Alegação de invalidade como comportamento contraditório proibido? – Comentários ao Acórdão do REsp 1.461.301/MT (JAN PETER SCHMIDT)

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Acórdãos Superior Tribunal de Justiça STJ – REsp 1.461.301/MT – 3.ª T. – j. 05.03.2015 – v.u. – rel. Min. João Otávio de Noronha – DJe 23.03.2015 – Área do Direito: Civil; Processual. PENHORA – Bem de família – Admissibilidade – Execução de título extrajudicial com base em cédula rural pignoratícia – Oferta do imóvel que foi pactuada em acordo homologado judicialmente – Desconstituição da penhora que configuraria desprestígio do Poder Judiciário. Veja também Jurisprudência • RT 922/778 (JRP\2012\30462), RT 920/1145 (JRP\2012\15946) e RePro 255/471 (JRP\2015\4855).

Veja também Doutrina • Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado, de Ingo Wolfgang Sarlet – RDC 61/90, Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional 7/771 (DTR\2015\10991).

Resp 1.461.301 – MT (2011/0200703-2). Relator: Min. João Otávio de Noronha. Recorrente: Christopher Barry Ward – advogados: Zaid Arbid; Joifer Alex Caraffini e outros. Recorrido: Banco Bradesco S/A – advogados: Matilde Duarte Gonçalves; Marcos Antonio A. Ribeiro e outros.

Ementa Oficial:NE Civil e processual civil. Lei 8.009/1990. Bem de família. Acordo homologado judicialmente. Descumprimento. Penhora. Possibilidade. Ausência de boa-fé.



Nota do Editorial: O conteúdo normativo no inteiro teor do acórdão está disponibilizado nos exatos termos da publicação oficial no site do Tribunal.

NE

STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2016 • RDCC 7 1. A jurisprudência do STJ inclinou-se no sentido de que o bem de família é impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo devedor. 2. No entanto, verificado que as partes, mediante acordo homologado judicialmente, pactuaram o oferecimento do imóvel residencial dos executados em penhora, não se pode permitir, em razão da boa-fé que deve reger as relações jurídicas, a desconstituição da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário. 3. Recurso especial a que se nega provimento.

Comentário Alegação de invalidade como comportamento contraditório proibido? – Comentários ao Acórdão do REsp 1.461.301/MT Can an applicant be estopped from claiming that an agreement is null and void? Commentary on Christopher Barry Ward vs. Banco Bradesco SA (REsp 1.461.301/MT) Jan Peter Schmidt Doutor em Direito pela Universidade de Ratisbona. Mestre pela Universidade de Constança. Desde 2004, pesquisador no Instituto Max Planck de Direito Comparado e Direito Internacional Privado (de 2004 a 2012, chefe do departamento de América Latina). [email protected]

Área do Direito: Civil; Processual Resumo: O presente texto examina acórdão proferido pelo STJ (REsp 1.461.301/MT), que admitiu recaísse a penhora sobre bem de família. Para fundamentar a validez da penhora, o STJ invoca, dentre outros argumentos, a proibição do venire contra factum proprium. O comentário critica o uso dessa figura em razão de seu perigoso potencial de subverter o regime das invalidades do negócio jurídico, e defende que o caminho muito mais convincente para chegar ao resultado desejado teria sido a simples aplicação analógica de um determinado dispositivo legal.

Abstract: The text examines a decision by the Brazilian Superior Court (Superior Tribunal de Justiça) on a case where the debtor had granted the creditor permission to seize his family home in order to satisfy the debt. In order to justify the validity of the transaction, the court refers to the prohibition of venire contra factum proprium. The commentator criticizes this argument for its dangerous potential to undermine the regime on the invalidity of juridical acts, and holds that a much more convincing way to achieve the desired result would have consisted in simply applying a certain legal provision by analogy.

Palavras-chave: Venire contra factum proprium – Regime das invalidades – Princípio da confiança – Bem de família – Aplicação analógica.

Keywords: Venire contra factum proprium – Invalidity of a juridical act – Reliance principle – Family property – Analogy.

STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência

1. A proibição1 do venire contra factum proprium, isto é, de comportar-se de forma contraditória, tornou-se uma das figuras mais populares na jurisprudência brasileira.2 Não é difícil compreender as razões desse “sucesso”. Trata-se de uma ferramenta jurídica tão poderosa quanto de aparente simples aplicação. Além disso, a fórmula nulli conceditur venire contra factum proprium expressa com grande força retórica e sugestividade3 o que alguns consideram uma exigência elementar da justiça.4 Afinal, quem pode resistir à tentação de resolver um caso de maneira rápida e simples, em tom elegante, e sem necessidade da aplicar os dispositivos da lei? No entanto, a máxima do nulli conceditur venire contra factum proprium não somente é uma das figuras mais complicadas de todo o direito privado, como também é extremamente controversa, inclusive quanto à sua necessidade e admissibilidade. Além disso, ela é uma das figuras mais enganosas, pois se há consenso sobre um ponto é este: a vedação geral e absoluta que o brocardo com tanta força proclama não corresponde à realidade jurídica. Independente do país e da época histórica, a regra geral do direito privado é a contrária: enquanto o direito não prevê uma exceção, temos toda a liberdade de atuar de forma incoerente e contraditória, de modificar as nossas condutas como bem nos aprouver.5

1. Agradeço ao Francisco Medina pela inestimável ajuda linguística, pelas valiosas observações e pela indicação de algumas referências bibliográficas, especialmente aquelas relacionadas à decisão do TJSP de 1893, citado infra n. 13. Também agradeço ao Professor Doutor Otavio Luiz Rodrigues Jr. e ao Gabriel Buschinelli por terem-me esclarecido alguns aspectos do acórdão aqui analisado. Qualquer equívoco é exclusivamente de minha responsabilidade. 2. Já em 2009, Elena de Carvalho Gomes observou que ela era cada vez mais usada pelos juristas brasileiros: Entre o actus e o factum: os comportamentos contraditórios no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. XX. Anderson Schreiber, na terceira edição do seu estudo, constata que desde a publicação da primeira edição de sua obra em 2005, “o cenário brasileiro alterou-se radicalmente: multiplicaram-se nos tribunais as decisões que se valem da proibição de comportamento contraditório” – Cf. A proibição de comportamento contraditório. Tutela de confiança e venire contra factum proprium. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 8. No direito alemão, Detlef Liebs. Rhythmische Rechtssätze – Zur Geschichte einiger lateinischer Rechtsregeln. Juristenzeitung (JZ) 1981, p. 160, e Hans Josef Wieling, Resenha de: Hans Walter Dette. Venire contra factum proprium nulli conceditur, 1985, Archiv für die civilistische Praxis (AcP) 187 (1987), p. 95, 97, constatam que o venire contra factum proprium é “um dos brocardos mais aplicados”. 3. Ver também: GOMES (op. cit., nota 2), p. XX; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 127. Paulo Mota Pinto. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil. Revista Trimestral de Direito Civil (RTDC) 16 (2003). p. 135. 4. Ver, por exemplo, Franz Wieacker. Zur rechtstheoretischen Präzisierung des § 242 BGB. Tübingen: Mohr (Paul Siebeck), 1956. p. 28: “O princípio do venire contra factum proprium radica-se profundamente na justiça pessoal, que tem como um de seus elementos inatos a veracidade” (No original: “Das Prinzip des venire contra factum proprium wurzelt tief in der persönlichen Gerechtigkeit, zu deren innerstem Element die Wahrhaftigkeit gehört”). 5. Ver, por exemplo, entre os autores portugueses: António Menezes Cordeiro. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984. vol. II, p. 750; MOTA PINTO (op. cit., nota 3), p. 141; Manuel A. Carneiro da Frada, Die Zukunft der Vertrauenshaftung oder Plädoyer für eine “reine” Vertrauenshaftung, em: Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag. München: Beck, 2007. vol. I, p. 99, 104. Entre os autores brasileiros, GOMES (op. cit., nota 2), p. 44, 84-85; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 15-17, 80; Thiago Luís Santos Sombra. A tutela da confiança em face dos comportamentos conSTJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Em princípio, podemos seguir o exemplo do primeiro chanceler alemão depois da Segunda Guerra Mundial, Konrad Adenauer, que, após ter sido criticado por ter mudado abruptamente de opinião sobre determinado assunto político, alegadamente respondeu: “O que interessa o meu papo furado de ontem?”6 Ou, se quisermos ser mais cultos, podemos citar um poema do prosador e poeta suíço Conrad Ferdinand Meyer (para não perder a rima, deve-se citar no original): “Ich bin kein ausgeklügelt Buch. Ich bin ein Mensch mit seinem Widerspruch”7 (em tradução livre: “Não sou um livro minuciosamente planejado. Sou uma pessoa com suas contradições”). 2. Naturalmente há um campo de suma importância no direito privado em que ficamos sim vinculados pelos nossos atos. Trata-se do âmbito da autonomia privada, no qual os indivíduos têm a faculdade de autorregular suas relações jurídicas por meio do instrumento do negócio jurídico. É, pois, seu regime que regulamenta em detalhes os pressupostos de tal vinculação, que não se baseia necessariamente apenas em elementos subjetivos. De um lado, o legislador pode, em virtude do princípio da autorresponsabilidade,8 extrair da presença de determinados fatos externos a conclusão de que o agente tinha uma vontade de vincular-se, como acontece, por exemplo, nas regras sobre reserva mental (art. 110 do CC/2002) e interpretação (art. 113 do CC/2002). Tenta-se estabelecer, dessa forma, um balanço justo entre os interesses do agente e a proteção do tráfego jurídico. De outro lado, negam-se, em regra, os efeitos jurídicos perseguidos pelos agentes9 caso falte algum requisito de validade, por exemplo, quando o agente é incapaz (art. 166, I, do CC/2002). Vê-se então que o regime dos negócios jurídicos regulamenta o problema da vinculação de um indivíduo ao seu próprio comportamento, tanto de forma positiva como de forma negativa. Seria natural, portanto, assumir que essa regulação é ao mesmo tempo exaustiva. Daí se poderia argumentar que não somente é supérflua a máxima que proíbe o comportamento contraditório, mas também que ela é inclusive inadmissível, por não ser nada mais que uma “varinha de condão” para contornar a lei.10

