. O treino era, pois, feito a maior parte das vezes nas condições da própria campanha sob a forma das marchas dos Assim, a somar aos inconvenientes decorrentes da topografia, a guarnição de Larache havia sido reforçada, o que dificultaria ainda mais

2

Luís de Oxeda, op. cit., p. 18. Juan da Silva, op. cit., p. 73. 4 J. R. Hale, War and Society in Renaissance Europe, op. cit. 3

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’EL-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 163.

139

exércitos, e onde os próprios acampamentos que se estabeleciam desempenhavam o mesmo papel de adestramento dos soldados1.

Imagem 42 – A marcha do exército

Duas semanas depois chegaram as embarcações com a carriagem que se havia concentrado no Algarve, o que deverá ter tido lugar a 24 ou 25 de Julho O rei, «impacientíssimo de toda a detença», queria a todo o custo forçar a partida do exército mas, desembarcados os animais, verificou-se que estes não estavam em condições físicas para empreender a jornada, pelo muito tempo que haviam permanecido no interior dos navios: Chegou a frota do Algarve que trazia todos os bois e carriagem (...) começando-se logo a entender na partida, que todavia era forçoso dilatar-se pela fraqueza da boiada, a qual, por haver quinze dias que fora embarcada, saía dos navios debilíssima e não em disposição para poder servir, e os bois tão desbaratados que havia mister de muitos dias para se restaurarem, não bastou para deter El-Rei impacientíssimo de toda a detença, (ordenando-se a partida para o terceiro dia).2

Verificando-se a «fraqueza da boiada», que não se encontrava em condições de se por ao caminho, apenas na segunda-feria 27 de Julho se «lançou bando» para que todos os soldados se preparassem para levantar o arraial e iniciar a marcha por terra, marcando a saída para o dia seguinte. A jornada desde Arzila até ao local onde teve lugar a batalha demorou seis dias (Imagem 42), durante os quais o exército sentiu grandes dificuldades. Terça-feira, 29 de Julho A coluna saiu de Arzila pela manhã e, ao cabo de cerca uma légua de marcha, acampou «num sítio que se chama dos moinhos»3. 1

Geoffrey Parker, The Army of Flanders and the Spanish Road, op. cit. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 130. 3 Id., ibid., p. 136. 2

140

Quarta-feira, 30 de Julho O exército acampou «num alto que chamam Almenara, onde havia muitas fontes», situado «a pouco mais de duas léguas de Arzila»1. As dificuldades sentidas levaram a que nesse dia fosse decidido em conselho de guerra a retirada para Arzila, onde o exército embarcaria para atacar Larache por mar. Assim, na mesma noite foi enviado a Arzila Afonso Correia com 40 cavaleiros, na esperança de ainda lá encontrar a frota. Contudo o capitão-mor da frota, D. Diogo de Sousa, já havia partido nesse mesmo dia para Larache, seguindo as instruções do rei. Quinta-feira, 31 de Julho Afonso Correia reuniu-se ao exército no dia seguinte, quinta-feira, 31 de Julho,acompanhado pelo capitão Francisco Aldana e500 soldados espanhóis, recém -chegados a Arzila; este trazia uma carta do duque de Alba e da «celada» com que Carlos V havia entrado em Tunes em 1534.

atacado pelos mouros. Inicialmente, D. Sebastião tinha decidido «caminhar direito a Larache, por aquém do rio»4, seguindo ao longo deste até à ponte romana, «onde viram da outra parte muitos mouros de cavalo», que se estimaram «em quatro para cinco mil de cavalo»5. O alojamento foi montado num local designado por «Soveral de Larache, um alto fortificado por uma parte com a ribeira». A posição foi reforçada pelo outro lados «com uma fraca trincheira que por ser de terra de areia não se pôde fazer mais»6. Nessa mesma noite, em conselho de guerra entretanto reunido, foi decidido enviar exploradores a procurar um vau no rio Mocazim que permitisse a passagem do exército. O vau foi localizado sem grandes dificuldades, situado cerca de um quilómetro abaixo da ponte romana. O rei confirmou a sua decisão de seguir directamente para Larache ao encontro da frota que aí se encontrava fundeada. Domingo, 3 de Agosto

Sexta-feira, 1 de Agosto O exército saiu do alojamento de Almenara, «logo ao nascer do sol»2 e, ao fim de percorrer cerca de três léguas, tomou alojamento num local «abundantíssimo de àgua por ser entre três ribeiros que o rodeavam, por onde requeria pouca fortificação»3. Sábado, 2 de Agosto Neste dia, a marcha iniciou-se «algum tanto mais tarde do costumado», dado a demora em reunir a «boiada» por o gado ter sido 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 137. Id, ibid., p. 161. 3 Id, ibid., p. 162. 2

O exército atravessou o Mocazim pelo vau encontrado na noite de 2, «que se achou seco por razão da maré, pouco antes das 10 horas»7. Uma vez que se gastou grande parte do dia a atravessar o rio, optou-se por seguir para novo alojamento. Assim, depois de franqueado o passo do rio, o rei «mandou logo acostar o exército pela mão direita»8, seguindo na direcção de Larache «voltando contra o Soveral»9, portanto em sentido contrário ao alojamento que havia sido abandonado. 4

Id, ibid, pp. 165-166. Id, ibid. 6 Id, ibid., p.1 67. 7 Id, ibid., p. 170. 8 Id, ibid, p. 187. 9 Id, ibid, p. 171. 5

141

Abd al-Malik terá tido notícia de que os cristãos haviam transposto o Mocazim, pelo que enviou ao seu encontro o seu irmão ao comando de alguns milhares de cavalos, enquanto ficava mais atrás a ordenar o campo, dispondo «en orden toda la escopetaria y bombardas»1. O exército cristão seguia acompanhando o rio e, «não teria por ele caminhado meia légua, quando começou a aparecer gente grossa dos mouros, que foi estimada em onze ou doze mil de cavalo»2. Esta tropa aproximou-se, «arrancando parte dela correndo afastada pelo pé do monte da mão esquerda»3 – uma elevação na esquerda do vau que o exército havia passado – rodeando a coluna com a intenção «de vir a cometer a retaguarda em que vinha Vasco da Silveira»4, um movimento semelhante ao que irá ser usado no início da batalha do dia seguinte. Os soldados portugueses que seguiam na retaguarda – e ocuparam a segunda linha do exército no dia seguinte – formaram em ordem de batalha, «os dois terços incorporados com o rosto atrás, guarnecidos de mosqueteria». Reforçou-se o dispositivo com «dois esmerilhões com que se guarneceram as quinas do esquadrão»; os restantes «terços» ocuparam os seus lugares na formatura, «ordenados em batalha e a vanguarda, como saíram do alojamento, El-Rei na fronte com a cavalaria junta em som de batalha»5. A movimentação parece ter sido efectuada diligentemente, obtendose uma formatura segundo uma figura geométrica regular, que como vimos era idêntica à adoptada por estes mesmos terços no dia da batalha. A eficácia do dispositivo ficou demonstrada; a guarnição do esquadrão, que como se viu era constituída por mosqueteiros, foi suficiente para deter os inimigos que se aproximavam, juntando-se depois alguns poucos – cerca

de dez – destes cavaleiros ao exército cristão. Esta deserção não deixa de ser curiosa, tendo em conta que o campo de Abd al-Malik se encontrava na proximidade. Os dois exércitos ficaram à vista um do outro, «a horas de meiodia em ponto firmados e quedos sem de uma parte nem outra se romper batalha»6. Mantiveram-se na expectativa «duas horas», durante as quais «ambos os campos estiveram em ordem padecendo insofrível calor pelo tempo e pelo lugar»7. Abd al-Malik recolheu ao acampamento, situado meia légua mais para baixo, numa colina que acompanha o rio Rur pelo lado esquerdo, um pouco acima da povoação de al-Ksar al-Kebir. Baseado na relação de Nieto, Berthier sugere que se situaria perto de dois topónimos, Bedaoua e Chfira. Na cartografia actual, estes aduares situam-se num campo vagamente circular com pouco menos de um quilómetro de diâmetro, limitado na mão esquerda pelo Lucus, e na direita pelo seu afluente Rur, no que concorda com Bernardo da Cruz quando este afirma que o campo do «xarife» estava «encerrado entre dois rios». A confirmar esta localização, o mesmo autor afirma que a 3 de Agosto «mandou o Maluco ao seu exército passasse o rio Lucus, e se puzesse em ordem de pelejar»8. D. Sebastião foi tomar alojamento num alto, que se deveria situar entre o rio Mocazim e o esteiro – na altura seco – que sai do rio Lucus e que um pouco mais abaixo entronca no Rur, e estaria a cerca de «meia légua de onde demos a batalha»9 (Imagem 43). 6

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 90. Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 22. 8 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 61. O autor poderá referir-se à passagem do rio Rur, que certamente por lapso designa como o Lucus, ou então sugere que o exército teria o acampamento entre o Rur e as colinas que lhe são contíguas. 9 Relation de la Bataille de EL-Ksar El-Kebir – Le captife portugais, in op. cit., p. 656. 7

1

Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 315. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 171. 3 Id, ibid. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid. 2

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Imagem 43 – Acampamento de 3 de Agosto e local da batalha O campo cristão (A) estava encontrava-se entre o rio Mocazim e um ribeiro seco na altura; a 4 de Agosto, o exército «começou a marchar, afastando-se g i i (…) i i g g sobre a mão esquerda» O campo muçulmano (B) estava «encerrado entre dois rios», o Lucus e o Rur. No dia seguinte, «mandou o Maluco ao seu exército passasse o rio». Tomou posição perto de Yebinat e Suaquen, onde nos anos 30 foram escavadas sepulturas datadas da batalha; no último topónimo encontra-se uma pequena «cuba», que assinala o lugar da morte de Abd al-Malik.

O local ficava fortificado a leste «com um cabouco grande que corre de longo do rio mais de uma légua e da outra parte fronteira e dos lados com o rio e carriagem guarnecidos bastantemente dos reparos necessários e com uma sacada de enxadas de boa largura».1 A atestar a solidez do aquartelamento, «mandando o Maluco aquela noite espiar o nosso campo, lhe responderam as espias que, se dali não nos abalássemos, que era impossível romper-nos»2. 2. O dia da batalha, ou a vida útil de uma forma militar No desenrolar do combate propriamente dito parece haver uma sequência de circunstâncias desfavoráveis, algumas de carácter fortuito e outras da responsabilidade dos oficiais e comandantes do exército, incluindo o próprio rei. Em todo o caso, o atraso na chegada da carriagem ao teatro de operações teve particular relevância no desenrolar da campanha, atrasando a saída do exército e permitindo, assim, a concentração atempada das tropas por parte do xarife Abd alMalik. Por outro lado, a fraqueza da boiada atrasou a marcha, o que teve como consequência a escassez de mantimentos que se verificou 1 2

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 75. S. J. Francisco Rodrigues, op. cit., pp. 361-362.

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entre os cristãos, e que esteve na base de D. Sebastião se decidir por não adiar a batalha para uma ocasião eventualmente mais favorável. O mantimento que para esta viagem se ordenou a toda a gente de soldo, não foi mais que para seis dias, contando-lhe arrátel e meio de biscoito por dia e uma quarta de queijo e uma ração de vinho, de modo que se deram a cada soldado nove arráteis de pão e três quartilhos de vinho, fazendo conta que as borrachas que se lhe davam eram de seis cheias. Porém como a porção de vinho e de conduto eram tão pequenas, quando depois abalou o exército já não havia soldado que não levasse mais que o biscoito e ainda esse não levavam muitos; porém El-Rei ordenou que se levasse biscoito sobressalente para mais quatro dias e o Provedor-mor Luís César mandou, além disso, levar para mais dois.1

Em todo o caso, aos olhos de D. Sebastião oferecia-se, finalmente, a ocasião para enfrentar o xarife, «porque a sua vinda não fora a tomar Larache nem a outra alguma coisa, senão a dar batalha ao Maluco»2; este terá sido também um facto que explica, pelo menos em parte, que o rei tenha forçado para esse dia o encontro em terreno propício ao adversário.

Logo de manhã cedo reuniu-se um conselho onde, depois de uma discussão acalorada, o rei impôs a sua vontade de dar imediatamente batalha ao exército inimigo. Jerónimo de Mendonça afirma que «logo pela manhã foi divulgada a nova da batalha»3, sem referir a hora; terá sido nessa altura que as tropas começaram a ser organizadas para a batalha, o que coincide com o relato da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião. Pouco antes da manhã se recolheu [o rei] a repousar na tenda, um espaço muito breve porque logo (antes de amanhecer) se tornou a levantar e (sendo-lhe trazido de comer) almoçou despejado, em a manhã querendo romper (...) acabando de almoçar, tratou logo de fazer abalar o exército.4

Qaunto à formatura no dia da batalha, os cronistas são unânimes; esta seria a mesma que trazia desde que havia saído de Arzila, e que permitia, se necessário, rapidamente ser posto em ordem de batalha: A infantaria dos terços ordenada em esquadrões, formados em forma não muito engrossada repartidos na vanguarda, retaguarda e batalha, com elas situadas em distância conveniente para poder ir a bagagem no meio dos esquadrões e eles se poderem socorrer uns aos outros.5 (Imagem 44)

Cerca das 07.00h: Ordena-se o exército «Es de advertir, guerreando en berberia, que los Africanos, Alarabes, y Bárbaros, atropelandose solo para el executar, y nosotros sustentamos ordena al mantaner, y desordenamos al cerrar: lo qual piede no darles ruciada, sino viendolos juntos, y entretenerlos en las escaramuças con golpes de artilleria, y alguns mosquetazos, pues son casi todos perdidos, por derramarse grandemente estas naciones al escaramuçar, y no cargales sino com cuerpo de esquadrones formados.»

Esta movimentação das peças de artilharia, processo moroso que implicava desatrelar os canhões, posicionar as peças e calcular os ângulos de tiro, explica também a demora em responderem ao fogo inimigo, como adiante se verá. Frei Bernardo da Cruz, também

Bernardino de Mendonça, op. cit., p. 63. 3 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 131. 2 Id., ibid., p. 181.

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 54. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 179. 5 Id., ibid., p. 136. 4

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testemunha presencial da batalha, confirma a forma que o exército português apresentava em marcha:

Imagem 44 – A ordem de batalha do exército português

Primeiramente ia diante a artilharia, e logo toda a infantaria, alternando-se os terços, uns na vanguarda um dia, na retaguarda outros: a cavalaria ia por os lados, El-Rei com uma parte dela, o duque de Aveiro com outra, em que entrava o Xarife e os africanos fronterios: diante de cada terço iam dois tiros de campo: a bagagen e carruagem iam detrás, com alguns cavalos que a guardavam.

~ Como vimos, a formatura do exército tripartida – a «ordem redobrada» – era uma ordem de batalha correntemente utilizada; na carta enviada a D. Sebastião pelo duque de Alba, entregue por Aldana quando este se juntou ao exército, o general castelhano recomendava esta disposição no caso de o exército efectuar uma marcha por terra: Siempre poniendo a la retaguardia la gente mas diestra e platica, en vanguardia la mas escogida e honrada; guarnecer el cuerpo de la batalla com mangas sueltas de arcabuzeria.1

9.00-10.00h: O exército português põe-se em marcha Cerca das nove da manhã ou pouco depois desta hora, os portugueses iniciam a marcha que os levaria ao encontro do exército de Abd al-Malik: Querendo El-Rei abalar, correu primeiro todos os terços e esquadrões, sem levar consigo mais que Cristóvão de Távora e visitando por derradeiro de todos o batalhão do Duque. Falou então aos seus em poucas palavras (...) arrancou El-Rei do alojamento, nas horas em que o sol começava de tomar força.2 1 2

Luís de Oxeda, op. cit., p. 22. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 186-187.

a. Esboço da forma do exército feito por um interveniente na batalha

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b. Gravuras da relação de Frei Luís Nietto, edição de 1579 e versão latina.

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Segundo a «relação» atribuída a Duarte de Meneses, «serian las 9 de la mañana quando comenzaron a pelear los dos ejercitos»1. É provável que o mestre-de-campo se quisesse referir ao início da marcha, o que concorda com outras relações. Queirós Veloso, confrontando os diversos cronistas, aponta para cerca das dez horas o início dos combates, o que parece razoável tendo em consideração o tempo necessário para organizar a formatura do exército e marchar ao encontro dos adversários; e as dez horas são, de facto, «as horas em que o sol começava de tomar força», o que concorda com Bernardo da Cruz, que afirma que o exército terá iniciado a marcha «no princípio de todo o fervor da calma»2. Deixando para trás o alojamento, o exército cristão saiu «ao campo largo», começando «a marchar direito de Alcácer, caminhando por uma grande planura entalhada entre dois rios»3 – o Mocazim e o Lucos, segundo Queirós Veloso – ficando o local onde depois se feriu a batalha «entalhado» entre os dois, como podemos ver na imagem 43. D. Sebastião encontrava-se «diante da primeira fileira quanto seria uma lança e Diogo Lopes de França» agindo como explorador, seguia «diante dele outra lança, reconhecendo»; o exército afastou-se «cada vez mais da ribeira e do cabouco»4 «endireitando logo para o largo do campo sobre a mão esquerda»5, avançando em direcção ao campo inimigo. Aqui, depois de verificar a disposição das suas tropas, Abd al-Malik encontrava-se na expectativa, aguardando uma iniciativa dos cristãos. Embora se sentisse «mui agravado de sua enfermidade», passou uma 1

D. Duarte de Meneses, «Relação de D. Duarte de Meneses», in Henry de Castries, op. cit., p. 651. 2 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 64. 3 Segundo Queirós Veloso, os dois rios seriam o Mocazim e o Lucos, e o o campo de batalha situar-se-ia entre eles. 4 A ribeira seria o Mocazim, um afluente do Rur, que deveria estar seco na altura. 5 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 186-187.

última revista às tropas – às «nove horas do dia o Maluco se passou a um cavalo ruço queimado»6 – pretendendo certamente mostrar-se aos soldados de forma a manter o seu moral elevado, confirmando que mantinha a liderança sobre o exército. De las 10 horas pediu el Rei de comer (...) y después de aver comido, vivieran novas de cómo los Portugueses empeçavan de caminar (...) Allamos nuestra gente en orden, y los cristianos venieron marchando quanto más podian (...) juntaronse los campos en una buena campana, que yo nunca tal vide, que ni piedra ni arbol en ella havia.7

Marchando ao encontro dos adversários, os cristãos caminhavam «por uma grande planura entalhada entre dois rios (...) pelo mais largo do campo»8, até que por fim avistaram «os Mouros defronte, que da mesma maneira parece o esperavam, em um plano como uma mesa tão largo, quanto a vista alcançava»9. Os dois exércitos encontraram-se finalmente «a menos de meio quarto de légua»10, ou seja, pouco mais de 600 metros. Abd al-Malik havia assentado o seu campo habilmente, aproveitando os acidentes de terreno existentes de forma que a disposição das tropas estava encoberta «por um cabeço que havia entre ela e o campo del Rey»11. No topo desta elevação encontrar-se-ia a artilharia devidamente encoberta da vista dos cristãos com ramagem solta. A infantaria situava-se por detrás, de forma que aqueles que «nos estavam mais chegados não eram divisados do nosso campo»12. Nas 6

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 103. Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 316. 8 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 126-127. 9 Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 128. 10 Id, ibid. 11 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 105. 12 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 191. 7

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alas do dispositivo, os contingentes de cavalaria «foram adelgançando e alargando a fim de inteirar-se, de maneira que justas as pontas ficaram por detrás da retaguarda cristã, com que cercaram todo o exército, a fim de pelejarem ao mesmo tempo por todas as partes»1:

lua todo o seu exército, cercando o de el-rei, de maneira que por toda a parte ficou sendo vanguarda.3

Num sítio coberto com sua superioridade pequena, mas bastante para não receber dano na artilharia que forçadamente havia de ficar sobrelevando, pelo amparo que a terra naquele lugar lhe fazia, porque conquanto aquele campo é chão, todavia tem nesta parte um modo de quebrada que desce de uma topetada de pouca subida, onde os mouros de manifesto ficavam cobertos, por estar o seu exército prantado em forma de curva. E como eram tantos que apareciam por todas as partes, via-se grande multidão deles mais ao longe além da quebrada encoberta, que tinha o baixo do vale que ficava no meio, por onde os que nos estavam mais chegados não eram divisados do nosso campo.2

«Estivemos esperando um bom espaço o sinal da batalha, e o Santiago; com os Mouros defronte, que da mesma maneira parece o esperavam, em um plano como uma mesa tão largo, quanto a vista alcançava, em distância de um ao outro exército menos de meio quarto de légua, que pouco a pouco se foram chegando um ao outro.»

A cavalaria de Abd al-Malik surgiu assim de imprevisto pelos lados da pequena colina que dominava o campo de batalha, muito pelo largo, de forma a envolver o exército português segundo a disposição clássica dos exércitos otomanos; na batalha de Mohacs (1526), por exemplo, os turcos apoiaram o centro do dispositivo no topo de uma colina onde aguardaram o ataque dos cristãos; no flanco esquerdo um grande corpo de cavalaria procedeu ao envolvimento do exército adversário. Jerónimo de Mendonça resume a ordem de batalha do exército mouro e a movimentação inicial que, à semelhança do procedimento otomano, visou o envolvimento do dipositivo português:

10.00-11.00h: Rompe-se a batalha

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 128. Com os inimigos à vista, rodeado o campo português por todos os lados, D. Sebastião deslocava-se pelo campo «dando ordem a todas as cousas»4. Os sargentos-mores tratavam certamente de proceder às últimas disposições dos soldados, começando a ordenar os soldados da segunda e terceira linhas do exército de acordo com a formatura delineada no conselho de guerra, tratando de incorporar os dois «terços» de Vasco da Silveira num único «esquadrão» com a forma de «batalha redobrada». Por essa altura, depois de o rei ter dirigido um breve discurso às tropas, toda a vanguarda do exército português se ajoelhou ao ser exibido um crucifixo na frente dos soldados: Ditas estas breves palavras el Rei mandou dar a Ave Maria, último sinal da batalha, e foi levantado um crucifixo em alto, pelo padre Alexandre, da Companhia (de Jesus), a cuja vista se pôs de joelhos toda a gente que a pé estava, e nesta conjunção disparou a primeira peça do campo inimigo.5

Vendo Mulei Moluco neste tempo o campo dos portugueses posto em ordem de batalha, começou a ordenar a sua, pondo a infantaria diante, que era toda de arcabuzeiros, e a cavalaria atrás, e nesta forma veio em meia 3 1

Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 29 2 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 191.

