Aldeias do Xisto - o turismo como futuro para áreas rurais

September 1, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: Architecture, Rural Development, Tourism, Arquitectura, Turismo, Desenvolvimento Rural
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ALDEIAS DO XISTO o turismo como futuro para áreas rurais

ALDEIAS DO XISTO o turismo como futuro para áreas rurais

sob orientação do professor doutor

Álvaro Domingues joão pedro antunes dias :: 2010:2011 :: dissertação de mestrado

faup

agradecimentos ao professor Álvaro Domingues pela orientação, conversas e sugestões, à minha família pelo apoio incondicional, à Andreia pela dedicação e paciência, a todos os que deram o seu contributo e colaboração, e a todos os amigos…

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resumo Actualmente, a abordagem ao conceito de 'rural' está longe de ser consensual e imediata. Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais sofreram alterações profundas que se reflectiram no território, afastando-o das definições que se foram construindo e que prevalecem no imaginário colectivo. O drama começa quando se constata a descolagem entre espaço e função. Com o declínio da agricultura tradicional, as áreas rurais perderam o carácter de espaço produtivo, ficando à deriva sem uma vocação definida e com os problemas habituais relacionados com o abandono, o envelhecimento e a dificuldade em fixar emprego. Neste contexto, o turismo é frequentemente assumido como tábua de salvação para as áreas rurais 'despojadas da sua razão de ser' e é promovido com a finalidade de 'perpetuar a ruralidade'. Vai assim de encontro à vontade da sociedade – preservar os costumes, paisagens, natureza e cultura dos meios rurais. Mas, mais do que conservar o rural, o turismo reinventa-o, estimulando a procura de novas vocações para estas áreas. A influência dos vários agentes (Estado, visitantes, populações) modela um novo rural, baseado em expectativas e na vontade de ir ao encontro delas. A resposta mais frequente aos problemas levantados pela 'desruralização', passa pelos programas de desenvolvimento rural focados no turismo. O trabalho centra-se na Rede 'Aldeias do Xisto' fazendo deste projecto o seu caso de estudo. Quando intervém neste tipo de territórios e contextos, é dever do arquitecto conhecer os processos que geraram a realidade actual, de forma a ter fundamentos, certezas e legitimidade nas suas acções. É neste âmbito que se insere este trabalho.

Palavras-chave: Turismo, Rural, Vernacular, Património, Aldeias do Xisto

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abstract Nowadays, the 'rural' concept is far from a consensual and immediate approach. In recent decades, Western societies have suffered deep changes which were reflected in the territory, away from the definitions that were being built and which prevail in the collective imagination. The drama begins when we see the parting between space and function. With the decline of traditional agriculture, rural areas lost the character of productive space, getting adrift without a definite vocation and with the usual problems related to abandonment, ageing and difficulty in securing employment. In this context, tourism is often seen as a lifeline for rural areas 'deprived of its being raison' and it is promoted to 'perpetuate rurality'. Therefore it meets the will of society – to preserve customs, landscapes, nature and culture of the countryside. But, more than conserve the rural tourism reinvents it, stimulating the inquiry for new vocations for these areas. The influence of some agents (State, visitors, populations) models a new rural based on expectations and the desire to meet them. The most frequent answer to issues raised by the 'desruralization', passes through rural development programes focused on tourism. The work focuses on 'Aldeias do Xisto' Network making this project its case study. When it takes part in this type of territories and contexts, it is the architect’s duty to know the processes that have generated the present reality to take pleas, certainties and legitimacy in his actions. It is in this context that this work fits.

Keywords: Tourism, Rural, Vernacular, Heritage, Aldeias do Xisto

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résumé Actuellement, l'approche de la notion de 'rural' est loin d’être consensuel et immédiate. Au cours des dernières décennies, les sociétés occidentales ont subi de profonds changements qui sont reflétés dans le territoire, loin des définitions qui ont étés construites et qui prévalent dans l'imaginaire collectif. Le drame commence quand on voit la séparation entre l'espace et la fonction. Avec le déclin de l'agriculture traditionnelle, les zones rurales ont perdu le caractère d’espace productif, en laissant aller sans une vocation précise et avec les problèmes habituels liés à l'abandon, le vieillissement et la difficulté d'obtenir un emploi. Dans ce contexte, le tourisme est souvent donné comme une bouée de sauvetage pour des zones rurales 'privées de sa raison d'être' et il est promu avec le but de 'perpétuer la ruralité'. Il va ainsi au rencontre de la volonté de la société – préserver les coutumes, les paysages, la nature et la culture de la campagne. Mais, en plus de conserver le rural, le tourisme le réinvente en stimulant la demande de nouvelles vocations de ces domaines. L'influence des différents agents (l’État, les visiteurs, les populations) modèle un nouveau rural, fondé sur les attentes et le désir de les rencontrer. La réponse plus fréquente aux questions soulevées par la 'desruralisation', passe par les programmes de développement rural axés sur le tourisme. Le travail se concentre sur le Réseau 'Aldeias do Xisto' en faisant de ce projet son étude de cas. Quand il intervient dans ce type de contextes et de territoires, c’est un devoir de l'architecte de connaître les processus qui ont généré la réalité actuelle pour avoir des fondements, des certitudes et de la légitimité dans ses actions. C'est dans ce contexte que s'insère ce travail.

Mots-clé: Tourisme, Rural, Vernaculaire, Patrimoine, Aldeias do Xisto

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índice

agradecimentos ............................................................................................................................................................................................... 3 resumo | abstract | résumé................................................................................................................................................................ 5, 7, 9 índice .................................................................................................................................................................................................................. 11 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................. 13 Objectivo ........................................................................................................................................................................................................................... 15 Método e Estrutura ..................................................................................................................................................................................................... 17 VERNACULAR ................................................................................................................................................... 19 1.1. O vernacular na arquitectura ....................................................................................................................................................................... 21 1.2. Um percurso pelo tema, na sociedade e na arquitectura portuguesas ............................................................................... 25 1.3. Outros 'vernaculares' e novos desafios .................................................................................................................................................... 35 RURAL .............................................................................................................................................................. 39 2.1. Um mundo a redesenhar-se .......................................................................................................................................................................... 41 2.2. O declínio da actividade agrícola ............................................................................................................................................................... 47 2.3. As ideias e os sentimentos colectivos ...................................................................................................................................................... 53 2.4. Das ruínas à patrimonialização .................................................................................................................................................................... 59 TURISMO ......................................................................................................................................................... 63 3.1. Fenómeno turístico, das origens ao 'novo turista' ............................................................................................................................ 65 3.2. Turistas ou Viajantes? um fenómeno de contradições ................................................................................................................ 69 3.3. Turismo Rural ......................................................................................................................................................................................................... 73 3.4. O turismo como promotor do desenvolvimento nas áreas rurais ......................................................................................... 77 3.5. Os programas de desenvolvimento turístico/patrimonialização ........................................................................................... 83 ALDEIAS DO XISTO .......................................................................................................................................... 87 4.1. Território ................................................................................................................................................................................................................... 89 4.2. Apresentação do programa ........................................................................................................................................................................... 91 4.3. A selecção e as intervenções nas aldeias ................................................................................................................................................ 93 4.4. A organização em rede e a estratégia territorial..............................................................................................................................103 4.5. A criação de uma 'marca' ..............................................................................................................................................................................107 4.6. Projectos Røros e EcoArq ..............................................................................................................................................................................111 JANEIRO DE CIMA .......................................................................................................................................... 119 5.1. Enquadramento territorial e histórico ..................................................................................................................................................121 5.2. Evolução do aglomerado e organização socioeconómica .........................................................................................................127 5.3. As intervenções ...................................................................................................................................................................................................131 5.4. Uma leitura pós intervenção.......................................................................................................................................................................137 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................................ 139 Conclusões ......................................................................................................................................................................................................................141 fontes bibliográficas .................................................................................................................................................................................. 145 fontes iconográficas .................................................................................................................................................................................. 151

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INTRODUÇÃO

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Objectivo Ao longo das últimas décadas, a sociedade portuguesa tem sofrido alterações relevantes que influenciaram as áreas rurais e também as representações sociais sobre essas mesmas áreas. De um modo geral, podemos dizer que a maioria das áreas rurais passou de 'espaços produtivos de alimentos' a 'espaços-reserva', guardiães da natureza e das memórias do passado. Desta descolagem entre espaço e função, resulta um território angustiado, assolado pela desertificação, pelo envelhecimento e pela falta de emprego. Tendo em conta as transformações do mundo rural, alguns autores apontam diferentes caminhos para as estas áreas. Procuramos neste trabalho, perspectivar esses 'rumos possíveis' para os territórios da 'pós-ruralidade'. O turismo rural é hoje reconhecido pelas suas potencialidades socioeconómicas, sendo visto como um motor de desenvolvimento local, capaz de responder aos problemas decorrentes do declínio da agricultura tradicional. Neste contexto, é frequentemente assumido como tábua de salvação para as áreas rurais, 'despojadas da sua razão de ser' e é promovido com o intuito de 'perpetuar a ruralidade'. Como refere Olivier Balabanian, "quando não sabemos mais o que fazer por uma região rural frágil, quando o êxodo populacional parece ser inexorável, quando tudo o que podemos imaginar como apoio à agricultura e aos agricultores parece ineficaz, um recurso é aparentemente sempre fácil: o turismo verde – ou seja, o turismo integrado nos espaços e nas sociedades rurais". Esta actividade vai assim de encontro aos anseios da sociedade actual – preservar os costumes, paisagens, natureza e cultura dos meios rurais. Mas, mais do que conservar o rural, o turismo reinventa-o, estimula a procura de novas vocações para estas áreas. A influência dos vários agentes (Estado, visitantes e populações) modela um novo rural, baseado em expectativas e na vontade de ir ao encontro delas. Quando intervém neste tipo de territórios e contextos, é dever do arquitecto conhecer os processos que geraram a realidade actual, de forma a ter fundamentos, certezas e legitimidade nas suas acções. Com este trabalho pretendemos suscitar uma reflexão em torno da preservação e intervenção no mundo rural, com o intuito de analisar as influências geradas pelo fenómeno turístico. Abordaremos ainda a questão do património arquitectónico e cultural e o modo como este é convertido em 'espaço-cénico' indispensável à construção de um 'novo rural' transformado em destino turístico. Perceber de que forma se desenvolvem este tipo de intervenções e quais os factores e valores que as influenciam, é também um dos objectivos da dissertação. A metodologia de trabalho adoptada assenta num processo composto por duas pesquisas paralelas. Por um lado uma investigação em torno das questões teóricas levantadas pelo tema proposto, por outro um processo de análise do programa 'Aldeias do Xisto' e da aldeia de Janeiro de Cima, que permitiu interpretar os quadros de actuação para o lugar em questão.

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Método e Estrutura O percurso de investigação que levou ao presente trabalho iniciou-se com uma pesquisa, recolha e selecção bibliográfica relativa aos objectos de estudo e a um conjunto de temas e conceitos paralelamente abordados. Pela natureza das temáticas levantadas, desde cedo surgiu a necessidade de cruzar diferentes pontos de vista e bibliografia provinda de diversas áreas disciplinares (arquitectura, sociologia, antropologia, geografia, história). Em paralelo, foi desenvolvido trabalho de campo, que permitiu ir confrontado algumas questões suscitadas com a realidade presente nas áreas em estudo. Estas visitas permitiram ainda recolher elementos (levantamento fotográfico, cartografia, bibliografia específica) fundamentais para o desenvolvimento do estudo de caso. Relativamente à estrutura da dissertação, distinguem-se dois andamentos distintos (um corpo teórico e o caso de estudo), organizados em cinco capítulos, com temáticas distintas mas sequenciais:

VERNACULAR | Por ser um tema constante (directa e indirectamente) ao longo de todo o trabalho, o primeiro capítulo aborda o 'vernacular', fazendo uma contextualização do tema na arquitectura desde as origens até ao século XX. Procura-se também enunciar uma série de desafios levantados pela actualização deste conceito.

RURAL | No segundo capítulo faz-se uma reflexão sobre o conceito de 'rural' e os problemas que a descolagem ente espaço e função trouxeram a esta definição. São também abordados o processo de desruralização do país, as ideias construídas acerca do tema e a influência que têm no imaginário colectivo actual. Por último, caracteriza-se o processo de valorização simbólica a ocorrer sobre as áreas rurais, de que decorre o fenómeno da 'patrimonialização'.

