Alegoria, fragmento e montagem nos poemas longos de Ruy Belo

June 15, 2017 | Autor: Rosa Martelo | Categoria: Alegoría, Montagem, Ruy Belo, Poesia portuguesa contemporânea, Poesia moderna e contemporanea
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[Publicado in Manaíra Aires Athayde (org.) , "Literatura Explicativa", Porto, Assírio & Alvim, 2015, pp. 111-126. ISBN 978-972-37-1835-5]

Alegoria, fragmento e montagem nos poemas longos de Ruy Belo Rosa Maria Martelo Universidade do Porto

A autêntica estação É verão. Vou pela estrada de sintra por sinal pouco misteriosa à luz do dia ao volante de um carro que não é um chevrolet e nesse ponto apenas se perdeu a profecia Não há luar nem sou um pálido poeta que finja fingir a sua mais profunda emoção Chove uma chuva que me molha os olhos e me leva a sentir saudades do inverno: a luz o cheiro a intimidade o fogo Quem me dera o inverno. Talvez lá faça sol e eu sinta aflitivas saudades do verão: uma estação na outra é a autêntica estação Ruy Belo, Homem de Palavra(s)

1. No poema transcrito em epígrafe, o jogo de reflexos que culmina no verso “uma estação na outra é a autêntica estação” estabelece múltiplas relações hipertextuais com a poesia de Álvaro de Campos, particularmente com o conhecido poema no qual o acto de conduzir um Chevrolet emprestado se transforma no emblema de uma vida sempre alheia a quem a vive: (...) Vou passar a noite a Cintra por não poder passal-a em Lisboa, Mas, quando chegar a Cintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. Sempre esta inquietação sem proposito, sem nexo, sem consequencia, Sempre, sempre, sempre, Esta angustia excessiva do espírito por coisa nenhuma, Na estrada de Cintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida... (...) (Pessoa, 1990: 206)

 

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Do ponto de vista temático, o verso final do poema de Ruy Belo pode ainda evocar uma asserção de Campos em “Opiário”, “(...) A minha Pátria / é onde não estou”, afirmação que, no último poema de Toda a Terra (1976), será mudada nesta espécie de explicação: “pois donde estou mais longe é sempre donde estou” (Belo, 2000: 604). Todos estes versos exprimem uma desoladora experiência da distância, a mesma distância que leva Campos a desconfiar da eficácia dos símbolos e a cansar-se tantas vezes deles, embora sem deixar de reconhecer que parte da sua inquietação possa provir precisamente de recusar o que nos símbolos é unitivo e neles pressupõe uma circulação entre planos ontológicos diferenciados. Campos recusa que essa diferenciação de planos possa dar-se só em aparência, o que abriria a possibilidade de o símbolo a poder efectivamente superar, e a descrença deixa-o irremediavelmente preso num jogo de espelhos onde o vazio se multiplica infinitamente em mais vazio, como na legenda budista que Camilo Pessanha traduziu, e que pergunta: “Colocandose fronteiros dois espelhos, duas imagens se formam, – qual delas mais vazia?” (Pires, 1992: 207). Na tradução de Pessanha esta legenda conduz a outra que a revê numa inteireza positiva: “Dissolvendo-se água límpida em água límpida, ficam ambas de uma mesma limpidez” (ibid.). Mas nem Campos, nem o Ruy Belo que inflecte progressivamente no sentido do poema longo a poderiam subscrever. O vazio metafísico de Campos gera uma permanente inquietação existencial e metafísica – aquela que não o deixa circular simplesmente na estrada de Sintra, e que também o impede de se lançar plenamente na estrada do sonho, ou na estrada da vida... Como o próprio Chevrolet de Campos, que é um emblema da vida, cada uma destas estradas transforma-se no emblema de outra estrada, que há-de revelar-se sempre intransitável e longínqua – e essa é pelo menos uma das matrizes da inquietação ontológica de Álvaro de Campos. E digo que o Chevrolet, as estradas são emblemas porque um emblema não é um símbolo, é antes a sua negação. Onde o símbolo liga e faz convergir, o emblema apenas pode referir o que relega na distância; e é desse modo que o Chevrolet de Campos alude a uma verdadeira vida eternamente postergada para longe. Campos também poderia ter afirmado que “uma estação na outra é a autêntica estação”, se bem que tenha sido Ruy Belo a escrever este verso com que lhe presta homenagem. Mas talvez não se trate de uma mera homenagem, pois este verso parece traduzir acima de tudo uma grande cumplicidade. “Espero pelo verão como por outra  