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 62. Id, ibid, p. 63. 5 Id, ibid, p. 65. 4

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Nesse momento os cristãos são surpreendidos pelo fogo da artilharia inimiga, «começando os mouros a disparar, quando ainda se não esperava»1. De facto, Abd al-Malik havia «assestado» as peças de artilharia, que «cobertas com ramos, pareciam montinhos de um mato baixo de tamargueiras, que há por aquele campo de longo do rio, de uma rama espinhosa, de modo de carrapetos»2. Os canhões estavam assim fora da vista do adversário, e daí a surpresa sentida no exército ao ser inesperadamente alvejado. Este facto gerou mais tarde grande polémica em Portugal pela forma como foi depois descrito por Conestaggio, que afirmou que os soldados portugueses se lançaram ao chão, intimidados com o fogo das bombardas dos mouros. Jerónimo de Mendonça e Miguel Leitão de Andrada negam categoricamente esta versão, alegando o facto de terem sido testemunhas presenciais da batalha. De qualquer forma, não parece natural que mercenários experimentados, veteranos das praças do Norte de Áfica e Índia, e voluntários da nobreza fortemente moralizados entrassem facilmente em pânico. Terão sido sobretudo os soldados recrutados pelas ordenanças aqueles mais se intimidaram com os disparos da artilharia. Iniciado o fogo com o disparo de uma bombarda grande, poderá ter sido o pelouro desta peça a despedaçar alguns homens e cavalos, lançando o pánico entre as tropas da segunda linha do exército. Note-se que esta peça disparou por ordem de Abd el-Malik:

o último de sua vida (...) disse ao seu alcaide: «Vai tu, e dá o fogo, e vê que começas a dá-lo por aquela bombarda grande que eu suelo empeçar.»3

Alguns cronistas descrevem a artilharia dos mouros disparando várias vezes. Segundo Jerónimo de Mendonça, contudo, concluimos que terá existido um intervalo entre um primeiro e os restantes disparos; não parece haver dúvidas de que foi o disparo de uma «bombarda grande» que deu início a uma primeira salva de outras peças: Logo dispararam outras bombardas, das quais uma matou alguns homens no esquadrão do ventureiros, entre os quais acabaram Gregório Sarnache de Noronha, e João Brandão de Almada.4

O autor da Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, diz que os mouros «dispararam por três vezes doze peças»5 pelo que uma segunda salva dos doze canhões – Oxeda refere que «los enemigos dispararon, dos veces, 24 cañones que trahian»6 – terá tido lugar pouco antes, ou durante, a resposta da artilharia dos portugueses. Parece lógico concluir que dispararam uma primeira vez as 24 peças de que dispunha Abd al-Malik. Esta primeira descarga da artilharia dos mouros não teve, aparentemente, grande eficácia: Começando os mouros a disparar, quando ainda se não esperava (...) aos primeiros tiros veio dar um pelouro junto de el-rei, dando muitos por outras partes, fazendo pouco dano em todas e de alguns que foram ter ao esquadrão dos aventureiros, dois que depois de fazer muitas chapeletas (ressaltos) no chão, foram dar em Álvaro Pires de Távora no

Mustapha Chiçibi, alcaide das bombardas do Maluco, foi donde estava pedir a licença para dar fogo à artilharia (...) mas este dia, quiçá porque era

O padre Amador Rebelo faz menção a um membro da Companhia Jesus por nome Alexandre que, com um crucifixo levantado, animou os soldados (Padre Amador Rebelo, op. cit. 1 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’EL-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 192. 2 Id, ibid.

3

Luís de Oxeda, op. cit., p. 32. Jerónimo Mendonça, op. cit., v. 1, p. 66. 5 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 105. 6 Luís de Oxeda, op. cit., p. 34. 4

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Capitão Pêro Lopes, tão cansados que não fizeram mais que derribá-los embaçados.1

De facto, os disparos não terão tido grande efeito, uma vez que o tiro «nos fez pouco nojo, porque a mais dela foi por alto»2 – nas palavras de uma das testemunhas presenciais –, o que se compreende dado as peças dos mouros se encontrarem assestadas numa pequena eminência do terreno, dificultando a pontaria dos bombardeiros muçulmanos. A artilharia de Abd al-Malik, «como disparou assim de sobressalto», teve sobretudo o efeito de surpreender os portugueses, e estabeleceu «turvação na nossa dianteira e houve detença e embaraço no aperceber da artilharia, que tardou em se tirar dos cavalos por irem ainda caminhando»3, dificultando uma resposta eficaz aos tiros do adversário. Depois dos primeiros tiros da artilharia inimiga e vendo as tropas intimidadas, em particular os soldados recrutados pelas ordenanças, logo correu o rei pelo campo e, «com alegre presença e doces palavras animava a sua gente»4. De seguida, «pidió el rei el artilleria delante»5, o que indica que só nesta altura as peças foram dispostas na frente do exército, permitindo assim a entrada em acção da artilharia cristã. De um modo geral, os cronistas concordam ao relatar a fraca prestação dos canhões dos portugueses; segundo Luís de Oxeda, por exemplo, «ni les fue possible poder disparar mas que quatro pieças»6. No entanto, embora colhidos de surpresa, os artilheiros cristãos ainda respondem e com algum efeito visível nos inimigos: 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 192. Relação da batalha de Alcacer, que mandou um captivo ao Dr. Paulo Aº, op. cit., p. 657. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit. p. 192 4 Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 29. 5 Esteban Rodríguez Amaya, Una Relación Desconocida de la Expedición á Africa Del Rey Don Sebastián, V. N. de Famalicão, 1948, p. 4. 6 Luis de Oxeda, op. cit., p. 34.

Os mouros de cavalo se revolviam de maneira, que mostraram receber dano, e alguns ficaram mortos dela por cima dos quais passou o esquadrão dos ventureiros, posto que neste tempo foi morto o capitão Pêro de Mesquita, capitão que o governava, de uma mosquetada, e que foi grande parte do seu desamparo.7

O médico de Abd al-Malik também menciona algum estrago causado pelas peças dos cristãos, «ellos nos respondieron com su artelleria, y entre las banderas del Rei mataron a un hombre y dos cavallos», embora concluindo que os cristãos «no se aprovecharon della como las gentes pensavan»8. Ainda assim, o cronista da Relação do captivo português vai mais longe, ao afirmar que na resposta, a artilharia portuguesa terá atingido a própria reserva de pólvora dos mouros: «Começou a jogar a nossa (artilharia), donde um pelouro dos nossos lhe deu na pólvora, e lha queimou toda».9 Embora não existam outros cronistas a confirmar este relato, é possível que os disparos dos canhões dos portugueses tenham tido, de facto, algum efeito na posição da artilharia contrária. Eventualmente, terão impedido que as vinte e quatro peças dos mouros tornassem a disparar todas novamente, conforme é referido na Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique – «dispararam por três vezes doze peças», o que poderá equivaler a uma primeira salva de 24, e uma segunda de apenas 12 canhões. O disoaro da artilharia foi o sinal para o início do ataque dos mouros, sendo o próprio Abd al-Malik que disparava «com su propria mano a la primera pieça que de su artilleria se disparava, diziendo:

2

7

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v.1, p. 66. Faz-se aqui referência ao papel fundamental dos oficiais no «governo» das forças, de tal forma que a sua ausência implica o «desamparo» das unidades no terreno com resultados críticos, como adiante se verá. 8 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 317. 9 Relation de la Bataille de El-Ksar El-Kebir – Le captife portugais, op. cit., p. 357.

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“B !” á i i i Di 1, segundo o costume otomano de dar início à batalha através do fogo da artilharia. O rápido envolvimento do exército adversário poderá ter sido outro factor responsável pela fraca prestação da artilharia dos portugueses, pois «los moros acercarsenos que no lo deron lugar al campo de reposar ni hacer trincheras ni cestones para la artileria porque arremetieron luego»2. Para além disso, a investida dos mouros à retaguarda dos cristãos impediu o exército de construir a «ordem» prevista. Como foi atrás referido, a disposição das tropas não correspondeu ao que havia sido planeado pelo rei, e que previa o exército escalonado por duas linhas, em «forma prolongada», a ordem mais indicada pela teoria militar para combater um inimigo com superioridade numérica. Se os «terços» de Vasco da Silveira e João Bezerra formaram num único «esquadrão» como planeado, na «retaguarda» do exército a falta de tempo precipitou os acontecimentos, impedindo que se «incorporassem» os dois «terços, por já virem os Mouros carregando por costas e lados»3.

De seguida, passou ao direito da vanguarda, na «mão direita onde estava o duque de Aveiro com muitos fidalgos (porém os mais de eles, ou quase todos mancebos) depois de lhe louvar muito a ordem em que o duque os tinha postos lhe disse que se não bulisse daquele lugar, sem que ele da sua própria boca lhe dissesse.»6 O combate propriamente dito começou na retaguarda, pois «os mouros que haviam muito bem considerado haver mais fraqueza na retaguarda, começaram primeiro a pelejar nela»7. Uma vez mais se assiste à prática da prática militar otomana: cercado o inimigo, multiplicam-se os ataques parciais, induzindo o inimigo a dispersar esforços de forma a impedir um contra-ataque concentrado. Iniciada a batalha na retaguarda do exército com o ataque da cavalaria que havia cercado os cristãos, o rei acudiu à refrega para animar os soldados, «dar calor à gente», nas palavras da época: El-Rei, o qual vendo a escaramuça, como andasse tão desejoso de pelejar, acudiu com seu guião somente que levava D. Jorge Telo e Cristóvão de Távora, a dar calor à gente de Diogo Lopes de Sequeira e Francisco de Távora, onde aos primeiros recontros lhe mataram um cavalo.8

Enquanto a artilharia dos dispara, D. Sebastião – «neste tempo andava por todo o campo (...) como se já começasse a batalha, e as bombardas fizessem o seu ofício» – dirige-se ao seu esquadrão onde dá as últimas indicações, mantendo a coesão até ao momento de desencadear da ofensiva, «determinando parecer escolher o melhor tempo para isso»4: El-Rei (...) foi ao estandarte da gente de cavalo que à banda esquerda estava (...) e lhes disse (falando particularmente com D. Luís de Meneses, alferes-mor) que sob pena do caso maior ninguém se bulisse daquele lugar, nem se abalasse o estandarte, senão quando ele em pessoa o mandasse.5

Os inimigos aproximam-se «os Mouros Andaluzes, e com mais esquadrões de pé e de cavalo que vinham furiosos, ao encontrar os cristãos»

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 105

1

Luís de Oxeda, op. cit., p. 32. Esteban Rodríguez Amaya, op. cit., p. 4. 3 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 66. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid. 2

6

Id.,ibid. Id, ibid. 8 Id, ibid, pp. 67-68. 7

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A imobilidade do exército português incita os seus adversários a aproximarem-se. Os andaluzes encontravam-se na frente do exército mouro, talvez com excessiva confiança (Imagem 45). Na frente de ambos os campos «se começou entre uns e outros a jogar a arquebuzaria, e em começando esteve o negócio por um tempo igual»1; os atiradores mouros seriam mais numerosos, mas na vanguarda cristã encontram-se os soldados mais experientes, em particular os atiradores da guarnição de Tânger, que facilmente equilibraram a situação a favor dos portugueses. Por seu lado, tendo o rei verificado que na retaguarda as tropas davam boa conta de si, regressa à sua posição inicial na vanguarda, na primeira linha do esquadrão de gente a cavalo da mão esquerda. Chegado à frente do exército, D. Sebastião é confrontado com os pedidos insistentes dos aventureiros, dos quais se destacava «Jorge Albuquerque, que estava na pri i fi i ’E -Rei, que começou a altas vozes a dizer-lhe que desse Santiago, antes que os mouros dessem outra carga»2. Vários cronistas, como Frei Bernardo da Cruz, fazem menção aos pedidos de alguns fidalgos para que o rei desse ordem de atacar, como «Pêro Peixoto, que andava solto, discorrendo pelo campo, dando recados»3, na iminência de uma nova salva por parte dos adversários. O rei decide então ordenar a D. Duarte de Meneses, que estava na mão direita e portanto no lado oposto, que iniciasse o ataque – «começasse a pegar nos Mouros devagar» – de forma a coordenar os esforços da cavalaria nas duas «alas»:

devagar (...) mas nem este recado chegou a D. Duarte, nem outro que lhe já el-Rei tinha mandado por Sebastião Gonçalves Pita.4

O tempo passa sem que o rei tenha notícia de que a ordem tenha chegado a D. Duarte de Meneses, protelando assim o ataque. Sucedemse os disparos da artilharia e descargas de arcabuz, dificultando cada vez mais a visibilidade na vanguarda do exército português: Porque o campo estava tão cego e os batalhões da gente de cavalo de elRei tão divididos e tão confusos, que já se viam mal uns aos outros e primeiro se baralhou tudo que nenhum deles achasse D. Duarte (...) porque o pó e fumo da sua5 nos tinha tirado a vista.

De facto, a troca de fogo que inicialmente teve lugar entre os dois exércitos poderá ter estado na origem do extravio dos dois mensageiros enviados a D. Duarte de Meneses, podendo mesmo ter sido atingidos fortuitamente. Em todo o caso, o facto é que D. Sebastião esperou, em vão, pelo regresso dos dois homens adiando o início do ataque, impedindo uma investida concertada de toda a vanguarda do exército. 2.1 A vanguarda: «a gente mais escolhida e honrada» «No qual tempo no esquadrão dos aventureiros, pretendendo eles ir ganhar a artilharia dos mouros, requeriam alguns ao capitão que os mandasse arremeter, porque os alcançavam já muitos pelouros e Bernardim Ribeiro Pacheco lhe bradou alto, da primeira fileira, que acabasse de dar Santiago, porque não estivessem a morrer assim inutilmente.»

Nesta conjunção, falou Pêro Peixoto alto para el-Rei, dizendo que visse sua alteza quem nos havia de mandar, porque aquelas bombardas que atiravam já eram nossas, dizendo isto pela artilharia inimiga el-rei respondeu que fosse dizer a D. Duarte de Meneses que começasse a pegar nos Mouros

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 193.

1

Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 67-68. Id,. Ibid., p.76. 3 Id, ibid. 2

4 5

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'el-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 192-193. O autor refere-se à (sua) artilharia dos mouros.

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Imagem 45 – Os combates iniciais entre as vanguardas dos dois exércitos a. Abd al-Malik aguarda que o adversário fique ao alcance da artilharia

b. Pelas 10.00h da manhã, o disparo de uma “ g ” á i de ataque; Os arcabuzeiros a cavalo investem, seguidos pelos arcabuzeiros andaluzes e gazulas

Os cavalos que haviam rodeado o campo cristão atacam a retaguarda inimiga. Cerca das 11.00: Ataque da vanguarda e retirada dos inimigos Os soldados do esquadrão dos aventureiros, ansiosos por atacar os inimigos que se encontram mesmo na sua frente alvejando-os continuamente, gritam para que se dê a ordem de ataque, sendo contidos a muito custo pelo coronel do «terço», Álvaro Pires de Távora,

que «com uma alabarda nas mãos» ameaçava os companheiros «que mataria o primeiro que se desmandasse»1. Não era possível, contudo, conter por mais tempo os aventureiros. Eram soldados veteranos, antigos capitães da Índia ou Marrocos, e fidalgos altamente moralizados Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'el-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 194.

cuja excitação atingia o auge por assistirem inactivos à intensa troca de tiros, aom mesmo tempo que tinham os inimigos tão perto da sua posição. Por volta das onze horas, os acontecimentos precipitam-se: Dado o sinal da batalha remetemos aos inimigos, que também se vinham chegando a nós, cingindo sempre o nosso campo, que parecia muito piqueno, ou nada em sua comparação, assim por eles serem muitos, e largos, como nós poucos, e juntos.1

O ataque da vanguarda inicia-se com os andaluzes, induzidos pela suposta passividade dos adversários, se encontravam perigosamente adiantadospara além do apoio da segunda linha, situação que lhes será funesta, como se verá.

aquilo que seria uma impressionante floresta de cerca de 125 lanças, cada uma com mais de 5 metros de comprido4: Los de la vanguardia, terciando las picas, empeçaran a caminar a passo tirado la buelta de los moros, que todavia estavan firmes en su puesto, aguardando a ser acometidos.5

O «terço» dos aventureiros, saliente em relação aos restantes «esquadrões», será a ponta da lança da investida (Imagem 46). Imagem 46 – Os aventureiros, «cujo rosto havia de sair um pouco adiante dos outros esquadrões»

Neste tempo o esquadrão dos ventureiros, e os mais que dos lados o seguiam, depois de dispararem toda a escopetaria com grande ímpeto e valor nos mouros, que da mesma maneira haviam disparado a sua, começaram a caminhar, derribando e matando com tanto furor e ousadia os mouros arcabuzeiros de pé, que estavam sem piqueiros que os defendessem.2

Assim, e aproveitando o resultado favorável desta troca de tiros, os «Aventureiros» iniciam a marcha em direcção aos mouros, seguidos dos outros esquadrões da vanguarda. Ordenados em «forma prolongada», os soldados dos três «esquadrões» da «vanguarda» avançam a passo com os «piques terçados» – em posição horizontal para acometer3 – apresentando numa frente com mais de 100 metros 1

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 129. Jerónimo de Mendonça, op. cit, v. 1, p. 68. 3 «El calar y terciar de las picas para pelear, há de ser de suerte que quede el soldado firme de pies, que es lo que hace el caso para el bote de ella; y se há de aferrar la pica g fi ;y i (…) tiene aferrada com la mano izquierda, hasta el cuento haya sete palmos, que si demás 2

atrás la toma no podrá sustentar por gallardo que sea, y le quedan de hueco 18 palmo por lo menos, que no ha de haber pica de menos de 25 palmos» (Martín de Erguiluz, op. cit., p. 166). 4 Como já se referiu, as ordenanças de 1574 estabeleciam para comprimento dos piques «24 palmos ao menos», ou seja, cerca de 5,4 m. 5 Luís de Oxeda, op. cit., p. 34.

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D. Sebastião apercebe-se que os «aventureiros baixavam os piques para arremeter»1. Sem notícia de que a ordem de ataque tenha chegado a D. Duarte de Meneses que se encontra do lado oposto, na mão direita do exército, o rei decide-se atacar imediatamente em apoio dos soldados que acometem:

e bandeiras derribadas»4. À semelhança do fogo de artilharia lançado dos baluartes que avançam da cortina, estes cavalos formados em «esquadrão quadro de gente abriram largas ruas»5 nas formações inimigas. O médico de Abd al-Malik, que se encontrava no centro do exército do xarife, assiste a esta violenta arremetida dos cristãos:

A cavalaria, rompendo com grande fúria, deu nos mouros com tanto ímpeto, que os abria por todas as partes, matando e ferindo quantos achavam diante com pouca resistência, que por carecerem muito de armas defensivas, podiam mal sofrer o ímpeto da cavalaria de el-Rei, muito bem armada e encavalgada em cavalos espanhóis maiores e mais esforçados que os mouriscos e muitos deles acobertados, cujos encontros não ousavam esperar os mouros de cavalo, dando lugar aos nossos por onde quer que os cometiam, obrigando também a se retirar uma grande cópia de atiradores de pé que traziam diante, fazendo meter os arcabuzeiros muito adentro da cavalaria, com morte de muitos deles e também de alguns dos nossos.2

Empesaron de una parte y de otra a pelear reziamente, y nuestra gente de a caballo, los de verguença, con los acubertados de los cristianos. Acodio a nuestros lados, derecho y esquerdo, de los cristianos ciertos esquadrones tan reziamente que nuestra gente, asi de pie como de a caballo, se retraxeron fasta detrás de las banderas del Rei; que seguieron la vitoria por aquella parte en donde nos estavamos. Y crea V. Md. Que nos perdiamos.6

Nas «alas» do exército adversário, encontravam-se os cavalos que deveriam apoiar as tropas a pé que se desdobravam no centro. Os cerca de 1000 mouros – Oxeda adianta o triplo, «3.000 moros de a cavallo, que a dos lados yvan»3 – que se encontravam na «ala» direita do exército marroquino, e que eram comandados pelo irmão de Abd alMalik, frente à fortíssima carga da cavalaria comandada por D. Sebastião são postos em fuga, «de maneira que em toda a parte por onde a nossa gente de cavalo passou, ficou o campo coberto de mouros

1

Crónica do xarife Mulei Mahamet e d'el-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 193. Id., ibid. 3 Luís de Oxeda, op. cit., p. 35. O autor da Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique confirma o número de Oxeda, «a ambos os cornos da lua pôs de resguardo um esquadrão de três mil cavalos». (Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 96). 2

O ataque dos cavaleiros do rei, efectuado quanto se iniciava o avanço dos aventureiros, deixou o campo desimpedido, permitindo a progressão dos «esquadrões» da vanguarda. No extremo direito do exército, O duque de Aveiro ainda não se teria apercebido de que o ataque havia sido desencadeado. Contudo, «os mouros (ganhando terra aos tudescos) chegaram-se muito ao batalhão do Duque, cometendo-o mais ao ginete que de rosto»7: «estando ainda firme o esquadrão do Duque, antes de dar Santiago, veio dar nele um pelouro de bombarda, que matou o cavalo a António Pereira, na primeira fila e outro foi na quarta matar o seu a D. Diogo de Meneses, filho de D. Fernando»8. 4

Os cronistas são unânimes quanto ao efeito do ataque da cavalaria portuguesa, em particular do esquadrão real na «ala» esquerda do exército. Oxeda relata a carga comandada por D. Sebastião, «con su caballería, cargo otra vez sobre ellos, y con tanto valor y impeto los rebatio, que en lugar de hacer el socorro a que venian, los hiço rotos volver a la par los rostros y riendas huyendo» (Luís de Oxeda, op. cit., p. 35). 5 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 76. 6 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 317. 7 Id, ibid. 8 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 197.