TURISMO | O terceiro capítulo aborda o fenómeno turístico, com o intuito de perceber as influências das alterações sociais nesta actividade. Foca-se depois no surgimento do 'turismo rural' e procura entender este tipo de turismo como ferramenta para promover o desenvolvimento nas áreas rurais. caso de estudo:

ALDEIAS DO XISTO | Estuda-se neste capítulo um programa concreto e posto em prática. Desde as ideias que lhe deram início, o território que abarca, as várias vertentes em que actua e o esforço feito para a criação de uma imagem de 'marca'.

JANEIRO DE CIMA | Por fim, o trabalho foca-se numa das aldeias da rede 'Aldeias do Xisto' de modo a perceber as acções concretas deste tipo de programas. Depois de um enquadramento territorial, social e histórico, parte-se para uma abordagem das intervenções a uma escala mais próxima, a escala dos espaços colectivos de uma aldeia em concreto.

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VERNACULAR

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:: 01 | Branda de St.º António de Vale dos Poldros (1964)

:: 02 | Templo grego de Segesta, Sicília (430 a.C.)

1.1. O vernacular na arquitectura "Nas habitações das Aldeias do Xisto imperava a funcionalidade adaptada ao modo de vida rural, por isso numa casa tudo tem uma razão de ser. Esse abrigo para homens, e muitas vezes também para animais, está em simbiose com o meio que o rodeia. Espelha um modo de vida e uma paisagem cultural em técnicas, saberes e arquitectura vernacular. A base do trabalho é – como era – toda ela manual e adaptada às matérias-primas existentes na envolvente: xisto e madeira. Mas a técnica, o saber, em suma o engenho do Homem está naquilo que consegue adaptar à sua imagem: as casas são obras de autor, feitas à medida do uso pessoal e laboral (agrícola) do seu dono, muitas vezes com recurso a ferramentas também elas construídas à mão. O respeito por essa vivência muito particular dos antigos habitantes da casa, inscrita nas paredes, nos ferrolhos, na disposição da cozinha ou no remendo de portas, é o coração deste projecto." 1 É em torno de três pontos retratados neste texto – Homem, Lugar e Obra e as relações que entre eles se estabelecem, que se desenha o conceito de 'arquitectura vernacular'. O adjectivo provém do latim, 'vernaculus', que remetia para os "escravos que nasciam em casa por contraposição aos que eram recrutados algures com os seus estranhamentos". 2 Mais tarde, a palavra ganha outra conotação para designar as línguas plebeias faladas por oposição ao latim erudito. Explicada a etimologia, evidenciam-se os paralelismos entre o sentido da palavra no tempo dos romanos e os significados que o adjectivo toma hoje em dia: à arquitectura vernacular associamos formas de construir intimamente relacionadas com o lugar, o clima, a natureza, a paisagem, os modos de vida e os recursos materiais de uma dada região; por outro lado, tal como as línguas vernáculas, também estas construções são feitas pelo povo, resultando dos seus saberes empíricos, sem a preocupação de alcançar algum tipo de erudição. Inerente à arquitectura vernacular, a 'relação com o lugar' tem sido também objecto de reflexão da teoria da arquitectura e um tema presente na disciplina desde há muito. Primeiro, na Grécia Antiga: cidades, templos e teatros eram cuidadosamente implantados de forma a estabelecer uma relação harmoniosa com a paisagem. Depois, na mitologia romana através do conceito de 'Genius Loci': o mito que associava às características de cada lugar o temperamento da divindade que o governava; cada construção, desde a casa à cidade, devia então adequar-se ao lugar e consequentemente aos 'humores' da entidade divina que regia os destinos do local. O tema vai sendo retomado ao longo da história, nomeadamente no renascimento, com o ressurgir da cultura clássica, somando-se-lhe depois a poética da ruína. Mais tarde, já no século XVIII, o interesse volta a despertar desta vez como reacção ao barroco: a ligação entre o 1 2

RAMOS, 2008: Rede do património do xisto, p. 89: a propósito do projecto Røros integrado no programa 'Aldeias do Xisto' DOMINGUES, 2011: Vida no Campo, p. 193

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:: 03 | Jovem artista desenhando uma ruina, Claude Lorrain (1630)

:: 04 | Aldeia de Maria Antonieta, Versailles (1786)

Homem e a Natureza é apreciada pelas elites cultivadas, levando à recriação das 'cottages' medievais em Inglaterra por John Nash e à introdução de pequenas aldeias encenadas nos jardins reais franceses. No romantismo o fascínio pelo local associa-se aos revivalismos históricos e a linguagens arquitectónicas importadas de culturas exóticas. No século XIX virão os exacerbamentos nacionalistas e a construção de identidades, ora bebendo num passado mais ou menos mítico, ora na língua e na cultura, ora na descoberta das 'culturas populares' e dos seus patrimónios materiais e imateriais 3. Pela sua visibilidade, a arquitectura ocuparia aqui um lugar primordial. Apesar das influências que a relação com o lugar vai tendo ao longo da história da arquitectura, é já no decorrer do século XX que o tema ganha maior autonomia. A Arquitectura Vernacular passa então a valer por si; reconhece-se o seu valor patrimonial e sente-se a necessidade de a compreender e estudar. Centrando-se no contexto português, João Leal 4 aponta quatro momentos 'centrais na constituição de um campo de reflexão sobre a arquitectura popular em Portugal': o movimento da 'Casa Portuguesa', germinado no final do século XIX com o debate sobre a existência de um 'tipo português de habitação', formalizado depois nas ideias publicadas por Raul Lino; o 'Inquérito à Habitação Rural' levado a cabo por engenheiros do Instituto Superior de Agronomia na década de 40 que, além de abordar as construções incidia nas actividades e condições de vida dos residentes; o 'Inquérito à Arquitectura Popular' promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos no final dos anos 50; e ainda os estudos levados a cabo pelos antropólogos do Museu Nacional de Etnologia entre as décadas de 1950 e 1970. Pela sua importância na estruturação do 'vernacular' como tema de debate e reflexão na arquitectura (e na sociedade) portuguesa, percorremos a seguir estes quatro momentos.

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Cf. Peter Burke, La Cultura Popular en La Europa Moderna (1991, Madrid: Alianza). In: DOMINGUES, 2011: pp. 248-251 LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português

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:: 05 | Chalet da Condessa d’Edla, Sintra (1869)

:: 06 | Casita no Ribatejo, Raúl Lino (1933)

:: 07 | Casa rústica em Trás-os-Montes, Raúl Lino (1933)

:: 08 | Capa . Casas Portuguesas

1.2. Um percurso pelo tema, na sociedade e na arquitectura portuguesas O ambiente sociopolítico vivido em Portugal no final do século XIX, é marcado pelo despertar de sentimentos nacionalistas e patrióticos, numa sociedade conturbada que se preparava para por fim à monarquia. É neste contexto que no seio da elite artística portuguesa, germina o movimento da 'Casa Portuguesa'. Iniciado como uma discussão teórica em torno da existência de um 'tipo de habitação popular caracteristicamente português', o debate prossegue em torno de dois aspectos: por um lado uma forte recção contra os estrangeirismos, que proliferavam no país (nomeadamente os modelos de 'châlet' e 'cottage'); por outro, uma leitura da arquitectura popular portuguesa que tinha por detrás "um programa de tipo nacionalista, baseado na afirmação da identidade nacional". 5 O arquitecto Raúl Lino era então o principal impulsionador do movimento. Inicia a sua formação em Inglaterra e na Alemanha, onde contacta com movimento Arts and Crafts e com a 'vaga nacionalista' que proliferava na altura pelos países europeus. Marcado por estas influências regressa a Portugal em 1897. Nas vésperas da instauração do Estado Novo, Raúl Lino publica vários livros, entre os quais 'Casas Portuguesas' (1933), desde logo adoptado como 'manifesto' pelo movimento. Nessa obra o arquitecto faz uma leitura da arquitectura popular portuguesa, enaltecendo algumas das suas características e propõe "uma espécie de objectificação nacionalizadora da arquitectura popular portuguesa, tanto enquanto realidade existente no terreno como enquanto programa arquitectónico". 6 Apesar de algumas críticas pela relativa indiferença com que aborda as variações regionais, o livro torna-se um 'best seller'. Difunde-se pelas elites e também pela classe média portuguesa que o adopta como 'prontuário' de soluções arquitectónicas. Os projectos publicados no livro foram rapidamente apropriados como modelos, reproduzindo-se a sua linguagem e elementos decorativos, mas ignorando por completo os princípios espaciais e programáticos propostos. Partilhando com o Estado Novo as ideias nacionalistas, este tipo de arquitectura ia de encontro aos princípios postos em prática pela 'Política do Espírito' - glorificação do rural e do popular, procura de uma imagem austera e ainda uma recusa do estilo moderno. Assim, a partir dos anos 30 o movimento da Casa Portuguesa "viria a ganhar força suficiente para se tornar, aparentemente, no formulário oficioso do Estado Novo, constituindo-se como um todo conservador que acabou por ser aproveitado e apontado como um impedimento sério ao desenvolvimento das propostas modernistas". 7 O Inquérito à Habitação Rural teve lugar na passagem dos anos 30 para os anos 40. Levado a cabo por engenheiros agrónomos do Instituto Superior de Agronomia, propunha-se estudar as 5

LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, p. 20 Idem, Ibidem, p. 24 7 QUINTINO, 2003: Raul Lino, 1879-1974, p. 11 6

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:: 09 | Página do Inquérito à Habitação Rural

:: 010 | Habitação, Gafanha da Encarnação

:: 011 | Capa

O Problema da Casa Portuguesa

habitações dos camponeses portugueses tendo em vista a implementação de melhorias nas condições de vida que depois se reflectiriam num aumento de produtividade agrícola. Inicialmente, o Estado dá aval à iniciativa, mas à medida que os resultados iam sendo publicados, o inquérito tornou-se um incómodo para o regime, que acabou por suspendê-lo. Contrastando fortemente com a leitura das 'simpáticas casinhas' feita por Raúl Lino, este estudo deparou-se com a miséria vivida por grande parte da população portuguesa. Proibido pelo Estado, o Inquérito torna-se uma referência para os opositores ao regime. No livro 'Contribuição para o Estudo da Questão Agrária', Álvaro Cunhal usa os dados recolhidos para fundamentar as suas ideias, concluindo: "Não há qualquer exagero em dizer-se que, na sua grande maioria, os trabalhadores rurais habitam pardieiros impróprios para habitação e os seus lares são verdadeiros lares de mendigos." 8 Este inquérito incidia sobre 80 estudos de caso, fazendo uma descrição das habitações tendo em conta as suas condições de habitabilidade. Assim, para além de uma descrição da exploração e das construções agrícolas, era feito um levantamento detalhado de cada habitação - localização; caracterização do aspecto exterior; materiais utilizados na construção; compartimentação interna; condições de acesso à água; saneamento; ventilação; iluminação; aquecimento; mobiliário; e ainda uma descrição dos modos de vida, da economia familiar e das dificuldades que cada família enfrentava. Apesar de não espelhar as preocupações espaciais e programáticas (exploradas mais tarde no inquérito do Sindicato Nacional dos Arquitectos), este estudo constitui a primeira aproximação 'real' à habitação rural e popular; "nunca se tinha ido tão longe na identificação precisa, minuciosa, quase obsessiva, dos modos de habitar nos campos portugueses". 9 No mesmo período em que são lançados os resultados do Inquérito à Habitação Rural (o 1º volume em 1943 e o 2º em 1947), a Arquitectura Popular é proposta como tema de estudo e debate por alguns arquitectos portugueses. Junto da classe, principalmente nas gerações mais novas, desperta-se o anseio de ir de encontro ao Moderno que marcava os países europeus. Por outro lado, acentuava-se um sentimento de reacção contra o conservadorismo na cena arquitectónica nacional, dominada pela adesão ao modelo da 'Casa Portuguesa' de Raúl Lino. É neste contexto que o arquitecto Fernando Távora escreve 'O problema da Casa Portuguesa'. Publicado em 1945 no semanário Áleo, o texto de Távora apela a uma regeneração da arquitectura portuguesa, através da renúncia ao arquétipo da 'Casa Portuguesa' e em alternativa propõe o estudo da Arquitectura Popular, conciliável com a construção de um percurso moderno português: "A casa popular fornecer-nos-á grandes lições quando devidamente estudada, pois ela é a mais funcional e menos fantasiosa, numa palavra, aquela que está mais de

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Álvaro Cunhal, Contribuição para o Estudo da Questão Agrária (1968). In: LEAL, 2008: p. 37 LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, p. 11