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vida / no inverno é que o verão existe verdadeiramente”, escrevera Ruy Belo num outro poema de Homem de Palavra(s), “Da poesia que posso”, não por acaso o poema em que mais claramente afirma a sua admiração por Pessoa, e que encerra à maneira de Ricardo Reis, com os versos “Basta a cada dia a sua própria alegria / e é grande a alegria quando iguala o dia” (Belo, 2000: 249). No entanto, em Ruy Belo, como em Campos, raramente a alegria iguala o dia, sendo mais comum nos seus poemas o efeito em abismo pelo qual todas as vivências se desfazem ao reflectirem-se noutras vivências, tal como as estações se desfazem no desejo de outras estações e na suposição de que, essas sim, seriam autênticas. Ou melhor: autêntico será, em si mesmo, o processo pelo qual cada acontecimento traz em si a sua negação, destinado que está a medir-se com o tempo e com a perda, e acima de tudo com essa perda absoluta que é a morte. Talvez possa parecer estranho eu ter partido de um poema notoriamente breve para organizar estas reflexões em torno do poema longo de Ruy Belo, mas queria chamar a atenção para a formulação em abismo que semanticamente organiza o verso “uma estação na outra é a autêntica estação”. Como um espelho diante de outro espelho, este verso multiplica a distância numa replicação infinita, pelo que não surpreende que surja no contexto de uma homenagem a Campos. De resto, se Ruy Belo vai recorrer cada vez mais ao verso longo e ao poema longo, talvez o faça por razões semelhantes às que conduziram Campos ao verso livre e ao poema longo, embora o poeta de “Ode Marítima” recorra a um modelo mais organicista. Interessa-me também destacar o esquema de escrita que pode estar contido (ou pressuposto) na proposição ontológica “uma estação na outra é a autêntica estação”. Se a estação em que se verdadeiramente se está é sempre a outra, ainda que a outra dessa outra possa ser esta, não estaremos longe de Campos, quando este escreve: “Symbolos? Estou farto de symbolos...” (Pessoa, 1990: 311). Nem Campos nem o Ruy Belo que envereda pelo poema longo acreditam na eficácia heurística dos símbolos, esses “sinais dos deuses”, como lembra Friedrich Creuzer atendo-se ao uso da palavra symbola pelos Antigos (apud Benjamin, 2004: 178). Pelas mesmas razões, nem um nem outro acreditam que a metáfora possa fundar mais existência do que essa experiência do vazio que o aforismo chinês de Pessanha começa por enfatizar. Se a autêntica estação é sempre outra que não esta, a autenticidade será sempre postergada para o domínio da perda e para um tempo inevitavelmente outro: em rigor, perder é  

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que é propriamente a autêntica estação, e agora no sentido de uma estação ser um período de tempo, um corte, uma duração. Logo, os símbolos, que lançam conjuntamente o que está e o que falta, só poderão falsificar. E Campos recusa-os, com uma ironia sibilina: Symbolos?... Não quero symbolos... Queria só – pobre figura de magreza e desamparo! – ... Que o namorado voltasse para a costureira. (Pessoa, 1990: 312)