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Sem conhecimento das ordens do rei, o Duque toma a iniciativa e carrega com o seu «esquadrão» sobre os contrários que se aproximam. No exército muçulmano, vive-se uma situação crítica. Com a cavalaria em debandada frente à carga dos cavalos acobertados do rei, desorganizado assim o seu flanco direito, sofre agora a pressão do ataque da vanguarda dos cristãos sobre o centro do exército que se encontra perigosamente desapoiado. De facto, a investida da vanguarda dos cristãos – precisamente onde se encontram os soldados inimigos de maior valor – parece imparável; após os aventureiros iniciarem a sua investida, seguiram-se o «terço» dos soldados castelhanos situados à sua esquerda, e depois os alemães do lado direito: De forma que este primero y principal cuerpo de nuestro campo llegó desigual a los contrários, aunque com mucho valor, pues, del pel primer buelo y assalto metieron en huida las dos hordenes de Açuagos y Guiçules1, ganandoles las banderas.2

Os mouros, ao ver que as descargas dos seus arcabuzes não detêm os soldados cristãos, tendo avançado para além do apoio da segunda linha não resistem ao avanço da muralha de piques que se aproxima, retiram, permitindo que o ataque dos adversários se desenvolva. E com tal fúria com as picas baixas, os investimos, que os arrancamos, fi f gi i Fé ’ partes mais e menos longe com muito dano, e estrago que receberam de nossa arcabuzaria, que era como disse destríssima, e tirada dos nossos lugares de Africa.3

Os aventureiros, moralizados por ver os mouros na sua frente em retirada, e certamente por ver o rei à frente da cavalaria a romper os contrários pelo lado esquerdo, redobram os esforços. Os soldados nas fileiras da frente aceleram o passo e, adiantando-se em relação aos demais, precipitam-se já de espada na mão sobre os contrários; a retirada dos mouros começa a converter-se em princípio de debandada. Ya en este primer ímpeto y acometimiento, huvo de los de nuestra parte desorden, porque los fidalgos portugueses aventureros, por querer por bizarria aventajarse de los castelhanos en llegar primero a los enemigos, deshiçieron sus esquadrones (...) de maniera que, viendo nuestros soldados que yvan por delante la vanguardia de los moros deshecha, no siendo tiempo aun dello, empeçaron a usar de las espadas y a entrarse esgrimiendola sin lisençia ni orden por la de los enemigos, que de miedo, o caso de industria les davan e ello lugar.4

Adiantando-se no terreno, os soldados das cinco primeiras «fileiras» do «terço» dos «aventureiros» alcançam finalmente os mouros em retirada, envolvendo-se imediatamente em luta corpo-acorpo; segundo Bernardo da Cruz, «o primeiro que empregou sua alabarda com morte de um mouro, que vinha pêra ele com um arcabuz, foi João de Mendonça Furtado»5. A alabarda era arma dos oficiais dos terços, que normalmente seguiam na frente da formação, pelo que este deve ter sido, de facto, um dos primeiros «aventureiros» a confrontar-se com os mouros. Assim, ao mesmo tempo que os cavalos comandados por D. Sebastião faziam debandar os inimigos, também os «aventureiros, que se tinham encontrado com os mouros, fazendo e recebendo cruel estrago, levavam também os africanos de vencida à lança e espada»6.

1

O relato de Oxeda não é concordante com outros cronistas, que dão os soldados «Azuagos» por detrás dos «andaluzes», e os elches na retaguarda dos «Gazulas». 2 Luís de Oxeda, op. cit., p. 35. 3 Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 129.

4

Luís de Oxeda, op. cit., pp. 34-35. Frei Bernardo da Cruz, op. cit., p. 77. 6 Id, ibid. 5

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Enquanto os mouros cedem terreno frente aos aventureiros, os restantes terços progridem também pelo terreno. Toda a vanguarda do exército português desenvolve um movimento ofensivo, embora sofrendo o fogo dos adversários, «porque os inimigos todos eram mosqueteiros, que ao perto e ao longe faziam muito dano, os aventureiros o receberam maior, por se meterem muito pelos esquadrões contrários, caindo muitos mortos»1. O ataque da vanguarda e alas, onde se encontrava a «gente mais escolhida e honrada» do exército cristão, precipitou a retirada de toda a frente dos adversários: Os castelhanos, tudescos, e italianos vizinhos dos lados dos aventureiros, com os soldados de Tânger, que estavam em mangas, animados com igual esforço, arremeteram juntamente, com espanto dos inimigos, em que, com notável vantagem para os cristãos e cruel estrago dos mouros, começaram os africanos a retirar-se, com evidentes sinais de vitória dos cristãos.2

De facto, a cavalaria do flanco direito havia sido posta em fuga pela violenta carga do esquadrão de cavalos de D. Sebastião, e as reservas encontravam-se empenhadas no combate com a retaguarda dos portugueses; o exército sádida encontrava-se assim à beira da derrota. Abd al-Malik, ao presenciar a retirada dos soldados da dianteira do seu exército, procurou ainda reestabelecer a ordem. Tentando montar a cavalo, «puso sobre los estribos y puso mano a la escada; y tomole un tremor que cerro los dientes perdio el sentido y la vida yuntamente»4. Os aventureiros, já moralizados pela retirada dos mouros, assistem agora, exultantes, a esta cena dramática, conforme relata Miguel Leitão de Andrada que se encontrava na terceira fileira do esquadrão: Aclamando: vitoria, vitoria, vitoria, e logo acrescentando, vitoria, vitoria, vitoria, o Maluco morto. Com a alegria, e alvoroço, que podeis cuidar, indo com esta mesma fúria, e vitoria, até quase da artilharia dos mouros vendo ir nossos inimigos, uns sobre os outros fugindo desordenadamente, e morto o Rei nosso inimigo.5

A morte de Abd al-Malik O centro do dispositivo dos mouros foi perfurado. Abrindo caminho por entre os mouros que ainda resistem, perseguindo aqueles que fogem, os aventureiros aproximam-se do topo da colina onde se encontram os canhões dos contrários; um pouco adiante está a liteira de Mulei Abd al-Malik. É um momento crítico para os muçulmanos, conforme nos descreve o médico judeu do xarife:

Os aventureiros que se encontram na frente, que «estiveram como a vinte palmos da sua artilharia»6 – portanto bem perto do local onde se encontrava Abd al-Malik, situado um pouco mais atrás – «crêem» mesmo que a sua morte se deveu ao disparo de um arcabuzeiro cristão dos que integravam as «mangas» em guarnição deste «esquadrão»: Tenho por certíssimo que o matamos, e o achou algum pelouro dos nossos arcabuzeiros, junto da liteira onde vinha a cavalo, dizem mal disposto, como o viram os nossos dianteiros que quase a ele chegaram, e vimos todos o rebuliço de sua morte, e levarem-no em braços, por sinal com mangas verdes, que me pareceram de veludo reclamadas.7 (Imagem 47)

El Rei vido su gente rompida, y miro a una parte y a otra, y vidose detrás de si sin gente de cavallo, que havian esparsido por miedo de las bombardas, por algunos dellos ser ydos a pelear.3 4 1

Frei Bernardo da Cruz, op. cit., p. 77. 2 Id, ibid. 3 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 317.

Id, ibid. Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 129. 6 Padre Amador Rebelo, op. cit., p. 539. 7 Miguel Leitão de Andrada, op. cit. 5

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Imagem 47 – O ataque e retirada da vanguarda do exército português

a. A “f

” “v

” formatura linear

b. A retirada da vanguarda: O desmembrar de uma forma de natureza ofensiva

Os aventureiros (A) atacam apoiados por uma violenta carga dos cavalos comandados pelo rei, que põe os inimigos em fuga (C); o resto da vanguarda desenvolve este movimento ofensivo (B); forçando o andamento, as cinco primeiras fileiras de aventureiros (1) estão agora sobre os canhões inimigos.

O coronel dos aventureiros é atingido, provocando a desorientação de alguns oficiais que ordenam a retirada, deixando as cinco primeiras fileiras (1) isoladas no centro do dispositivo inimigo; apercebendo-se da situação, alguns alcaides reunem a guarda pessoal do xarife e contra-atacam (D).

Consternado pelo desbarato das suas tropas, Abd al-Malik acaba por sucumbir, talvez atingido pelos cristãos que se encontram a escassos 20 metros da liteira ou, como alguns cronistas sugerem, com uma síncope (D). São cerca das 11.30 da manhã.

Os restantes terços da vanguarda que progrediam atrás dos aventureiros (B) são agora «apertados pelos inimigos», e precipitando-se uns sobre os outros acabam por desordenar a segunda linha do exército (C). Estamos perto do meio-dia.

No campo muçulmano, morto Abd al-Malik, os seus alcaides mais próximos tentam desesperadamente encobrir a morte:

se pasaron a nuestros, diziendo a bozes: «Adelante cristianos, que buestra es la vitoria porque El Maluco es muerto».5

Mostapha Pique, Alcaide o capitan de su guardia, con el menos rumor que pudo, lo metio dentro las andas que solia benir, que ali estavan, cubriendolas com un lienço com que las solian cobrir.1

A agravar a situação, os irregulares que assistiam ao desbarato assaltam a bagagem do seu próprio exército:

Todos os cronistas mencionam o encobrimento da morte de Abd al-Malik. Na Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, confirma-se o óbito: «entrando no andor expirou, o que os Renegados de sua guarda com grande lealdade encobriram, lançando sobre o seu corpo um pano, e pondo em um postigo do andor, tendo o outro cerrado, um moço que avisava como que por ordem do Maluco, o que se devia fazer»2. Também o médico do xarife refere a dissimulação: Acodi yo luego, y, viendo que estava muerto, logo de improviso lo hize entrar en la litera, diziendo que estava desmaiado. Fingi que le dava que beber. Cobrile la cara, porque não sentisse la gente tan gran mal»3.

Embora a morte do xarife passasse quase despercebida, mas na confusão que se instalou, cerca de «oito ou nove mil Andaluzes, vendo como a cousa ia em favor nosso, estiverão quasi determinados para se lançar da nossa parte»4; alguns dos «elches» passam mesmo para o lado dos cristãos, trazendo a notícia da morte do xarife Abd al-Malik: Mas no pudo ser esto tan secreto que, entendido bien lo que era, los renegados de la guardia, que alli yvan, dandose ya por perdidos, algunos

Los Fecis todos huieron y no pararon hasta Feez; y juntamente huieron algunos 3 o 4.000 alarves, y pasaron por nuestras tiendas, y empesaron a robar, diciendo que veniamos rotos. Por donde se llevanto la mayor parte de la gente y huieron camino de Fez.6

Confirmando o assalto à bagagem, Luís de Oxeda acrescenta que «los Alabes» – referido-se aos mouros que assistiam de longe ao combate – «como lo tienen por uso quando se veen perdidos, llegados a i ’E M ». O genovês «Alcaide de la Almahala, que así dicen a su campo», ainda tentou resistir ao saque, maspouco depois juntou-se aos fugitivos, «empeçando a cargar la recamara del Moro para huir con ella, y desnudándose el trage que tenia, poniéndose otro mas pobre, para encubrir la qualidad»7. Chega-se agora ao momento decisivo da batalha, numa altura em que a sorte do combate pende indiscutivelmente para o lado dos portugueses. O batalhão de acubertados comandados por D. Sebastião destroçou os seus adversários, pondo em fuga todo o lado direito dos mouros cujo comandante era o próprio irmão do xarife – o futuro Almansor – da mesma forma que no lado esquerdo os cavaleiros comandados pelo duque de Aveiro «deram logo todos com tanto ímpeto

1

5

2

6

Luís de Oxeda, op. cit., p. 36. Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 104. 3 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 317. 4 Simão da Cunha, «Extraits de la Relation de Simão da Cunha», in Les sources inédites pour l’histoire du Maroc, op. cit., p. 660.

Luís de Oxeda, op. cit., p. 36 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 321. Conestaggio e Oxeda confirmam o asslato da bagagem dos mouros por «alarves», soldados irregulares. 7 Luís de Oxeda, op. cit., p. 36.

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nos mouros, que os fizeram retirar a costas viradas»1. Abd al-Malik, vendo as suas tropas em fuga, acaba por desfalecer ao tentar impedir o desastre, vítima de colapso ou de um disparo. As primeiras fileiras de aventureiros, tendo-se destacado do resto do terço e abrindo caminho por entre os mouros em fuga, estão agora mesmo em cima da artilharia contrária, à vista da liteira para onde vêem levar o corpo do xarife morto, nos braços dos alcaides da sua guarda pessoal. O coronel dos aventureiros é atingido «Neste comenos o esquadrão dos ventureiros que com estranho valor se havia de todos adiantados, chegou a ganhar a artilharia de mulei Maluco, e tão perto da liteira onde ele estava morto, que de cinco pendões que junto dela estavam foram tomados dois pelos portugueses, quando se levantou uma maldita voz que um capitão por nome Pêro Lopes que sargenteava o terço, infelicemente pronunciou.»

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 2, p. 70. Não encontramos unanimidade quanto ao momento em que o ataque da vanguarda é detido. Alguns autores, como Conestaggio e o médico do xarife, apontam como causa da retirada dos aventureiros o contra-ataque dos Elches, atrás dos quais se reagruparam os soldados da primeira linha. Também Luís de Oxeda refere a desordem em que se encontravam aventureiros, que depois de progredir no terreno mais do que seria aconselhável foram rechaçados pelo contra-ataque das reservas dos mouros. É, contudo, a própria relação do médico judeu que torna improvável esta versão dos acontecimentos, quando relata a morte de Abd al-Malik; esta terá ocorrido quando o xarife viu os seus soldados em fuga, «y miro de una parte y a outra, y vidose detrás sin gente de cavallo, que si havian esparcido por miedo de las lombardas, por 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 198.

algunos ser ydos a pelear»2, o que torna evidente que não existiam, em reserva, tropas disponíveis para reequilibrar a situação. Resta a hipótese de os mouros se terem de facto reagrupado, mas devido ao afrouxamento da pressão por parte dos aventureiros; e confrontadas as diferentes versões dos acontecimentos, parece plausível que tenha existido uma ordem de retirada dada pelo capitão Pero Lopes, embora Conestaggio, tal como o médico judeu do xarife, não mencionem qualquer voz detendo o ataque dos aventureiros. No caso do médico judeu a discrepância é perfeitamente comprensível uma vez que este se encontrava no campo contrário, enquanto Conestaggio parece confundir a imobilidade do «esquadrão» da batalha com a retirada do grosso do «terço» dos aventureiros. No entanto, todos os restantes cronistas referem unanimemente que uma ordem contraditória terá feito deter o ataque dos aventureiros, como nos relata Miguel Leitão de Andrada, que se encontrava precisamente nas fileiras do «terço» dos aventureiros que seguiam mais adiantadas: E indo assim com esta alegria aclamando a vitória: quando ouvimos aquele infausto, e para sempre lamentável, ter, ter, que alguma fúria infernal deveu de dar, pondo-se na boca (dizem) do Capitão Pero Lopes tenente do nosso Capitão dos ventureiros Álvaro Pires de Távora, irmão de Cristóvão de Távora grande privado deste Rei, que daria a tal voz por lhe parecer nos tínhamos adiantado muito do nosso campo, ou contentando-se de havermos quase ganhada a artilharia do inimigo, e com ela duas bandeiras (segundo depois ele me disse).3

Pero Lopes, «tenente do nosso Capitão», terá suspendido o ataque4 por «se achar ferido um fidalgo, de cuja obrigação era o dito 2

Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 317. Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 130. 4 É inequívoco que houve uma ordem de retirada, provavelmente dada pelo «capitão» Pero Lopes. Aliás tendo ele sobrevivido à batalha, o que se deduz do relato de 3

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capitão, que cuidou que com atalhar o brio dos soldados livrava de trabalho o fidalgo ferido»1. O sargento-mor dos aventureiros terá suspendido o ataque para acudir ao coronel Álvaro Pires de Távora, entretanto ferido com gravidade, «esforçando os seus diante de todos»2. Jerónimo de Mendonça e Bernardo da Cruz, ambos presentes na batalha, referem este incidente, o último com maior detalhe – «deu um pelouro de tiro de campo (que vinha em chapeletas) em uma perna de Álvaro Pires de Távora, capitão dos aventureiros, de que caiu, posto que não morto»3. Quando corre a socorrer Álvaro Pires de Távora, gravemente ferido por «um pelouro de tiro de campo» – uma bala de canhão – Pero Lopes ter-se-á apercebido de que estavam isolados no meio dos inimigos por os companheiros virem «caminhando ainda algum espaço mais atrás». De facto, tendo sido os aventureiros – «cujo rosto havia de sair um pouco adiante dos outros esquadrões» – a iniciar o ataque, estes adiantaram-se como refere Oxeda, «porque los fidalgos Portugueses aventureiros, por querer por bizarria aventajarse de los Castelhanos en llegar primero a los enemigos, deshiçieron sus esquadrones»4. Miguel Leitão de Andrada confirma que o «esquadrão todo não seguiu tanto adiante», dando a entender que os aventureiros não mantiveram a Andrada – «segundo depois ele me disse» –, é compreensível que não quisesse assumir uma situação que esteve na origem do destroço da vanguarda do exército português, como adiante se verá. O autor da Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique refere também que «é opinião geral que esta voz deste desditoso capitão foi causa eficiente ou principal de se quebrar a fúria dos portugueses que iam seguindo vitória ao tempo que foi ouvida» (Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 111). 1 Id, ibid. 2 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 70. 3 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 78. 4 Luís de Oxeda, op. cit., pp. 34-35. Jerónimo de Mendonça também confirma o adiantamento dos aventureiros.

coesão durante a arremetida, as «cinco primeiras filas» destacando-se no decurso do ataque, «caminhando quanto seriam dois jogos de bola»5, e que ficaram isoladas depois da ordem para a retirada: Saiu de entre os oficiais uma voz que disse duas vezes retira, retira. E a esse tempo se quebrou o esquadrão por detrás e, sem fazer mais detença, se começou a retirar, a qual retirada dos aventureiros foi a primeira causa do nosso desbarato e da vitória dos mouros, porque deu ânimo para voltar aos que viram fugir aquele terço, desamparando as cinco primeiras filas da dianteira.6

O ataque dos aventureiros foi assim suspenso na fase crítica, quando se iniciava a perseguição dos inimigos em franca retirada. A pressão é exercida por apenas cerca de duzentos e cinquenta homens7 sobre cerca de seis milhares de mouros se contarmos apenas com os andaluzes e gazulas da primeira linha; seria necessário que os restantes terços da vanguarda se lhes juntassem, para em conjunto transformar a retirada dos mouros em debandada completa. Com aquela maldita voz, ter, ter, paramos sem saber o para quê, ou porque, ou o que houvéramos que fazer, nem ainda o que se passava no nosso campo (...) e vendo os mouros que de nós arrancados iam fugindo desbaratados daquela banda.8

Contra-ataque dos mouros Interrompido o ataque, os aventureiros mais adiantados param em grande desordem, que rapidamente se agrava por seguirem sem o apoio 5

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 194-195. Id, ibid. 7 Conforme se viu atrás, as cinco fileiras dianteiras, a cerca de 35 homens por fileira, tinham à volta de 250 soldados. 8 Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p.132. 6

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das mangas de arcabuzeiros que guarnecim o «esquadrão»; encontramse agora isolados no centro do dispositivo inimigo pois o resto do «terço» retirou. Os castelhanos e alemães encontram-se mais atrás, sem possibilidade de dar qualquer apoio: Dando-lhe nós tempo aos mesmos que iam fugindo de ver nossa desordem em que ficamos com aquela maldita voz (o que eles me disseram em Fés conheceram no baralhar de nossos piques) fizeram vir ’ ó i i escopetaria1.

O desconcerto dos portugueses não passa despercebido. Os alcaides que acompanhavam o xarife são os primeiros que se apercebem da desordem dos cristãos. Um destes, junta mente com «el hijo de Zarcon Mahamet e yo y Muselin», congrega todos os soldados que encontrou em volta de «una bandera de Bezemin, que aquel dia avia venido con el Alcalde Mahamet Zarcon de Larache»2: Acometio reziamente a los Cristianos (...) y lo que mucho favorecio para isto fue ser el Rei muerto y no lo saber nadie, y nosotros irmos com el y con las banderas por delante, los elches de su guarda, alabarderos, y los piques.3

Este contra-ataque é desferido com as tropas mais escolhidas, nada menos que a guarda pessoal do xarife, que consistia em cerca de 200 arcabuzeiros «elches de su guarda», para além pelo menos 50 «alabarderos, e los piques»4, um efectivo idêntico aos cerca de 250 1

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p.132. Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., pp. 317-318. 3 Id., ibid. 4 Os «piques», ou «peiks», eram soldados turcos da guarda pessoal de Abd al-Malik. Segundo Heath, o sultão otomano dispunha de diversos tipos de soldados na sua guarda pessoal, «there were also special infantry guards, called the Solak (“L f 2

aventureiros que se encontravam adiantadose. Vendo esboçar-se uma reacção contra os cristãos, o alcaide Abrahem Sufian juntou-se, reagrupando a cavalaria para arremeter de seguida: E naquelle tempo carregou o Alcaide Abraham, com uma grande parte de cavalaria contra a de El-Rei que estava ia apoderado da artilharia dos inimigos, o qual nam podendo resistir o impetu e fúria de tantos, se retirou.5

Este episódio é relatado com maior pormenor na Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano: Acometeu Brahan sofiano com grosso número de cavalaria o esquadrão del Rei e achando os castelhanos e aventureiros portugueses desviados das mangas da arcabuzaria, rodeando-os, sem poder ser favorecidos, os fez em pedaços. E não podendo el Rei resistir ao encontro de Brahan, se apartou para a mão direita.6

Também os arcabuzeiros a cavalo comandado por Hassem da Macedónia7, se precipitam de novo na refrega, encarniçando-se contra os «aventureiros» mais adiantados: Os escopeteiros de cavalo de Maluco chegando-se aos esquadrões, como não havia quem os rebatesse, lhe davam por todas as partes

”) Peyk (“M g ”)» (Ian Heath, Armies of the middle ages, v. 2, Sussex, 1984). 5 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 108. 6 Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30. 7 O autor da Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique dá o mesmo nome, Hacem de Macedónia natural de Esclavónia, que é confirmado por Oxeda, Haçem da Macedónia; Conestaggio refere o nome de Osarin de Raguse.