traditórios. Revista de Direito Privado (RDPriv) 9, n. 33 (2008), p. 307, 309; Luciano de Camargo Penteado. Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium. Revista de Direito Privado (RDPriv) 7. n. 27 (2006). p. 252 e ss.; Luciano de Camargo Penteado e Isabela Maria Lopes Bolotti. Venire contra factum proprium: uma análise comparativa da utilização da figura pela jurisprudência brasileira e italiana. Revista de Direito Privado (RDPriv) 16. n. 61 (2015)., p. 145, 151. Entre os autores alemães, ver RIEZLER (op. cit., nota 5), p. 110; WIELING (op. cit., nota 2), p. 98; DETTE (op. cit., nota 2), p. 25, 38; Reinhard Singer. Das Verbot widersprüchlichen Verhaltens. München: Beck, 1993. p. 2, com muitas outras referências. 6. “Was interessiert mich mein Geschwätz von gestern?” Não foi possível localizar a fonte dessa frase, mas ela se tornou um provérbio há muito tempo. 7. Do poema “Huttens letzte Tage”, de 1872. Uma versão digital do texto pode ser encontrada em [http://gutenberg.spiegel.de/buch/huttens-letzte-tage-1873/1]. Uma expressão semelhante de Walt Whitman é citada por GOMES (op. cit., nota 2), p. IX. 8. Ver, por exemplo, Claus-Wilhelm Canaris. Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht. München: Beck, 1971. p. 439 e ss. e Paulo Mota Pinto. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1995. p. 25 e ss. 9. Não interessam outras eventuais consequências jurídicas da invalidade do negócio, como, por exemplo, o dever de restituir a coisa recebida e o dever de regresso. 10. Expressão de WIELING (op. cit., nota 2, p. 100, “Zauberstab”), o principal crítico da figura do venire... na Alemanha. Do mesmo autor, ver Venire contra factum proprium und Verschulden gegen sich STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência

Também a análise histórica suporta essa relação de exclusividade entre a teoria do negócio jurídico e a vedação do comportamento contraditório. Após sua criação com base nas fontes romanas pelos juristas da Alta Idade Média, a máxima do venire contra factum proprium nulli conceditur foi utilizada durante muitos séculos exatamente para fundar a vinculação dos sujeitos a suas declarações de vontade.11 Quando essa função foi assumida, de forma mais diferenciada, pela doutrina do negócio jurídico, desenvolvida nos séculos XVIII e XIX, o brocardo se tornou obsoleto.12 A própria doutrina brasileira oferece um exemplo interessante para ilustrar essa relação entre a vedação do venire contra factum proprium e o regime geral do negócio jurídico. No ano de 1893, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1916, um autor discutiu uma decisão do TJSP13 em que tinha surgido a questão de saber se o vendedor de bens constituídos em usufruto podia alegar a invalidade do contrato de compra e venda. Em outras palavras, o autor perguntou se o alienante podia “contravir o proprio facto”, algo que, após discutir uma série de autoridades do ius commune, dentre elas Bartolo, negou.14 Em contrapartida, sob a vigência dos Códigos de 1916 ou 2002, a questão provavelmente teria sido resolvida sem recurso à proibição do venire contra factum proprium. Ter-se-ia perguntado se o negócio é nulo ou apenas anulável (questão que o direito brasileiro pré-codificado não deixava claro), podendo a nulidade ser alegada por qualquer interessado (art. 168 do CC/2002).15 Veremos mais adiante que, apesar da “absorção” do mencionado brocardo pela doutrina do negócio jurídico, novas funções foram procuradas para ele, de modo que hoje se admite, em certas hipóteses, a sua aplicação para dar eficácia, por exemplo, a um negócio jurídico nulo. Mesmo assim, é fundamental ser sensível para o grande potencial de engano, e até de abuso, da máxima do venire contra factum proprium nulli conceditur. Além de ser uma excelente ilustração desses perigos, a decisão do STJ em comento representa, ao mesmo tempo, uma tendência geral da jurisprudência brasileira de utilizar o mencionado