Embora não o digam, tanto Campos como Ruy Belo contrapõem a alegoria ao símbolo. E talvez exista, nas obras de ambos, uma relação de pressuposição recíproca entre a presença da alegoria e o recurso ao verso longo, e sobretudo ao poema longo, com tudo quanto estes têm de experiência de dissolução da estrutura que permitiria ao poema em si mesmo contrapor-se como forma àquela perda que enuncia no plano existencial, e mesmo ontológico. Ao contrário do que possa parecer, o Modernismo não é incompatível com a alegoria – algum Modernismo, pelo menos, não o é. Como faz notar Craig Owens, a incompatibilidade que a teoria modernista enfatiza é desmentida pela prática artística (Owens, 1992: 61), e bastaria lembrarmo-nos da leitura de Baudelaire por Walter Benjamin para entendermos porquê. Porém, talvez seja mais eficaz recordar em abono dessa relação alguns dos argumentos usados por Benjamin ao mostrar o quanto a alegoria foi treslida a partir do Romantismo, por sucessivos autores que paulatinamente a foram confinando ao que Yeats viria a resumir como “uma relação convencional entre uma imagem significante e o seu significado” (Benjamin, 2004: 176). Benjamin, para quem “a alegoria (...) não é uma retórica ilustrativa através da imagem, mas expressão, como a linguagem, e também a escrita” (ibid.), resgata a alegoria da desvalorização de que fora alvo a partir do Romantismo, mostrando que ela se distingue do símbolo em função do entendimento do tempo. Assim, depois de recordar algumas considerações de Friedrich Creuzer, através das quais sublinha a condição fulgurante, súbita e breve do símbolo – e depois de enfatizar a condição de “totalidade momentânea” do símbolo colocando-a em franco contraste com a “progressão numa sequência de momentos” que seria própria da alegoria –, Benjamin recorda que, para Creuzer, “«a diferença entre a representação simbólica e a alegórica» está em que «esta significa apenas um conceito

 

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geral, ou uma ideia, diferentes dela mesma, enquanto aquele é a própria ideia tornada sensível, corpórea (...)»” (idem: 178-9). Mas Benjamin recorda esta distinção apenas para a refazer em função de duas experiências do tempo diferentes: A medida de tempo da experiência do símbolo é o instante místico, no qual o símbolo absorve o sentido no âmago mais oculto, por assim dizer na floresta, da sua interioridade. Por seu lado, a alegoria não está livre de uma dialéctica correspondente, e a calma contemplativa com que ela mergulha no abismo entre o ser figural e a significação não tem nada da auto-suficiência indiferente que encontramos na intenção, aparentemente afim, do signo. (...) Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto transfigurado da natureza se revela fugazmente na luz da redenção, na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. (Benjamin, 2004: 180)

Para Benjamin, a alegoria barroca, cujo emblema considera ser o cadáver, é expressão da exposição da história e da historicidade biográfica do indivíduo à natureza, mas num plano em que o resgate operado pelo símbolo (ou seja, pelo instante místico) não ocorre. Nesse sentido, o correr do tempo tomaria o lugar do instante fulgurante: “As alegorias, são no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas”, dirá Benjamin mais adiante (2004: 193). Expressão da perda, vivência sem remissão do tempo, a alegoria inscreve distância em tudo quanto toca.1 Por exemplo assim: “É triste no outono concluir / que era o verão a única estação”; ou assim: “Espero pelo verão como por outra vida / no inverno é que o verão existe verdadeiramente”; ou, mais drasticamente:

“uma estação na outra é a autêntica

estação” (Belo, 2000: 119, 249, 252).

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Encontramos uma distinção de teor semelhante em Paul de Man, que sublinha o papel estruturante da temporalidade na alegoria: “No mundo do símbolo seria possível à imagem coincidir com a substância, visto que a substância e a sua representação não diferem na sua essência mas tão somente na sua extensão: são respectivamente a parte e o todo do mesmo conjunto de categorias. A sua relação é de simultaneidade, a qual, na verdade, é de um tipo espacial e na qual a intervenção do tempo é uma mera questão de contingência, ao passo que no mundo o tempo é a categoria constitutiva originária”. Assim, De Man pode concluir: “Enquanto o símbolo postula a possibilidade de uma identidade ou de uma identificação, a alegoria designa sobretudo uma distância em relação à sua própria origem, e, renunciando à nostalgia e ao desejo de coincidência, estabelece a sua linguagem no vazio dessa diferença temporal” (De Man, 1999: 227).    