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pesadas cargas de arcabuzeria, e apos huas duplicando muitas com que fizeram parar os portugueses.1

nuestros una terrible carga de escopeteria, tornando en un improviso a duplicar com outra.5

Aos cerca de duzentos aventureiros mais adiantados e que agora se encontram completamente cercados no centro do exército inimigo, «que ali ficaram sem bandeira, desamparados dos companheiros que voltaram, deixando-os sós, furiosamente apinhoados»2, nada mais resta senão resistir aos ataques sucessivos dos mouros, que para maior desespero os dizimam à distância com os seus arcabuzes.

Com a frente do «esquadrão» – que havia ficado cercada – desfeita por esta última descarga, os restantes soldados do esquadrão dos aventureiros que já se retiravam são agora fortemente pressionados pelos mouros, e precipitam-se desordenadamente sobre os castelhanos e tudescos que ainda progrediam um pouco atrás. Neste processo, também o «esquadrão» de cavalos do duque de Aveiro, que se encontra disperso depois de ter atacado impetuosamente os mouros, é forçado a retirar também ele sobre os alemães, de forma que todos estes soldados são empurrados sobre a mão esquerda do exército português:

Os de cavalos com muitas entradas a nós, que pelejamos a pé quedo recebendo quanto dano podeis imaginar, até que este nosso terço, ao menos a dianteira dele, dos ventureiros (porque todo não seguiu tanto adiante) foi todo desfeito, e mortos quase todos, sem nunca os Mouros se chegarem a nos medir connosco suas espadas.3

Os tudescos se foram misturar com os aventureiros e os do Duque com El-Rei (...) e a causa de virem assim os tudescos e a gente de cavalo, que vinha com o guião do Duque cair todos sobre a mão esquerda da banda del-Rei, foi porque o Maluco (tendo reconhecido melhor o nosso campo) determinou apear os arrenegados e andaluzes em quem confiava mais, aos tudescos que sabia serem temidos grandemente dos mouros, como gente com quem nunca pelejaram e de quem tinham grande reputação de forças e esforço.6

Finalmente os soldados renegados – os elches – que se encontram na segunda linha, depois de recolhidos os fugitivos, refazem as fileiras e disparam fortes cargas de escopeteria sobre os cristãos: Com esta retencion que los nuestros hiçieron, tuvieron lugar los Andaluçes y Renegados, a quien no yva menos que la vida el vencer, de sacar viva fuerça de animo de la desesperacion, y abrindo sus ordenes, recebiendo en elas los Açuagos y Guaçules4 que venian huyendo, todos juntos cerrados, hecharon sobre los

A vanguarda dos cristãos cede ao crescente número dos mouros que se vão juntando na perseguição aos «esquadrões» em retirada, em particular dos aventureiros, conforme nos relata Jerónimo de Mendonça: 5

1

Jornada del-rei D. Sebastião a África/Crónica de D. Henrique, p. 108. 2 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195. 3 Miguel Leitão de Andrada, op. cit., pp. 133-134. 4 Também os andaluzes na vanguarda tinham sido postos em fuga, pelo que a resistência oferecida pelo exército de Abd al-Malik terá sido suportada pelos Elches e Turcos.

Luís de Oxeda, op. cit., p. 37. O autor da Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique confirma que os Helches puderam recolher os seus que iam fugindo, e eles e os Azuagos fizeram rosto aos nossos, disparando uma grossa carga de escopetaria, com que os fizeram apartar de si (Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p.108). 6 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 198.

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Tanto que os ventureiros se retiraram e perdido o furor primeiro, sentiram em sangue frio mais advertidamente os males que receberam, lastimando-se aqueles que vinham feridos, e enchendo-se os mais de confusão, de modo ficaram desordenados que os mouros de cavalo que não se haviam acolhido (que todavia eram infinitos) vendo os seus de pé fazer outra vez rosto tornaram de novo à escaramuça, seguindo os desordenados ventureiros.1

Assim, confrontados pelos mouros que agora investem na peugada da infantaria, também os cavalos das «alas» são obrigados a ceder terreno; o esquadrão do rei, «se apartou para a mão direita procurando tornar-se a ordenar em o espaço que havia entre a vanguarda e a batalha»2, «mas não podendo sofrer a gente o aperto da cavalaria, se inclinou a defender a artilharia que conheceu intentavam ganhar-lha»3. Na sua retirada, estes cavalos acabam por ser empurrados sobre os «terços» dos castelhanos e dos aventureiros. Estes últimos, que retiram também perseguidos pelos mouros, são «agora entrados pelos» cavalos que recuam e acabam por «se irem meter pelos terços do esquadrão da batalha, que desbarataram totalmente, antes de os mouros se chegarem a eles»4. Disperso o «esquadrão» real, D. Sebastião acaba por chegar ao corpo da «batalha» – «los esquadrones de infantaria del Rey» – onde espera poder reagrupar a cavalaria na praça que havia sido deixada livre para esse efeito; é surpreendido ao deparar com o «esquadrão da 1

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, pp. 70-71. Duarte de Meneses também relata esta retirada, «habiéndose buelto a reacer los enemigos, volvieron acometer nuestra caballeria, de manera que, matando algunos, los hicieron retirar hasta los esquadrones de infantaria del Rey» (D. Duarte de Meneses, op. cit, p. 651). 3 Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30. 4 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195.

batalha» de «vinte bandeiras, que tinha perto de cinco mil homens»5, que aí se encontrava, em grande desordem: Quando El-Rei, da primeira volta, tornou a demandar os esquadrões, já os achou desordenados, de que ficou muito confuso.6

Sabendo os oficiais dos cavalos que a praça adjacente ao esquadrão da batalha se destinava a reagrupar os batalhões de cavalos, concentravam-se aqui as «três bandeiras de gente a cavalo, que era o estandarte e os dois guiões seu e do Duque»7; assim, vão chegando outros cavaleiros que, dispersos depois da primeira investida, regressam à vista dos guiões. D. António prior do Crato; um dos cavaleiros que acaba de regressar, traz a notícia da morte de Abd al-Malik: O senhor D. António foi o primeiro que começou a publicar esta nova, vindo sem lança com a espada ensanguentada na mão, dizendo «não é nada, não é nada, que o Maluco é morto», porém e no próprio instante apareceu também ali o bailio Pero de Mesquita, capitão de artilharia e com ele o comendador Jerónimo da Cunha, muito ferido, com uma grande cutilada pelo rosto; e ambos lhe pediram que mandasse socorrer a artilharia que se perdia.8

Tendo reunido os cavaleiros que se iam recolhendo ao estandarte real, «que seriam desta segunda volta pouco mais de duzentos a cavalo»9, D. Sebastião de novo «se lançou entre os mouros que estavam sobre ela pelejando, com tanto valor, que com muito dano dos inimigos lhe fez logo largar a presa»10. Também na Relação de D. Duarte de

2

5

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195. Id, ibid, p. 196. 7 Id, ibid. 8 Id, ibid. 9 Id., ibid., p. 197 10 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 2, p. 72. 6

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O Duque procurava ordenar a cavalaria dividida pela partida del Rei, a quem tinha seguido a melhor e mais escolhida; porém, com a que ficava fez uma grande prova de assinalado cavaleiro e com ele de mistura D. Duarte de Menezes5, com quem ficou um pequeno corpo de soldados e procuravam ganhar-lhe a artilharia mas em vão porque a multidão dos inimigos era inumerável.6

Menezes se refere esta segunda carga de D. Sebastião à frente da cavalaria portuguesa, «bolbiendo sobre los enemigos, les dieron otra carga mas corta y mataron muchos dellos»1. Com os mouros em fuga por mais uma furiosa investida, o rei chega à artilharia onde «achou já com ela ao Duque de Aveiro e ao Xarife Hamet que com a cavalaria da mão direita a defendiam»2. Como vimos, esta cavalaria vinha desviada da mão direita do exército3, empurrada pelos azuagos que se encontravam nesse mesmo lado, e que em virtude da retirada geral dos «esquadrões» da vanguarda pressionavam agora os seus adversários. 12.00h: O destroço da vanguarda do exército português «E já neste tempo, que seria pelo meio-dia, era tudo desfeito, e acabado aldemenos em grande espaço ao redor donde me achava.»

Aproveitando o facto de a pouca cavalaria que resta aos portugueses se encontrar dividida, com parte dela com o rei na retaguarda do exército, os mouros terão concentrado o seu ataque principal nos soldados que ainda se encontram na vanguarda. O Mestrede-Campo aponta para este esforço dos mouros a totalidade da infantaria da sua vanguarda, apoiada por uma quantidade significativa de cavalos, que confirmado pelas seguintes palavras de Oxeda – «tornando a chocar con todo su poder»7. D. Duarte de Meneses tomou parte, juntamente com o duque de Aveiro, na derradeira defesa da artilharia, pelo que a sua estimativa tem certamente crédito:

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 139. Inesperadamente, o rei é avisado de que os esquadrões da retaguarda do exército estão prestes a ceder aos ataques dos inimigos. Enquanto D. Sebastião, julgando que os inimigos «a entravam», para lá se dirige a toda a pressa, o duque de Aveiro e o Mestre-de-Campo Duarte de Meneses improvisam a defesa da artilharia, «tornando a hordenar la gente lo mejor que en aquel impetu se pudo»4, juntando os soldados que ainda se encontram na vanguarda, incluindo os aventureiros que sobreviveram à retirada do esquadrão. 1

D. Duarte de Meneses, op. cit., p. 651. Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30 3 Id, ibid. 4 Luís de Oxeda, op. cit., p. 38. 2

Volvieron sobre nuestra caballería con 2 mil arcabuces de refesco y con ellos, y con los 10 mil tiradores pelearon con nuestra infantería, y fue toda rota la infantería y caballería nuestra.8

Também Jerónimo de Mendonça relata o momento em que a vanguarda do exército português sofre o assalto final:

5

Também o autor da Jornada de África e Crónica de dom Henrique refere a presença do mestre de campo D. Duarte de Meneses com o duque, «juntando-se com o general dom Duarte de Meneses, e convocando assim os mais que pôde, tornou sobre os inimigos procurando-lhes ganhar a nossa artilharia, e ainda que nisso pôs muita força foi rebatido pela notável multidão dos mouros quer lho impediram» (Id, ibid, p. 112). 6 Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30. 7 Luís de Oxeda, op. cit., p. 38. 8 D. Duarte de Meneses, op. cit., p. 651.

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Desceram pois os grossos esquadrões dos inimigos por tantas partes sobre os portugueses, que os mais deles ficaram mortos no campo, e o duque de Aveiro não podendo sofrer com tão pouca gente o peso de tamanha multidão, se retirou de maneira que investiu forçado dos inimigos por uma parte do esquadrão dos tudescos, desordenando os piqueiros.1

A artilharia é perdida, e com ela tombam os oficiais encarregados do seu governo, «caído morto (depois de a ter defendido valorosamente) o seu general Pedro de Mesquita»2, que juntamente com «Jerónimo da Cunha, voltando sobre a artilharia, foram mortos na defensão dela, tardando pouco em se perder, fugindo primeiro os bombardeiros, sem acabarem de pôr fogo a todas as peças»3. Os portugueses ainda tentam, por mais uma vez, recuperar a posição onde se encontravam os canhões. O duque de Aveiro, «juntando-se com o general Duarte de Meneses, e convocando a si os mais que pode, tornou sobre os inimigos procurando-lhe ganhar a nossa artilharia, e inda que nisso pos muita força foi rebatido pela notavel multidam dos mouros que lho impediram»4. Também Jerónimo de Mendonça confirma que o duque de Aveiro, após se ter retirado sob a forte pressão dos inimigos, ainda faz uma segunda volta desesperada sobre os mouros, na tentativa de recuperar os canhões:

Neste último esforço feito em profundidade por dentro das linhas dos mouros, acabou o duque de Aveiro «perdendo a vida em tão pouco espaço»6; desfeita que ficou a formação em que se encontravam, os cavaleiros portugueses acabam por se ver «apertados da arcabuzaria dos andaluzes, quando se quiseram recolher»7: «O Duque, rodeado por uma parte, ficando-lhe o guião por outra, veio a pouco espaço a não se achar com mais que doze ou quinze de cavalo da banda direita, entre uma grossa espessura de mouros de cavalo e de pé, onde com aqueles poucos que o seguiam, pelejou com grandíssimo valor»8.

Finalmente, atingido numa perna com um tiro cai devido à violência do impacto, ficando à mercê dos inimigos que o rodeavam. O desbarato destes últimos cavalos em defesa da vanguarda do exército, deixa os soldados apeados sem qualquer protecção contra os ataques inimigos, em particular dos arcabuzes montados. Sem cavalos em apoio, desaparecem os melhores soldados de que o exército dispunha. A completar o destroço da vanguarda, morrem aqui a maior parte dos oficiais de nomeada que comandavam os esquadrões, entre os quais os coronéis dos terços estrangeiros: Neste tempo os aventureiros se estavam quedos e mal ordenados em seu retirado esquadrão feitos barreira aos escopeteiros de cavalo, sem lhe poderem fazer com os piques algum dano, porque remetendo com eles viravam num momento (...) aqui foi morto diante de todos o capitão

Depois disto perguntando por el-Rei com a pouca gente que lhe ficava, e com outra a quem persuadiu que o seguisse, entrou nos mouros outra vez.5

Alexandre; com grande esforço se defendeu muito tempo.9

1

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 75. Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30. 3 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 197. 4 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 112. 5 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 198. 2

6

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 75. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 198. 8 Id, ibid. 9 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 76. 7

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Para além do capitão Alexandre Moreira, também foi morto o coronel dos italianos, Thomas Stuckeley – ì f ’ palavras de Filippo Terzi1 – depois de na primeira investida os mouros lhe terem matado o cavalo; outro oficial de renome, D. Afonso de Aguilar, foi morto a combater juntamente com o filho, D. Pedro. Rompieron nuestra avanguardia, deshaziendola totalmente, matando en ella al primero lo marques Thomas de Estuelen, Maestre de Campo Alonso de Aguilar, y, sobre la artileria, el bailio Pedro de Mesquita y los capitanes Alexandro Baez y Gama; D. Antonio, Prior do Crato, quedo en prission, el capitan Aldana muerto.2

Entretanto, o rei voltava da retaguarda acompanhado pelo «embaixador de Castela e Critóvão de Távora, que o trazia pelo braço esquerdo, todos três sem lanças em três cavalos ruços, a tempo de que entre alguns soldados que ainda pelejavam daquela banda dos que ficaram da guarnição dos aventureiros», quando «se ouviu bradar que os mouros tomavam a pólvora»3. De facto, desfeita a vanguarda, os mouros facilmente chegariam à bagagem que se encontrava logo por detrás do esquadrão dos soldados castelhanos. O saque deveria ser conduzido por «grande multidão de bárbaros e alarves dos outeiros em redor»4. Ao se aperceber da situação, D. Sebastião investe imediatamente para «onde viu estar da mão direita um grosso tropel de mouros»5. Acompanhado por outros cavaleiros que se lhe juntaram nesta entrada pelo inimigo, ainda «deram tão denodadamente naquele batalhão grosso dos mouros, que os fizeram retirar um bom espaço, ficando muitos deles mortos no campo»6.

Num último esforço, os tudescos ainda aproveitam a retirada dos inimigos para se reagruparem perto do que restava das carretas da bagagem, onde os oficiais ainda conseguem refazer as fileiras com os soldados sobreviventes. El coronel Martim de Borgoña y sus Alemanes, que pudo recoger, y algunos Italianos Y otros soldados que se rehizeron sobre el baguage, tornando a calar las pieças, porque los enemigos le dieron lugar a ello, ocupados en robar.7

De novo reagrupados, os mouros acometem sobre estes poucos sobreviventes do que resta da vanguarda; o rei é obrigado a recolher-se à linha da batalha onde ainda se encontra o esquadrão comandado por Vasco da Silveira, enquanto a primeira linha do exército acaba por ser aniquilada, depois de morto o coronel Martim de Borgonha combatendo apeado com um montante nas mãos. O desbarato final da vanguarda do exército marca o momento em que os cristãos perderam definitivamente a iniciativa do combate e assumem uma posição defensiva, tentando resistir desesperadamente aos repetidos ataques dos adversários. Conforme nos relatam alguns cronistas, será também nesta ocasião – quando a batalha se inclinou definitivamente para o lado contrário – que parte dos mouros que inicalmente combateram ao lado dos cristãos desertaram, «no pudiendo a este punto menos escapar la vida, huyo, y sus Moros se enbolbieran i “viv i v ” 8.

1

7

2

8

Filippo Terzi, op. cit., p. 7. Luís de Oxeda, op. cit., p. 38. 3 Id, ibid. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid. 6 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 200

Luís de Oxeda, op. cit,, p. 39. Id., ibid. O irmão, que agora é Rei, nos correu Domingo com oito ou dez mil lanças, das quais segunda-feira se passaram de nossa parte 500, que depois nos foram todos traidores («Relação da batalha de Alcacer, que mandou um captivo ao Dr. Paulo Aº», op. cit., p.357). Também na Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem

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A prestação da vanguarda do exército cristão no conjunto da batalha foi naturalmente condicionada por diversos factores, desde as condições do terreno, o desenrolar dos acontecimentos ou a qualidade das gentes que a integravam. Contudo, um aspecto também crucial, que é geralmente descurado, prende-se com a disposição dos soldados no terreno – a «forma dos esquadrões».

para diante dos lados, sublinha o pendor ofensivo da vanguarda, em prejuízo de uma componente defensiva subjacente à linha recta. Não será por acaso que a vanguarda, ao inverter o movimento ofensivo termina a sua vida útil, desagregando-se a formatura com a retirada.

Os três «terços» da vanguarda deveriam ter sido ordenados em dois esquadrões, e o nesomo deveria ter sucedido na segunda e terceira linhas do exército, de que mais adiante nos ocuparemos. No seu conjunto, repetindo a forma quadrada de cada esquadrão para a configuração do exército, pode-se comparar este desenho ao que Erguiluz define como «escuadrón cuadro de terreno fortíssimo de dos centros y de grande conta e estilo, y de três naciones ensalada»1. Esta tipologia era apropriada para resistir ao ataque dos inimigos vindos de todos os lados, especialmente indicado para a guerra em África onde o elevado quantitativo da cavalaria inimiga levava a uma situação de cerco dos exércitos cristãos.

Subitamente disparo una carga de su artilleria, com que hicieron mucho dano de repente a los cristianos, que deste mal yvian descuidados, porque las pelotas vieron que havian despedaçado algunos hombres y cavallos; con lo qual cobraron tanto temor la maior parte de los nuestros, que poços huvo que no se tendiesen en tierra, dexando abandonados sus puestos; y no es de maravillar, porque los que esto hicieron eran gentes que nunca se avian visto en casos semejantes, ni salido de sus casas y lavores.»

Mas, como vimos, «não querendo consentir os aventureiros que os castelhanos se lhe juntassem»2, inviabilizado assim o planeamento inicial – aliás com a sanção de D. Sebastião –, passou-se de um desenho apropriado a desempenhar um papel defensivo e ofensivo, para uma situação em que a vanguarda do exército se destinava à ofensiva. De facto, «estando os aventureiors um tanto salientes sobre os restantes terços que lhe ficavam pelos lados», adopta-se uma figura geométrica próxima do triângulo – uma cunha – que curiosamente se encontra em desuso na época considerada. A figura triangular, projectando a frente Africano, se refere que alguns dos partidários de al-Mutawakkil, ao verem a batalha perdida pelos portugueses, se passaram para o lado contrário. 1 Martín de Erguiluz, op. cit., p. 157. 2 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 183.

2.2. A segunda linha do exército: «a gente bisonha»

Luís de Oxeda, op. cit., pp. 32-33. Os soldados da segunda linha do exército se revelaram como o contingente «de menor valor, por serem homens quase todos colhidos por força, sem vontade nem experiência»3. De facto, apesar de no dia anterior se terem movimentado com alguma presteza, formando um esquadrão na retaguarda e enfrentando os inimigos que por aí se aproximavam, a inesperada descarga dos canhões contrários terá intimidado estes homens que, pela sua inexperiência, nunca haviam sido confrontados com situações de guerra, em particular com o efeito do fogo das bombardas grossas do inimigo. Alertado para o terror que se havia apoderado das tropas, o rei terse-á dirigido à segunda linha do exército logo aos primeiros tiros, o que certamente contribuiu para que as tropas se mantivessem no seu lugar (Imagem 48). 3

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 77.