selbst. Archiv für die civilistische Praxis (AcP) 176 (1976). p. 334 e ss. Para Wieling, a figura do venire... pode e deve ser integrada plenamente no regime dos negócios jurídicos. Com isso, Wieling nega não somente a autonomia, mas também a necessidade e a admissibilidade da figura. 11. Erwin Riezler. Venire contra factum proprium: Studien im römischen, englischen und deutschen Civilrecht. Leipzig: Duncker & Humblot, 1912. p. 43 e ss. 12. Ver GOMES (op. cit., nota 2), p. 47-48. Pelo contrário, é um equívoco analisar a figura do venire... apenas à luz de uma visão subjetivista ou objetivista das relações privadas, como fazem PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5), p. 145. A necessidade de vincular, em certas hipóteses, os sujeitos a seus atos existe em qualquer ordenamento, e, quanto menos, ou quanto menos satisfatoriamente, essa questão for resolvida pelos dispositivos legais, maior é a margem de aplicação da figura do venire... (e vice-versa). 13. TJSP, ApCiv 2109, rel. Brotero, j. 14.03.1893, Gazeta Jurídica – Revista Mensal de Legislação, Doutrina e Jurisprudência do Estado de São Paulo 1. vol. 2 (1893). p. 289 e ss., com a sentença de primeiro grau, as razões de apelação, as contrarrazões de apelação (de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho), o acórdão do tribunal e ainda um interessante comentário crítico de Valle Ferreira. 14. Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. Quando se póde contravir o proprio facto? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (RFDUSP) 1 (1893). p. 33 ss. 15. Mesmo assim, admite-se que a questão do “escopo de proteção” da norma de nulidade possa eventualmente se tornar relevante. Ver infra nota 25. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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brocardo de maneira excessivamente ampla.16 Ressalve-se, porém, que um uso pouco criterioso da vedação do comportamento contraditório não constitui um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ele também é corriqueiro, por exemplo, na doutrina e na jurisprudência alemãs.17 3. Ligeiramente simplificados, os fatos do caso eram os seguintes: no curso de um processo de execução de cédula rural pignoratícia, as partes celebraram um acordo em que o devedor concedeu à credora a penhora sobre diversos imóveis, inclusive aquele em que residia com sua família, como garantia de seu débito. A cláusula quinta do acordo dizia: “para melhor garantir o pagamento da dívida (...), os executados concordam com a formalização da penhora sobre os bens abaixo descritos e caracterizados (...) 5) ‘Imóvel: casa residencial...’”. Como contraprestação, a credora, o Banco Bradesco, aceitou uma redução da dívida. Em seguida, o acordo foi homologado judicialmente. Descumprido esse acordo, a credora requereu a avaliação do bem penhorado. O devedor, por sua vez, pediu a desconstituição da penhora sobre o imóvel, argumentando que ele seria impenhorável por ser bem de família. O juiz de primeiro grau indeferiu o pedido do devedor sob o argumento de que ele teria renunciado à impenhorabilidade do bem. Acrescentou ainda que não havia qualquer vício de consentimento e que o acolhimento da pretensão redundaria em ofensa aos princípios da probidade e da boa-fé, previstos nos arts. 113 e 422 do CC/2002. O TJMT manteve a decisão de primeiro grau, mas com outra fundamentação: aplicou o art. 3.º, V, da Lei 8.009/1990, que prevê uma exceção à impenhorabilidade do bem de família. O STJ negou provimento ao recurso especial do devedor, mas deu uma terceira fundamentação. O Relator, Min. João Otávio de Noronha, aceitou a qualidade do imóvel como bem de família, com a consequência da sua impenhorabilidade, mas teve “como induvidoso” que o recorrente teria agido “com evidente má-fé, se não na celebração, certamente na execução do contrato que livremente pactuou”. Acrescentou que o recorrente litigou “em evidente descompasso com o princípio nemo [sic] venire contra factum proprium, a significar que adota comportamento contraditório, em um momento ofertando o bem à penhora e, no instante seguinte, arguindo a impenhorabilidade do mesmo bem. Esta conduta antiética deve ser coibida, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário, que validou o acordo celebrado”. O voto ainda contém outras considerações, que serão tratadas adiante. 4. Infelizmente, ou mais bem dito: felizmente, a vedação do venire contra factum proprium não opera da maneira usada pelo Relator. Se o raciocínio expresso no voto fosse correto, jamais seria possível invocar a invalidade de um negócio jurídico, porque toda vez que alguém o fizesse, estaria contradizendo seu comportamento no momento da celebração do negócio, quando manifestou a sua intenção de querer se vincular. O grande perigo desse uso pouco criterioso da vedação do venire contra factum proprium, que também pode ser identificado em outras decisões do STJ,18 reside, pois, no seu potencial de subverter, a um golpe, todo o regime de invalidade do negócio jurídico, que o legislador estabeleceu com tanto cuidado e que é fundamental para a segurança jurídica. Aplicando a proibição do comportamento contraditório de maneira tão ampla, o juiz poderia, cada vez que a lei taxe um negócio jurídico de inválido, corrigir esse resultado a seu bel-prazer. Com isso, o regime da invalidade perderia sua força vinculante e seria nada mais que uma “gentil recomendação” ao juiz por parte do legislador.

16. Esse fato já foi criticado por SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 127. Ver também PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5), p. 147, que oferecem muito material empírico (p. 153 e ss.), mas não especificam as razões por que o uso foi em alguns casos “adequado” e em outros “pouco adequado”. 17. Ver SINGER (op. cit., nota 5), p. 5, 29 e ss., 352-353. 18. Ver infra, nota 25. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência

A verdade é, porém, oposta: a sanção da invalidade não pode ser afastada pelas partes nem está subordinada “aos princípios da probidade e da boa-fé”, como defendeu o magistrado de primeiro grau. Quando o legislador cria normas imperativas, ele quer proteger certos interesses de forma absoluta, vedando, salvo exceção expressa, qualquer tipo de disposição sobre eles. Essa proteção abrange não apenas aquele indivíduo inexperiente, que não sabe o que está fazendo, mas também a pessoa que entende perfeitamente a situação jurídica e conhece a causa da invalidade. Não fosse assim, o objetivo do legislador de não admitir, por motivos paternalistas, certos negócios, seria facilmente frustrado. Logo, o consumidor que assina uma cláusula que ele sabe ser abusiva nos termos do art. 51 CDC pode depois alegar a sua nulidade. O filho que renuncia ao seu direito de alimentos, sabendo que o art. 1.707 do CC/2002 o proíbe, pode continuar a pedi-los. O devedor que autoriza o credor pignoratício a ficar com o objeto de garantia, se a dívida não for paga no vencimento, sempre pode, com fundamento no art. 1.428 do CC/2002, alegar a nulidade do “pacto comissório”. E a pessoa que penhora um bem que sabe ser impenhorável por causa do art. 1.º da Lei 8.009/1990, pode, no instante seguinte, e com um sorriso grande, arguir a impenhorabilidade (suponhamos, por enquanto, que o art. 3.º, V, da Lei 8.009/1990, que será tratado mais tarde, não se aplica).19 O direito tolera essa “quebra de palavra”, porque considera que outros interesses merecem maior proteção do que a confiança da outra parte. Por isso, quem invoca a invalidade prevista por lei não atua com “evidente má-fé”, mas, ao contrário, faz exatamente o que o legislador como “bom pai” previa e queria.20 Finalmente, a invalidade tampouco é atingida de algum modo por uma eventual falta de intenção de cumprir o acordo no momento de sua celebração (parece que o Relator se referiu a isso quando identificou um comportamento de “má-fé” por parte do devedor). Se a contraparte conhece essa reserva mental, o negócio jurídico nem mesmo se conclui, de acordo com o art. 110 do CC/2002. Em contrapartida, se ela a desconhece, o negócio se forma e o devedor que não o cumpre simplesmente responde por inadimplemento, segundo o art. 389 do CC/2002. Por outro lado, se a lei prevê, pela razão que seja, a invalidade desse contrato, seria extremamente ilógico se esse resultado pudesse ser mudado pela falta de vontade de cumprir. No direito, à diferença da matemática, a multiplicação de dois números negativos (invalidade do negócio e falta de vontade de cumpri-lo) não produz um número positivo (negócio válido). 5. Já foi mencionado que, apesar do risco de subverter as decisões do legislador, pelo menos a doutrina majoritária alemã não descarta de antemão a possibilidade de aplicar, em casos excepcionais, a vedação do venire contra factum proprium no campo dos negócios jurídicos inválidos.21