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:: 012 | Casa, Soajo, Arcos de Valdevez

:: 013 | Casa-Sequeiro, Sobreira, Barcelos

:: 014 | Esquema da povoação, Ifanes, Miranda do Douro

:: 015 | Habitação, Santa Cavadoude, Guarda :: 016 | Capa . IAPP

acordo com as novas intenções." 10 Em 1947, o arquitecto Keil do Amaral retoma as ideias de Távora. Com o título 'Uma iniciativa necessária', o texto publicado na revista Arquitectura, propunha a realização de um estudo da arquitectura tradicional, fazendo uma "recolha e classificação sistemática de elementos peculiares à arquitectura portuguesa nas diferentes regiões do país com vista à publicação de um livro, larga e criteriosamente documentado, onde os estudantes e as técnicas de construção pudessem vir a encontrar as bases para um regionalismo honesto, vivo e saudável”. 11 À semelhança de Távora, Keil do Amaral deixa clara a sua posição sobre situação da arquitectura no país: "Arquitectura regional não é, não pode ser um apinocar de fachadas e de interiores como elementos decorativos típicos. (…) o que realmente interessa é procurar, em cada região, as maneiras como os habitantes conseguiram resolver os diversos problemas que o clima, os materiais, a economia e as condições de vida inerentes à região impuseram às edificações." 12 O Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (IAPP) é lançado em 1955, por iniciativa do Sindicato Nacional dos Arquitectos com a aprovação do Ministério das Obras Públicas. Os objectivos do regime para este estudo, ficam claros no decreto-lei que lançava a iniciativa, vista como uma oportunidade para "...a valorização da arquitectura portuguesa, estimulando-a na afirmação do seu vigor e da sua personalidade e apoiando-se no propósito de encontrar um rumo próprio para o seu engrandecimento". 13 Com o objectivo de fazer um levantamento que abarcasse todo o país, foram constituídas seis equipas de trabalho e a cada uma foi atribuída uma região. Os trabalhos no terreno seguiram com entusiasmo, reflectido no volumoso conjunto de documentos reunidos – fotografias, desenhos, levantamentos e notas escritas. O material foi depois compilado dando origem ao livro 'Arquitectura Popular em Portugal', publicado em 1961. À semelhança do Inquérito à Habitação Rural (promovido pelo ISA), também as conclusões do Inquérito à Arquitectura Popular divergiam das espectativas do regime. Em vez de corroborar as ideias promovidas pelo Estado Novo e pelo paradigma da Casa Portuguesa, o inquérito deitava por terra a tese de 'um modelo tipicamente português', evidenciando a pluralidade de soluções com que a arquitectura vernacular se aptava a cada contexto regional. Por outro lado, em clara oposição com "a concepção decorativa e ornamental das propostas de lino", 14 o Inquérito expunha o carácter simples, autêntico, racional e funcionalista da arquitectura vernacular portuguesa, abrindo caminho para a modernidade e para o concílio entre a arquitectura vernacular e erudita. Depois do Inquérito à Arquitectura Popular, os arquitectos portugueses conseguiam, ainda que tardiamente, abraçar o Movimento Moderno. As primeiras participações portuguesas nos CIAM 10

TÁVORA, 1947: O Problema da Casa Portuguesa, p. 11 Francisco Keil do Amaral, Uma iniciativa necessária (1947). In: BANDEIRINHA, 2010: p. 10 12 Idem, Ibidem, p. 10 13 Dec. Lei n.º 40.349 de 19/10/1955 - Lançamento do IAPP - http://doportoenaoso.blogspot.com/2011_03_01_archive.html 14 LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, p. 50 11

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:: 017 | Proposta portuguesa CIAM X (1956)

:: 018 | Tourém, Montalegre

:: 019 | Vilarinho da Furna, Terras do Bouro, Fernando Galhano (1947)

:: 020 | Capa

Arquitectura Tradicional Portuguesa

ocorreram num momento em que o modernismo se reformulava, corrigindo os excessos 'dogmáticos' do estilo internacional e caminhando para soluções cada a vez mais adaptadas a cada contexto. Assim, em 1956, durante o CIAM X, as propostas portuguesas nitidamente marcadas pelas influências do inquérito, iam de encontro aos anseios de mudança e foram acolhidas como exemplo, por conciliarem os princípios modernos e as influências da arquitectura vernacular. Esta 'aliança' entre os princípios modernos e as influências da arquitectura popular viria a marcar significativamente, a produção arquitectónica portuguesa, a partir da década de 60. O inquérito "mais do que um inventário de formas e técnicas construtivas, propõe uma aproximação da arquitectura à paisagem, ao lugar, às formas de povoamento e às formas de vida", 15 e estes temas, em simultâneo com a reinterpretação dos valores do Movimento Moderno vão constituir a base das reflexões e da produção arquitectónica portuguesa. Na sequência dos dois inquéritos, o tema da arquitectura vernacular foi retomado no âmbito de estudos antropológicos, elaborados entre 1950 e 1970 por Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Jorge Dias entre outros antropólogos do Museu Nacional de Etnologia. Abordando o mundo rural globalmente, os trabalhos destes antropólogos debruçavam-se sobre temas como os modos de vida, as actividades económicas, as festividades, as alfaias e tecnologias agrícolas e, como não podia deixar de ser, as construções rurais, analisadas sobretudo como parte do sistema produtivo agrícola. Assim, durante duas décadas de investigação, os estudos vão abordando a habitação, estruturas elementares como os palheiros ou os abrigos pastoris, e ainda as construções de carácter produtivo (espigueiros, moinhos e azenhas). Além do levantamento das edificações, com recurso ao desenho e a fotografia, os antropólogos procuravam registar as terminologias locais, os materiais e processos construtivos e o papel desempenhado por cada construção na vida rural e na actividade agrícola. A casa rural era interpretada como “um verdadeiro instrumento agrícola que é preciso adaptar às necessidades da exploração da terra, designadamente no que se refere ao seu dimensionamento e à importância e distribuição relativa dos alojamentos das pessoas, dos estábulos e das lojas de arrumação das alfaias agrícolas e ferramentas da lavoura". 16 Estes estudos etnográficos comprovariam mais uma vez o carácter funcionalista e a diversidade regional da arquitectura popular portuguesa, indo de encontro às ideias formuladas pelos arquitectos do IAPP. Para além de algumas publicações parciais, os resultados destas pesquisas seriam mais tarde compilados no livro 'Arquitectura Tradicional Portuguesa', em 1992.

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TOSTÕES, 1997: Os verdes anos na arquitectura portuguesa dos anos 50, p. 164 Ernesto Veiga de Oliveira, Arquitectura Tradicional Portuguesa (1992). In: LEAL, 2008: p. 60

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:: 021 | Casa de Ofir, Fernando Távora (1957-58)

:: 022 | Casa de Caminha, Sérgio Fernandez (1971-73)

Os quatro momentos abordados representam épocas, objectivos e modos de abordagem distintos; no entanto, apesar das suas divergências, todos eles contribuem significativamente para a reflexão em torno da arquitectura vernacular, e mais importante ainda, para o despertar da autonomia do tema, ausente nas discussões teóricas, académicas e arquitectónicas até ao início do séc. XX. "Se nós hoje falamos com a naturalidade com que falamos de arquitectura popular, isso deve-se à influência directa ou indirecta que tiveram no nosso modo de pensar e olhar estes quatro olhares fundadores." 17 O 'Inquérito à Arquitectura Popular' destaca-se como ponto de viragem na cena arquitectónica nacional. Depois desta iniciativa, a arquitectura portuguesa conseguia finalmente um concílio com o movimento moderno e começa um percurso de construção da sua 'identidade' que viria a resultar no 'Regionalismo Crítico' proposto por Keneth Frampton. O inquérito marca também directamente alguns projectos – como a Casa de Ofir (1957-58) de Fernando Távora ou a Casa de Caminha (1971-73) de Sérgio Fernandez, que fazem uma reinterpretação das técnicas e dos materiais construtivos da arquitectura vernacular e do princípio de uma forte 'integração' com o lugar. A partir da década de 1970, o país rural começa um conjunto de transformações profundas que revolucionam a sociedade, os modos de vida e consequentemente a arquitectura. "Muitos dos exemplares da arquitectura popular documentados por estes quatro grandes inquéritos já não existem. Nalguns casos, o despovoamento dos campos fez deles ruínas. Noutros casos, deram lugar às chamadas casas de emigrante, que de resto podem ser vistas como uma nova expressão da arquitectura vernácula." 18

17 18

LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, p. 61 Idem, Ibidem, p. 64

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:: 023 | Restaurante em Brufe, António Portugal e M. Maria Reis (2003)

:: 024 | Museu do Côa, Camilo Rebelo (2004-2009)

1.3. Outros 'vernaculares' e novos desafios "Deixando de lado eventuais preconceitos, devemos abrir mais e mais o conceito de arquitectura popular, de forma a incluir nele outras modalidades de arquitectura sem arquitectos. (…) O popular não são apenas as formas 'autênticas', que o século XX emblematizou, são também as formas híbridas, impuras e até 'sujas' de produção material no presente do espaço habitado que o século XXI deve integrar na sua agenda de pesquisa". 19 Apesar do 'vernacular' se manter como um dos temas de projecto presentes na arquitectura 'erudita' contemporânea 20, com a 'desruralização' do país e com o predomínio da cultura urbana, os estudos e reflexões sobre a cultura e arquitectura popular parecem passar para segundo plano. Depois de 70 anos de intenso debate sobre o papel do vernacular na arquitectura, sucedem-se três décadas em que esta questão parece adormecida. Por outro lado, fora das escolas, das academias e da 'elite arquitectónica' o vernacular mantémse bem presente, continua a exercer influência e redesenha-se constantemente. "A arquitectura popular que conhecíamos pode ter morrido, mas em seu lugar nasceu aquilo que se pode chamar de 'híper arquitectura popular'." 21 Constatando que a arquitectura vernacular se reinventou, o modo como a olhamos e estudamos não pode continuar a ser o mesmo. Ainda podemos aprender e tirar lições das 'arquitecturas vernaculares' abordadas durante o século XX, mas, por outro lado, podemos também obter grandes contributos decorrentes do estudo das novas expressões da arquitectura vernacular e popular. Pressupõem-se assim, o estudo destas 'novas expressões' à luz de uma nova concepção, actual, desses conceitos. Abrem-se assim novos campos de reflexão ainda pouco explorados – desde a 'híper casa portuguesa', que prolifera tanto em residências secundárias da classe média como em condomínios de luxo, recuperando e apropriando linguagens provenientes da arquitectura popular e do movimento casa portuguesa; às 'auto-construções' e 'casas kitadas' 22, edificadas pela criatividade dos 'não-arquitectos', tanto em áreas rurais como ao longo das estradas e arrabaldes das cidades; passando pelas 'casas de sonhos', o 'desejo construído' dos emigrantes um pouco por todo o país, com características e sentimentos que oscilam entre a rejeição e o enaltecimento das antigas casas vernaculares em que nasceram e aos quais se juntam as importações de técnicas e materiais construtivos e o anseio de ascensão social. Assinalava Carolina Leite a propósito das 'Casas de Sonhos' – "o espaço doméstico, construído pelos emigrantes, constitui uma notável síntese de experiências ao nível da habitação e, por isso, um território prometedor de ensinamentos e de interrogações" 23 – talvez possamos concluir o mesmo sobre as outras 'novas expressões da arquitectura vernacular/popular'. 19

LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, pp. 66-67 Cf. SOBRAL, 2009: Arquitectura com algum pedigree 21 LEAL, 2008: Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre a arquitectura popular no século XX português, p. 65 22 Cf. DOMINGUES, 2009: A Rua da Estrada 23 LEITE, 1996: Quem tem medo dos emigrantes?, p. 236 20

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:: 025 | Velhos e Novos ‘Vernaculares’

:: 026 | (Híper)casa-Portuguesa, Castelo Branco

:: 027 | ‘Casa de Sonhos’

:: 028 | Capa . Cultura-Mundo

Se durante séculos, e até há poucas décadas, o vernacular era uma "construção conceptual da cultura cultivada ou erudita, que distinguia o 'vernacular' por um certo distanciamento face ao que pertence à 'alta cultura' das escolas, das academias, dos círculos notáveis" 24, actualmente essa barreira delimitadora tende a esbater-se. Conceitos distintos e opostos no passado deixam de o ser numa nova 'Cultura-Mundo', em que as fronteiras se diluem, 'baralhando antigas dicotomias': urbano/rural, global/local, sagrado/profano, arte/publicidade, tradição/vanguarda. "De igual modo, acabaram as grandes épocas de oposição entre cultura popular e cultura erudita, entre 'civilização' das elites e 'barbárie' da populaça." 25 E, se por um lado, a 'Cultura-Mundo' tem um efeito globalizante sobre estas dicotomias e questões culturais, por outro "contribui para as relançar com a problemática das identidades colectivas, das 'raízes', do património, das línguas nacionais, do religioso e do sentido". 26 Ora é justamente neste contexto que se lança hoje uma busca por referentes identitários (reais, construídos ou simulados) que nos possam situar e orientar enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Pelo mesmo caminho evolui a procura da 'autenticidade' e a retórica que a produz e consome. A Sociedade actual, cada vez mais atenta a assuntos relacionados com a natureza, o ambiente e a ecologia; a Arquitectura onde despertam temas como a sustentabilidade ou os eco-materiais; e o Turismo Rural que se associa à revalorização patrimonial do mundo rural; são áreas que relançam o tema do 'vernáculo', muitas vezes como resposta ou como inspiração para enfrentar os novos desafios com que a sociedade e o mundo rural se deparam. Mais do que levantar, estudar ou compreender, em programas como as 'Aldeias do Xisto', os arquitectos são hoje chamados a intervir directamente em construções e aglomerados vernaculares, projectando a sua reabilitação e adequação a novos usos, tornando-se evidente a necessidade de uma nova reflexão sobre este tema, desta vez tendo em conta os novos desafios lançados.