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Imagem 48 – Batalha: A gente bisonha «A gente de Vasco da Silveira e D. Miguel de Noronha, que era realmente a de menor valor, por serem homens quase todos colhidos por força, sem vontade e sem experiência, pelejavam no meio muito frouxamente, estando todos amontoados sem ousarem sair ao campo ajudar seus companheiros, por mais que seus capitães e coronéis os incitassem e movessem.» Jerónimo de Mendonça, op. cit., v.1, p.77

esquadrão da batalha são incapazes de esboçar qualquer reacção, «sem ousarem sair ao campo ajudar seus companheiros, por mais que os seus capitães e coronéis os incitassem e movessem»2. Os soldados tudescos, «lançados também da arcabuzaria dos andaluzes e arrenegados», «vieram cair sobre os aventureiros e castelhanos e assim juntos e embaraçados nas armas, prejudicando-lhe muito a impertinência dos piques»3. Assim, na sua retirada precipitada, os «esquadrões» da frente do exército «foram romper o esquadrão da batalha, metendo-se nele foram misturadamente e com tal ímpeto que uns e outros revoltos em fugida demandar os terços da retaguarda que ainda estava inteira»4. Os oficiais dos terços «não puderam atalhar que os que vinham desbaratados se não misturassem com eles»5, e por a praça de armas se situar pelo lado esquerdo do esquadrão da batalha, certamente induziu os soldados a abandonar a formatura abrigando-se por entre a carriagem que fechava o espaço vazio, tal como temia o capitão Aldana.

Aniquilada a vanguarda (A), os mouros convergem agora sobre a segunda linha, já fragilizada pela retirada dos terços da frente. Perdida a coesão da formatura, o esquadrão da batalha (B) fragmenta-se em várias bolsas de soldados que agora resistem encarniçadamente, defendendo-se atrás das carretas convertidas em redutos fortificados.

Estes homens, combatendo «no meio todos mui frouxamente, estando todos amontoados»1, vão testemunhar, pouco tempo depois, a a retirada precipitada dos esquadrões da vanguarda. Certamente aterrori zados com o espectáculo que se desenrola na sua frente, os soldados do

Desta forma, sendo o esquadrão da batalha constituído pelas tropas de menor valia recrutadas no reino, agravado pelo facto de estes soldados – intimidados pelo fogo da artilharia inimiga – se encontrarem «mui frouxamente» desde o início da batalha, as fileiras da dianteira são completamente desorganizadas pelos soldados da vanguarda em retirada. Assim nos relata o autor da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião ao acompanhar o coronel Vasco da Silveira «numa volta que quis dar ao esquadrão», e que por isso assistiu de perto ao sucedido: 2

Id., ibid. Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid. 3

1

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 77.

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Do qual desbarato sou testemunha de vista, porque me achei com o coronel Vasco da Silveira e o acompanhei numa volta que quis dar ao esquadrão naquele ponto, antes que a artilharia dos mouros começasse a jogar. E rodeando a galope, quando chegou ao rosto do esquadrão, já o achou de todo desordenado, com tamanha confusão, sem os mouros terem chegado a ele.1

A confusão em que ficou o esquadrão da batalha teve como consequência a falta de iniciativa demonstrada, a que todos os cronistas fazem alusão. Um deles, o autor da Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, relata a passividade destas tropas face ao desagregar dos esquadrões mesmo na sua frente:

destes combates, D. Sebastião acaba por ser ferido com um tiro de arcabuz, perdendo o cavalo nesse transe: Lo vide á pie con su espada en la mano desenvainada y com sus armas haciendo más que el Cid en sus tiempos y peleó muy valerosamente él y los hidalgos que levaba consigo y llegó un hidalgo que le dio un caballo.5

Ao procurar protecção na segunda linha do exército, o rei vê na sua frente a vanguarda irremediavelmente destroçada; entendendo que a refrega «que no era del todo perdida», pretende resistir junto do esquadrão da batalha, determinado a lutar apeado ao lado dos soldados:

Ainda estava em ordem o esquadrão da batalha porque tinha ordem o mestre de campo Silveira de não combater sem que lha desse El Rei, e ainda que via desbaratados os mais esquadrões, existia sossegado guardando uma inalterável obediência, que foi origem da grande parte da perda da Vanguarda e de Retaguarda.2

De facto, quando D. Sebastião decide deslocar-se em auxílio das tropas mais recuadas, «querendo também daquela volta o seguisse o coronel Vasco da Silveira com o seu terço»3, não consegue que os soldados atemorizados apoiem os companheiros. Mais tarde, quando regressava da retaguarda, o rei tem de abrir caminho entre os mouros que se precipitavam sobre a bagagem; «pelejou por um grande espaço com galhardo ânimo procurando romper a fim de chegar ao esquadrão da batalha, que ainda estava inteiro e sem mudança»4. No decurso

Mas quando llego y lo vio tudo perdido, no por esso mostro punto de flaqueça antes, arrimando al esquadron que estaba entero, diçen que se quiso apear, si, con ruegos, los suyos no se lo estorvaran, y asi el les dio a entender que las victorias las dava Dios a quien era servido y que no era del todo perdida la que tenia remédio; con esto, el, com las de que ali estavan, com mucho valor caminaron la buelta del enemigo, que no los havia venido a buscar, por estaren los moros todavia ocupados a robar el baguage.6

De novo a cavalo, D. Sebastião ainda investe uma última vez, fazendo recuar os inimigos; esta acometida acaba por consumir o que restava da cavalaria, mortos e dispersos os últimos homens. Sem protecção, os soldados do esquadrão da batalha ainda resistiram desesperadamente, seguindo o exemplo do «coronel Vasco da Silveira e o capitão Aldana que ali juntos se acharam, metendo-se pelos inimigos,

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195. Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 31. 3 Id, ibid, p. 111. 4 Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 31. 2

5 6

Esteban Rodríguez Amaya, op. cit., p. 5. Luís de Oxeda, op. cit., p. 40.

170

pelejando esforçadamente a troco de muitas mortes que deram a muitos mouros e cruéis feridas, acabaram as vidas»1. Sujeitos agora ao principal peso da ofensiva, os homens do esquadrão da batalha refugiam-se em desordem no meio da bagagem, aproveitando as carretas como redutos; D. Sebastião tinha mandado construir trincheiras portáteis e «um tipo de carretas, ciertas máquinas que sirvan de carros y de trincheas»2 e, como refere o médico de Abd al-Malik, «los Cristianos, viendose perdidos, hizieron reparos com los carros que traian»3. Assim entrincheirados, «a cada passo eram cercados dos inimigos», encarniçam-se «em defensão das vidas, trabalhavam então com novos espíritos defender-se com valor»4. Segundo relata Bernardo da Cruz, «mais duros foram alguns magotes de pouca gente de render, com mortes e captiveiro, do que foi serem desordenados, quando o corpo da batalha estava todo inteiro»5. O destroço da segunda linha completou-se pela explosão da pólvora que vinha nos carros da bagagem, certamente em consequência da pilhagem, «sem se saber se foi por acaso ou por outra via»6: (...) Puseram os mouros alarves fogo à pólvora dos cristãos que estava metida na carriage onde muitos se tinham acolhido, e com espantoso estrondo voaram muitos dos vencidos e vencedores.7

Embora os soldados incorporados do esquadrão da batalha fossem os de menor valor no conjunto dos efectivos do exército, a sua prestação acabou por ser afectada, em primeiro lugar, pelas circunstâncias em que se iníciou a batalha. O cerco prematuro terá impedido que estes soldados pudessem combater na mesma linha que os outros dois terços das ordenanças; desapoiados, a surpresa por serem alvejados pela artilharia contrária foi potenciada, intimidando-os irremediavelmente. De qualquer modo, a presença do rei junto das tropas logo no início da batalha, e a formatura do esquadrão – provavelmente em forma «prolongada» – poderiam ter mantido a coesão da batalha, «congregando», segundo a terminologia usada pelos trattadisti, os soldados num todo dotado de unidade. No entanto, a fuga da primeira linha do exército e a subsequente investida dos soldados que incorporavam a vanguarda por dentro das fileiras do esquadrão, determinou a irremediável situação de desordem em que ficou a segunda linha do exército. Será apenas no fim dos combates que estas «gentes que nunca se avian visto en casos semejantes, ni salido de sus casas y lavores», embora já sem esperança na vitória, «em defensão das vidas trabalhavam então com novos espíritos defender-se com valor»8. 2.3 Os «terços» da retaguarda

1

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 117. A relação do Homem Africano também assinala a morte de Aldana no esquadrão da batalha. 2 Cartas de D. Juan da Silva, op. cit., v. 29, p. 525. 3 Lettre d’un Médecin Juif a son Frère, op. cit., p. 318. 4 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 85. 5 Id, ibid, p. 86. 6 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 204-205. 7 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 127. Na Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião o autor adianta que esta explosão ocorreu «logo no princípio na ala esquerda, quando a vitória começou a inclinar-se da parte dos mouros» (Id, ibid, pp. 204-205).

«Naquela conjunção, o Alcaide Abrahem, por a isso lhe dar tempo largo o vagar com que os cristãos se ordenavam, acabou por se meter entre o rio e os portugueses, que era o intento e ordem que tinha o Maluco, e dali cometeram com grande fúria a retaguarda cristã.»

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 108. 8

Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v.2, p. 85.

171

Ainda antes de se iniciarem os combates, mal o exército português ficou à vista do campo adversário foi rodeado pelo contingente que se encontrava nas pontas do dispositivo organizado por Abd al-Malik. Iniciada a batalha com o disparo da «bombarda grossa», logo os cavalos mouros se infiltraram pela mão esquerda, atacando a retaguarda do exército português, enquanto na direita a proximidade do rio e o desdobramento da cavalaria contrária terá impedido a plena concretização de um movimento idêntico (Imagem 49). Informado do ataque à retaguarda, e dado que na frente ainda se procedia apenas a uma troca de disparos da artilharia e arcabuzes, o rei acorreu aos terços de Francisco de Távora e D. Miguel de Noronha.

integravam o terço de Francisco de Távora, «que sustentou com grande valor aquela parte»2. Imagem 49 – Retaguarda: A gente acostumada aos rebates «Francisco de Távora, que, da gente bisonha, tinha a de Alentejo e Algarve, que são homens de muito esforço.» Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v.2, pp. 84-85

Dos soldados levantados no reino, aqueles que integravam os terços que combateram na retaguarda foram os que ofereceram maior resistência, quer pelo valor da gente que os integrava, quer pela acção do seu comandante, Francisco de Távora. A atestar a determinação com que o coronel Francisco de Távora comandou o seu terço, Frei Bernardo da Cruz relata o seguinte episódio: Com tanto esforço e acordo pelejou Francisco de Távora aquele dia, que, além de fazer muito dano aos inimigos, vendo um alferes seu, que, com animo vil e cheio de medo tentou buscar a salvação nos inimigos, por comutação de um baixo oferecimento da bandeira, que lhes ia entregar, arremeteu o coronel Francisco de Távora com ele, dando-lhe muitas feridas com a espada que trazia na mão, o deixou estendido no campo, e lhe tomou a bandeira e a deu a outro.1

Ordenados em dois esquadrões (A) reforçados com mosqueteiros (B), os soldados comandados por oficiais como Francisco de Távora combateram ininterruptamente desde o início da batalha. Depois de aniquiladas as duas primeiras linhas do exército, a presença de D. Sebastião ainda galvanizou a resistência dos soldados até ao ataque final; este (C) terá sido desencadeado entre as 4 e 5.00h da tarde.

Jerónimo de Mendonça confirma a persistente resistência da gente que combateu na retaguarda do exército, em especial os soldados que

1

Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v.2, p. 85.

2

Jerónimo de Mendonça, o. Cit., v.1, p. 82.

172

A retirada da vanguarda terá dado «ocasião ao alcaide Almançor para acometer a retaguarda cristã com um grandeesquadrão»1. É provável que os mouros que atacaram a retaguarda tenham rodeado o exército cristão pelo seu lado esquerdo, assaltando também as carretas com as munições que aí se encontravam que «iam de longo dos esquadrões pela mão esquerda». E, de facto, na Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião refere-se o assalto à bagagem que seguia nas carretas pelo lado esquerdo do exército português.

novo até à retaguarda, na sequência do desbarato sucessivo das linhas da vanguarda e da batalha:

Enquanto na frente do exército os oficiais tentavam reorganizar os soldados sobreviventes, o rei, deixando a cargo do duque de Aveiro a defesa, dirigiu-se novamente «com alguma gente de a cavallo, a ver lo que en retaguardia passava, para dalles socorro, si necesario fuesse»2. Tendo ali chegado sem impedimentos, D. Sebastião verificou que os «esquadrões» resistiam com firmeza aos ataques dos contrários:

Aqui, «pediu el Rei água que lhe foi dada num vaso de couro, de que bebendo alguma, derramou a que lhe ficava entre as armas e corpo, com que refrescou da grande quentura»6 – de facto, a batalha feria-se durante as horas de maior calor. Os soldados destes terços, que resistiam às investidas dos inimigos desde o início da batalha, «com a nova vista de seu Rei receberam ânimo»7, e ainda combatem desesperadamente por mais algum tempo, «resistindo com muito valor detiveram a sua fúria mostrando aos mouros que aquelas relíquias do exército à vista del Rei eram bastantes para lhe recuperarem o perdido»8. Alguns dos poucos cavaleiros que ainda deambulavam pelo campo ter-se-ão certamente juntado ao estandarte real. Por outro lado, também os mouros se apercebem da presença de D. Sebastião naquele que é o último núcleo de resistência organizada.

Francisco de Távora, que da gente bisonha, tinha a de Alentejo e Algarve, que são homens de muito esforço, fez com eles corpo e rosto de se defender, o que fez (...) e defendendo-se assim que nunca se pode entrar nem romper.3

O final da resistência destes soldados ocorre depois de o rei, «acompanhado somente de oito até dez fidalgos por todos»4 recuar de

Abriu enfim caminho com D. Cristóvão de Távora, com D. Afonso de Portugal e com D. Nuno de Mascarenhas até à retaguarda; não encontrando empecimento de importância foi achá-la cercada de um grande número de Moiros, ainda que se defendiam valorosamente D. Francisco de Tavora e D. Miguel de Noronha, jogando a mosquetaria com maravilhosa presteza.5

Publicou-se logo que El-Rei estava ali, o que foi azo de que todos os vassalos recobrassem novos ânimos. Chegou aqui vencido do calor, sede e de canseira. Trouxeram-lhe água e bebeu e prevenia-se para voltar de novo à batalha; porém neste tempo acabaram de romper de

1

Jornada de África del rei D. Sebastião Escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 30. Oxeda e Mendonça também relatam este ataque aos «terços» da «retaguarda». 2 Luís de Oxeda, op. cit.., pp. 37-38. Também na Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, se relata a ida de D. Sebastião à retaguarda do exército, considerando o autor que o desbarato da vanguarda do exército não sucedera se a pessoa del Rei, e a gente ilustre com ele se não moveram daquele lugar. 3 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, pp. 84-85. 4 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 119.

5

Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 32, 6 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 119. 7 Id, ibid. 8 Id, ibid, p. 120.

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todo os Moiros a Retaguarda e deram com tão desordenada fúria e grita sobre os que estavam com El Rei que suposto se defendessem valorosamente não era possível o podelo fazer contra tantos (...) morreram aqui D. Francisco de Távora e muitos outros assinalados cavaleiros de valia, ficando ainda El Rei a cavalo com outros quatro, entre os quais seu privado D. Cristóvão de Távora.1

Embora suportado este embate com baixas substanciais nos adversários, estes, cientes da presença de D. Sebastião decidem a terminar com toda a resistência. Um irresistível asslto finalmente esmagou a retaguarda do exército: Los demás Moros, por la Retaguardia, rompieran a un miesmo tiempo, mataron al varon de Alvito y al coronel Távora, que murieran peleando aventajadamente, tomando ali en prison al mestre de Campo General y al coronel Noroña.2

Bernardo da Cruz confirma que só ao cabo de duas poderosas investidas terminou a tenaz resistência do terço de Francisco de Távora, «que fez com tanto dano nos inimigos, que, quando já o capitão e soldados daquele terço foram rendidos, havia em os mouros que o acometeram pouco que render, se nas costas lhes não viera novo socorro de grande multidão de inimigos descansados»3.. Jerónimo de Mendonça adianta ainda que só com a morte de Francisco de Távora os soldados se renderam, facto confirmado por Conestaggio; « ’A iè -garde, Fr ç i Táv ’ v avoit longuement soustenu le choc des Maures»4. Terá sido, assim, a morte do coronel Francisco de Távora, cujo exemplo havia galvanizado 1

Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 32. 2 Luís de Oxeda, op. cit., p. 40. 3 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 85. 4 Franchi Conestaggio, op. cit., p. 562.

as tropas, que marca o fim de toda a resistência organizada, como parece ter sucedido com os restantes esquadrões. Em todas as descrições da batalha, os cronistas referem que, de entre os soldados levantados no reino, foram aqueles que integravam os esquadrões da retaguarda – em especial os soldados algarvios do terço de Francisco de Távora – os que demonstraram um desempenho mais convincente, quer pelo valor da gente quer pela acção do seu coronel. Apesar de, também aqui, a formatura não corresponder ao planeado, a solução de recurso adoptada respondeu positivamente durante a batalha. Os terços não formaram num único esquadrão, à semelhança dos restantes terços da ordenança, mas a utilização dos mosquetes e peças de artilharia reforçou um dispositivo, que apesar de construído sob pressão. Durante o desenrolar da batalha, a defesa da «retaguarda» do exército parece nunca ter estado em causa; apenas depois da morte do coronel Francisco de Távora terá cessado a resistência destes soldados, «sendo em fim quatro ou cinco horas da tarde, havendo-se começado a batalha às onze»5. 2.4 A «cabeça do exército»: o rei «Convém que a milícia tenha uma só cabeça, que no tempo da paz, e da guerra, tenha a seu cargo as coisas militares, porque assim como a resolução e presteza, que nas acções de guerra são mais necessárias que em outra alguma, pedem não ficar a execução em muitos pareceres.»

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 72. Não deveria constituir uma surpresa ver D. Sebastião, no comando do exército. Noutras ocasiões, outros soberanos procedem da mesma forma, dando largas às suas tendências bélicas. Henrique VIII 5

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 82.

174

passou a França em 1513 no comando de um exército de cerca de vinte mil homens, Carlos V dirigiu pessoalmente as duas grandes expedições ao Norte de Áfica, a conquista de Tunes em 1535, e o malogrado cerco de Argel, em 1541; e no século XVII, Gustavo Adolfo encontra-se em pessoa na maioria das expedições militares, sendo morto em 1632, quando liderava um ataque de cavalaria durante a batalha de Lützen. O rei tomou parte no planeamento da expedição; forçou a opção pela marcha por terra, e foi o grande responsável pela decisão de dar batalha. No conselho de guerra da noite de 3 de Agosto foi notória a indecisão dos seus participantes, e no dia 4 de Agosto o rei impôs a sua vontade. A presença de D. Sebastião foi também fundamental, disciplinando soldados e oficiais, como no caso do conflito entre Aldana e o sargento-mor dos aventureiros, Alonso de Aguilar. Também desempenhou um papel moralizador, incutindo ânimo às tropas que se vão distribuindo pelos esquadrões; Miguel Leitão de Andrada descreve uma destas ocasiões, relatando a alegria dos aventureiros quando vêem o rei passar pelo seu terço antes de se iniciarem os combates, ou ao chegar à retaguarda do exército, na fase final da batalha, quando à sua vista os soldados ganham um último alento que lhes permite ainda resistir aos últimos assaltos dos inimigos. Na vanguarda A gente que integrava este batalhão na ala esquerda, embora «muito bem armada e encavalgada em cavalos espanhóis maiores e mais forçosos que os mouriscos e muitos deles acobertados»1, não teria certamente o mesmo desempenho na batalha sem a presença do rei. O apoio deste batalhão à arremetida inicial foi crucial no desenvolvimento do ataque, contribuindo em grande medida para a arrancada vitoriosa dos aventureiros. Fundamental foi também a sua 1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 193.

presença em todos os pontos críticos dos combates, depois de o exército see forçado a uma posição defensiva (Imagem 50). Na retaguarda Após a retirada da vanguarda corre a notícia de que os terços da retaguarda se encontrariam sob forte pressão, correndo o risco de desbarato. Decidido a ir em pessoa «favorecer a retaguarda»2, levando consigo apenas alguns fidalgos e uma pouca gente de qualidade – cerca de cem cavalos no total, de acordo com a Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião – deixa a cargo do duque de Aveiro a missão de defender a artilharia. Chegado junto dos «terços» de Francisco de Távora e D. Miguel de Noronha, «vendo que ali não era necessário, porque se defendiam valorosamente, partiu para onde julgava ser mais necessário o seu socorro»3. Assim, deixando os «esquadrões» da retaguarda, o rei regressa rapidamente à vanguarda do exército, onde o duque de Aveiro tentava resistir aos ataques furiosos dos mouros. Ao aproximar-se da frente do exército, encontra um forte tropel de inimigos comandados por um certo Almançor, alcaide de nomeada que combatia na retaguarda dos portugueses desde o início da batalha. Aqui o rei evidencia o resultado dos muitos anos de exercícios militares que praticou: Se tiene por cierto que aquel dia hiço maravillas de su persona, matando, com sus reales manos, a muchos de los enemigos que se acer taron de poner adelante, particularmente a Coliman e Almançor, Turcos de naçion, tenidos entre ellos en reputacion de valientes.4 2

Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p.31. 3 Id, ibid. 4 Luís de Oxeda, op. cit., p. 42

175

Imagem 50 – As alas de cavalaria a. A primeira investida dos “acobertados” Os cavalos comandados pelo rei (A) arremetem sobre as linhas inimigas (C); Destroçado o flanco direito – onde se encontrava o irmão de Abd al-Malik – pela investida violenta do “ ”os mouros cedem terreno frente à vanguarda dos cristãos, que entretanto progredia no terreno.

Na mão direita, a cavalaria encontra-se escalonada em três batalhões (B) que, à semelhança do sucedido na mão esquerda, fazem retirar os inimigos (D). Os irregulares (E), julgando a batalha perdida, assaltam a bagagem do exército.

b.

A derrocada dos «muros de amparo» do exército

D. Jorge de Lencastre e D. Duarte de Meneses congregam alguns cavalos para defesa dos esquadrões da vanguarda (A) enquanto o rei, julgando a retaguarda ameaçada, para aí se dirige com reforços. Contudo, é na frente que os inimigos desenvolvem o principal esforço; os mouros investem «con todo su poder» (B) e dispersam a cavalaria adversária; o duque de Aveiro é morto na refrega.