19. O próprio STJ deixou claro em muitas decisões que a proteção conferida pelo art. 1.º da Lei 8.009/1990 constitui matéria de ordem pública e por isso é, salvo exceção expressa, indisponível (ver, por exemplo, STJ, REsp 805.713/DF, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 15.03.2007, DJ 16.04.2007, p. 210). Em vista dessa jurisprudência, surpreende o entendimento do juiz de primeiro grau de que o devedor teria validamente renunciado a sua proteção. 20. Provavelmente o caso mais claro de um comportamento contraditório admitido pelo direito é aquele da anulação de um negócio jurídico (ver também WIELING (op. cit., nota 2), p. 99 n. 16), porque aqui o sujeito inclusive destrói ativamente os efeitos jurídicos que ele mesmo criou. 21. Para a doutrina alemã, ver CANARIS (op. cit., nota 8), §§ 27, 28 (p. 287 e ss.); SINGER (op. cit., nota 5), p. 148, com mais referências. No Brasil, o problema ainda parece ser pouco discutido. GOMES (op. cit., nota 2), p. 105-106 nega a possibilidade de tratar negócios jurídicos taxados de nulidade absoluta como facta propria, o que então seria uma posição mais estrita do que aquela defendida pela doutrina majoritária alemã. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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A nosso ver, essa posição é correta, pois, se admitirmos a possibilidade, e inclusive a necessidade, de corrigir o ius strictum em situações em que as exigências da justiça concreta o reclamam,22 não há razão para dar ao regime das invalidades um status protegido. Afinal, também existem outras hipóteses em que negócios inválidos são tratados como (parcialmente) eficazes, por exemplo, no caso dos chamados “contratos de fato”.23 No entanto, é essencial distinguir entre as diferentes causas de invalidade. Vedar a arguição de um vício de forma é obviamente menos problemático, porque nesse caso o legislador não proibiu o negócio como tal. Se as partes tivessem observado os requisitos formais, o negócio teria sido válido. Com base nessas considerações, não é surpreendente que a vedação de alegar a nulidade formal de um negócio jurídico tenha sido a hipótese em que a proibição do venire contra factum proprium foi aplicada com maior frequência,24 e também com melhor justificação.25 Em contrapartida, quando a nulidade é resultado de uma proibição direta da lei (no sentido do art. 166, VII, CC/2002), como é o caso do art. 1.º da Lei 8.009/1990 (deixando novamente de lado, pelo momento, o art. 3.º do mesmo diploma), a lei proíbe o negócio em razão de seu contéudo. Seria, pois, bastante surpreendente, ou inclusive paradoxal, se por meio da vedação do venire contra factum proprium se admitisse a criação de efeitos jurídicos que as partes não podiam alcançar por exercício de sua autonomia privada. “Ora, um ordenamento jurídico que não queira abrir mão de si mesmo não pode dar eficácia a negócios nulos por contrariedade à lei por meio da inadmissibilidade da alegação de nulidade”.26 À diferença dos indivíduos, podemos sim esperar coerência do Direito! Devemos concluir então que em um caso como o presente, em que está em jogo uma norma imperativa que visa a proteger o devedor, não há lugar nenhum para a aplicação do mencionado brocardo.27

22. E nisto consiste a finalidade do brocardo aqui analisado, ver GOMES (op. cit., nota 2), p. 3 e ss.; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 133-134. Em contrapartida, PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5), p. 153, querem aplicar o brocardo apenas quando inexiste uma solução legal. Mas isso levaria a um completo esvaziamento da figura, pois não falta uma solução legal nos caso em que ela é discutida; o problema é que, segundo a solução legal, não haveria uma vinculação! 23. Para esse e outros exemplos, ver Jan Peter Schmidt. Vida e obra de Pontes de Miranda a partir de uma perspectiva alemã – com especial referência à tricotomia “existência, validade e eficácia do negócio jurídico”, in Revista Fórum de Direito Civil (RFDC) 3, n. 5 (2014), p. 135, 152 e ss. 24. Ver Canaris (op. cit., nota 8), § 27 (p. 287 e ss.). 25. Porém, deve-se evitar o equívoco de ver o factum proprium na mera conclusão de um acordo verbal, porque essa interpretação esvaziaria por completo os requisitos formais previstos em lei. Para uma correspondente crítica a algumas decisões do STJ, ver Jan Peter Schmidt. Dez anos do art. 422 do Código Civil – Luz e sombra na aplicação do princípio da boa-fé objetiva na práxis judicial brasileira. Liber Amicorum João Baptista Villela (a ser publicado em 2016), p. 115, 124 e ss. [= Zehn Jahre Art. 422 Código Civil – Licht und Schatten bei der Anwendung des Grundsatzes von Treu und Glauben in der brasilianischen Gerichtspraxis. Mitteilungen der Deutsch-Brasilianischen Juristenvereinigung (DBJV-Mitt.) 32, 2 (2014), p. 34 ss.]. 26. Franz Wieacker. Juristenzeitung (JZ) 1960. p. 229 (comentário à sentença do BGH (Bundesgerichtshof) de 14.11.1960 – VIII ZR 116/59 (OLG Nürnberg)). No original: “[E]ine Rechtsordnung, die sich nicht selbst aufgeben will, [kann] nun einmal nicht verbotsnichtigen Rechtsgeschäften unter dem Gesichtspunkt der Unzulässigkeit der Berufung auf ihre Nichtigkeit doch zur Durchsetzung verhelfen”. 27. Vale lembrar que pode haver casos em que a lei prevê a nulidade, mas o “escopo de proteção” (Schutzzweck) da respectiva norma dá margem a uma aplicação do venire contra factum proprium. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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6. Mesmo se no caso em análise se entendesse possível aplicar a proibição de não contradizer os próprios atos, o juiz não estaria dispensado de uma minuciosa análise dos pressupostos da máxima.28 A decisão do STJ também peca nesse aspecto,29 o que parece ser outro fenômeno corriqueiro na jurisprudência brasileira sobre a aplicação do venire...30 Se o Relator tivesse realizado o exame correspondente, muito provavelmente ele teria percebido que nenhum dos pressupostos para a aplicação do brocardo foi preenchido.

Na doutrina alemã, ver CANARIS (op. cit., nota 8), p. 285-286, 319; SINGER (op. cit., nota 5), p. 149 e ss. Por exemplo, se no presente caso não o devedor, mas o Banco tivesse alegado a ineficácia do acordo, poder-se-ia pensar na aplicação do venire..., argumentando que o art. 1.º da Lei 8.009/1990 não visa a proteger o credor. Foge do escopo deste artigo a questão se uma simples redução teleológica da respectiva norma não seria uma fundamentação mais convincente nesses casos. 28. Pelo contrário, como a natureza e a finalidade de figuras como o venire... é corrigir o ius strictum, a indicação de um fundamento legal seria menos importante, já que elas independem de uma positivação. Além disso, é praticamente impossível para o legislador dar nesses casos mais do que formulações muito abstratas, que, para serem aplicáveis a casos concretos, ainda precisam ser interpretados pela doutrina e pela jurisprudência. Por isso, a procura de um fundamento legal para figuras que promovem a equidade facilmente corre o perigo de cair no mesmo positivismo legalista que aquelas figuras justamente visam a superar. Isso não significa que uma base legal para um brocardo como o venire... seria irrelevante, mas somente que ela não possuiria verdadeiro conteúdo normativo, pois serviria apenas como ponto de referência formal que ajudaria a jurisprudência e a doutrina a canalizar o discurso correspondente (ver Judith Martins-Costa. O direito privado como um “sistema em construção”. Revista da Informação Legislativa. vol. 35. n. 139. p. 5, 10-11. jul.-set. 1998; GOMES (op. cit., nota 2), p. 31 e ss.; Jan Peter Schmidt. Zivilrechtskodifikation in Brasilien: Strukturfragen und Regelungsprobleme in historisch-vergleichender Perspektive. Tübingen: Mohr Siebeck, 2009. p. 406407, 447). Para uma análise cuidadosa das diferentes possibilidades no direito brasileiro, ver GOMES (op. cit., nota 2), p. 68 e ss. Em todo caso, é desnecessário procurar um fundamento constitucional para a vedação do venire contra factum proprium e encontrá-lo, como SCHREIBER (op. cit., nota 2, p. 107) ou PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5, p. 152), no princípio da solidariedade previsto no art. 3.º, I, CF. Isso porque o conceito da “solidariedade” é tão abstrato que ele não contribui em absolutamente nada para concretizar os requisitos daquela máxima (ver também a crítica de GOMES (op. cit. nota 2), p. 7072). Se a referência ao art. 3.º, I, CF se justifica pela consideração de que o “princípio da solidariedade social (...) impõe a consideração da posição alheia também na atuação privada” (SCHREIBER, op. cit. nota 2, p. 107), deve-se responder que, felizmente, esse topos já fazia parte do direito privado um pouco antes da chegada da Constituição de 1988, no caso do venire contra factum proprium, mais ou menos oito séculos antes (de fato, toda regra do direito privado persegue o fim de fazer um balanço justo entre os diferentes interesses dos sujeitos privados). Temos aqui um dos muitos casos em que o pintinho (a Constituição) quer dar lições à galinha (o direito privado). 29. Além disso, é de se lastimar que o Relator tenha se valido de obras doutrinárias (na verdade, pouco relevantes aqui) somente para explicações muito abstratas a respeito dos deveres das partes na relação obrigacional e tenha deixado de consultar os excelentes estudos que foram publicados no Brasil sobre o venire contra factum proprium, como os já citados trabalhos de MOTA PINTO (op. cit., nota 3), SCHREIBER e GOMES (op. cit., nota 2). 30. Ver a análise de PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5), p. 152, que, infelizmente, não fornecem exemplos concretos. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Como tais a doutrina identifica, com pequenas variações, os seguintes:31 (1) deve haver um fato imputável ao agente, o factum proprium, que (2) criou na contraparte a expectativa legítima32 de que esse comportamento seria mantido no futuro. Com base nessa expectativa criada, (3) a contraparte deve ter feito um investimento de confiança,33 de modo que (4) permitir ao agente agir contra o seu comportamento inicial deixaria a contraparte em uma situação intolerável do ponto de vista ético-jurídico.34 Quando se usa a máxima do venire... para bloquear a alegação de invalidade deve-se tomar um cuidado especial na “subsunção” desses requisitos, por causa do já mencionado risco de esvaziar por completo o regime legal das invalidades. Por esse motivo, deve ser destacado que o factum proprium nunca pode ser visto na mera conclusão do negócio. Além disso, é necessário que as partes tratem o negócio como se fosse válido após sua conclusão. Elas devem ter “vivido” a respectiva relação jurídica e ter pautado suas condutas de maneira correspondente,35 com o resultado de que uma reversão da situação, por meio da alegação de ineficácia, seria claramente iníqua. Em outras palavras, quando se veda a arguição de invalidade, não se protege a expectativa, ou a esperança, de que o direito iria tratar o negócio como válido; essa esperança nunca é digna de proteção, como já deriva do art. 3.º da LINDB. Capaz de ser protegida é apenas a expectativa de que a outra parte trate o negócio como válido e irá continuar a fazê-lo.36 Percebemos então que a celebração de um negócio, por si só, não somente é insuficiente para fundar a aplicação da máxima do venire..., mas também que ela é desnecessária. A vedação do comportamento contraditório também pode ser alegada em situações em que as partes nunca pretenderam concluir um acordo formal.37