 

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2. Apesar de muito valorizar a metáfora nos seus textos críticos, Ruy Belo não desenvolveu a sua poesia sobre a fulgurância unitiva pela qual a metáfora pode ser (e foi) aproximada do símbolo. Provavelmente, quanto maior é a presença de poemas longos e de versos longos na sua obra, menos estruturante é o papel da metáfora neste sentido estrito. De resto, as considerações de Ruy Belo sobre a metáfora apontam sobretudo para um uso figurado da linguagem, como acontece no ensaio “Poesia Nova”.2 É bastante significativo o que começa por dizer numa entrevista (Belo, 2002: 17) e depois reafirma em “Um poeta explica-se”: Afirmei uma vez a Manuel de Castro – e mantenho ainda hoje essa afirmação, embora entretanto muita coisa tenha mudado na minha vida – que a minha poesia é, em primeira linha, quotidiana e refere-se imediatamente a um certo espaço, mas vê esse dia e esse espaço “à transparência”, como diria Sophia de Mello Breyner Andresen, e eles funcionam como membro expresso da metáfora que esconde um outro dia e um outro espaço. (Belo, 2002: 289)

Em passagens como esta, Ruy Belo parece usar o termo metáfora para designar de forma ampla um princípio de equivalência por contraponto a um princípio de combinação, valorizando as relações de equivalência e de substituição. Particularmente significativo parece ser o facto de o poeta considerar que as circunstâncias de tempo e espaço na sua poesia “esconde[m] um outro dia e um outro espaço”, quando o processo rigorosamente metafórico seria não o de os esconder, mas antes o de os revelar, ou tornar presentes. E não precisarei de sublinhar as afinidades desta experiência do tempo e do espaço com aquela que Benjamin observa na alegoria.3 Para Ruy Belo, esse outro dia, esse outro espaço não parecem ser recuperáveis senão como imagens mortas. Isto é, não são recuperáveis de facto: são o                                                                                                                 2

Veja-se, entre outras, a seguinte passagem: “A palavra de poesia é a palavra na medida em que metafórica. Na medida em que se analisa na transposição do significado normal – outro problema seria saber se também natural – de um termo para outro, por virtude de uma relação de semelhança que se subentende. É metafórica porque dá uma nova forma a uma realidade natural, sensível ou afectiva. Dá uma nova e diferente existência a essas realidades, que passam a existir como palavra.” (Belo, 2002: 72) 3 Com efeito, as considerações de Ruy Belo acerca da metáfora são tangenciais à noção benjaminiana de alegoria. O alegorista fixa as coisas para, através delas, falar de outra coisas. Daí que Benjamin sublinhe o carácter escritural da alegoria. “Ela é um esquema”, afirma Benjamin, “ e como esquema um objecto do saber; mas o alegorista só não a perderá se a transformar num objecto fixo: a um tempo imagem fixada e signo fixante” (Benjamin, 2004: 199). Repare-se ainda no modo como Ruy Belo acentua que quando o poeta usa a palavra árvore “é como se usasse uma verdadeira árvore” (2002: 83).

 