24

DOMINGUES, 2011: Vida no Campo, p. 127 LIPOVETSKY & SERROY, 2010: A Cultura-Mundo: resposta a uma sociedade desorientada, p. 12 26 Idem, Ibidem, p. 23 25

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RURAL

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:: 029 | Delimitação da Ruralidade no Continente Português

:: 030 | Definição de ‘rural’

2.1. Um mundo a redesenhar-se Apesar de frequentes os discursos em torno do 'rural', a abordagem ao conceito está longe de ser consensual e imediata. Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais sofreram alterações profundas que se reflectiram no território, afastando-o das definições que se foram construindo e que prevalecem no imaginário colectivo. O drama começa quando se constata a descolagem entre espaço e função. Com o declínio da agricultura, as áreas rurais perderam o carácter de espaço produtivo, ficando à deriva sem uma vocação definida. Por outro lado, os limites entre rural e urbano esbateram-se, ao ponto destes darem origem a territórios impossíveis de enquadrar nestas duas categorias. Ainda assim, tanto nos dicionários como nas nossas mentes, as definições de mundo rural continuam a associar este espaço à agricultura e a uma clara oposição ao mundo urbano. A elasticidade de rural, enquanto adjectivo, também não ajuda a clarificar o conceito: território, economia, modos de vida, paisagens, turismo, habitações, cultura, sociedade; 'tudo' pode qualificar-se como rural, muitas vezes sem se esclarecer em que sentido. Partindo dos textos de José Madureira Pinto 27 e João Ferrão 28, podemos apontar um conjunto de aspectos que historicamente caracterizavam as áreas rurais e as distinguiam do mundo urbano. Em primeiro lugar, a presença preponderante da agricultura que, além de ser a actividade económica dominante, marcava profundamente a estrutura social e física do meio rural. Sendo a agricultura sinónima de produção de alimentos, esta actividade conferia também aos meios rurais uma função importante para equilíbrio funcional e simbólico entre cidade e campo. O segundo aspecto prende-se com a organização social. Apesar da família camponesa constituir a 'célula base' da sociedade rural, as relações de interdependência iam muito além dos laços familiares. A própria actividade agrícola fomentava o sentimento de comunidade, regida por regras, valores e comportamentos próprios, onde quase tudo era partilhado: os braços de trabalho nas épocas e tarefas que exigiam um esforço acentuado (sementeira, monda, colheita); os espaços e equipamentos passíveis de um uso alternado (eiras, moinhos, lagares, fornos); os recursos naturais (fontes de água para rega e consumo, lenha e mato provenientes dos baldios). E por último, um tipo de paisagem, estruturada ao longo de séculos, resultante do equilíbrio entre a natureza e as actividades humanas e na qual se integravam as construções agrícolas e os aglomerados habitacionais. "Este mundo rural secular opunha-se claramente ao mundo urbano, marcado por funções, actividades, grupos sociais e paisagens não só distintos mas, mais do que isso, em grande medida construídos 'contra' o mundo rural." 29 Tendo por base estes aspectos, podemos caracterizar o 'ponto de partida' e construir uma noção 'convencional' de rural, mas dificilmente conseguimos 27

PINTO, 1981: O Espaço Social Rural: especificidade, funções, transformações FERRÃO, 2000: Relações entre mundo rural e mundo urbano: Evolução histórica, situação actual e pistas para o futuro 29 Idem, Ibidem, p. 46 28

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:: 031 | Colheita - Ceifeiras, António Silva Porto (1893)

:: 032 | Acessibilidades por entre os campos

:: 033 | Urbano vs. Rural

revê-la no território contemporâneo, entretanto transformado pela perda da função agrícola e pela influência dos meios urbanos. Paralelamente à análise das transformações que se deram nos espaços rurais, têm-se debatido dois caminhos possíveis para o 'rural' 30: por um lado, a ideia de 'desaparecimento do rural', nomeadamente nas áreas sob maior influência do mundo urbano; por outro, a hipótese de 'renascimento do rural', associada às áreas rurais mais remotas, facilmente conotadas com sentimentos de autenticidade e genuinidade, atribuídos aos seus espaços naturais e à sua cultura. A primeira questão decorre do conceito de 'rurbano'. Esta tese sugere que o mundo rural e o urbano se diluem dando origem a um território com características diferentes, ocorrendo assim "um desaparecimento do rural enquanto espaço físico, económico, cultural e social dotado de especificidade". 31 Numa sociedade baseada na comunicação e mobilidade, o urbano deixa de se circunscrever às muralhas da 'cidade tradicional' e à sua periferia. A cidade explode/expande-se fazendo a "absorção na sua zona de funcionamento quotidiano, de cidades, de vilas e de aldeias cada vez mais distanciadas. Os limites e as diferenças físicas e sociais entre cidade e campo tornam-se cada vez mais ténues". 32 Este fenómeno denominado por François Ascher como metapolização, deriva do desenvolvimento dos meios de transporte (nomeadamente do automóvel) e das tecnologias de informação e comunicação (televisão, internet) que reduziram o peso da distância física nos modos de vida actuais. A distância passou a ser medida em tempo e não em espaço e, se este novo paradigma se reflecte nos modos de vida, é também registado na paisagem. Habitamos hoje um território alargado de forma dispersa e sem limites nítidos, ocupando áreas que já foram rurais, mas às quais hoje se sobrepõem novas lógicas. Em contraponto com a ideia de 'desaparecimento do rural', geralmente baseada na dicotomia rural/urbano e na sua diluição, levanta-se a hipótese de "renascimento do mundo rural através da crescente valorização social de que é alvo, essencialmente pela procura das características que, geralmente, lhe estão associadas". 33 Este processo de revalorização reflecte os anseios de grande parte da população urbana, que identifica os territórios rurais como um refúgio possível para as questões ambientais e ecológicas, ou que procura no seu património histórico e cultural uma autenticidade que contrarie a uniformização cultural decorrente da globalização. Esta redescoberta do mundo rural espelha-se também nas 'práticas de consumo' com o incremento das actividades de turismo e lazer em espaço rural, com a procura de produtos locais ou com o adquirir de segundas habitações. Ocorre assim um processo de 'fetichização' do rural através da 'mercantilização das paisagens'. 34

30

Cf. FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 2 FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 2 32 ASCHER, 2010: Novos Princípios do Urbanismo, p. 63 33 FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 2 34 FERRÃO, 2000: Relações entre mundo rural e mundo urbano: Evolução histórica, situação actual e pistas para o futuro, p. 48 31

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Apesar de ser cada vez mais difícil empregar as definições de rural e urbano ao território real, muitos são os autores que aceitam esses conceitos como categorias operativas e como ferramentas úteis à reflexão e à construção de discursos teóricos. Este facto não apaga a necessidade de revisão desses conceitos, possibilitando uma abordagem menos redutora a um território cada vez mais complexo. Embora não resolva esta questão, um primeiro passo pode ser dado através do estudo das transformações, das ideias que subsistem e dos processos de busca de novas funções para o mundo rural.

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:: 034 | Debulha, Janeiro de Cima (2006)

:: 035 | Ceifeira Mecânica, Lisboa (2011)

2.2. O declínio da actividade agrícola As áreas rurais sofreram nas últimas décadas transformações profundas, muitas por influência do mundo urbano e da sociedade global. Mas foi o declínio da actividade agrícola o processo mais marcante levando ao desaparecimento de "práticas ancestrais, modos de vida, território e paisagens". 35 Durante séculos, a agricultura foi a base económica (quase exclusiva) das áreas rurais e assegurava o sustento de uma grande parcela da população. "O modo de vida nos senhorios, nas aldeias ou pequenas vilas, centrava-se nas tarefas agro-pecuárias e as relações de produção mantinham-se pouco dinâmicas, conservando os padrões das hierarquias sociais. A rotina era apenas quebrada pelas feiras, pelos mercadores, almocreves, funcionários régios ou eclesiásticos e pregadores mendicantes." 36 A partir do século XIX, a Revolução Industrial altera de forma significativa a sociedade dos países europeus. Em resposta à necessidade crescente de mão-de-obra, dá-se o primeiro êxodo de população dos meios rurais para as cidades que vão ter de absorver rapidamente uma grande quantidade de novos habitantes. Com este processo acentuam-se as diferenças entre 'cidade e campo' surgindo uma distinção clara entre dois mundos distintos – o rural e o urbano. Mas se a industrialização 'roubou' população aos meios rurais, veio também valorizar o seu papel produtivo. A agricultura teve de dar resposta à procura crescente de produtos para alimentar a população das cidades industriais, ocupando terras anteriormente incultas. Apesar do incremento na produção, a vida em meio rural pouco mudou: as técnicas produtivas, os critérios económicos e as relações sociais do passado, continuavam a fazer sentido neste meio e foram até de certa forma reavivados por uma economia agrícola próspera. As fortes transformações que viriam a revolucionar a estruturação do mundo rural europeu dãose no séc. XX, com ritmos e características diferentes conforme o contexto dos vários países. As rápidas evoluções tecnológicas, à medida que são aplicadas à agricultura, vão transformando esta actividade permitindo um forte aumento de produtividade: a mecanização e a automatização libertam o sector da grande necessidade de mão-de-obra que o caracterizava no passado, e os avanços da química estimulam o desenvolvimento de novos fertilizantes e fármacos que muito contribuem para o aumento da produção por hectare cultivado, ocorrendo assim uma contracção das áreas utilizadas para cultivo. "O velho homem dos campos que vivia uma relação temerosa com a natureza vai-se transformando num agricultor profissional que manuseia com menos cautela mas mais autonomia e sucesso produtivo. Esta nova relação com a natureza decorre das possibilidades abertas pelas tecnologias a que agora recorre". 37

35

DOMINGUES,2011: Vida no Campo, p. 1 www.portugal-chat.com, 2007: A sociedade rural e a sociedade urbana 37 BAPTISTA, 1996: Declínio de um tempo longo, p. 43 36

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:: 036 | Ilustração, 20º Aniversário da Campanha do Trigo