31. Para maiores detalhes, ver GOMES (op. cit., nota 2), p. 97 e ss.; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 131 e ss.; MOTA PINTO (op. cit., nota 3), p. 164 e ss. 32. Embora de máxima importância, esse requisito é facilmente esquecido. Nem toda confiança merece ser protegida por lei. A respeito, ver MOTA PINTO (op. cit., nota 3), p. 149-150; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 143-144. 33. A tutela da confiança é a base da vedação do comportamento contraditório. No Brasil, ver GOMES (op. cit., nota 2), p. 83 e ss.; SCHREIBER (op. cit., nota 2), p. 322 e ss. Na Alemanha, ver as referências abundantes indicadas por SINGER (op. cit., nota 5), p. 6. Como o último autor corretamente aponta, a consequência é que a vedação do venire contra factum proprium não pode ser considerada uma figura realmente independente ante a teoria geral da confiança (p. 43 e ss., 303). Ver também infra, n. 11. 34. Como será exposto abaixo (n. 11), o item (4) não é um pressuposto no mesmo sentido dos três primeiros. 35. Ver a famosa sentença do STF, Rec. Ex. n. 86.787/RS, j. 20.10.1978, rel. Min. Leitão de Abreu, que, embora não trate propriamente do problema da invalidade, ilustra bem uma situação desse tipo. Durante a constância do longo matrimônio, o marido, em repetidas ocasiões e mesmo frente a entidades oficiais, havia se declarado casado no regime da separação de bens, de acordo com a lei do primeiro domicílio conjugal, a do Uruguai. Em momento posterior, quando o marido alegou no processo de separação de corpos que o primeiro domicílio conjugal na verdade tinha sido o Brasil (o que teria conduzido à aplicação do regime brasileiro de comunhão de bens, resultado muito mais favorável para o marido, visto que sua esposa provinha de uma família abastada), o STF não aceitou o argumento, pois ele não condizia com a conduta anterior do marido. 36. Ver também Gomes (op. cit., nota 2), p. 106. Para Singer (op. cit., nota 5), p. 19, 353 e ss., a confiança na validade do negócio somente merece ser tutelada quando o erro sobre a situação jurídica foi causada pela outra parte (p. 357). 37. Singer (op. cit., nota 5), p. 255 e ss. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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No presente caso, o devedor nunca manifestou, depois do acordo, a intenção de cumpri-lo. Além da celebração do negócio, não houve outro factum que poderia ter criado uma confiança correspondente na credora. Tampouco consta da decisão que a credora haja feito algum investimento irreversível de confiança na validade do acordo. Um tal investimento poderia ter consistido, por exemplo, na omissão deliberada de executar algum outro bem do devedor. Por último, deve-se frisar que a alegação de impenhorabilidade não levaria a um resultado manifestamente iníquo. É certo que a desconstituição da penhora agravaria a situação do Banco. Porém, o risco de que os demais bens do devedor seriam insuficientes para saldar a dívida já existia antes do acordo. Em outras palavras, o Banco não perderia nada pela ineficácia do acordo; ele apenas deixaria de obter uma penhora que segundo a lei já estava fora de seu alcance. O Banco somente sofreria uma perda na medida em que aceitou uma redução da dívida. Mas é obvio que a invalidade também atingiria essa parte do acordo (art. 184 do CC/2002), de modo que o Banco poderia novamente exigir o pagamento do débito inicial. Apenas se o devedor tivesse usado o “respiro” ganho graças ao acordo com o Banco para esconder outros bens, ou quando, nesse meio tempo, estes outros bens tivessem sido penhorados por outros credores, o Banco poderia ter sofrido uma perda econômica por ter confiado na eficácia do acordo. Mas esse resultado também não poderia ser qualificado como iníquo, porque se o Banco voluntariamente deixou de penhorar outros bens do devedor, ele atuou claramente por risco próprio (ver o item seguinte). Além disso, requer-se que o resultado seja manifestamente iníquo. Na doutrina alemã, exige-se, por exemplo, que a contraparte tenha sido colocada em risco de perder sua existência econômica.38 No presente caso, é, no mínimo, difícil de imaginar que o Banco Bradesco correu um risco da tal dimensão. 7. Tampouco há no caso outras circunstâncias que justificariam impedir a arguição de invalidade da penhora. No direito alemão, discute-se a aplicação da “exceção do dolo” (“Arglisteinrede”) quando uma das partes, na conclusão do negócio, enganou a outra sobre os requisitos de validade, atuando, assim, com dolus praeteritus.39 Essa situação obviamente requer alguma assimetria de informação, que dificilmente se daria em um caso como o presente. De fato, seria bastante estranho tratar o Banco Bradesco como um sujeito vulnerável, inexperiente, do qual o devedor, pessoa física, teria se aproveitado em razão de sua superioridade econômica e intelectual. É assunto dos bancos, e não de seus clientes, vigiar seus interesses e tomar cuidado para que as garantias de créditos sejam estabelecidas de acordo com a lei. Se o Banco Bradesco tinha dúvidas quanto à validade da penhora, deveria ter desistido do acordo, ou ter assumido conscientemente o risco de que ele posteriormente se revelasse inexecutável. Ademais, vale novamente o argumento de que normas específicas de proteção, como o art. 1.º da Lei 8.009/1990, não podem ser ilididas por meio da “exceção do dolo”. É natural que a credora não estivesse satisfeita com o comportamento do devedor, caso ele realmente tivesse atuado de má-fé. No entanto, e sem negar a inter-relação entre direito e moral, devemos resistir à tentação de extrair sanções jurídicas de qualquer comportamento antiético (sem excluir que poderia haver, neste caso, uma responsabilidade por ato ilícito nos termos dos arts. 186 c/c 927 do CC/2002, se o