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objecto da alegoria enquanto modo de percepção e técnica de escrita (cf. Owens, 1992: 53). No ensaio que dedica às relações da poesia beliana com o cinema e a fotografia, Pedro Serra chama a atenção para a presença de um tempo simultaneamente dinâmico e estático na poesia de Ruy Belo (Serra, 2003: 95). Segundo este ensaísta, o poema beliano é precisamente “uma alegoria que ostenta uma disjunção temporal não solúvel: nele não posso ver a minha morte e o meu epitáfio em simultâneo” (idem: 96). Assim, o poema longo acontece entre duas impossibilidades: está-lhe vedado coincidir com o instante absoluto, mas também lhe está vedado conseguir uma eventual totalização através da narrativização do tempo. O que lhe resta são fragmentos – que tentará fazer coexistir. E este parece ser o caminho que leva Ruy Belo aos poemas longos, de longos versos, nos quais não é a coesão do argumento a assegurar a estrutura. O próprio Ruy Belo é neste ponto definitivo, ao afirmar: A história, o argumento, a intriga que deixaram de apoiar o romance e o cinema desertaram de toda a arte. A desmistificação artística é geral. O argumento, insistimos, nunca passara de uma maneira de assegurar a consistência da estrutura. Mas essa consistência podia ser garantida através de processos mais específicos e menos enganadores, como por exemplo as estruturas sintácticas, as enumerações, a anáfora, para só citar alguns. (Belo, 2002: 318)

Estou portanto a defender que a alegoria é o modo de percepção e a técnica formante dos poemas longos, uma técnica de escrita e um tipo de expressão anunciados e esboçados nos poemas curtos, embora estes se mantenham mais próximos da valorização do papel heurístico da palavra poética e da metáfora, tal como ela ocorre numa tradição poética que o Ruy Belo crítico nunca deixará de valorizar. A preponderância que os poemas longos vão ganhando na obra ao longo da década de 70 traduz a dominância progressiva da matriz alegórica sobre a ênfase modernista na forma, também muito presente em Ruy Belo. 3. Volto a lembrar que, em 1972, ao fazer uma avaliação da poesia do seu tempo, Ruy Belo integra essa poesia num movimento artístico geral de secundarização do argumento, considerando que, tecnicamente, este “não passava de uma isca, de um  

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engodo” (Belo, 2002: 317).4 Nesse mesmo contexto, o poeta valoriza a evolução do cinema no sentido do “cinema-verdade” e do “cinema-ensaio” e defende que “com processos narrativos como o flash-back, ou com a voz-off, com características técnicas como a montagem, por exemplo, [o cinema] influenciou o romance e mesmo a poesia” (2002: 316-317). Ora, nos poemas longos de Ruy Belo podemos observar um dispositivo de montagem textual que assenta na recolha obsessiva de recordações fragmentárias – dispositivo esse progressivamente mais nítido, à medida que os poemas longos se vão tornando mais longos e dominantes na obra. Essas colecções de memórias – “vou levar tudo isto pois o levo no olhar”, escreve Ruy Belo (2000: 606) – surgem frequentemente em encadeamentos enumerativos para os quais não é possível estabelecer coordenadas espácio-temporais estáveis. O poema “A sombra o sol”, que fecha Toda a Terra (1976), pode servir aqui de exemplo, pela forma como transita entre coordenadas geográficas e temporais que vão das memórias de uma história pessoal em diferentes circunstâncias à História de Portugal, em vários períodos cronológicos, passando por recordações provindas de leituras, do cinema. As paisagens marítimas, as paisagens do interior, o mar, o rio, as “tardes de portugal”, a “noite de madrid”, Florença, Veneza, sucedem-se e congregam acontecimentos de amplitudes muito diversas. Ficamos, assim, perante a incompletude, o fragmento que deixa supor uma totalidade que permanece inacessível ou abandonada. Não há uma narrativa, mas há um acumular de fragmentos narrativos que deixam supor inúmeras narrativas omissas. No excerto de “A sombra o sol” transcrito a seguir, a estrutura enumerativa repete, em mise-enabîme, o processo que se observa de modo mais complexo na macro-estrutura deste e doutros poemas: (...) Tardes de portugal homens de pão a pedra inesperada da ruína o ardor esfomeado desta vida as lágrimas as névoas o inverno o vento sul varrendo o céu azul a luz solar nos olivais da itália uma velha mulher vista em toledo

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Sob o título “Poesia e luta pelo poder”, o texto em causa foi inicialmente publicado no Diário de Lisboa, a 9 de Janeiro de 1972.