No seguimento destas mudanças, a agricultura reestrutura-se, torna-se cada vez mais especializada e intensiva, aproxima-se dos princípios da indústria perdendo protagonismo na sociedade e na economia. Concorre agora num mercado global, onde ganham peso os preços, a concorrência e a facilidade de acesso aos meios de distribuição e comercialização. As novas regras motivam a concentração da actividade nos terrenos mais produtivos e com boas acessibilidades. Fica assim excluída grande parte do território, permanecendo este à deriva, ressentindo-se da perda da sua função. "Emerge, portanto, um rural cada vez mais apenas delimitado pela dimensão dos seus agregados populacionais (e já não por uma especialização na actividade económica) e onde perdem progressivamente importância a propriedade fundiária ou o pároco local (frequentemente substituídos pelo poder autárquico) enquanto estruturantes das relações sociais e políticas, cada vez menos distinguíveis daquelas que caracterizam o mundo urbano." 38 Comparativamente a outros países, Portugal, 'o último país rural da Europa', viu a decadência da agricultura chegar mais tarde. "Na primeira metade do século XX o espaço rural português foi amplamente dominado pela actividade agrícola. Nos anos 50 a agricultura era ainda uma actividade com peso na produção nacional, gerando cerca de um terço do PIB e ocupando mais de 40% da população portuguesa." 39 O mundo rural e a agricultura ocupavam um lugar central nas atenções do regime. Desde os programas de reflorestamento dos baldios à construção de sistemas de regadio, proliferavam pelo país políticas postas em prática pelo Estado Novo com o objectivo de "dignificar a indústria agrícola como a mais nobre e a mais importante de todas as indústrias e como primeiro factor de prosperidade económica da Nação". 40 Como exemplo máximo dessas políticas, tinha-se a 'Campanha do Trigo', iniciada em 1929 com o objectivo de garantir o auto-abastecimento do país, recorria a novas técnicas de fertilização para possibilitar a produção de cereais em terrenos pobres anteriormente incultos. Os primeiros sinais de declínio da agricultura surgiram nos anos 60. A 'Campanha do Trigo' revelava-se um fracasso, provocando o esgotamento e erosão dos solos e os escassos rendimentos obtidos através da agricultura motivavam grande parte da população a procurar novos modos de vida. A emigração (também motivada pela fuga à guerra colonial) tornava-se assim uma opção para grande parte da população dos meios rurais, onde começaram a faltar braços para cultivar as terras. Com a queda do regime vislumbrava-se um novo folego para a actividade agrícola. O período pós-revolução despertou o associativismo que se formalizava na criação de inúmeras cooperativas agrícolas. Com a adesão à Comunidade Económica Europeia, a esperança na prosperidade agrícola viu-se novamente renovada. A implementação da Política Agrícola 38

GILLOT, 2006: Rural: percursos, dificuldades e perspectivas, p. 4 Joaquim Pais de Brito, Fernando Oliveira Baptista & Benjamim Enes Pereira, O Voo do Arado (1996). In: NOBRE, 2001: p. 1 40 Dec. Lei n.º 17.252 de 21/08/1929 - Lançamento da Campanha do Trigo - http://dalmeida.com/ensino/historia.htm 39

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:: 037 | Envelhecimento, problema do ‘mundo rural’

Comum tinha por objectivo provocar alterações estruturais neste sector, multiplicando-se os projectos de modernização e incentivo à produção financiados por fundos comunitários. Mas a agricultura portuguesa competia agora no mercado europeu, em desvantagem perante as produções da Europa central. Assim, apesar de todos os incentivos, o declínio da actividade tornava-se inevitável. "Os campos despovoaram-se e a população na agricultura reduziu-se significativamente – nos anos 90 era apenas 10% da população activa – e simultaneamente a produção agrícola perdeu peso na economia nacional contribuindo a essa data, apenas em 5% para o PIB." 41 Perante o abandono da actividade, uma parte das áreas rurais converte-se, reclama para si novos papéis. À estruturação do passado sobrepõem-se hoje novas camadas: expansões urbanas, indústria, serviços; e articulando todas elas entre si, as vias rodoviárias e de comunicação. Restam no entanto outros territórios, onde o recuo da actividade agrícola dificilmente é equilibrado com o surgir de novas actividades. Dá-se nestas áreas, que podemos apelidar genericamente de 'mais remotas', origem a um ciclo de declínio, que se auto alimenta. "Segundo Cuddy, o declínio da actividade agrícola reduz o emprego rural que por sua vez conduz à emigração. Esta leva, por seu turno, a uma redução da população rural e a uma consequente redução na procura de bens e serviços locais. Tal situação gera uma nova redução em termos de emprego rural e o ciclo prossegue de forma contínua, auto-alimentando-se." 42

41 42

Joaquim Pais de Brito, Fernando Oliveira Baptista & Benjamim Enes Pereira, O Voo do Arado (1996). In: NOBRE, 2001: p. 1 FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 3

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:: 038 | Participante do envento ‘FotoXisto’ (2006)

2.3. As ideias e os sentimentos colectivos "the countryside out there is a countryside of the mind” 43 "Para além das categorizações e definições geográficas, económicas e sociais o rural é igualmente uma classificação mental, uma representação social a que subjazem as características que tradicionalmente associamos à ruralidade." 44 Torna-se assim o rural 'um sujeito imaginado', uma produção social que deriva de um conjunto de sentidos e se liberta da sua condição territorial. Temos então de admitir que existem várias ideias de rural, pois sendo este uma construção social, estas variam segundo os contextos sociais que as produzem. E as percepções são muitas, vão desde um rural ideal, território de harmonia entre o homem e a natureza, até um rural dramático, território marginalizado e descaracterizado onde prolifera a pobreza. Há, no entanto, um aspecto transversal à maioria destas ideias colectivas – a clara diferenciação (tanto espacial como social) entre rural e urbano. Ainda que a globalização e as alterações recentes na sociedade tenham contribuído para a interacção, dissolução e homogeneização consequentes das influências mútuas entre estes dois mundos, a dicotomia rural/urbano permanece como base dos conceitos gerados pela sociedade. Além desta oposição, existem outros temas importantes para a formulação das representações sociais que tentamos sistematizar: uma noção fundada num rural do passado, da qual a realidade actual se afastou, mas que permanece nas mentes e nas representações feitas pela sociedade (incluindo-se aqui uma série de valores morais); uma imagem de rural construída durante o Estado Novo, assente num folclore muitas vezes simulado, reinventado ou descontextualizado com uma intenção ideológica; uma outra noção resultante do sentimento de perda de um rural que já não volta, um 'luto mal feito' que nos leva a dramatizar a evolução destes territórios; e, finalmente, uma outra noção onde se projectam anseios de (re)encontro da sociedade urbana com valores rurais, como a vida ao ar livre, uma maior proximidade entre homem e natureza e a preservação ambiental. Destes sentimentos sobre o rural presentes na sociedade portuguesa, destaca-se a herança das ideias formuladas durante o regime ditatorial, nomeadamente através das acções do SPN/SNI, que exercem uma influência prologada no tempo, que se estende até à actualidade. O Secretariado de Propaganda Nacional é criado em 1933, sendo mais tarde reestruturado de modo a alargar as suas competências. Assim, em 1944, passa a designar-se Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, desempenhando um vasto conjunto de funções: propaganda política, informação pública, regulação da imprensa, da comunicação social e do turismo. Tinha ainda por objectivos controlar as manifestações culturais (artes plásticas, cinema, fotografia, teatro, dança, literatura) e realizar acções no âmbito da etnografia 43 44

Ray Pahl, The rural-urban continuum (1966). In: FIGUEIREDO, 2003: p. 3 FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 3

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:: 039 | Museu de Arte Popular, Lisboa

:: 040 | Núcleo Aldeias Portuguesas, Exposição do Mundo Português

e do folclore. Através deste organismo, o Estado Novo pretendia instaurar uma identidade nacional favorável ao regime, corrigindo "a ideia que cada um involuntariamente forme das realidades nacionais, filosofando à soleira da porta, com o que todos devem conhecer dos mesmos factos no conjunto da vida da Nação". 45 Assim se instaurava, pela mão de António Ferro, a 'Política do Espírito', um movimento de exaltação da nação, assente nos episódios heróicos da sua história, na vastidão do seu império e nos valores da 'Alma da Nação'. A construção desta identidade nacional era também muito baseada na 'glorificação do rural'. Valores como o trabalho, a humildade e a alegria do 'bom povo' português são explorados por uma política folclorista, que se formalizava em exposições de arte popular, espectáculos de música e dança e levantamentos etnográficos. O Estado Novo tornava-se assim "um regime criador de perfis idílicos da nação, encenador do mundo campestre das aldeias, inventor de ranchos folclóricos e de galos de Barcelos". 46 Num primeiro olhar sobre as acções do SNI e as suas repercussões, pode destacar-se uma influência junto das camadas populares mais desfavorecidas, funcionando a 'Política do Espírito' como uma táctica de distracção, apaziguadora de descontentamentos socais e promotora da adesão popular ao regime. Porém, como nos revela o trabalho de Vera Alves 47, uma visão de conjunto, que relacione as acções com os públicos a que se destinavam e com os locais seleccionados para as exibições, mostra que a influência desejada pelo regime vai muito além da esfera rural e popular, dirigindo-se sobretudo à classe média/alta da sociedade portuguesa dos ambientes urbanos. Algumas acções, preparadas com apurado cuidado, eram mesmo dirigidas às elites do país e aos públicos estrangeiros, apresentando uma imagem do país rural "depurada de sinais de miséria, sujidade ou fealdade, (em que) a cultura popular é transformada em objecto de contemplação e comprazimento estético, aspecto que, só por si, tende a anular qualquer pensamento relativo aos constrangimentos e dificuldades por que passavam os trabalhadores rurais nos anos 1930 e 1940". 48 É neste contexto que vão ocorrer iniciativas como a criação do 'Teatro do Povo' (1936), o concurso da 'Aldeias mais Portuguesa' (1938), a criação do grupo de bailados 'Verde Gaio' (1940), a Exposição do Mundo Português (1940) onde se integrava o 'Centro Regional' dedicado à vida e cultura popular, o 'Portugal dos Pequenitos', a construção das 'Pousadas de Portugal' (1941), a fundação do 'Museu de Arte Popular' (1948) e várias exposições internacionais (Genebra, 1935; Paris, 1937; Nova Iorque, 1939; Madrid, 1943; Sevilha e Valência, 1944).

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António de Oliveira Salazar, Catorze Anos de Política do Espírito (1948). In: PORTELA, 1982: p. 23 ALVES, 2007: 'A poesia dos simples': arte popular e nação no Estado Novo, p. 63 47 ALVES, 2007: 'Camponeses Estetas' no Estado Novo: Arte popular e nação na política folclorista do SPN 48 ALVES, 2007: 'A poesia dos simples': arte popular e nação no Estado Novo, pp. 71-72 46

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:: 041 | Artigo da Revista Aldeias do Xisto

As imagens de uma ruralidade idílica criadas durante o Estado Novo vão tornar-se uma referência nas representações sociais, consolidando uma imagem do 'rural' que só é deposta com o evidenciar de problemas como o declínio da agricultura, o despovoamento, o envelhecimento e o abandono. Mesmo depois de constatada a 'crise do mundo rural', a influência mantém-se dando origem a "uma ruralidade recriada, na qual nem todas as imagens de autenticidade e de identidade são genuínas ou correctas" 49 e a uma série de sentimentos nostálgicos e angustiados em torno do desaparecimento desse rural 'ideal e harmonioso'. Se num primeiro momento, a sociedade via as medidas de reestruturação do sector agrícola, como uma forma de manter e conservar o que ainda restava do mundo rural, rapidamente se percebeu que os processos de mudança inerentes ao declínio da agricultura eram inevitáveis e irreversíveis. Inicia-se então uma busca de 'novos papéis' que sustentem uma regeneração socioeconómica capaz de enfrentar os problemas que se abatem sobre o mundo rural. "Muito sinteticamente podemos dizer que a maior parte das áreas rurais passaram (tanto nas representações sociais, como nas políticas de desenvolvimento) de espaços (im)produtivos de alimentos a espaços-reserva de qualidade ambiental, a guardiães da natureza e das memórias do passado". 50 Do conjunto dessas novas funções destaca-se a actividade turística, uma das vias mais procuradas para promover o desenvolvimento destas áreas. No entanto, a centralidade do papel do turismo não é explicável apenas pela convicção sobre os contributos que a actividade pode dar para a superação dos problemas do mundo rural. Os espaços rurais têm vindo a ser enquadrados nas novas categorias de turismo, também por se terem tornado em 'objecto de desejo' por parte da sociedade urbana, que os entende simultaneamente 'como bens de consumo e património comum': "A ruralidade pode ser um mito nos termos em que muitas pessoas a concebem - uma imagem de nostalgia, herança, natureza e cultura, enfatizando a associação romântica do Homem com a natureza, trabalhando em harmonia, capturada em calendários ou postais de Natal através do mundo desenvolvido – mas é um mito poderoso que criou uma procura e em muitos casos, a compra de parte da paisagem rural”. 51 Esta nova apropriação do rural decorre de um conjunto aspectos recentemente valorizados pela sociedade - o crescente interesse pelo património e culturas locais; uma maior preocupação com o bem-estar do corpo e da mente; a procura de hábitos de vida mais saudáveis (alimentação, actividade física); uma maior preocupação com as questões ambientais; e a procura de experiências singulares, diferentes e personalizadas. Estes valores associam-se também a uma necessidade crescente de 'quebrar a rotina' da vida urbana quotidiana, e à procura de alternativas ao turismo massificado de 'sol e praia'.