38. SINGER (op. cit., nota 5), p. 12. 39. Ver CANARIS (op. cit., nota 8), §§ 25, 26 (p. 273 e ss.). No direito brasileiro, a exceção do dolo parece ter sido negligenciada nas últimas décadas. Em todo caso, tanto ela é necessária que ao menos no direito brasileiro pré-codificado (antes do CC/1916) encontram-se referências a ela. Assim, por exemplo, no comentário de V. Ferreira à decisão do TJSP acima mencionada (nota 13 supra, p. 294). STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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único objetivo do devedor consistisse exclusivamente na dilação do processo; isso não levaria, porém, à validade da penhora). 8. A conclusão de que a decisão do STJ não pode ser fundada na vedação do venire contra factum proprium, nem em um alegado comportamento de má-fé do devedor, nem em uma violação do princípio da boa-fé objetiva, não significa que o resultado dessa decisão seja errado. Pelo contrário, significa apenas que ela precisa de uma fundamentação diferente. O argumento decisivo, que ao mesmo tempo é o único argumento pertinente, encontra-se na última parte do voto do STJ. Ele teria merecido um lugar muito mais proeminente, um lugar exclusivo, como ocorreu na decisão do TJMT, porque quando a solução do caso pode ser derivada diretamente da lei, toda a discussão sobre um eventual comportamento contraditório torna-se desnecessária. O legislador previu, no art. 3.º da Lei 8.009/1990, uma lista extensa de situações em que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível. A proteção que ele deu ao bem de família não é, pois, absoluta. O legislador entendeu que outros interesses podem justificar exceções à regra da impenhorabilidade. No caso em análise, é difícil a aplicação direta de algum inciso do art. 3.º da Lei 8.009/1990. Aquele que chega mais perto é o inciso V, que trata não de uma penhora, mas da constituição de uma hipoteca.40 Surge então a questão de uma aplicação análoga de mencionado preceito. O Relator não falou expressamente desse instrumento metodológico, mas forneceu argumentos em seu favor. Apontou que, no fundo, era uma coincidência que as partes tinham optado pela constituição da penhora e que elas teriam alcançado exatamente o mesmo objetivo com a constituição de uma hipoteca, caso em que os requisitos do art. 3.º, V, teriam sido preenchidos sem problemas. Com isso, estava presente um dos dois requisitos para a extensão de uma norma por analogia, que é a semelhança, do ponto de vista valorativo, entre a situação prevista pela norma e a situação não coberta por ela.41 Isso porque tanto a constituição de uma penhora quanto a de uma hipoteca visa a obter o mesmo resultado, nomeadamente dar ao credor uma garantia real para uma dívida. Do ponto de vista econômico, tampouco faz diferença se a causa da dívida é um contrato de mútuo (o caso do art. 3.º, V) ou um título de crédito (o caso dos autos). Por último, houve uma formalização da penhora por meio de sua homologação. O fato de que ela, à diferença da hipoteca depois de seu registro no cartório de imóveis, teria eficácia apenas inter partes é irrelevante, pois não houve nenhum terceiro envolvido no caso. Justifica-se, portanto, que ambos os casos sejam tratados de forma igual, conforme o brocardo: ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio. O segundo requisito da analogia, que na verdade é o primeiro, é a existência de uma lacuna na lei, ou, nas palavras do art. 4.º do LINDB, a constatação de que ela é “omissa”. Deve-se mostrar que a norma a ser estendida é incompleta, que o legislador “se esqueceu” de incluir nela a situação em causa. É universalmente conhecido que a constatação de lacunas é um dos problemas mais difíceis do direito.42 No entanto, é claro que não se pode falar em lacuna quando a restrição da norma é resultado de uma decisão consciente do

40. Por tal razão surpreende que o TJMT tenha aplicado o art. 3.º, V, diretamente. 41. Sobre a analogia em geral, ver Tércio Sampaio Ferraz Jr. Analogia (Aspecto lógico-jurídico: analogia como argumento ou procedimento lógico). Enciclopédia Saraiva do Direito, 1978. vol. 6, p. 362 e ss. Para uma profunda análise histórica e comparada da aplicação e interpretação do direito no Brasil, ver a recente obra de Bejamin Herzog. Anwendung und Auslegung von Recht in Portugal und Brasilien. Tübingen: Mohr Siebeck 2014, p. 494 e ss. 42. Ver Claus-Wilhelm Canaris. Die Feststellung von Lücken im Gesetz. 2. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1983; Maria Helena Diniz. As lacunas no direito. 9. ed. Saraiva: São Paulo, 2009. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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legislador. Nesse caso, ele expressou sua intenção de tratar as respectivas situações de forma desigual, decisão que deve ser respeitada pelo juiz e não pode ser corrigida por meio da analogia. Na análise da questão de saber se o art. 3.º, V, da Lei 8.009/1990 contém uma lacuna, deve-se ter presente que a lista do art. 3.º é taxativa e que as exceções ao art. 1.º em princípio não podem ser estendidas,43 pois, para citar um último brocardo latim, exceptiones non sunt extendendae. Mesmo assim, parece ser perfeitamente aceitável supor que o legislador não excluiu a penhora de propósito, mas que ele apenas pensou na hipoteca por ela ser o meio clássico de garantia imobiliária real. Se o legislador tivesse previsto que na prática outros instrumentos de garantia de crédito poderiam ser utilizados, muito provavelmente as teria incluído no inc. V.44 Logo, os pressupostos para a aplicação análoga do art. 3.º, V, da Lei 8.009/1990 estavam presentes sem maiores problemas, o que teria solucionado o caso da maneira que o tribunal desejava. Note-se, ainda, que o uso do instrumento da analogia não é uma mera “questão de gosto” para chegar a esse resultado. Pelo contrário, caso não existisse o art. 3.º, V, a penhora teria de ser tratada como ineficaz, não importa com quanta má-fé o devedor tivesse atuado. Por esse motivo, não se justificaria a referência ao venire contra factum proprium nem como mero adorno retórico.45 9. Esse momento é oportuno para uma breve consideração sobre o instrumento metodológico da analogia. Atualmente é bastante difundida no Brasil a visão de que todas as controvérsias de direito privado podem ser resolvidas com base em princípios ou cláusulas gerais. Em um cenário como esse, não existe mais necessidade de recorrer à figura da analogia. No entanto, a verdade é que a analogia é um instrumento muito mais refinado do que uma cláusula geral ou um princípio abstrato. Enquanto o uso das últimas muitas vezes não vai mais além de proclamações vazias, detrás das quais se escondem opiniões pessoais de índole política, social, moral ou ideológica, a analogia é um instrumento de busca de uma solução com base em regras concretas já existentes, tentando estabelecer e compreender as valorações subjacentes a cada norma e previamente feitas pelo legislador. O uso da analogia em vez de uma cláusula geral significa mais trabalho para o juiz, mas também lhe dará um resultado mais refinado, mais bem fundamentado e consentâneo com os valores inerentes à democracia. 10. A necessidade da jurisprudência de não apenas encontrar um resultado satisfatório para o caso concreto, mas também de fornecer uma fundamentação adequada, foi expressa de forma muito feliz em outra decisão recente do STJ: “É preciso recordar o efeito didático e multiplicador que têm os precedentes desta Corte e estar atento ao fato de que a mesma opção hermenêutica pode, transportada para outra realidade fática, revelar-se completamente desastrosa”.46 Embora essas palavras tenham sido escritas para outro contexto normativo, elas são muito pertinentes para o caso aqui analisado. Se a maneira como a vedação do comportamento contraditório foi aqui aplicada fosse generalizada, o regime das invalidades do negócio jurídico desapareceria, com consequências drásticas. Note-se, por fim, que uma boa fundamentação serve mais do que qualquer outra coisa para manter intacto o “prestígio do Poder Judiciário” com que o Relator do Acórdão aqui comentado se mostrou tão preocupado.