 

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um céu de chumbo que nem eu arrombo com o feliz fulgor de uma palavra palavras pitorescas proferidas fala cantada e doce do faial o preço de um pequeno olhar de amor silêncio dos salões camus homem da luz das paredes caiadas dos países do sul gravidade do dia e dos costumes visível até mesmo no bater do mar orgulho natural de sentir e viver (...) (Belo, 2000: 591-2)

Se o alegorista não inventa imagens, antes as confisca, sendo uma espécie de recolector “atraído pelo fragmentário, o imperfeito, o incompleto” (cf. Owens, 1992: 55), é do olhar de um alegorista que releva esta montagem textual. De resto, a esta estratégia poderíamos ainda juntar a frequência com que os poemas recorrem à citação e à alusão. Nas palavras de Manuel Gusmão, Ruy Belo “apropriar-se-á activamente (ou seja, remodelando-os) de materiais ideo-verbais e de procedimentos de outros” (Gusmão, 2010: 427-8). E Osvaldo Silvestre, quando faz notar que o contexto tardo-modernista em que escreveu “não empurrou Ruy Belo para uma ratificação da ontologia do moderno”, também chama a atenção precisamente para o modo como, neste poeta, o poema longo se afasta do modelo modernista eliotiano ao assumir “a disparidade dos seus motivos e referências e a permanente deslocação do seu horizonte de sentido, propondo-se como forma distendida, se não lassa” (Silvestre, 1997: 9-10). A esta distensão, Osvaldo Silvestre irá contrapor a organicidade estrutural da forma-livro em Ruy Belo. Mas poderemos juntar-lhe o modo como, no interior do poema longo, cada núcleo semântico se cristaliza numa pequena forma muito evidenciada como “pura coisa de palavras” (Belo, 2000: 328), o que contribui para autonomização de cada fragmento e, logo, também para a sabotagem de um eventual “todo”, que o poema evita (ou não pode) exemplificar ou constituir. No contexto do poema “A sombra o sol”, o fragmento acima transcrito tem, como todos os outros fragmentos do poema, uma autonomia semântica que a autonomia formal acentua. Dele, poderíamos dizer o que disse Friedrich Schlegel do fragmento, ou seja, que ele é uma pequena obra de arte no sentido de “estar perfeitamente isolado do mundo

 

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circundante e ser, em si mesmo, algo de completo, como um ouriço-cacheiro” (cf. Nancy e Lacoue-Labarthe, 1978: 126). Nessa medida, há uma tensão dialéctica que o estrutura, porquanto a condição fragmentária, suspensiva, das recordações ou imagens mentais é notoriamente contraditada pela organicidade formal decorrente do recurso ao decassílabo como metro dominante, apoiado pela presença de rimas, assonâncias, processos aliterativos que geram o efeito de este fragmento se distinguir enquanto tal, fechado numa forma nítida que há-de ser suturada a outras, igualmente nítidas, das quais fatalmente se separa por esta mesma autonomia. Ou seja, por dentro da forma expansiva, susceptível de ser distendida ad infinitum, por dentro de um poema cuja macro-estrutura é corroída pelo olhar alegorista, os fragmentos ainda promovem, um a um – e contra a condição alegórica de se apresentarem como “imagens vindas dos dias” –, aquilo que Ruy Belo contrapõe à impossibilidade de criar uma metanarrativa coesa, ou seja, “a consistência da estrutura” (Belo, 2002: 318). Nos anos 80, Jean-Luc Godard defendeu que havia razões para o cinema comercial atacar aquilo em que para ele residia verdadeiramente o cinema: a montagem. Trata-se, disse Godard, de “empêcher les gens de voir, ce que le montage permettait de voir. Il fallait immédiatement en reprendre le contrôle” (Godard, 1991: 179). Com efeito, a montagem pode ser um instrumento de análise poderosíssimo, e Ruy Belo parece ter sido sensível a cineastas que a exploram nesse sentido. Recordese que, entre os cineastas que explicitamente refere nos próprios poemas longos estão autores como Resnais e Antonioni e lembre-se que, como antes referi, o poeta é inequivocamente