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FIGUEIREDO, 2003: Quantas mais 'aldeias típicas' conseguimos suportar?, p. 7 Idem, Ibidem, p. 1 51 Idem, Ibidem, p. 7 50

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:: 042 | Aldeia Mineira da Panasqueira, património ‘classificado’

2.4. Das ruínas à patrimonialização Se o mundo rural (como o conhecíamos) nunca esteve tão ameaçado, não é menos verdade que existe actualmente uma forte valorização simbólica de tudo o que se prende com este meio. Perante o despovoamento e o abandono que se abatem sobre as áreas rurais, surgiu um sentimento de remorso e o medo de perder aspectos culturais, ambientais e paisagísticos que fazem parte de uma identidade colectiva. Em resposta a esse receio ocorre uma "valorização de tudo aquilo que corre o risco de desaparecer". 52 Atribui-se assim o 'estatuto' de património a uma infinidade de entidades: desde elementos mais abstractos como a paisagem, os saberes, valores e costumes rurais; aos elementos construídos (casas, espigueiros, currais…) e até aos objectos do quotidiano. "Tudo o que vem das artes e dos ofícios da agricultura – rodas, carros, mós, noras, garrafões, pipos, espigueiros, etc. – se converte em objecto cujo registo simbólico se desdobra ao mesmo tempo em relíquia, exorcismo, identidade, recordação…" 53 Estes objectos perderam o seu valor utilitário, mas passam a objectos-símbolo, dignos de museu. E o mesmo podemos dizer do território rural que com a perda da sua função passou de espaço produtivo a espaço simbólico. Nasce assim um novo fenómeno - a Patrimonialização, frequentemente associada a ideias e discursos moralistas angustiados pelo desaparecimento do mundo rural; um mundo primordial idealizado onde o homem vivia em harmonia com a natureza. Baseando-se este processo na ideia de morte do rural, constatamos que "o património corresponde a uma segunda vida das coisas, que adquirem novos sentidos e funcionalidades". 54 Reflectindo sobre a ideia de 'património construído', Fernando Távora no livro 'Da organização do Espaço' afirma: "Devem referir-se, quanto a este ponto, dois aspectos de importância: em primeiro lugar, que o conceito de 'monumento' vigente entre nós terá de ser amplamente revisto no sentido de ultrapassar este ou aquele edifício mais ou menos erudito, de história mais ou menos conhecida, para abarcar ambientes mais vastos e edifícios mais humildes; em segundo lugar, referir que a obra do passado constituindo um valor cultural do espaço, e porque este é irreversível, não podendo vir a ser o que já foi ou mesmo continuar a ser o que foi, (…) não deverá se actualizada pela utilização do 'pastiche'…" 55 Desde então o conceito de património parece ter mudado. Se no passado andava associado aos conceitos de 'monumento' e 'erudição' e se a dimensão temporal era indispensável para a validação patrimonial, actualmente constatamos que o processo de patrimonialização se 52

PEIXOTO, 2002: Os meios rurais e a descoberta do património, p. 6 DOMINGUES, 2011: Vida no Campo, p. 10 54 PEIXOTO, 2002: Os meios rurais e a descoberta do património, p. 2 55 TÁVORA, 1982: Da organização do Espaço (1962), p. 58 53

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:: 043 | Patrimonialização de um território, Aldeias Históricas de Portugal

acelerou e que abrange novas as áreas e objectos. "A partir da década de 1960, os monumentos históricos já não representam senão parte de uma herança que não pára de crescer com a inclusão de novos tipos de bens e com o alargamento do quadro cronológico e das áreas geográficas no interior das quais esses bens se inscrevem." 56 Com o alargar dos campos abrangidos pela Patrimonialização, o fenómeno passa a englobar "todas as formas de arte de construir, eruditas e populares, urbanas e rurais, todas as categorias de edifícios, públicos e privados, sumptuários e utilitários" e para as classificar procuram-se "novas denominações: arquitectura menor, termo proveniente da Itália para designar as construções privadas não monumentais, em geral edificadas sem a cooperação de arquitectos; e arquitectura vernacular, termo inglês para distinguir os edifícios marcadamente locais". 57 Além de edifícios individuais, o domínio patrimonial compreende agora aglomerados edificados: aldeias, bairros, malha urbana, cidades e também elementos paisagísticos e geográficos, nomeadamente nas áreas rurais mais isoladas. Estas, por serem fortemente associadas com a natureza, prestam-se à valorização patrimonial com princípios ambientais e ecológicos. Assim, "no limite, a elasticidade da noção de património revela que estamos perante um processo de patrimonialização de um território. Este, tornando-se símbolo identitário de um grupo ou de uma configuração social em 'vias de extinção', converte-se, ele próprio, em objecto de representação e de transmissão patrimonial, revelando que os processos de patrimonialização se tendem a confundir com processos de territorialização". 58 Este redesenhar do fenómeno Patrimonial não se limita a uma maior elasticidade do conceito. Apesar da relação intrínseca entre património e passado, o processo de patrimonialização é hoje visto como uma ferramenta de regeneração que dá resposta a problemas actuais, promovendo mudanças no futuro. O processo associa-se frequentemente a estratégias políticas, económicas e turísticas, que além da conservação de bens do passado, pretendem gerar novas dinâmicas territoriais. É neste contexto que se têm multiplicado, em Portugal, os programas de criação de 'aldeias típicas' temáticas (aldeias históricas, aldeias serranas, aldeias vinhateiras, aldeias do Alqueva), bons exemplos de estratégias de patrimonialização por reunirem as várias vertentes do fenómeno: procuram promover o 'luto' da perda de realidades do passado, enquadram-se nos novos campos abrangidos pela patrimonialização, procuram afirmar uma identidade territorial e por último inserem-se nas novas estratégias de regeneração.

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CHOAY, 1999: A Alegoria do Património, p. 12 Idem, Ibidem, p. 12 58 PEIXOTO, 2002: Os meios rurais e a descoberta do património, pp. 8-9 57

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TURISMO

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:: 044 | ‘Mapa’ Pré-Histórico, Bedolina, Itália (1500 a. C.)

:: 045 | Viajante sobre o mar de névoa, Caspar David Friedrich (1818)

3.1. Fenómeno turístico, das origens ao 'novo turista' As origens do turismo, ou num sentido mais lato, da viagem, perdem-se no tempo. O nomadismo, condição primitiva do ser humano até ao surgimento da agricultura, faz dos nossos antepassados mais remotos, perpétuos caminhantes. Ultrapassada esta condição original, as viagens continuam presentes na vida do homem, e tornam-se uma constante ao longo dos tempos. Durante a Antiguidade, na Grécia, as olimpíadas motivavam o deslocamento de milhares de pessoas de 4 em 4 anos a Olímpia para assistir aos jogos onde se associava desporto e religião. Eram também frequentes as residências secundárias nos arredores de Atenas. Mais tarde, os romanos frequentam estâncias termais e fazem deslocações sazonais para villas perto da costa. As invasões bárbaras e a queda do império romano suspendem as deslocações de recreio. Mas na Idade média surgem novos motivos para as viagens. Com as rotas de romaria na Europa, como a Santiago de Compostela e a Roma e as viagens à Terra Santa e a Meca ocorre a consolidação de um novo tipo de viagem, as peregrinações religiosas. Já no séc. XV surgem as grandes expedições marítimas e com elas o interesse por povos exóticos e regiões diferentes. Vão-se estruturando os grandes impérios coloniais e intensificam-se as rotas de comércio. Embora as origens do turismo se percam no tempo, é a partir do século XVII com o 'Grand Tour' que nasce o conceito moderno de turismo. "Até meados do século XIX, o 'Grand Tour' foi o elemento dominante das práticas turísticas na Europa: tratava-se, basicamente, de um circuito da Europa Ocidental norteado por motivações culturais, de educação e de prazer, correspondendo à convicção desenvolvida no seio da elite inglesa de que uma tal viagem constituía uma componente essencial na educação dos jovens aristocratas." 59 Apesar das várias motivações que o homem encontra para viajar (comércio, saúde, conhecimento, fé) podemos considerar que o 'fenómeno turístico' começa quando o desejo pelas viagens surge do gozo de conhecer lugares diferentes, e não por necessidade. O costume de fazer o 'Grand Tour' teve um contributo importante na difusão do gosto pelas viagens e, é por isso, considerado um marco na fundação do turismo moderno. Da designação 'Grand Tour' derivam ainda as palavras turista e turismo. Mas é com a Revolução Industrial que se dão os grandes passos no sentido da consolidação do turismo. O desenvolvimento de novos meios de transporte, como o comboio e o barco a vapor, permitem o aumento do número de viajantes e da frequência das viagens, e tornam muito mais fáceis os trajectos de longo curso. É nesta época que surge a viagem como meio de fuga ao meio urbano 'caótico' das cidades industriais. Nobres e burgueses procuram refúgio em 'chalets' junto da costa, em clínicas de montanha ou estâncias termais, surgindo assim um tipo de turismo marcadamente associado à saúde. Apesar de numa primeira fase o turismo ser uma prática das elites, durante o século XX dão-se 59

MALTA, 1996: Turismo, espaços de turismo e intervenção do Estado em Portugal, p. 37

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:: 046 | Excursionistas desembarcando em Lisboa (1923)

:: 047 | Banhistas na praia do Estoril (1909)

transformações importantes na sociedade ocidental que contribuem para a democratização do fenómeno turístico. O aumento do rendimento e dos tempos livres dos trabalhadores, a generalização do direito a férias renumeradas e a melhoria dos transportes e das acessibilidades permitiram que grande parte da população tivesse acesso a férias. Assim, reunidas estas condições, a prática turística aumenta exponencialmente, tornando-se um fenómeno colectivo e cada vez mais massificado. Após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento do 'turismo de massas', a prática passa a ter uma nova configuração social, definindo-se como um fenómeno "reivindicado, institucionalizado, produzido e de consequências significativas a nível social, cultural, espacial, económico, político e ambiental". 60 Por outro lado, a massificação do sector, cada vez mais focado no 'turismo de sol e praia' e submetido às regras de um mercado competitivo, leva ao desenvolvimento de um turismo estandardizado dominado por técnicas de marketing que vendem férias, destinos, resorts e hotéis cada vez mais saturados e uniformizados. "Surgem novos empreendimentos turísticos, moldados pela crescente pressão urbanística sobre o litoral, abrindo a oportunidade de se explorarem diferentes conceitos no planeamento de núcleos de veraneio." 61 Recentemente, em contraponto com a massificação e saturação de algumas regiões turísticas, surge uma procura de novos destinos fora dos circuitos habituais e por isso não assolados pela 'predação turística'. Os 'novos turistas', mais informados e exigentes, procuram autenticidade e diferenciação em destinos que proporcionem contacto com a natureza, património e cultura. Respondendo às novas espectativas dos turistas, a indústria turística redesenha-se tendo em conta critérios como a qualidade, a baixa densidade e a interacção com os recursos naturais e culturais procurando converter os anseios dos 'novos turistas' num segmento de mercado apelativo. É neste contexto que as áreas rurais surgem como novos locais de vocação turística.

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JOAQUIM, 1994: Turismo e Ambiente: Complementaridade e Responsabilidade, p. 13 LOBO, 2007: A colonização da linha de costa: da marginal ao 'resort', p. 18

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:: 048 | Viajantes...