43. Ver, por exemplo, STJ, REsp 205.040/SP, j. 15.04.1999, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 13.09.1999, p. 65. 44. Indícios de que se tratou de um mero lapso do legislador podem ser vistos tanto na relativa brevidade das Exposições de Motivos da Lei 8.009/1990, que não aprofundam as diversas exceções previstas no art. 3.º, V, como no fato de a lei ter sido resultado de uma medida provisória. 45. Sobre o frequente uso retórico do princípio da boa-fé objetiva nas decisões do STJ, ver SCHMIDT (op. cit., nota 25). 46. STJ, REsp 1.368.123/SP, j. 22.4.2015, rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 08.06.2015 (sub n. 21). STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Usar a vedação do venire contra factum proprium de forma apropriada certamente não é uma tarefa fácil. Mas justamente por isso cumpre sempre lembrar que “a vedação de contradizer os próprios atos deve ser utilizada com extrema parcimônia, e apenas em situações especialíssimas”.47 Destarte, o juiz deveria pensar duas vezes antes de aplicar aquele brocardo tão popular, e somente depois de ter esgotado todas as possibilidades que a lei e instrumentos como a extensão ou redução teleológica de uma norma lhe oferecem. 11. Foge do escopo deste comentário analisar a questão se a máxima do venire contra factum proprium nulli conceditur deveria ser repensada, ou mesmo ser abandonada por completo, por ser, no mínimo, desnecessária.48 Mesmo assim, não se pode deixar de apontar uma confusão conceitual que é muito corriqueira na doutrina brasileira (mas também de outros países), e que parece ser responsável por uma certa mistificação do brocardo. É corrente a ideia de que, no caso de sua aplicação, o sujeito seria sancionado por ter agido de forma incoerente. Atuou primeiro de forma A, e posteriormente de forma B. O comportamento B, o venire contra, é então apresentado como um dos pressupostos para a geração de consequências jurídicas.49 Na verdade, o comportamento B não determina a situação jurídica.50 A responsabilidade, ou a vinculação, do sujeito se funda apenas no comportamento A e na confiança que a contraparte investiu nele. Em outras palavras, a situação jurídica já é definida no instante anterior ao comportamento B. Este comportamento B não é a causa de sua própria vedação; muito pelo contrário, é apenas o objeto de uma vedação já existente. Seria ilógico assumir que a vinculação do sujeito nasce apenas com a violação de seus deveres.51 É claro que sem o comportamento B não haveria controvérsia entre as partes, e, nesse sentido, que ele é um pressuposto para a aplicação do venire... Mas esse pressuposto não define a situação jurídica. No comportamento B se manifesta, por parte de um sujeito, apenas uma ausência de atuação conforme o esperado, ou seja, ele somente representa uma divergência entre “ser” e “dever ser”. O sujeito ou faz valer um direito que já foi extinto, ou deixa de cumprir um dever que já foi criado. Um paralelo com a responsabilidade contratual esclarece esse ponto: ninguém diria, hoje, que um contrato deve ser cumprido, porque o descumprimento seria um comportamento contraditório (afinal, as partes prometeram o cumprimento). Essa visão exigiria um “espantoso salto mortal do pensamento

47. GOMES (op. cit., nota 2), p. 154. No direito alemão, também SINGER (op. cit., nota 5, p. 352, 365) enfatiza que o âmbito de aplicação do brocardo é, ao contrário ao que acontece na prática, muito reduzido. 48. Ver as críticas de WIELING, supra nota 9. No mesmo sentido, Jürgen Schmidt, em: J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Einleitung zu §§ 241 ff.; §§ 241–243, 13.ª adaptação, Sellier – De Gruyter: Berlin, 1995, § 242 Rdnr. 629 e ss., mostrando como os resultados perseguidos por meio da vedação do comportamento contraditório podem ser alcançados de forma (mais) convincente por outras vias, especialmente pela simples aplicação das regras sobre negócios jurídicos. 49. Da doutrina brasileira, ver, por exemplo, SCHREIBER (op. cit., nota 2), p 144 e ss.; SOMBRA (op. cit., nota 5), p. 327 e s.; Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade de contratar. RF 96. vol. 351 (2000). p. 275 e ss. (279 s.); Cristiano de Sousa Zanetti. Responsabilidade pela ruptura das negociações. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 115. 50. Neste sentido, DETTE (op. cit., nota 2), p. 41-42; WIELING (op. cit., nota 2), p. 98, 102; SCHMIDT (op. cit., nota 48), Rdnr. 629. Não convencem os contra-argumentos de SINGER (op. cit., nota 5), p. 28-29. 51. Mas ver, por exemplo, PENTEADO e BOLOTTI (op. cit., nota 5), p. 152: “A vinculação ocorre no momento em que a confiança é violada...”. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência

jurídico”.52 É muito mais simples e natural dizer que a conclusão do contrato criou uma obrigação para as partes e que o descumprimento dessa obrigação provoca uma responsabilidade. Não é necessário operar com a ideia da incoerência aqui. O descumprimento é um pressuposto para poder fazer valer os direitos contratuais em juízo, mas isso não o torna a base da obrigação. Nos casos a que se aplica a vedação do venire contra factum proprium, a situação é exatamente a mesma: através da confiança inspirada pelo comportamento A, o sujeito cria um determinado vínculo jurídico, que depois deixa de respeitar (comportamento B). A única diferença com a responsabilidade contratual é que o sujeito não cria a situação jurídica intencionalmente, senão de forma acidental.53 Devemos então nos colocar a seguinte pergunta: se a ideia de explicar a responsabilidade contratual através da vedação do comportamento contraditório já foi abandonada há muito tempo, por que ainda pensamos ser necessário recorrer a ela no caso da responsabilidade pela confiança? Vê-se então que a proclamação: venire contra factum proprium nulli conceditur! é apenas uma maneira rebuscada para dizer que os sujeitos de direito devem respeitar os vínculos jurídicos por eles criados. Além de ser mais simples, afirmar que os sujeitos devem respeitar suas obrigações tem a vantagem de chamar nossa atenção para a análise dos verdadeiros pressupostos de aplicação, isto é, para os fatos que justificam uma vinculação do sujeito. A desvantagem da fórmula do venire... é que ela facilmente induz ao equívoco, muito corriqueiro especialmente na jurisprudência, de que tudo o que se precisa demonstrar é um comportamento incoerente. É pouco provável que essas breves considerações afetem a enorme popularidade da máxima do venire contra factum proprium nulli conceditur. Entretanto, espera-se que ela ao menos seja aplicada de maneira mais refletida.

52. WIELING (op. cit., nota 2), p. 97 (no original: “... ein erstaunlicher Salto juristischen Denkens”). 53. Como já foi mencionado acima (supra, nota 33), a vedação do venire contra factum proprium não pode ser considerada uma figura independente frente à teoria geral da confiança, que, por sua vez, se baseia no princípio da autorresponsabilidade (ver supra nota 8). Quanto a este último, deve-se evitar o equívoco de ver nele apenas uma correção externa do regime legal do negócio jurídico, porque, em maior ou menor medida, ele sempre já faz parte deste (ver também supra nota 12).

ACÓRDÃO – Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da 3.ª T. do STJ, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do senhor Ministro relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva (Presidente), Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 5 de março de 2015(data do julgamento) – João Otávio de Noronha, relator. Resp 1.461.301 – MT (2011/0200703-2). Relator: Min. João Otávio de Noronha. Recorrente: Christopher Barry Ward – advogados: Zaid Arbid; Joifer Alex Caraffini e outros. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2016 • RDCC 7 Recorrido: Banco Bradesco S/A – advogados: Matilde Duarte Gonçalves; Marcos Antonio A. Ribeiro e outros.