assertivo

na

valorização

das

estruturas

sintácticas,

das

enumerações, da anáfora como instrumentos para criar a estrutura que anteriormente tinha sido garantida pelo argumento. Não é possível dizer se o cinema foi para Ruy Belo uma influência também a este nível,5 porém estas formas de montagem estavam presentes em filmes coetâneos, que Ruy Belo cita e valoriza, como por exemplo “La dernière année à Marienbad” (1961), de Alain Resnais, realizador que se distingue precisamente por desenvolver uma montagem complexa, que explora a sutura e a clivagem, a tensão entre ficção e documento, bem como a alternância entre imagens sujeitas a uma organização que traduz sobretudo espaços e tempos mentais.                                                                                                                 5  

Na “explicação preliminar” à 2ª edição de Homem de Palavra(s) (1978), Ruy Belo afirma: “A influência do cinema é notória neste livro, mais que em qualquer outro meu”. Na sequência desta afirmação irá distinguir alguns poemas que dialogam explicitamente com o cinema, considerando-os “poemas onde o cinema me ensinou a ver”. (Belo, 2000: 188)  

 

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No caso de Ruy Belo, as descontinuidades semânticas, tão presentes no poema longo, a proliferação dos fragmentos autónomos, a evidenciação das suturas que juntam os fragmentos ao mesmo tempo que os separam e lhes sublinham a autonomia reflectem uma crise que, ainda no poema que estou a citar, se exprime assim: Julgava que existia uma verdade Mas deus é o mal último do meu quintal está tudo muito bem mas vai morrer alguém Sagaz o homem que no homem só confia eu fico com os homens para sempre (Belo, 2000: 598)

É esta perda do fundamento que lança a poesia de Ruy Belo numa organização textual essencialmente metonímica, dominada pelo olhar alegorista. O processo de montagem de fragmentos em poemas expansivos é a sua expressão na ruína da forma, e produz nela dobras sucessivas. E todavia, à ruína da grande forma operada na macroestrutura dos poemas longos, Ruy Belo irá contrapor, por dentro desses mesmos poemas, a nitidez e o rigor formal com que faz de cada fragmento uma pequena obra de arte exponenciada pelo espantoso virtuosismo dos seus versos. O resultado é paradoxal: é como se a perda de deus levasse os versos a serem a repetição infinita da perda de sentido, e como se essa perda, infinitamente repetida, gerasse afinal a forma discursiva que dá sentido a essa repetição – ou seja, a poesia.

Bibliografia Belo, Ruy (2000), Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim. _________(2002), Na Senda da Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim. Benjamin, Walter (2004), Origem do Drama Trágico Alemão, edição, apresentação e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim. De Man, Paul (1990), O Ponto de Vista da Cegueira, trad. de Miguel Tamen, Lisboa, Cotovia. Godard, Jean-Luc (1991), Godard par Godard - Des années Mao aux années 80 [1985], Paris, Flammarion.  

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Gusmão, Manuel (2010), Tatuagem & Palimpsesto - Da poesia em alguns poetas e poemas, Lisboa, Assírio & Alvim. Nancy, Jean-Luc e Lacoue-Labarthe, Philippe (1978), L’absolut littéraire – Théorie de la littérature du romantisme allemand, Paris, Seuil. Owen, Craig (1992), Beyond Recognition – Representation, power, and culture, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press. Pires, Daniel (org.) (1992), Homenagem a Camilo Pessanha, s. l., Instituto Português do Oriente, Instituo Cultural de Macau. Pessoa, Fernando (1990), Poemas de Álvaro de Campos, , ed. de Cleonice Berardinelli / Edição crítica de Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Serra, Pedro (2003), Um Nome Para Isto – Leituras da Poesia de Ruy Belo, Coimbra, Angelus Novus. Silvestre, Osvaldo (1997), “Introdução”, in Ruy Belo (1997), Boca Bilingue [1966], Lisboa, Presença.  

 

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