:: 049 | ... ou Turistas?

cena do filme The Sheltering Sky (1991)

Verona (2009)

3.2. Turistas ou Viajantes? um fenómeno de contradições "Ele não pensava em si próprio como turista: era um viajante. A diferença era, em parte, uma diferença de tempo, explicava ele. Enquanto o turista geralmente volta depressa para casa ao fim de algumas semanas ou meses, o viajante, que não pertence mais a um lugar do que a outro, locomove-se devagar, ao longo de anos, de uma parte da Terra a outra. (…) Porque, como ele dizia, outra diferença importante entre turista e viajante é que o primeiro aceita a sua própria civilização sem questionar; não é assim com o viajante, que compara o seu país com outros..." 62 A personagem de Paul Bowles reflecte a divisão formulada por Jean-Didier Urbain 63, que distingue claramente Viajante de Turista. O primeiro, parte em viagem com a vontade de conhecer novos povos, culturas e locais, movendo-se pela busca constante de (auto)conhecimento. Interpreta as suas experiências, fazendo comparações com os códigos que transporta, sem no entanto julgar ou evidenciar preconceitos. Por oposição, o turista, parte tendo por objectivo o ócio. O percurso e a aventura passam para segundo plano e a viagem transfigura-se numa excursão organizada, um trajecto pontuado por ícones turísticos, sinteticamente explicados por um guia. O destino, em vez de apreendido é fotografado, capturado em imagens que atestam – 'eu estive lá!'. Apesar de extremada, esta tipificação reflecte a imagem social sobre viajantes e turistas. Frequentemente a palavra turista é usada como injúria, e os (autodenominados) viajantes recusam ser apelidados de turistas. Além de 'desmontar' as contradições inerentes ao fenómeno turístico, Urbain reflecte também sobre os seus efeitos no território. Se por um lado a actividade turística potencia uma uniformização dos territórios em que se instala (a actividade implica uma logística, instalações e equipamentos frequentemente padronizados), tem de igual modo um efeito inverso, potenciando uma 'singularização' dos lugares. As vantagens e particularidades de cada lugar são exploradas numa lógica de competição com outros destinos, inscrita em slogans que anunciam cada lugar como único e melhor do que qualquer outro – 'Madeira, a Pérola do Atlântico'; 'Serra da Estrela, mais que uma montanha'; e mais explicitamente, 'O Maior e Melhor Arraial Minhoto do País' ou 'A maior praia artificial da Europa'. Jean-Didier Urbain mostra-nos também olhares antagónicos perante os efeitos do turismo ao nível social, económico e cultural. Para alguns o turismo é sinónimo de 'vida e desenvolvimento': "A difusão do turismo deve possibilitar a muitas das nossas regiões encontrar uma nova vocação precisamente no momento em que se preconiza o declínio das actividades tradicionais. Deve permitir travar o seu desastroso despovoamento, restabelecer a vida, e dar 62 63

BOWLES, 2009: O céu que nos protege, pp. 14-15 URBAIN, 2003: L' idiota in viaggio: Storia e difesa del turista

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:: 050 | Turista, Pisa (2009)

estabilidade a uma juventude que de outra forma estaria condenada ao exílio". 64 Mas se para uns o turismo se afigura como uma fonte de revitalização a vários níveis (demográfico, económico patrimonial e cultural), "para outros, pelo contrário, o turismo é sinónimo de morte e destruição, arruinando lugares e cultura. (…) 'Expansão', 'conquista', 'movimento de ocupação maciça que degrada o mundo físico e humano', assim, é visto o turismo – uma invasão". 65 Para além das opiniões formadas sobre os efeitos do turismo, constatamos que os novos territórios e segmentos explorados pela actividade são desenhados essencialmente pela relação oferta/procura. Assim, esta actividade revela-se um fenómeno dinâmico, em constante transformação, buscando novas formas cada vez mais sofisticadas – em campos pouco explorados como o turismo rural e o turismo-aventura, ou na procura de destinos exóticos e experiências únicas. Adaptando-se às novas procuras e desejos, o turismo transforma os destinos e actividades que proporciona em produtos de consumo, que vão de encontro aos anseios dos clientes/turistas. Neste contexto, outro conceito explorado por Urbain é a autenticidade associada à procura turística. Essa busca pela 'autenticidade' surge como motivação para a prática turística, tendo em vista o desejo de experimentar, de viver 'interacções autênticas' com outros, conseguindo acesso a um modo vida quotidiano e a ambientes diferentes. No entanto, esse objectivo raramente é conseguido, pois a actividade vive de uma 'autenticidade encenada', com objectivos turísticos e comerciais. O conceito de 'autenticidade' associa-se então ao cumprir de expectativas: "O conceito de autenticidade apelaria assim a uma representação mental dos turistas sobre os habitantes locais – os 'nativos'. Trata-se em si mesmo de uma denominação simbólica segundo a qual, só são autênticos quando são tal como os turistas os imaginam, isto é, quando a imagem mental transportada para o local turístico atinge um alto grau de motivação após o confronto com o real." 66 Desta forma, o turismo em vez de procurar a autenticidade procura ir de encontro a imagens pré-formuladas pelos turistas, converte a realidade em imagens e surge como "algo que 'fossiliza' os habitantes locais e respectivas práticas, os seus espaços, fazendo com que não haja lugar a qualquer tipo de prática reflexiva por parte do turista." 67

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M. Eyrolles, Le tourisme… un besoin vital (1974). In: URBAIN, 2003: p.13 URBAIN, 2003: L' idiota in viaggio: Storia e difesa del turista, p.14 66 PAULINO, 2007: Turismo e Autenticidade: O papel da publicidade na representação dos lugares turísticos, p.1 67 Idem, Ibidem, p. 1 65

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:: 051 | Unidade TER, Janeiro de Cima

:: 052 | Unidade TER, Casal de S. Simão

3.3. Turismo Rural Partindo de um conceito genérico, podemos entender o turismo rural “todas as actividades turísticas que têm lugar em áreas rurais”. 68 Porém, o conceito está longe de ser consensual, por um lado por pressupor a (árdua) definição do termo 'rural', por outro pela diversidade de actividades e práticas turísticas possíveis em territórios rurais. Relativamente ao adjectivo rural, enquanto forma de turismo "há quem defenda que se trata exclusivamente de áreas agrícolas… suficientemente distantes da costa… afastadas das cidades… tipicamente regiões montanhosas do interior, com diferentes tipos de paisagens, com economias e sociedades principalmente rurais e uma riqueza em história e tradições culturais..." 69 Outros autores abordam uma definição menos territorial que remete para um tipo de turismo baseado no contacto próximo e personalizado com o meio físico e humano das áreas rurais e que permite (re)viver as suas práticas, tradições e os valores. Quanto às práticas e actividades relacionadas com o turismo rural, pela sua diversidade e, em alguns casos, especialização, tendem a ser encaradas como subtipos, dando origem a vários 'ramos' dentro do turismo rural: turismo de natureza, turismo cultural, ecoturismo, turismo gastronómico, turismo aventura, agro-turismo. Apesar da diversidade de significados afectos ao turismo rural, é no entanto consensual que este tipo de turismo se veio afirmando como uma alternativa ao turismo de massas. Nas últimas décadas os hábitos de lazer têm vindo a alterar-se, nomeadamente nas sociedades europeias. O aumento do tempo de férias, a redução dos custos dos transportes (particularmente das passagens aéreas) e o acesso de informação a um nível global (através da internet) motivaram alterações nas escolhas dos turistas, como o hábito de gozar férias repartidas ao longo do ano, a procura de novos destinos e o desejo de serviços e experiências mais personalizados. Estas mudanças têm como consequência a perda de importância do turismo de massas nas opções dos turistas em detrimento de novas formas de turismo, designadas de 'turismo alternativo'. Esta emergência de novos padrões turísticos relaciona-se ainda com alterações na sociedade, que dá cada vez mas importância a valores como a autenticidade (real ou imaginada), a identidade pessoal e colectiva e a curiosidade. Surge assim um novo tipo de turista que parte em busca da novidade, de experiências singulares e de locais diferentes, procurando contactar directamente com pessoas e culturas distintas. Englobado nas formas de turismo alternativo, o turismo rural vai de encontro às novas aspirações sociais, permitindo experiências de (re)descoberta do mundo rural, actividades distintas proporcionadas pelas características do território (desporto, aventura, natureza) ou ainda pela fuga ao meio urbano em locais conotados com o sossego e a tranquilidade. 68 69

KASTENHOLZ, 2003: A gestão da procura turística como instrumento estratégico no desenvolvimento de destinos rurais, p. 1 Carminda Cavaco, Rural Tourism: The creation of new tourist spaces (1995). In: KASTENHOLZ, 2003: pp. 1-2

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Na europa, nomeadamente nos países mediterrânicos, o turismo rural é hoje reconhecido pelas suas potencialidades económicas-sociais, sendo visto como um motor de desenvolvimento regional capaz de responder aos problemas decorrentes do declínio da agricultura. A actividade "interfere nos tecidos económicos e sociais, nas dinâmicas demográficas e do emprego, no património natural e cultural, nos comportamentos das populações e na ocupação, ordenamento e funcionamento dos territórios. Anima o mercado dos produtos e serviços locais, viabilizando microempresas de ramos diversos (...) cabe-lhe um papel também significativo na conservação e gestão da diversidade das paisagens e do património edificado". 70 Por ser uma actividade transversal, com efeitos directos e indirectos a vários níveis, o turismo passa então a ser visto como um importante instrumento de desenvolvimento.

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CAVACO, 1999: O mundo rural português: desafios e futuros, pp. 143-144

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:: 053 | ‘Placares comunitários’, Gondramaz, Miranda do Corvo

3.4. O turismo como promotor do desenvolvimento nas áreas rurais "Quando não sabemos mais o que fazer por uma região rural frágil, quando o êxodo populacional parece ser inexorável, quando tudo o que podemos imaginar como apoio à agricultura e aos agricultores parece ineficaz, um recurso é aparentemente sempre fácil: o turismo verde – ou seja, o turismo integrado nos espaços e nas sociedades rurais." 71 Nas últimas décadas, as sociedades europeias têm tentado enfrentar a crise que se abate sobre o mundo rural. Como refere Olivier Balabanian, a resposta mais frequente a essa crise tem passado pela reconversão das áreas rurais, viabilizando as actividades ligadas ao sector turístico. Apesar de em Portugal o turismo rural ter sido tardiamente reconhecido institucionalmente (1983), a partir os anos 90 o Estado desempenhou um "papel decisivo como impulsionador da constituição de uma oferta rural privada de alojamento turístico, sempre de muito pequena escala e diversificada nos tipos, nos modos de inserção local e nos serviços complementares oferecidos". 72 Recorrendo a fundos comunitários, o Estado multiplica os incentivos financeiros destinados à criação de unidades de turismo rural. Este modelo de apoio baseado em incentivos directos evolui na segunda metade da década de 90 para programas de desenvolvimento regional que, através do turismo, procuram intervir globalmente no território. Tendo em conta o carácter transversal da actividade turística, Elisabete Figueiredo, Lúcia de Jesus e Elisabeth Kastenholz 73 apontam alguns aspectos que levam a que o turismo possa ser um impulsionador do desenvolvimento rural: - o turismo rural vive das especificidades de cada região, sendo por isso uma actividade potenciadora da valorização dos recursos locais, conferindo um valor acrescentado ao património natural, histórico, cultural e humano nas regiões onde se instala; - o turismo em espaço rural opera uma transferência de rendimentos das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas e pode propiciar a exportação de bens e serviços; - a actividade turística requer a instalação de infra-estruturas (estradas; redes de saneamento, água, electricidade, e de telefone), equipamentos colectivos (museus, equipamentos desportivos e de lazer) e serviços (comércio, transporte, cuidados médicos) que servem não só os visitantes mas também a população local; - o turismo contribui para a dinamização e modernização das actividades e produções locais e também motiva o surgimento de novos sectores de actividade; - a actividade promove a reabilitação de equipamentos abandonados ou obsoletos 71

BALABANIAN, 1999: Le tourisme vert: défi ou utopie?, p. 255 CAVACO, 1999: O mundo rural português: desafios e futuros, p. 144 73 FIGUEIREDO, JESUS & KASTENHOLZ, 2008: A oferta do turismo no espaço rural, pp. 4-5 72

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:: 054 | Visita presidencial a Janeiro de Cima