RELATÓRIO – O Exmo. Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se, na origem, de ação de execução por título extrajudicial proposta por Banco Bradesco S.A. contra Christopher Barry Ward e sua mulher, Regina Maria de Freitas Ward, com base em cédula rural pignoratícia emitida pelo primeiro e avalizada pela segunda. No curso do processo, foi celebrado acordo – que veio a ser homologado – por meio do qual os devedores propuseram o pagamento da dívida em valor inferior ao cobrado e concordaram com a formalização de penhora sobre alguns bens, entre eles, o imóvel em que residiam. Descumprido o acordo, o credor requereu o prosseguimento do feito com a avaliação dos bens penhorados. Os devedores, por sua vez, pediram a desconstituição da penhora incidente sobre o imóvel residencial, argumentando tratar-se de bem de família e, portanto, impenhorável. O magistrado de primeiro grau indeferiu o pedido dos devedores à consideração de terem eles renunciado à impenhorabilidade do bem no momento em que assinaram a petição de acordo, bem assim ao fundamento de que o acolhimento da pretensão redundaria em ofensa aos princípios da probidade e da boa-fé, previstos nos arts. 113 e 422 do Código Civil. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso, apreciando agravo de instrumento interposto pelos devedores, manteve a decisão de primeiro grau em acórdão cuja ementa está assim redigida: “Recurso de apelação cível (rectius: agravo de instrumento) – Execução por título extrajudicial – Bem de família – Oferecimento do imóvel como garantia de dívida – Observância do disposto no art. 3.º, V, da Lei 8009/1990 – Possibilidade da constrição – Decisão mantida – Recurso improvido. O fato de o devedor ter oferecido o bem de família à penhora não desqualifica-o da impenhorabilidade e o torna passível de alienação, de acordo com a exceção prevista no art. 3.º, V, da Lei 8.009/1990”. Houve a oposição de embargos de declaração, os quais foram rejeitados em razão de seu caráter nitidamente infringencial. O especial foi inadmitido na origem. Dei provimento ao agravo respectivo, determinando sua conversão em recurso especial. É o relatório. Ementa: Civil e processual civil. Lei 8.009/1990. Bem de família. Acordo homologado judicialmente. Descumprimento. Penhora. Possibilidade. Ausência de boa-fé. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência 1. A jurisprudência do STJ inclinou-se no sentido de que o bem de família é impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo devedor. 2. No entanto, verificado que as partes, mediante acordo homologado judicialmente, pactuaram o oferecimento do imóvel residencial dos executados em penhora, não se pode permitir, em razão da boa-fé que deve reger as relações jurídicas, a desconstituição da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário. 3. Recurso especial a que se nega provimento.

VOTO – O Exmo. Sr. Ministro João Otávio de Noronha: O recurso especial foi interposto com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal e veicula alegação de ofensa aos arts. 1.º e 3.º, V, da Lei 8.009/1990, além de dissídio pretoriano. Conheço do recurso especial por entender preenchidos os requisitos de admissibilidade. Nego-lhe provimento, contudo. Com efeito, não desconheço a jurisprudência do STJ, bem apontada pelo recorrente, no sentido de que os imóveis que servem de residência constituem bem de família e são, por isso, impenhoráveis, mesmo quando feita a constrição por indicação dos próprios devedores. No entanto, considero que o caso em exame apresenta certas peculiaridades que me levaram a refletir mais profundamente sobre a questão e a concluir pela validade da renúncia ocorrida. Em primeiro lugar, observo que a dívida cobrada foi constituída presumivelmente em benefício da família, uma vez que visava ao financiamento das atividades pastoris a que se dedicava o marido, tendo este assinado o título de crédito respectivo e a mulher o avalizado. Depois, vejo que foi celebrado acordo entre credor e devedores no qual as partes transacionaram a respeito do valor da dívida e de outras questões, tendo o recorrente expressamente renunciado ao oferecimento de qualquer defesa, de modo que, descumprido o pacto – o que veio a ocorrer –, a execução prosseguiria com a avaliação e praça dos bens oferecidos à penhora. Finalmente, referido acordo, subscrito pelo recorrente e seu advogado, foi homologado pelo juízo da execução. Não vejo, diante dessas circunstâncias, como dar guarida às pretensões do recorrente. Ao contrário, tenho como induvidoso que agiu ele com evidente má-fé, se não na celebração, certamente na execução do contrato que livremente pactuou. Nelson Rosenvald, ao discorrer a respeito dos deveres das partes na relação obrigacional, afirma: STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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Revista de Direito Civil Contemporâneo 2016 • RDCC 7 “Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo” (Código Civil comentado. 4. ed. São Paulo: São Paulo, 2010. p. 483). Litiga o recorrente em evidente descompasso com o princípio nemo venire contra factum proprium, a significar que adota comportamento contraditório, num momento ofertando o bem à penhora e, no instante seguinte, arguindo a impenhorabilidade do mesmo bem. Essa conduta antiética deve ser coibida, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário, que validou o acordo celebrado. Se, por um lado, é verdade que a Lei 8.009/1990 veio para proteger o núcleo familiar, resguardando-lhe a moradia, não é menos correto afirmar que aquele diploma legal não pretendeu estimular o comportamento dissimulado, a chicana, as manobras capciosas, enfim. Ademais, deve-se registrar que o imóvel em referência foi oferecido como garantia do acordo, conforme se vê da cláusula quinta do instrumento respectivo. Como se tratava de acordo judicial celebrado no bojo dos próprios autos da execução, tal garantia somente podia ser constituída mediante formalização de penhora incidente sobre o bem. Nada impedia, no entanto, que houvesse a celebração do pacto por escritura pública, com a constituição de hipoteca sobre o imóvel e posterior juntada aos autos com vistas à homologação judicial. Se as coisas tivessem ocorrido dessa forma, seria plenamente válida a penhora sobre o bem em razão da exceção à impenhorabilidade prevista no inc. V do art. 3.º da Lei 8.009/1990. Pergunto: qual a diferença substancial que há entre um ato e outro no que interessa às partes? Absolutamente nenhuma! É lícito imaginar, ademais, que o credor somente se interessou pelo acordo em razão da possibilidade de agregar nova garantia à dívida. Afinal, por que razão interromperia o curso de processo já em andamento, prorrogando o prazo de vencimento da dívida e reduzindo-lhe o valor? Acrescente-se, finalmente, que a decisão homologatória do acordo tornou preclusa a discussão da matéria, de forma que o mero inconformismo dos devedores contra uma das cláusulas pactuadas, manifestado tempos depois, quando já novamente inadimplentes, não tem força suficiente para tornar ineficaz a avença. Vejo, portanto, que estamos diante de um caso em que não se justifica a aplicação pura e simples da jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça. Não considero ético, justo e muito menos legal que prevaleça a desfaçatez e o escárnio. STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

Comentários de Jurisprudência Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É como voto. CERTIDÃO DE JULGAMENTO – REsp 1.461.301/MT; 3.ª T.; número do registro: 2011/0200703-2; processo eletrônico; números de origem: 165882011 476182010 492662011; pauta: 05.03.2015, julgado: 05.03.2015; relator: Exmo. Sr. Min. João Otávio de Noronha; presidente da sessão: Exmo. Sr. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva; Subprocuradora-Geral da República: Exma. Sra. Dra. Lindôra Maria Araújo; secretária: Maria Auxiliadora Ramalho da Rocha. Autuação – Recorrente : Christopher Barry Ward – advogados : Zaid Arbid; Joifer Alex Caraffini e outros; recorrido : Banco Bradesco S/A – advogados: Matilde Duarte Gonçalves; Marcos Antonio A. Ribeiro e outros. Assunto: Direito civil – Obrigações – Espécies de contratos – Contratos bancários. Certidão: Certifico que a E. 3.ª T., ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: A 3.ª T., por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva (Presidente), Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com o Sr. Ministro Relator.

STJ, REsp 1.461.301/MT. Comentário por Jan Peter Schmidt. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 419-437. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016.

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