Regressado da retaguarda, D. Sebastião investe uma vez mais sobre os inimigos (C) pondo-os em fuga, o que permite aos alemães (D) reagruparemse para a defesa final da primeira linha do exército.

No embate que se seguiu, Almançor enfrentou D. Sebastião que «o rebateu de sorte com a sua lança que o lançou por terra morto»1. Será provavelmente no decurso deste encontro que «lhe deram uma ferida por baixo do braço esquerdo com uma pelota»2. Outros cronistas confirmam que o rei foi atingido por um disparo, «ferido em um braço de um golpe de arcabuz caiu por terra»3, tal como a montada; desmontado «se vio en gran peligro a pie», mas logo de seguida monta um cavalo oferecido por «uno dos caballeros de Tanger»4. É assim ferido – Jerónimo de Mendonça refere também um ferimento no rosto – que o rei consegue chegar à segunda linha do exército – a «batalha». Na segunda linha

lhe respondera: Senhor, o meu cavalo mui bom pera vossa Alteza se servir, e salvar nele.6

No local onde D. Sebastião terá trocado de cavalo com Jorge de Albuquerque encontravam-se alguns soldados, «que o desceram» e depositaram «em uma carreta por não acabar pisado»7; este local seria necessariamente junto do esquadrão da batalha por ser aí que se encontrava também a maior parte das carretas que transportavam a bagagem, e onde ainda resistiam alguns soldados (Imagem 51). O rei decide voltar ao ataque, «y se lo volvió a y ij “ g i ” y dió Santiago en los enemigos»8; assim, uma vez mais à frente dos cavaleiros que consegue reunir dá um último assalto sobre os inimigos.

O rei chegou acompanhado pelo «embaixador de Castela e Critóvão de Távora, que o trazia pelo braço esquerdo, os três sem lanças em três cavalos ruços, a tempo de que entre alguns soldados que ainda pelejavam daquela banda dos que ficaram da guarnição dos aventureiros»5. Encontrava-se também aí Jorge de Albuquerque, «tão ferido, que já se não podia ter, nem apear», mas que ainda montava a cavalo:

El-Rei que neste tempo andava por toda a parte pelejando, como se só no valor de seu braço estivera o remédio de todos. E havia tomado com suas mãos duas bandeiras aos mouros, e lhe haviam morto outro cavalo, e andando desta maneira em um outro que lhe deu Jorge de Albuquerque, com Cristóvão de Távora sempre a seu lado, e D. Jorge Telo, pajem do guião (que estranhas maravilhas havia feito) bem certificado dos termos em que as coisas estavam, quis tentar a última fortuna, mais desdenhando a dilatada vida.9

Achando-se fora já da batalha vencida no seu cavalo, ruço escuro, e tão ferido, que já se não podia ter, nem apear (...) viera ter com ele el-Rei acaso só, a quem ele perguntara: como vem vossa Alteza? E el-Rei lhe respondeu, eu bom estou, mas este meu cavalo já não pode dar passada, o qual trazia uma arcabuzada no pescoço. E ele Jorge de Albuquerque

Depois desta última investida a cavalaria portuguesa deixou de existir como unidade combatente, dispersos os últimos cavaleiros; o rei dirigiu-se novamente «para a retaguarda» do exército «com poucos, cercado de mouros por todas as partes, caminhava passeando com as costas na gente de pé, que posto que não pelejasse, tolhia poderem os mouros dar em El-Rei por detrás»10.

1

Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 31. 2 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 115. 3 Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, id., p. 31 4 Luís de Oxeda, op. cit., p. 41. 5 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., pp. 199-200.

6

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., pp. 142-143. Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 81. 8 Esteban Rodríguez Amaya, op. cit. p. 5. 9 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v.1, p. 77. 10 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 202. 7

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Imagem 51 – D. Sebastião e Jorge de Albuquerque Se acertavam com ele sempre se ir pondo-lhe diante como faziam, sendo sempre muito poucos, porque disto não recebia serviço senão dos de cavalo, que se gastavam pelejando, perdendo-se uns e sobrevindo outros e alguns, ficando atrás, pelejando se tornavam às vezes a juntar com El-Rei, sem pretenderem outra senão segui-lo, deixando por detrás o campo coberto de mortos1.

Assim recuando, consegue finalmente chegar até à retaguarda do exército, onde «una pequena parte de sua gente, que de todo el resto del el resto del campo havia recogido»2 ainda oferecia uma resistência tenaz aos assaltos inimigos. Aqui, «ainda encontrou os dois esquadrões de Dom Miguel de Noronha e de Francisco de Távora como bons cavaleiros inteiros no seu posto»3 que, comandando com determinação os soldados, mantinham afastados os inimigos, «recobrando novos ânimos» ao ver o rei. Confinados neste local os últimos homens, e «como aquela gente espantada e cheia de medo do que via, começasse com grande clamor a chamar por el Rei, os Elches e Alarves, que entenderam que a pessoa del Rei estava naquela parte, carregaram muitos sobre ele cerrando com os esquadrões»4. De novo na retaguarda «El Rey se arrimo a una pequena parte de su gente, que de todo el resto del vi gi ; y fi ’ y g g herida y caluroso, a los que alli estavan le diesen, si havia, algo de beber. Y así le dieron, en una bota pequena, un poco de agua muy turbia, de la qual bebio, vertiendo la que sobro entre las armas e el cuerpo.»

De novo galvanizados pela presença do rei, os soldados da retaguarda ainda prolongaram por mais algum tempo a resistência. Contudo, os seus adversários, certamente decididos a terminar com este último foco organizado, «deram com tão desordenada fúria e grita sobre os que estavam com El Rei que suposto se defendessem valorosamente não era possível o podê-lo fazer contra tantos»5. 1

Luís de Oxeda, op. cit., p. 42. Deixando a «batalha», D. Sebastião dirige-se para a última linha do exército protegido apenas por alguns fidalgos a cavalo:

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 202. Luís de Oxeda, op. cit., p. 42. 3 Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., p. 119. 4 ID, ibid, pp. 119-120. 5 Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit., p. 32. 2

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Finalmente desbaratados os terços na retaguarda, extinto assim o último foco de resistência, D. Sebastião acaba por se afastar do campo de batalha acompanhado apenas por alguns fidalgos, «junto de um fio delgado de soldados desarmados, que fugiam para o passo do rio»1.

os vários autores que descrevem a morte de D. Sebastião. Um pormenor curioso vem, contudo, relatado na Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique: O certo é que achando-se depois da batalha milhares de cousa que nela se perderam, e resgatando-se tudo a dinheiro a quem o queria comprar das armas reais não apareceu uma só peça nem houve quem a visse ou desse fé dela.6

A morte de D. Sebastião Oxeda refere que o rei terá sido interceptado por um «grosso» tropel de cavaleiros; «en esto una gran quantidad de Barbaros, que tenian cercada esta poca gente que havia quedado com vida, entendiendo que estava ali El Rei, porque lo ohian llamar, y también por el guion»2. Cristóvão de Távora tomou a iniciativa de tentar parlamentar, «atou um lenço na ponta espada, e como bandeira de paz se foi a eles dizendo: sultão, sultão, que quer dizer Rei, Rei, para com estas palavras os persuadir a cativarem El-Rei que lhe ele queria mostrar, o qual os mouros só recolheram, ou por cuidarem que era Rei ou por não darem crédito»3. D. Sebastião não aceita render-se; «pegaram dele do braço da espada sem lha poderem tirar da mão»4, mas consegue libertar-se dos captores à força, auxiliado por Luís de Brito, «que o viu ir um pedaço desviado já, sem ver Mouro algum que o seguisse, nem aparecerem outros diante que o pudessem encontrar para i i i v v (…) i i campo de batalha, onde depois foi achado morto»5.

Ao contrário, o estandarte real – «um estandarte de duas pontas de damasco carmesim, guarnecido de prata, com um crucifixo bordado de uma parte e da outra o escudo das armas reais de Portugal»7 – terá sido recuperado, «o qual depois foi comprado em Fez por os Portugueses, da mão de um Mouro que o andava vendendo, e veio ter ao tesouro de El-Rei, aonde está»8. 2.4

Os mortos da batalha

As estimativas dos diferentes cronistas quanto ao número de mortos que resultaram da batalha de Alcácer Quibir variam consideravelmente, pelo que tomamos como ponto de partida a relação do médico judeu de Abd al-Malik, que dá um número total de baixas para os dois exércitos de cerca de quinze mil homens.

Quanto à forma como o rei terá sido morto, o mesmo cronista refere que «presumem alguns que foi cativo de Alarves e por desavença de quem o levaria, o mataram», o que concorda, na generalidade, com

O número de mortos da parte dos cristãos ter-se-á situado entre os 8000 e 11 000; segundo Oxeda, terão morrido mais de 10 mil cristãos, o que confere com o total contabilizado pelo autor da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião – «dez para onze mil» –

1

6

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 206. Luís de Oxeda, op. cit., p. 43. 3 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 90. 4 Id, ibid. 5 Id, ibid, pp. 91-92. 2

9

Jornada del-rei dom Sebastião a África/Crónica de dom Henrique, op. cit., pp. 121122. 7 Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 88. 8 Frei Bernardo da Cruz, op. cit., v. 2, p. 91. 9 Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, op. cit.

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enquanto Jerónimo de Mendonça refere cerca de 9000, número que também se encontra próximo destas estimativas. No caso dos muçulmanos, o total de mortos é mais difícil de contabilizar. De facto, Jerónimo de Mendonça refere que «só dos que recebiam soldo faltaram dezoito mil, vistos e examinados depois os livros de matricula em Fez»1, embora este número diga respeito, a crer na estimativa do médico de Abd al-Malik, aos mortos de ambos os exércitos. Foram certamente para cima de 2-3000 homens, até um máximo que não é possível contabilizar com rigor. De acordo com Oxeda e o autor da Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, foram mortos 2000 mouros, «e estes no primeiro acometimento»2, enquanto segundo Conestaggio este valor sobe para 3000. Se tomarmos em consideração os 18 000 avançados pelo médico judeu, retirados os cerca de 11 000 mortos cristãos, o número máximo de mortos muçulmanos poderá ter ascendido a um valor situado entre os 4-7000, o que coincide com Jerónimo de Mendonça quando refere que do total de baixas, «dos christãos morreram bem a metade, mas ainda assim foram outros tantos dos mouros»3. O custo humano da batalha é elevadíssimo para a época, e desproporcionado em relação à duração dos combates. Tal facto deveu-se, em grande parte, à situação particular em que o exército português combateu – completamente cercado de inimigos, e sem uma linha de retirada aberta. Apenas terão conseguido escapar da batalha cerca de 40 portugueses, «depois que os Cristãos foram de todo rendidos, com morte de uns e cativeiro de outros, sem escaparem da batalla mais de 50

homens, pouco mais ou menos»4. Estes sobreviventes seriam cavaleiros da guarnição de Tânger, e foram os primeiros a espalhar a notícia do desastre. As batalhas que ocorrem na Europa durante o século XVI não têm de um modo geral o carácter decisivo tradicionalmente associado ao confronto campal entre dois exércitos adversários. Nas guerras que durante tantos anos lavraram na Flandres, as batalhas em campo aberto ocorreram – de um modo geral – em consequência dos cercos postos aos lugares fortificados. Também não são muito numerosas as ocasiões em que se confrontam em campo aberto exércitos cristãos e otomanos. Foi sobretudo a leste que se produziram as maiores batalhas, das quais a mais importante terá sido Mohács em 1526, na qual o sultão Solimão enfrenta o rei da Hungria, em moldes que encontram algum paralelo com Alcácer Quibir. Autores como Dziubinsky encontram semelhanças entre a situação de guerra no leste da Europa e o confronto entre portugueses e muçulmanos no Norte de Áfica. Para além desta guerra irregular referida por Damião de Góis, que no fundo mantém as características da guerra de fronteira da época da «reconquista», é sobretudo a prática de modelos militares mais actuais – tanto do Oriente como do Ocidente – que esteve em causa em Mohács e Alcácer Quibir, já que foram os modelos militares otomano e europeu que estiveram frente a frente. Ao contrário de Alcácer, em Mohács será o exército húngaro a escolher o campo de batalha; o rei da Hungria tinha à sua disposição cerca de 26 000 homens e o sultão Solimão cerca de 50 000. Nas duas batalhas assistimos a um primeiro esforço vitorioso dos cristãos que

1

Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 85. Jornada de África del Rey dom Sebastião escrita por um Homem Africano, id., p. 34. 3 Jerónimo de Mendonça, op. cit., v. 1, p. 85 2

4

Frei Bernardo da Cruz, op. cit. Os restantes cronistas são concordantes quanto ao número de soldados que escaparam à derrota do exército cristão.

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põem em fuga as tropas da vanguarda contrária. Contudo, ao contrário dos húngaros, o ataque inicial dos portugueses colhe de surpresa o centro do dispositivo adversário, que se encontra demasiado adiantado no terreno e com as reservas de cavalaria empenhadas, enquanto em Mohács este movimento ofensivo parece ter sido previsto pelos otomanos. De facto, a chegada do principal corpo otomano algum tempo depois de iniciada a batalha, encontra os húngaros comprometidos no assalto principal ao centro, pelo que os otomanos rapidamente envolvem os inimigos derrotando-os completamente, com a perda do rei húngaro. Os combates terão durado apenas 2 horas, e as baixas ascenderam a mais de 30 000 homens de ambos os lados. Do lado marroquino, a evolução do exército dos xarifes tem o seu ponto culminante com a batalha de Alcácer Quibir. Será aqui, em confronto com um exército também ele organizado segundo os métodos mais modernos praticados na Europa, que Abd al-Malik põe à prova a máquina de guerra que aperfeiçoou, de inspiração otomana. Podemos assim observar o resultado do confronto entre os modelos militares otomano e europeu; a vitória cabe ao primeiro embora a derrota dos cristãos estivesse por pouco, tal como sucedeu em Lepanto com os muçulmanos. A vitória de Abd al-Malik terá ainda revelado o frágil equilíbrio das forças que compõem o exército sádida, que espelhava as tensões resultantes da recente subida ao poder de Abd al-Malik. Na sequência da morte do seu irmão, Almançor usufruirá do prestígio militar resultante desta vitória, desencadeando 3 anos depois uma campanha fulminante que destruiu o império Songhai, consolidando assim o poder militar sobre o qual se apoiaram os xarifes até meados do século seguinte. Embora a batalha liderada por D. Sebastião tenha resultado numa pesada derrota para os portugueses, não parece que as decisões tomadas no decurso da campanha se avaliem como totalmente desprovidas de

razoabilidade, tendo em consideração os diversos obstáculos que foram surgindo. O autor da Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, sendo muito crítico relativamente à figura do rei, permite, ainda assim, explicar algumas situações que antes se atribuíam à incompetência de D. Sebastião. Uma destas será a dilação do ataque da vanguarda, que se deveu a um situação imponderável, como seja o extravio de dois mensageiros. Para além da notável disposição do exército de Abd al-Malik, também se revelou crucial no decurso dos combates, um conjunto de factores fortuitos e a inexperiência do exército, no seu todo, em confrontos campais. Como refere Jerónimo de Mendonça, a própria dimensão exígua do campo cristão não permitiu a reorganização das formações, impedindo que os portugueses retomassem a iniciativa, e a inexperiência de alguns dos oficiais em combates de grandes dimensões, interrompeu o movimento ofensivo no seu momento mais crítico, dando lugar ao início do desastre. No entanto, o valor da maioria dos soldados permitiu aos cristãos resistir por mais de quatro horas aos ataques de um inimigo em número superior. Na verdade, apenas os terços da segunda linha têm uma prestação pouco convincente, e mesmo estes, à semelhança do que sucedeu com o exército húngaro na batalha de Mohács, só se rendem depois de dizimados à distância pelas armas de fogo dos seus adversários. A formatura que o exército apresentou em batalha conjugou da maneira possível o planeamento previsto, com as circunstâncias particulares que foram surgindo, em particular nos movimentos finais da aproximação dos dois campos. Não sendo possível aplicar a ordem planeada, que reflectia fielmente as últimas tendências seguidas pela arte militar, construiu-se uma forma que se revelou, ainda assim, adequada e que cumpriu em parte a sua função militar. Na vanguarda, ordenaram-se os três terços em linha recta, «em forma prolongada», de forma a dificultar o envolvimento; a posição saliente dos aventureiros

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conferiu à vanguarda um carácter essencialmente ofensivo. Na segunda linha do exército, ao juntar «dois terços (...) num esquadrão de vinte bandeiras, que tinha perto de cinco mil homens», procurou-se dar consistência aos soldados, organizando-a numa grande formatura; a posição que ocupou no centro do exército permitia resguardar estas tropas menos aguerridas, protegendo-as com duas mangas soltas de arcabuzaria. Na retaguarda, os 2 esquadrões «quadros de gente» deveriam estar preparados para resistir a um inimigo atacando por todos os lados; a frente da retaguarda – onde se encontravam os não combatentes – foi fortalecida com os mosqueteteiros que no dia anterior já haviam provado a sua valia contra o inimigo, confirmando a sua utilidade em batalha. Por fim, os «esquadrões» de cavalos portugueses. Verdadeiros baluartes do exército, desempenharam um papel crucial na resistência, fazendo arremetidas fulminantes no início, e esgotando-se em cargas sucessivas que afastaram os repetidos ataques dos mouros até ao colapso final.

altura, foi talvez o que melhor se adaptou ao diferente valor de cada um dos contingentes e às condições particulares do confronto. Contudo, as três partes do exército funcionaram de forma autónoma, e foi sobretudo a presença do rei como «cabeça do exército» – presente em todos os pontos decisivos – que conferiu a «unidade» de que o exército carecia. Nesta forma em que me vedes armado, espero ser vosso igual na sorte e avantajado na alegria do cometimento: e certifico-vos que se me buscardes, vos hei-de aparecer diante de todos os esquadrões, e se não me achardes, entendei que andarei entre os inimigos; por isso tende-me por companheiro fiel, que tanto hei-de aventurar a minha pessoa na conservação das vossas vidas, como por honra da vitória.1

A forma com que se planeou a formatura do exército tem um carácter essencialmente idealizado, sendo uma consequência directa da leitura da tratadística em circulação. A utilização do quadrado encontrase subjacente a toda a concepção formal do próprio campo. Partindo do pressuposto de que os esquadrões teriam forma de quadros de gente, observa-se a aplicação da mesma figura geométrica ao desenho do exército, agrupando todos os esquadrões num quadrado. No entanto, esta formatura ficou impossibilitada não só devido às condições particulares da batalha, mas também em consequência da qualidade diversa dos soldados que compunham o efectivo dos tercios que estiveram presentes na batalha. Na passagem da forma planeada para a formatura construída no campo de batalha, o desenho inicial foi abandonado, transformando-se num esquema tripartido; este, de uso corrente pelos exércitos desta 1

Frei Bernardo da Cruz, op. cit., pp. 69-70.

182

CONCLUSÃO

P

ara uma completa compreensão da arte militar renascentista deveremos enquadrá-la num contexto mais geral, que excede os limites das actividades de carácter militar, englobando as formas de organização do espaço com particular ênfase na arquitectura. A fortificação constitui a charneira entre duas actividades que à partida se encontram separadas por práticas antagónicas, uma construtiva, a outra destrutiva, desempenhando o papel de estabelecer a ponte entre o teórico humanista e o soldado prático. É assim que, por um breve período, as formações militares adquirem um grau de elaboração e riqueza formais antes desconhecida. Este é essencialmente um período de experimentação, durante o qual se absorvem as últimas novidades tecnológicas no que respeita às armas de fogo, juntamente com uma reapreciação da tradição militar clássica. Reinventa-se a falange macedónica em paralelo com a introdução das armas de fogo portáteis; fabrica-se artilharia, que se baptiza e ornamenta com designações e motivos retirados da mitologia e tradição clássicas. Com a crescente preponderância dos soldados na definição dos modelos teóricos, as respostas aos problemas tácticos voltam a enquadrar-se num âmbito essencialmente militar, onde se joga fundamentalmente com variáveis de carácter técnico. O aumento progressivo do poder de fogo tem um papel essencial dado que vai condicionar todos os demais aspectos da arte militar, entre os quais a forma dada aos exércitos. Assim, os tratados de arquitectura militar da segunda metade do século XVI vão progressivamente revelar-se como um conjunto de regras de carácter eminentemente técnico, como podemos observar no texto de Girolamo Cataneo publicado em 1563, que gozou de grande divulgação na Europa quinhentista e terá influenciado diversos autores, entre os quais o português Luís Mendes

de Vasconcelos. Como refere Hale, «the days were passing in wich architects, as had been the case from Brunelleschi, Francesco di Giorgio and Giuliano da Sangallo, to Michele Sanmicheli and Michelangelo, could be expected to turn with equal interest from civil to military work», ainda que na segunda metade de Quinhentos a abordagem feita por Andrea Palladio renove uma ligação mais estreita com a Antiguidade, embora numa perspectiva essencialmente pragmática, que preconizava a redução do número de fileiras das formações, tendo como modelos a falange macedónica e a legião romana1. Em contraste com esta ligação às artes, conseguida através da apropriação da herança clássica, os desafios levantados pela evolução técnica dos novos armamentos exigem uma progressiva especialização da prática da guerra, facto que parece ter como contrapartida uma maior autonomia das disciplinas de carácter militar em detrimento das de carácter humanista. O engenheiro militar, novo protagonista do conhecimento teórico militar, tende a separar-se progressivamente da esfera do arquitecto, estabelecendo uma ligação mais estreita com a fortificação. As referências clássicas continuam, contudo, a constituir um denominador comum entre estas duas actividades, contribuindo para conferir um novo estatuto aos profissionais da guerra. Em Portugal, o escasso número de obras teóricas não permite tirar conclusões definitivas. No entanto, ao analisar o primeiro texto português de carácter militar datado do século XVI – o Regimento de Guerra de Martim Afonso de Melo –, este revela um carácter eminentemente operativo, à semelhança dos primeiros tratados portugueses de arquitectura conhecidos. De facto, tanto no texto 1

«Ordinandosi hora battaglioni di sei, overo otto mila fanti, per il che si viene à ponere piu di cento soldati per verso (...) et che la più parti di questi soldati affatto inutile; poiche non mai, ò rarissime volte ponno quelli ridursi al combatere» (J. R. Hale, Renaissance War Studies, op. cit., p. 485).