:: 055 | ‘Roteiro das Comunidades Locais Inovadoras’ (2010)

dinamizando-os com novas funções (habitações, escolas e equipamentos desportivos abandonados ganham assim uma nova utilidade); - por último a actividade turística pode contribuir para a diversidade das actividades ligadas à exploração agrícola; Tendo em conta estes aspectos, o turismo é frequentemente assumido como tábua de salvação para as áreas rurais 'despojadas da sua razão de ser – a agricultura' e é promovido com a finalidade de 'perpetuar a ruralidade'. Vai assim de encontro à vontade da sociedade – preservar os costumes, paisagens, natureza e cultura dos meios rurais. Porém, mais do que conservar o rural, o turismo reinventa-o, estimulando a procura de novas vocações para estas áreas. A influência dos vários agentes (Estado, visitantes, populações) modela um novo rural, baseado em expectativas e na vontade de ir ao encontro delas. Diferentes pontos de vista podem levar ao divórcio entre os anseios dos vários agentes (que se organizam segundo uma hierarquia que pode prejudicar os residentes). Por último, o sucesso do turismo nas áreas rurais passa pela criação de uma imagem forte e consumível/comercializável. Se juntarmos este aspecto a um território descolado da sua função agrícola corremos o risco de ter como resultado um rural a funcionar como cenário/espectáculo. "Quando a paisagem 'descola' de certos limites óbvios da funcionalidade que a produziu, só vale a pena estetizar se houver novos 'jardineiros da paisagem' que a cuidem e mantenham como quem mantém os jardins de Versalhes. Se o turismo pagar isso, não se poderá chamar rural ou agrícola a essa paisagem; chamar-se-á cenário." 74 Dando ênfase a estes problemas, alguns autores têm vindo a defender que os modelos seguidos nos programas de desenvolvimento rural com foco no turismo, não conduzem a um desenvolvimento sustentável e não resolvem o fenómeno da desertificação. De facto, é nas intervenções centradas no turismo que mais se tem verificado o paradigma da 'fetichização do rural'. "Por um lado estes programas permitiram levar a cabo acções positivas: reabilitação do edificado e do espaço público, melhoria das acessibilidades e construção de equipamentos e infraestruturas, por outro lado transformam os núcleos rurais em espaços esteticamente idílicos, 'museus da ruralidade' mais vocacionados para a fruição dos citadinos do que para a apropriação dos habitantes locais." 75 Na mesma linha de pensamento, Luís Ramos 76 aponta alguns problemas que têm marcado os programas de desenvolvimento turístico: Em primeiro lugar, "tratam-se, regra geral, de projectos impostos de cima para baixo" que não promovem a participação activa da população e dos agentes locais "estando por isso condenados 74

DOMINGUES, 2009: Paisagem e identidade: à beira de um ataque de nervos, p. 39 GOMES & PAIS, 2008: O Espaço Rural no âmbito das Políticas de Desenvolvimento - O Caso do Pinhal Interior, p. 16 76 RAMOS, 2001: Os velhos rumos das novas políticas de desenvolvimento rural em Portugal 75

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a ser mais uma das múltiplas medidas das políticas territoriais sem enraizamento social e institucional local". 77 Em segundo lugar, alguns programas focam-se excessivamente nas actividades turísticas ao ponto de desconsiderarem a realidade social e uma inter-relação com as actividades económicas pré-existentes. "Ora, como parece estar plenamente demonstrado, nenhum processo de desenvolvimento rural poderá assentar exclusivamente na vertente turística, nem as actividades relacionadas com turismo rural poderão sobreviver sem a manutenção das actividades agrícolas". 78 Por último, as intervenções nas infra-estruturas e no património construído têm-se sobreposto às iniciativas de caracter imaterial, mais difíceis de implementar mas fundamentais para a revitalização das dinâmicas locais e para a fixação da população. Face a estes problemas, tem-se registado um esforço para redireccionar os programas de revitalização, "procurando reforçar a participação das populações e dos agentes locais em todas as fases do processo, assegurando uma maior articulação entre as diferentes componentes infraestruturais, sociais e económicas e evitando a tentação de transformar estas aldeias numa espécie de 'reservas etnográficas' que mais não servem que alimentar um neo-ruralismo de cariz folclórico incapaz de resolver os principais problemas com que se debatem os territórios rurais". 79

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RAMOS, 2001: Os velhos rumos das novas políticas de desenvolvimento rural em Portugal, pp. 1-2 Idem, Ibidem, pp. 1-2 79 Idem, Ibidem, pp. 1-2 78

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:: 056 | Castelo Novo, Aldeias Históricas

:: 057 | Barcos, Tabuaço, Aldeias Vinhateiras

3.5. Os programas de desenvolvimento turístico/patrimonialização Como constatámos no ponto anterior, ao longo das últimas décadas, as entidades responsáveis pela coordenação de políticas de desenvolvimento e pela gestão territorial do nosso país têm dado especial atenção ao desenvolvimento rural. Raros são os projectos e políticas de âmbito nacional ou regional que não comtemplam acções de requalificação patrimonial, arquitectónica e urbanística e medidas de valorização do potencial turístico dos aglomerados rurais. Turismo e Património tornam-se assim instrumentos para revitalizar a economia dos meios rurais, melhorar as condições de vida da população e responder à crise que o mundo rural atravessa. As políticas de desenvolvimento rural em Portugal ganham importância no final da década de 80, em simultâneo com a entrada do país na Comunidade Económica Europeia e com os problemas do mundo rural cada vez mais evidentes. Como refere Luís Ramos, apesar deste tipo de programas de desenvolvimento rural ter maior expressão nas últimas décadas, podemos encontrar paralelismos com intervenções do passado. A partir dos anos trinta, o SPN, pela mão de António Ferro, desenvolve o Concurso da 'Aldeias mais Portuguesa de Portugal', "procurando assim incitar as elites rurais e o povo a 'alindarem' as suas aldeias, como complemento à salazarista política dos melhoramentos rurais e como forma de propagar os valores e os ideais do conservadorismo nacionalista do regime". 80 Com objectivos muito similares é lançado durante os anos sessenta o 'Programa das Aldeias Melhoradas'. Esta acção da Junta de Colonização Interna, já com objectivos ideológicos menos vincados, tinha como finalidade a melhoria da imagem mas também das condições de vida das populações em povoações rurais de Trás-os-Montes. Ainda antes da entrada na CEE, o Estado lança o 'Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado' em Trás-os-Montes. Este programa, baseado em investimento público, incidia nas melhoria das infra-estruturas, dos equipamentos e do espaço público de alguns aglomerados rurais com potencial para regenerar a região e diverge dos programas que se sucedem durante a década de 90 por contar ainda com uma forte vertente de apoio à agricultura e por não explorar o potencial turístico da região, pelo menos explicitamente. É já no decorrer dos anos 90 que são lançados, no âmbito do II Quadro Comunitário de Apoio, o programa das 'Aldeias Históricas de Portugal' e o 'Programa de Recuperação dos Centros Rurais'. O projecto 'Aldeias Históricas' incidiu sobre dez aldeias da Região Centro, seleccionadas pelo seu património e interesse histórico e tinha por objectivo "contribuir para a revitalização económica de centros rurais, mediante a execução de um plano global de intervenção, onde se

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RAMOS, 2001: Os velhos rumos das novas políticas de desenvolvimento rural em Portugal, p. 2

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:: 058 | Idanha-a-Velha, Aldeias Históricas

:: 059 | Monsaraz, Aldeias Ribeirinhas

projectavam cenários de atracção e fixação de populações, melhoria das respectivas condições de vida (habitação, equipamentos colectivos, unidades económicas) e a possibilidade de potenciar actividades tradicionais complementares à agricultura". 81 Numa primeira fase, o programa focouse nas infra-estruturas e no património construído: recuperação dos monumentos e das fachadas das casas, melhoramento do espaço público e dos acessos, enterramento de cabos eléctricos e de comunicações e por último a criação de equipamentos e alojamentos turísticos. Numa segunda fase o programa foi alargado a doze aldeias e redesenhou-se de forma a intervir também na dinamização cultural e socioeconómica dos aglomerados e da região, procurando estabelecer uma estruturação em rede que articulasse as várias aldeias. Este programa foi encarado como experiência-piloto e posteriormente tornou-se uma referência/modelo para os novos programas de desenvolvimento rural baseados no turismo. O programa 'Centros Rurais' era uma iniciativa de âmbito nacional aberta a candidaturas por parte das autarquias. O projecto foi coordenado por um conjunto de Ministérios (Agricultura e Desenvolvimento Rural; Emprego e Segurança Social; Planeamento) e tinha por objectivos a melhoria das condições de vida da população e a valorização do património e recursos locais potenciando acções no campo do turismo rural, ambiental e cultural. Inspirados nas experiências anteriores, durante o III Quadro Comunitário de Apoio, os programas de desenvolvimento turístico vão multiplicar-se exponencialmente. O turismo e o património passam a ser terminantemente encarados como 'panaceia' para os problemas do mundo rural, multiplicando-se este tipo de acções por todo o país, nomeadamente nas zonas de baixa densidade populacional ou com problemas de desenvolvimento: Alto Minho, Vale do Douro, Côa, Pinhal Interior, Alentejo e Interior Algarvio. Por conseguinte, durante a última década o país é 'atulhado' com rotas e aldeias temáticas - 'Aldeias de Montanha', 'Aldeias do Xisto', 'Aldeias de Água', 'Aldeias de Tradição', 'Aldeias de Mina', 'Aldeias do Castelo', 'Aldeias Históricas do Guadiana', 'Aldeias do Algarve', 'Aldeias da Saudade', 'Aldeias Digitais', 'Aldeias de Teletrabalho', 'Aldeias Turísticas', 'Aldeias Vinhateiras', 'Aldeias do Côa', 'Aldeias do Alqueva'.

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ALVES, 2004: As 'aldeias históricas' entendidas como 'património rural', p. 59

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ALDEIAS DO XISTO caso de estudo

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Aldeia das Dez Vila Cova de Alva

Sobral de S. Miguel

Aldeia do Xisto Aldeia do Xisto com Loja Loja ADX em pólo urbano Praia Fluvial Centro Dinamizador ADX

4.1. Território O território afecto ao programa 'Aldeias do Xisto' integra a Região Centro e abrange as subregiões Pinhal Interior Norte, Pinhal Interior Sul e parte da Cova da Beira e da Beira Interior Sul. Estas áreas têm em comum características físicas, culturais, sociais e económicas que permitiram delimitar uma área com uma certa uniformidade ao nível dos problemas mas também das potencialidades. "Trata-se de uma área maioritariamente de xisto, montanhosa (destacam-se as serras da Lousã, do Açor e do Muradal), florestal (predominantemente pinhal e eucaliptal), atravessada por cursos de água importantes (rios Mondego, Alva, Ceira, Zêzere e Ocreza) e dotada de um importante conjunto de aproveitamentos hidroeléctricos (barragens do Alto Ceira, Santa Luzia, Cabril, Bouçã, Aguieira, Fronhas e Castelo de Bode) o que lhe confere uma identidade muito específica em termos de recursos naturais." 82 Em termos demográficos esta área caracteriza-se pelo decréscimo da população em ciclos acentuados e contínuos (1981-1991, -12%; 2001-2011, -9,5%). O território é marcado pela baixa densidade populacional (38,2hab/km2), consequente da diminuição da natalidade, do envelhecimento da população e do êxodo rural. Estes aspectos associam-se a uma fraca actividade económica. Prevalecem as actividades ligadas ao sector primário (agricultura, pastorícia e exploração dos recursos florestais) embora grande parte da população "se encontre afecta ao sector terciário, uma aparente contradição não é mais do que o resultado de uma mudança de actividade por parte da população, para quem se torna difícil tirar rendimentos suficientes da actividade primária para sua subsistência". 83 Ao nível da estruturação urbana, verifica-se a dispersão de pequenos núcleos populacionais (cerca de 73% da população vive em aglomerados com menos de 500 habitantes) sendo a parte central deste território desprovida de centros urbanos relevantes. Na periferia destacam-se 3 pólos: Tábua-Arganil (a norte), Lousã-Miranda do Corvo (a poente) e Sertã-Proença-a-Nova (a sul). As acessibilidades principais (A23, IC8 e EN17) desenvolvem-se também na periferia desta área que carece de boas ligações que cruzem o interior do território. Em síntese, podemos apontar um conjunto de problemas inerentes ao Pinhal Interior: envelhecimento da população e desertificação humana; carência de boas acessibilidades locais e inter-regionais; baixa capacidade produtiva e económica; forte presença de actividades económicas em declínio; degradação dos espaços florestais (abandono da exploração e manutenção; incêndios; tendência para a monocultura: pinhal e eucaliptal); pouca articulação entre sectores na exploração das actividades económicas; afastamento em relação aos agentes centrais; predomínio dos municípios como agentes institucionais (quase únicos). São estas as dificuldades que o programa 'Aldeias do Xisto' tenta enfrentar e minimizar apostando na criação de sinergias entre agentes centrais, locais, públicos e privados. Procura assim estabelecer uma rede de articulação e cooperação entre entidades com o fim de promover uma melhoria efectiva das condições de vida das populações. 82 83

CCDRC, 2000: Programa Operacional Regional do Centro 2000-2006, p. 68 DEVILLE & MONTEIRO, 2007: A necessidade do trabalho em rede no desenvolvimento turístico das regiões, p. 5

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