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atribuído a António Rodrigues como no tratado de Filippo Terzi, ambos da década de 70, predominam os aspectos práticos da arquitectura, tanto ao nível construtivo – no caso de António Rodrigues – como do ponto de vista da composição formal, como vemos na obra de Terzi. Todos os textos teóricos portugueses quinhentistas apresentam como denomidador comum e extracção militar dos seus autores, à excepção da figura do autor do Regimento de Guerra, que não foi ainda possível identificar. Em todo o caso, parece ser possível fechar um círculo englobando as actividades militares – desde a prossecução da guerra até à fortificação – e a arquitectura civil, sublinhando a questão levantada por George Kubler, que se prende com a existência de uma expressão estética de carácter militar presente nas formas arquitectónicas portuguesas de Quinhentos, e cujo âmbito poderemos agora alargar à essência da própria actividade militar – a guerra. Os modelos preconizados pela tratadística não se encontram de forma alguma desligados da realidade prática. A teoria era, de facto, aplicada no campo de batalha, como se pode verificar em Alcácer Quibir, onde podemos observar uma expresssão rigorosa da teoria militar, tanto na fase do planeamento prévio da forma que o exército deveria adoptar, até á situação objectiva da batalha, embora sofrendo alterações ao ser transposto para o terreno.

A configuração do exército, para além de ser construída segundo tipologias formais objectivamente definidas pela teoria, determinou também o desempenho militar dos soldados no campo de batalha. Por exemplo, movimentos ofensivos e defensivos implicam a utilização de formas geometricamente apropriadas para esse fim – uma forma triangular adequa-se à ofensiva, o quadrado desempenha um papel defensivo – enquanto a dimensão do campo de batalha determina a frente e profundidade do exército. Em Alcácer, vários factores obrigaram a aplicar todo o esforço ofensivo na vanguarda do exército. Assim, vemos os soldados de maior valor integrados em três esquadrões quadrangulares, desenvolvendo uma figura dedicada a uma manobra predominantemente ofensiva. Esta formação tem os soldados mais agressivos – os aventureiros – na frente, salientes na vanguarda, e os soldados mais disciplinados – os mercenários alemães e espanhóis – protegendo os flancos dos primeiros. O conjunto destes três «esquadrões» formaliza uma figura triangular, e é uma reminiscência da formação em cunha, que foi utilizada desde a Antiguidade até à Idade Média, época em que podemos ver referida nas sete partidas de Afonso X: La otra manera que llaman cuño fue asacada por quando las haces de los enemigos fuesen fuertes et espesas, que las pudiesen romper et departir et vencer mas aina; et desta guisa vencien com los poços á los muchos, descrevendo-se a sua construção da seguinte forma, poniendo primeramiente delante três caballeros, et á espaldas dellos seis, et en pos los seis doce, et en pos estos veinte et quatro, et assi doblándolos et acresciéndolos todavia segunt fuere la compaña.1

No caso concreto do dia 4 de Agosto de 1578, e como vimos atrás, teria sido prevista uma configuração regular para as formações militares operacionais, designadas por esquadrões. Estes deveriam ter sido dispostos de maneira a que o exército se apresentasse, no seu todo, em forma de quadrado; no entanto, esta concepção foi abandonada devido às condições específicas em que ocorreu o confronto. 1

Alexandra Lopes, «Alfonso X, Las Siete Partidas», in Guerra até 1450, coord. de Teresa Amado, Lisboa, 1994, p. 135.

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A formação triangular, embora caída em desuso para o final do século XVI – «este que se figura es en triángulo, y no le hallo fortaleza ni bondad para ningún efecto, aunque que hay algunos soldados que hablan de él»1 – ainda assim desempenhou com eficácia o seu papel ofensivo, durante a primeira fase da batalha. No fundo, em Alcácer Quibir assiste-se ao confronto de dois entendimentos da guerra. Por um lado, a escola tradicional dos soldados portugueses praticada nas praças de África na forma de «razzias» e «algaradas», em contraste com a guerra moderna que então se feria nos campos de batalha da Europa. De facto, uma leitura atenta das relações contemporâneas à batalha, como a de Jerónimo de Mendonça ou a Crónica do xarife Mulei Mahamet e d'El-Rei D. Sebastião, detecta este confronto de opiniões sobre a maneira de se mover a guerra em África: Mas El-Rei, enganado com a aparência de novidades que se lhe apresentavam, estava de todo afeiçoado, não somente aos usos e estilos estrangeiros, mas também aos termos novos que se lhe praticavam das partes de Itália e doutras, onde a guerra florescia; e tinha por tanta excelência introduzir em Portugal novos modos na ordem da milícia, que também transformou totalmente a cavalaria portuguesa que sempre foi de ginetes.2

Eram os ginetes que suportavam o peso principal da guerra de fronteira desde a Reconquista, e foi depois «exportada» para as praças do Norte de Áfica, onde se desenvolveram em pleno estes cavaleiros que se especializaram de acordo com as suas funções militares: A qual sorte de gente de cavalo El-Rei D. Sebastião totalmente desprezou nesta jornada, não apercebendo para ela mais ginetes que os que lhe foram de Tânger dos fronteiros e moradores, porque do Reino, 1 2

Martin de Erguiluz, op. cit., p. 162. Crónica do xarife Mulei Mahamet e d'el-Rei D. Sebastião, op. cit, p. 124

todos ordenou que fossem acobertados ou à ligeira estradiotes, sem considerar os grandes prejuízos que soíam resultar das novidades e os insignes danos e destruições que sempre procederam a todas as repúblicas, da mudança dos seus usos e costumes antigos.3

A batalha será decidida não só no choque entre os campos adversários, mas também no seio do próprio exército português, onde se confrontaram estas duas formas de combater distintas. A retirada ordenada pelo sargento-mor Pero Lopes, antigo oficial da guarnição de Tânger – e apontada por muitos dos cronistas como a principal razão da derrota do exército português –, obedece a uma forma de combater própria da fronteira africana, onde uma incursão militar com demasiada profundidade acabava, muitas vezes, em completo desastre. Será com a anexação filipina que os soldados portugueses, e em particular os futuros oficiais, vão adquirir – de forma sistemática – a experiência necessária à prática da guerra moderna, militando regularmente nas campanhas levadas a cabo nos teatros de operações europeus; assim se consolidou finalmente, entre os portugueses, a preponderância das novas formas de combater. Uma componente fundamental desta nova arte militar consiste na organização dos exércitos segundo configurações geométricas precisas. Na prática, a disposição dos soldados segundo figuras regulares tem o seu «renascimento» durante o final de Quatrocentos, e deve-se sobretudo ao renovado estudo dos autores clássicos, como Vegécio ou Políbio. Desenvolvendo-se no início do século XVI, durante os primeiros trinta anos de Quinhentos, será só a partir do Renascimento que a arte militar adquire uma nova complexidade formal. De facto, as tipologias militares quinhentistas encontram-se muito para além daquelas em uso no século XIV, por exemplo, onde apenas se procedia a composições formais simples. A título de exemplo, podemos referir a 3

Id, ibid.

185

maneira de se organizar a vanguarda de um exército, que deveria perfazer a soma do efectivo de ambas as «alas» – conforme refere Fernão Lopes, «tanto avia daver em ambalas as alas como na vanguarda»1.

muito longínquo, as longas linhas de atiradores uniformizados do século XVIII.

A riqueza formal que a guerra adquiriu no início de Quinhentos foi fruto do trabalho de figuras como Brunelleshi, Alberti, Da Vinci ou Miguel Ângelo, que incutiram os princípios estéticos desenvolvidos no âmbito das artes visuais – desde a pintura até à arquitectura – para a área da arte militar. A actividade militar, desde o fim do século XV até aos anos 30 do século seguinte, apresentou – a par de uma prática extremamente violenta – um carácter absolutamente extravagante que se manifestou em múltiplas facetas da sua realidade, inclusive no aspecto do próprio combatente: Na guerra, vista-se o bom soldado de panos alegres e de cor, como carmesim, branco, azul, amarelo, pardo, roxo, alionado, e às vezes misturando estas cores, umas com as outras, como melhor lhe parecer, e lhe saírem mais lustrosas (...) porque dizem que as cores alegres, são para todo o género de soldado.

Por outro lado, o guerreiro já não desempenha um papel individual, agora integrado na malha ortogonal da formação de combate, e com o decorrer do tempo perderá progressivamente o colorido e vivacidade para ganhar peso e uniformidade. As formações de infantaria tornam-se cada vez menos variadas, quer na forma, reduzida não só a um leque de tipologias de formas básicas, quer no próprio figurino dos soldados. Os pesados esquadrões quadrados guarnecidos de arcabuzes, ordenados segundo figuras geométricas simples, tornam-se cada vez mais comuns no campo de batalha. As armas brancas tendem a desaparecer anunciando, para um futuro não 1

Fernão Lopes, Crónica de D. João I, v. 2, Barcelos, 1983, p. 92.

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APÊNDICE 1: A IMAGEM DO EXÉRCITO EM ALCÁCER QUIBIR

A

pesar de existirem numerosas relações da batalha, nenhuma possui detalhes suficientes que permitam uma reconstituição pormenorizada da formatura do exército de D. Sebastião. Numa época em que os efectivos não têm uma orgânica rígida, a tarefa torna-se ainda mais difícil. Ainda assim, pretende-se exemplificar o processo de ordenar os esquadrões enquadrado numa abordagem construtiva como apêndice lógico da estrutura do trabalho. Em primeiro lugar, ao ensaiar uma proposta de reconstituição da ordem de batalha do exército português no dia 4 de Agosto, é necessário optar por seguir um dos processos de ordenar os esquadrões descritos pelos vários autores de tratados que proliferaram durante o século XVI. Dentro do leque disponível, aqueles que se encontram temporalmente mais próximos da situação em estudo são Girolamo Cataneo e Francisco de Valdés, de 1563 e 1578 respectivamente, que depois se procurará confrontar com os textos portugueses quinhentistas de Martim Afonso de Melo, Luís Álvaro Seco e Luís Mendes de Vasconcelos. Seguindo o critério usado no desenvolvimento da tese, dá-se precedência aos testemunhos presenciais que ofereçam maior quantidade de detalhes úteis para o objectivo pretendido. Como já se viu, o texto mais rico em informações deste tipo é a Crónica do Xarife Mulei Hamet e de El-Rei D. Sebastião, que se complementa com os textos de Luís de Oxeda e do embaixador castelhano, Juan da Silva. 1. Os efectivos Os efectivos que integraram a expedição encontram-se discriminados nas diversas relações da jornada, e embora apresentem

algumas variações podem-se determinar com alguma certeza, encontrando-se resumidos na Tabela V. O número de soldados terá certamente variado em função das condições em que se efectuou a marcha, que certamente reduziu o efectivo por doença, extravio de soldados, etc., num total que não é hoje possível contabilizar. No que respeita à orgânica das diversas unidades militares apenas dispomos de dados inquestionáveis para o contingente recrutado nos Países Baixos, o «terço de tudescos», que se encontrava desdobrado por 12 companhias; como atrás referimos, duas destas seriam certamente constituídas por soldados com armas de fogo. O levantamento do contingente português assentava no recrutamento de 4 terços, que utilizariam o sistema introduzido pelas ordenanças de 1570 – que previa companhias de 250 homens seguindo o modelo espanhol – que não terá excedido os 9000 homens, mas que se pretendia ascendesse a 12 000 soldados. Na prática, cada terço deveria seguir a orgânica do país vizinho, 10 companhias de piqueiros e 2 de arcabuzeiros, embora este total tenha sido reduzido pela falta de efectivos observada durante o arrolamento das tropas em Portugal, em parte causada pela desmobilização dos homiziados. O efectivo definitivo para cada terço das ordenanças foi estabelecido pelo rei em Arzila. Ao organizar a marcha por terra, mandou que cada coronel escolhesse 2000 soldados de cada terço. Estes foram organizados por 10 bandeiras, como podemos verificar pela Crónica do xarife Mulei Mahamet e d'el-Rei D. Sebastião, cujo autor demonstra um domínio dos detalhes de caracter militar. Mantiveram-se, assim, as mesmas 2 companhias de arcabuzeiros para cada terço, como preconizava a teoria militar na altura. Se tivermos em consideração que se adquiriram nos Países Baixos 4000 arcabuzes, verifica-se que metade deste quantitativo deveria armar os terços das ordenanças, as restantes

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seriam certamente destinadas ao contingente estrangeiro. 2. A formatura prevista O ponto de partida para uma proposta de reconstituição da forma do exército de D. Sebastião consiste na ordem que se sabe ter sido adoptada para o batalhão de cavalos comandado pelo rei, uma vez que a teoria militar preconizava para os cavalos «a mesma proporçaõ que o esquadrão dos piquesw, & arcabuzeiros1. A formatura da cavalaria da mão esquerda do exército encontra-se descrita em pormenor na Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'El-Rei D. Sebastião, um «esquadrão» de 25 fileiras a 24 soldados cada, portanto uma forma em quadro de gente. Como já se viu, a ordem de batalha do exército, decida no conselho de guerra em Arzila, previa a construção de quatro esquadrões dispostos segundo uma configuração geral quadrangular, que de acordo com a teoria seria mais adequada para enfrentar adversários com elevado efectivo de cavalaria. A configuração de cada esquadrão de infantaria pode-se assim extrapolar, pelas razões apontadas, da formatura do esquadrão do rei. Assim, partindo do princípio de que os terços se encontravam, também eles, formados em esquadrões quadros de gente, utiliza-se o método de Luís Álvaro Seco que como já foi exposto segue a prática comum desde meados de Quinhentos, e que implica a extracção da raiz quadrada ao total de soldados piqueiros. Também será possível ter uma ideia do espaço ocupado pelo exército no campo de batalha, uma vez que, como já foi exposto, os diversos autores definem as distâncias a observar. Cataneo, Valdés, Carrion Pardo e Seco determinam que deve existir entre os soldados de uma mesma fileira, 3 passos, e entre as fileiras, 7 passos, descontando o espaço ocupado pelo soldado, um quadrado com 1 passo de frente e 1

Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit., p. 156.

fundo. Encontra-se também discriminada por Girolamo Cataneo a distância que deve existir entre as mangas e o esquadrão, enquanto por sua vez Juan de Carrion Pardo determina que as alas de cavalaria não deveriam situar-se a menos de 15 ou 20 passos do corpo do exército. 2.1

O terço dos castelhanos

Com um total entre os 1600 e 2200 homens, opta-se pelo número de 1600, que equivale ao total indicado pelo embaixador castelhano, Juan da Silva (Imagem 52). Seguindo o método geral apontado nos tratados, a forma do esquadrão era construída a partir de um núcleo constituído pelo efectivo dos soldados piqueiros, em torno dos quais se dispõem os restantes soldados em formaturas que como vimos tinham funções tácticas específicas. Tendo em consideração que o contingente espanhol totalizaria 8 companhias, retiradas as duas companhias de atiradores orgânicas, os soldados piqueiros perfazem um total de 1200 homens distribuídos por 6 companhias. Para se construir um esquadrão quadro de gente, a teoria militar da época determinava extrair a raiz quadrada ao total do efectivo de soldados piqueiros: 1200 = 34, sobram 44, o que permite acrescentar uma 35.ª fileira.

Em seguida, as duas companhias de arcabuzes seriam repartidas pelas ilhargas guarnecendo o esquadrão, tal como referido por Francisco de Valdés: El escuadrón de picas ha de guarnecer por los lados de arcabucería, poniendo una hilera de arcabuceros junto a la outra de picas, de manera que haya tantas hileras de arcabuceros de cada lado cuantas hay de picas (...) y así, pues debajo del favor de la pica no pueden estar más de cinco arcabuceros.2 2

Francisco de Valdés, Espejo y Disciplina Militar, Madrid, 1989, p. 46.

188

Imagem 52 – A formatura do terço dos castelhanos Manga

Guarnição + esquadrão Esquadrão (34 soldados piqueiros em 35 fileiras)

102 passos

Guarnição (5 soldados arcabuzeiros em 35 fileiras)

15 passos

Distância da manga ao esquadrão segundo Cataneo

8 passos

Manga (17 soldados arcabuzeiros em 35 fileiras)

51 passos

Total: 176 passos de frente, 245 passos de fundo

Guarnecido o esquadrão com atiradores, as 4 companhias de 600 soldados italianos deveriam reforçar esta formação, repartindo-se por uma manga de atiradores com as mesmas 35 fileiras do esquadrão, a 17 soldados por fileira. Como mais à frente se verá, este valor coincide com os detalhes das relações presenciais de alguns cronistas. 2.2

O terço dos aventureiros

Com um total entre os 1400 e 1500 soldados piqueiros, parte-se do número indicado por Miguel Leitão de Andrada que refere a existência «neste nosso terço de 1400 ventureiros a pé, pouco mais ou menos»1. Dado que os terços dos aventureiros e castelhanos deveriam ser incorporados num único esquadrão, podemos concluir que os 1400 aventureiros deveriam ter igual número de fileiras do 1

Miguel Leitão de Andrada, op. cit., p. 128.

esquadrão que se formou com o contingente espanhol. O esquadrão assim formado pelos 1400 aventureiros, teria as mesmas 35 fileiras em que se ordenavam os castelhanos, a 40 soldados por fileira. 2.3

terço, os cerca de 500 ou 600 soldados portugueses das praças do Norte de Áfica deveriam depois ordenar-se em mangas: En caso que sobrasse mucha arcabuceria, después de guarnecido el escuadrón, antes haria cuatro mangas.2

O terço dos tudescos

Com um efectivo entre os 2700 e 2800 homens, partimos do número mais baixo pelas razões já apontadas, e que se prendem com a redução do efectivo, dado o desgaste a que o exército esteve sujeito durante a marcha. Dividido o total pelo número de companhias do terço, temos uma média de 225 homens em cada uma; retirado o efectivo das armas de fogo temos 2250 soldados piqueiros distribuídos por 10 companhias, de onde extraímos, de seguida, a raiz quadrada: 2250 = 47, sobram 41

Os soldados piqueiros do terço formariam num esquadrão quadro de gente de 47 fileiras a 47 soldados por fileira; os 41 que sobram, não chegando para completar uma 48.ª fileira, pelo que formariam ao lado das bandeiras, como indicado por Luís Álvaro Seco: Desta fileira de bandeiras não cheguara ao cornos della diguo os dous derradeiros alfereses a fiquar iguais dos dous piqueiros que fiquam diante delles e no centro das fileiras do esquadrão fiquar intervalo de duas fileiras, e no meo deste intervalo fiquarão as bandeiras co os embandeirados, tambores e pifaros diante.1

As duas companhias de arcabuzes distribuíam-se pelas ilhargas guarnecendo o esquadrão de piqueiros, em 47 fileiras de 5 soldados. Guarnecido o esquadrão com o efectivo de atiradores orgânico do próprio

No nosso caso particular, seria provavelmente apenas uma manga, posicionada no flanco direito com as mesmas 47 fileiras do esquadrão a 14 homens cada uma, a distância conveniente do «esquadrão, lontana della manica otto piedi»3. 2.4

Como já vimos, com os soldados dos 4 terços construíram-se 4 esquadrões quadros de gente, de 35 fileiras a 35 homens cada uma. No que respeita às 2 companhias de atiradores de cada terço, os cronistas indicam o reforço da segunda linha com «mangas soltas de arcabuzerios», provavelmente em número de 2, que nesse caso deveriam contar com 16 soldados distribuídos pelas mesmas 35 fileiras do esquadrão, num total de 560 atiradores, isto à semelhança da formatura dos soldados castelhanos. O efectivo ascenderia a 2000 homens distribuídos por 10 companhias; os piqueiros organizavam-se em 8 companhias totalizando 1600 soldados. 1600 = 40

20 mosqueteiros de cada das 8 companhias piqueiros: 160 homens 200 soldados cada companhia de atiradores 400 homens Total: 560 homens 2

1

Luís Álvaro Seco, op. cit., p. 214.

Os terços de soldados das ordenanças

3

Francisco de Valdés, op. cit., p. 47. Girolamo Cataneo, tavole brevissime, p. 35.

190

Na retaguarda, atiradores distribuir-se-iam em «guarnição» pelas duas ilhargas dos esquadrões com o mesmo número de fileiras, a 35 fileiras com 5 soldados por fileira; os 210 atiradores sobrantes deveriam «cingir a retaguarda», 42 homen em 5 fileiras.

3. A ordem de batalha no dia 4 de Agosto de 1578 Chegado o dia da batalha, inicia-se ainda no acampamento o processo que conduz à construção da formatura do exército de acordo com o que havia sido planeado, e logo se revelam condicionantes que impedem a aplicação do desenho previsto. O episódio da discórdia entre s aventureiros e espanhóis teve como consequência a ficou a vanguarda permanecer dividida em 3 corpos em vez dos dois que estavam previstos. Esta alteração provocou uma revisão geral do desenho, uma vez que se o reforço dos esquadrões com mangas de arcabuzeiros. Assim, para guarnecer o esquadrão dos aventureiros com atiradores, foi necessário retirar alguns soldados das fileiras que se achavam dispostas nas mangas da vanguarda pela mão direita do esquadrão dos tudescos, e na mão esquerda dos castelhanos. A manga dos castelhanos foi construída pelo sargento-mor do exército, Francisco Aldana, e pelo sargento-mor dos Castelhanos e Aventureiros, D. Alonso de Aguilar, que acordaram «que as fileiras da manga esquerda tivessem dezassete arcabuzeiros»1. A necessidade de guarnecer o esquadrão dos aventureiros com atiradores, levou Aldana a ordenar a Alonso de Aguilar que das fileiras das mangas «tirasse de cada uma 6 soldados»2, o que terá deixado o esquadrão dos soldados castelhanos com uma manga com 11 italianos 1

José Pereira Baião op. cit., p. 603. Pereira Baião teve certamente acesso a uma relação hoje desconhecida, que discriminata o número de fileiras que guarnecia o esquadrão dos castelhanos. 2 Id, ibid.

por fileira, para além da guarnição que como já se viu seria formada pelos atiradores das companhias do terço. No lado direito da vanguarda do exército, onde foi colocado o terço dos soldados alemães, podemos supor que terá sido retirado igual número de arcabuzeiros que se encontravam destinados a guarnecer a mão direita do esquadrão dos aventureiros, que assim terá ficado com guarnição de 7 arcabuzeiros a 35 fileiras. A cavalaria foi organizada em dois corpos principais, contando com uma parte de acubertados e ligeiros à «estradiota», situados a distância conveniente dos esquadrões de infantaria, «por lo menos de quinze a veynte passos de la cavalleria a el esquadron»3. Destes, o esquadrão mais forte – comandado pessoalmente pelo rei – foi posicionado na mão esquerda ordenado em quadro de gente, e outro na direita comandado pelo duque de Aveiro. O contingente aliado reforçou este lado do exército, enquanto os cavalos ligeiros das praças de África, comandados por D. Duarte de Meneses, foram colocados mais à frente na mesma mão; o exército iniciou então a marcha de encontro ao inimigo (Imagem 53). De novo as circunstâncias vão ditar a alteraração da formatura planeada. Chegados ao alcance da artilharia de Abd al-Malik, que se encontrava habilmente camuflada segundo o costume otomano, os cristãos são alvejados pelos canhões ao mesmo tempo que a cavalaria rodeava o campo e atacava pela retaguarda. Assim, tendo o exército português parado para passar à ordem de batalha, não tem tempo de completar a formatura, pelo que foi necessário combater com alguns dos esquadrões na forma e posição que traziam em marcha; foi o que aconteceu na retaguarda, precisamnete o local onde se iniciou o ataque dos mouros. 3

Juan de Carrion Pardo, op. cit., p. 25.

191

Imagem 53 – A formatura do exército cristão, 4 Agosto de 1578 Cada soldado ocuparia um quadrado com 1 passo de lado; distância entre esquadrões (e mangas) 8 passos; distância entre cada uma das três linhas 20 passos. A frente do exército teria uma dimensão de 466 passos; as três linhas escalonavam-se por uma profundidade de 894 passos.

Assim, a vanguarda foi ordenada com os «três esquadrones, cada uno de porssi, apartados a poça distancia, en línea recta»1, atrás destes os dois «terços» das ordenanças num único esquadrão e uma praça livre; por fim, os dois terços que marchavam na retaguarda, e «ainda nas costas desta terceira ordem se lançaram outras duas mangas»2 que deveriam contar com soldados armados com mosquetes. O esquadrão da segunda linha foi aquele que seguiu a formatura planeada, com «dois terços juntos num esquadrão de vinte bandeiras, que tinha perto de cinco mil homens»3, provavelmente reforçados com duas «mangas» de atiradores com efectivo idêntico ao contingente com que se fechou a retaguarda.

1

Luís de Oxeda, op. cit., pp. 28-29. Frei Bernardo da Cruz, op. cit., p. 66. 3 Crónica do Xarife Mulei Hamet e de El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 195. 2

192

APÊNDICE 2: A IMAGEM DOS SOLDADOS PORTUGUESES NO SÉCULO XVI Um problema crucial coloca-se ao investigador que se propõe fazer o levantamento da iconografia militar portuguesa de quinhentos. Para além da quase total ausência de trabalhos sobre o tema, as fontes disponíveis encontram-se dispersas, situação que se coloca com maior acuidade quando nos debruçamos sobre a segunda metade de quinhentos. Imagem 54 – Fresco da Conquista de Azamor a. Desembarque

A principal fonte iconográfica para o estudo do soldados portugueses na segunda metade do século XVI consiste, sem sombra de dúvida, nos frescos existentes no paço ducal de Vila Viçosa. O conjunto, constituído por 3 painéis, retrata a conquista de Azamor pelo duque de Bragança, D. Jaime, e aí podemos observar todos os aspectos relacionados com a prática militar, desde a indumentária ao armamento utilizado em batalha pelos portugueses. Não é possível determinar o autor com toda a certeza, embora o pintor oficial do duque, André Peres, seja um forte candidato1. Embora sobrepondo-se a uma versão anterior, a sua feitura data do final do século XVI, segundo Vítor Serrão na «transição do século XVI para o XVII». Outras fontes iconográficas existem, como as tapeçarias ditas de D. João de Castro, que embora de meados do século, são uma incontornável fonte de iconografia militar. Também as vistas da batalha de Alcácer Quibir integradas na relação do veterano Miguel Leitão de Andrada, embora executadas alguns anos depois da batalha, complementam o corpo iconográfico principal neste apêndice. Seguindo o mesmo critério utilizado ao longo do trabalho, procurou- i “ ” g para o testemunho directo – os frescos do paço ducal, de onde se retiram determinados detalhes. Utiliza-se outra iconografia em paralelo, nomeadamente o manual de Jacob de Gheyn que descreve a manobra das duas principais armas no campo de batalha quinhentista, o pique e o arcabuz. Acrescentaram-se ainda excertos do Regimento de Guerra e do Quarto Livro das Instruções Militares, de forma a construir um conjunto de informação cruzada, escrita e iconográfica. 1

Vítor Serrão, Os frescos maneiristas do Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (1540-1640), manuscrito.

193

b. «A preparação do cerco» e

c. « O cerco»

194

195

Imagem 55 – Tapeçaria, série D. João de Castro, «Cortejo triunfal»

196

Imagem 56 – Do sargento 1 «D v i

g

v

(…) mas pello j …»

«…

1

Isidoro de Almeida, op. cit., p.147

i

«…C Coura de malha…»

2

i

v

C

D

g

, ou

g .» 2

Id, ibid, p.151

197

Imagem 57 – «Aos homens grandes, ou meãos, estaa lhes

«O pique se deve levar ao hombro permeado, & algum tanto inclinado por diante, tomado ũ j , & o cotovelo alto, & a outra na espada, ou na adaga2»

«Deve se saber arvorar com graça [o pique], como se costuma ãntre os soldados velhos. Sendo necessário nos esquadrões, mover se o elle arvorado, deveo levar com ho o braço». 1

1

Isidoro de Almeida, op. cit., p.131

2

Id. ibid.

198

Imagem 58 – A manobra dos piqueiros – «Terçar os piques» «El calar y terciar de las picas para pelear, há de ser de suerte que quede el soldado firme de pies, que es lo que hace el caso para el bote de ella; y se há de aferrar la pica para hacer buen golpe firme; y par bien sustentarla en las manos (…) la tiene aferrada com la mano izquierda, hasta el cuento haya sete palmos, que si demás atrás la toma no podrá sustentar por gallardo que sea, y le quedan de hueco 18 palmo por lo menos, que no ha de haber pica de menos de 25 palmos»1

Q v

1 2

v ç

i

j iff o ambas as mã, deixando a maior parte por di pêra traz »2.

Martín de Erguiluz, op. cit., p. 166 Isidoro de Almeida, op. cit., p.131

199

M

[ v ix

1

]

v fi

1

Isidoro de Almeida, op. cit., p.132.

200

Imagem 59 – arcabuz» «O arcabuzeiro há de v ç i

v …

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]



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i

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.»2

1

L

I i A v E : porque siendo derecha, assienta mejor en el pecho, hállase más presto al punto sin bajar la cabeza, ni torcer el ojo buscándole, cosa de much importância a la buena puntería»3

2 1

Isidoro de Almeida, op. cit, p.132.

3

j

Id., ibid., p.133. Sancho Londono, op. cit., p.35

201

Q

Imagem 60 – «Das obrigaçoes, que tem hum Soldado particular, principalmente Arcabuzeiro» 1

1

Martim Afonso de Melo, op. cit., 327.

g [

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ç v

2

á f g

f f v i

2

Isidoro de Almeida, op. cit., p.133.

202

Imagem 61 – «Ao Alferez toca levar a bandeira na ordenança» 1 «…

1

i vi

Isidoro de Almeida,op. cit., p.155.

i ũ & com a espada na outra»

Imagem 62 – «Do atambor geral» «H ái Af j ũ necessário recolha à bandeira os soldados» 2

2

i

f

Id, ibid., p.156

203

Imagem 63 – Cavalos portugueses de Quinhentos a. Cavalaria ligeira, a «gineta» b. Cavalaria pesada, os «acobertados» «Posto que modernamente se tenha começado a introduzir algum número pequeno de cavalos acobertados nas fronteiras de África para susterem o couce nos recolhimentos e tranqueiras.»1

1

Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, op. cit., p. 87.

204

Imagem 64 – As «Armas brancas» de Gonçalo Nunes Barreto

«Para seguridad de los que han de estar firmes com las picas en los esquadrones, se i j f iv i i (…) a saber, petos, espaldares,escarcelas, brazales, guardabrazos, manoplas, celadas.» 1

Imagem 65 – Meia-armadura milanesa (c.1580) 1

Sancho de Londono, op. cit., p.34

205

Imagem 66 – As «armas azuladas» de D. Sebastião

Imagem 67 – A influência clássica na armaria

a. Capacete coríntio, Grécia (séc. VI a.C.).

b. Barbuta italiana (séc. XV), e borgonhesa alemã (1580)

206

BIBLIOGRAFIA E ICONOGRAFIA I. FONTES BIBLIOGRÁFICAS 1. Crónicas e Relações Manuscritos ANÓNIMO, Livro da barca da cidade de Tânger, 1652, Biblioteca Nacional. ANÓNIMO, Relação da rota de D. Sebastião feita por um captivo; plano schematico da batalha; rol dos captivos, 1578, Biblioteca Nacional. ANÓNIMO, Tratado de Arquitectura, 1575-1576. PORTALEGRE, 5.º Conde de, Relações das cousas principaes q sucederão em Portugal em tempo del Rey D. Sebastião, 1640, Biblioteca Nacional. RESENDE, André de, «Batalha de Alcácer-Quibir, 1578», in Apontamentos e trechos de obras sobre História de Portugal dos reinados de Dom Manuel, Dom João III, Dom Sebastião e período filipino, Biblioteca Nacional. Impressos ANDRADA, Miguel Leitão de, Miscelânea, ed. Miguel Marques Duarte, edição fac-similada da 2.ª edição 1867, Lisboa, INCM, 1993. ANONIMO, «Relacion de La bataille de El-Ksar El-Kebir – Le captife portugais», in Henry de Castries, Les sources inédites pour l’histoire du Maroc, França, v. 1, Paris, Ernest Ledoux, 1904. ANONIMO, «Relacion de le capitfe italien», in Henry de Castries, Les

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b. Giovanni Matheo Cicogna, Il primo libro del Trattato militare, 1567 Imagem 3 – Esquadrão em forma de «galé» Giovanni Matheo Cicogna, op. cit. Imagem 4 – Auxiliares de cálculo: «taboadas de esquadrões» a. Juan de Carrion Pardo, Tratado de como se deven formar los quatro esquadrones en que milita nuestra nación Española, 1595 b. Girolamo Cataneo, Tavole brevissime, op. cit. c. Martim Afonso de Melo, op. cit. Imagem 5 – Formas fortificadas «arcaicas» e «modernas» a. Girolamo Maggi, Giacomo Castriotto, Fortificatione delle cittá, libri tre, 1564 b. Id, ibid. c. Francisco de Holanda, Álbum dos Desenhos das Antigualhas,1989 Imagem 6 – As linhas de tiro e a fortificação angular a. Girolamo Cataneo, Dell’Arte Militare libri tre, nel quali se tratta il modo di fortificare, offendere, et deffendere una fortrezza, 1571 b. Id, ibid. c. Sebastiano Serlio, The Five Books of Architecture: an unabridged reprint of the English edition of 1611, 1982 d. Pietro Cataneo, I quatro primi libri di architettura, 1554 Imagem 7 – Fortificações portuguesas no Norte de África a. Pedro Dias, A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos 1415-1769, 2000 b. Vergílio Correia, Três cidades de Marrocos, sd c. Elaine Sanceau, Catelos em África, 1961 Imagem 8 – «Cortine piegate» a. Girolamo Maggi, op. cit. b. Pedro Dias, op. cit. Imagem 9 – O sistema abaluartado no território português

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a. História das Fortificações Portuguesas no Mundo, dir. Rafael Moreira, 1987 b. Esquema do autor sobre planta da DGEMN, http://www.monumentos.pt, Setembro 2007.e Said Mouline, Repers de la memoire, 1996 c. Pedro Dias, op. cit. d. Esquema do autor sobre planta de Said Mouline, op. cit. e. UNESCO, http//:whc.unesco.org, Setembro 2007. Imagem 10 – O baluarte angular em Portugal na segunda metade de quinhentos a. Anónimo, Tratado de Arquitectura, 1575-1576 b. Girolamo Cataneo, Dell’Arte Militare Libri cinque, 1584 Imagem 11 – Igrejas «militarizadas» da segunda metade de quinhentos a. Fotografia do autor b. DGEMN, http://www.monumentos.pt, Setembro 2007. Imagen 12 – Reparo de artilharia segundo Filippo Terzi (1578) Filippo Terzi, Estudos sobre embadometria, estereometria e as ordens de arquitectura, 1578 Imagem 13 – A arte e guerra a. Eduardo Nobre, As armas e os barões, 2004 b. Peter Krenn, e Walter J. Karcesky, Imperial Austria, treasures of art, arms and armor from the state of Styria, 1992 c. Peter Krenn, e Walter J. Karcesky, op. cit. d. A-GODOY, José, e LEYDI, Silvio, Parures Triomphale, Le manierisme dans l’art de l’armure italienne, catálogo exposição, 2003 Imagem 14 – A forma quadrada na arquitectura a. Mancha do autor sobre esquema in Rudolf Witkower Architectural Principles in the Age of Humanism, 1988 b. Sebastiano Serlio, op. cit. Imagem 15 – Triângulos, quadrados, pentágonos e hexágonos

a. Francisco de Holanda, Da fábrica que falece à cidade de Lisboa, 1984 b. DGEMN, http://www.monumentos.pt, Setembro 2007. c. Diego Gonçalez de Medina Barba, Exámen de fortificación, 1598 d. Girolamo Cataneo, op. cit. e. Anónimo, Tratado de Arquitectura, op. cit. Imagem 16 – Representações em perspectiva da cidade e do campo de batalha a. Pietro Cataneo, op. cit. b. Girolamo Cataneo, Dell’Arte Militare libri tre, op. cit. Imagem 17 – A forma da cruz na arquitectura e na guerra a. Diego de Salazar, Tratado de re militari, 2000 b. Francesco Ferretti, Della observança militare del capitán Francesco Ferretti, 1568 c. Giovanni Matheo Cicogna, op. cit. d. Deswarte, As Imagens do Mundo de Francisco de Holanda, 1987 e. Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, Clasical architecture, the poetics of order, 1999 f. DGEMN, http://www.monumentos.pt, Setembro 2007. Imagem 18 – «O lugar do esquadrão é no meio de todas as mais coisas nomeadas» a. Girolamo Cataneo, Tavole brevissime, op. cit. b. Luís Mendes de Vasconcelos, Arte Militar, 1611 Imagem 19 – As mangas dos esquadrões a. Francesco Ferretti, op. cit. b. Girolamo Cataneo, Dell’Arte Militare Libri tre, op. cit. Imagem 20 – Os arcabuzeiros nas quinas do «esquadrão» a. Sebastiano Serlio, op. cit. b. Pietro Cataneo, op. cit. c. Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit.

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d. Giovaccino da Coliamo, op. cit. Imagem 21 – A guarnição dos «esquadrões» a. Girolamo Cataneo, Tavole brevissime, op. cit. b. Charles Oman, Art of War in the sixteen Century, 1987 Imagem 22 – As alas Girolamo Cataneo, Libro Terzo delle tavole brevissime, op. cit. Imagem 23 – Grelhas geométricas a. Esquema do autor. b. Anónimo, Tratado de Arquitectura, op. cit., Teoria da arquitectura do Renascimento aos nossos dias, op. cit. c. Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, op. cit. d. Sebastiano Serlio, op. cit. Imagem 24 – As tipologias de esquadrões «que ha a gente española aprova» a. Aurelio Cicuta, op. cit. b. Girolamo Cataneo, Dell’Arte Militare Libri cinque, op. cit. c. Giovaccino da Coliamo, op. cit. Imagem 25 – A proporção a. Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit. b. Sebastiano Serlio, op. cit. c. Teoria da arquitectura do Renascimento aos nossos dias, op. cit. Imagem 26 – Formaturas militares tripartidas a. J. R. Hale, Artists and Warfare in the Renaissance, 1998 b. Giovaccino da Coliamo, op. cit. Imagem 27 – As bandeiras no esquadrão segundo o princípio da simetria Luís Mendes de Vasconcelos, op. cit. Imagem 28 – Ordenar um esquadrão «quadro de terreno» M. Erguiluz Martín de Erguiluz, op. cit. Imagem 29 – Esboços de edifícios e formaturas militares a. Richard Brezezinsky, Lützen 1632, 2001

b. Las fortificaciones de Carlos V, op. cit., Imagem 30 – Formatura do exército prevista para Alcácer Quibir Esquemas do autor Imagem 31 –Companhias em marcha segundo Vasconcelos (1611) Esquema do autor Imagem 32 – O processo de «dobrar as fileiras» a. Battiste della Valle, op. cit. b. Esquema do autor Imagem 33 – O exército português em marcha, de 28 Julho a 4 de Agosto de 1578 Esquema do autor Imagem 34 –Vanguarda: «A gente mais escolhida e honrada» Esquema do autor Imagem 35 –Segunda linha: a gente bisonha Esquema do autor Imagem 36 –Retaguarda: A gente acostumada aos rebates Esquema do autor Imagem 37 – Os esquadrões de cavalos Esquema do autor Imagem 38 – O batalhão de cavalos «adonde ia la persona real» Esquema do autor Imagem 39 – A viagem da frota portuguesa até Arzila Esquema do autor sobre mapa de Pierre Berthier, La Bataille de L’Oued El-Makhazen, ditte battaile dês trois Róis (4 Aout 1578), 1985 Imagem 40 – Localização de Arzila Escola naval e escola do exército em Alcácer Quibir, in sup. da revista do exército n.º 94 Imagem 41 – Larache no século XVII António Dias Farinha, Plantas de Mazagão e Larache no

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início do século XVII, separata n.º 187 Imagem 42 – A marcha do exército Esquema do autor sobre mapa in Escola naval e escola do exército em Alcácer Quibir, op. cit. Imagem 43 – Acampamento de 3 de Agosto e local da batalha Esquema do autor sobre mapa in José de Esaguy, O minuto vitorioso de Alcácer Quibir, 1944. Imagem 44 – A ordem de batalha do exército português a. Anónimo, Relação da rota de D. Sebastião feita por um captivo; plano schematicoda batalha; rol dos captivos, 1578 b. «Em torno de D. Sebastião», in Oceanos n.º 9, José de Esaguy, Marrocos, 1933 Imagem 45 – Os combates iniciais entre as vanguardas dos dois exércitos a. Esquema do autor b. Esquema do autor Imagem 46 – Os aventureiros, «cujo rosto havia de sair um pouco adiante dos outros esquadrões» Miguel Leitão de Andrada, Miscelânea, 1993 Imagem 47 – O ataque e retirada da vanguarda do exército português a. Esquema do autor b. Esquema do autor Imagem 48 –Batalha: A gente bisonha Esquema do autor Imagem 49 –Retaguarda: A gente acostumada aos rebates Esquema do autor Imagem 50 – As alas de cavalaria a. Esquema do autor b. Esquema do autor Imagem 51 – D. Sebastião e Jorge de Albuquerque Miguel Leitão de Andrada, op. cit.

Imagem 52 – A formatura do terço dos castelhanos Esquema do autor Imagem 53 – A formatura do exército cristão a 4 de Agosto de 1578 Esquema do autor Imagem 54 – Fresco da Conquista de Azamor Palácio ducal de Vila Viçosa Imagem 55 – Tapeçaria da série D. João de Castro, «Cortejo triunfal» Kunsthistorisches Museum, Viena Imagem 56 – Do sargento Palácio ducal de Vila Viçosa, Museu Militar de Lisboa, Jerónimo Corte-Real, Cod Cadaval, ANTT Imagem 57 – Jacob de Gheyn, Palácio ducal de Vila Viçosa Imagem 58 – «Ao Jacob de Gheyn, Kunsthistorisches Museum, Viena, Catedral St. Denis, Paris Imagem 59 – ho arcabuz» Palácio ducal de Vila Viçosa, Museu Militar de Lisboa, Landeszeughaus Graz Museum, Stiria Imagem 60 – «Das obrigaçoes, que tem hum Soldado particular, principalmente Arcabuzeiro» Jacob de Gheyn Imagem 61 – «Ao Alferez toca levar a bandeira na ordenança» Palácio ducal de Vila Viçosa Imagem 62 – «Do atambor geral» Kunsthistorisches Museum, Viena Imagem 63 – Cavalos portugueses de Quinhentos

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a. Palácio ducal de Vila Viçosa, MNAA Lisboa b. Kunsthistorisches Museum, Viena Imagem 64 – As «armas brancas» de Gonçalo Nunes Barreto Cleveland Museum, Cleveland Imagem 65 – Meia-armadura milanesa (c.1580) Fitzwilliam Museum, Cambridge Imagem 66 – As «armas azuladas» de D. Sebastião Colecção particular, Espanha Imagem 67 – A influência clássica na armaria Cleveland Museum, Wallace collection, Landeszeughaus Graz Museum, Stiria

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