Além da prisão: uma proposta de análise das alternativas à prisão no Brasil em seu funcionamento biopolítico

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Multideia Editora Ltda. Alameda Princesa Izabel, 2.215 80730-080 Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 [email protected]

Conselho Editorial Marli Marlene M. da Costa (Unisc) André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Salete Oro Boff (UNISC/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC)

Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED)

Coordenação Editorial: Fátima Beghetto Capa: Sônia Maria Borba Crédito imagem da capa: Bologna meeting @ marzolino

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte Costa, Marli Marlene Moraes da (Org.) C837

Políticas Públicas no Constitucionalismo Contemporâneo, volume V [recurso eletrônico] / organização de Marli Marlene Moraes da Costa e Mônia Clarissa Hennig Leal – Curitiba: Multideia, 2014. 264 p.; 23 cm ISBN 978-85-86265-93-8 (VERSÃO ELETRÔNICA) 1. Direito constitucional. 2. Políticas públicas. I. Leal, Mônia Clarissa Hennig (org.). II. Título. CDD 340 (22.ed) CDU 340 É de inteira responsabilidade dos autores a emissão dos conceitos aqui apresentados. Autorizamos a reprodução dos textos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98

Marli Marlene Moraes da Costa Mônia Clarissa Hennig Leal Organizadoras

POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Volume V

Colaboradores Ademar Antunes da Costa Adilson Hirsch André Viana Custódio Civana Silveira Ribeiro Cleize Carmelinda Kohls Daniela M. L. de Cademartori Fabiano Rodrigo Dupont Felipe da Veiga Dias Guilherme A. Dornelles de Souza Hugo Thamir Rodrigues Josiane Petry Faria Leandro Dani Letícia Bodanese Rodegheri Luíza Quadros da Silveira Bolzan

Mateus Lopes da Silva Maurício Pinto da Silva Mônia Clarissa Hennig Leal Paula Helena Schmitt Quelen Brondani de Aquino Rafael Santos de Oliveira Renato Fioreze Rene José Keller Rodrigo Cristiano Diehl Rosane Leal da Silva Rosane Teresinha Carvalho Porto Sergio Urquhart de Cademartori Tiago Pires Fidelis da Luz

Curitiba 2014

SUMÁRIO Capítulo 1 O DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA INTERNET: ANTIGOS CONFLITOS NO NOVO AMBIENTE VIRTUAL ...................... André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias

Capítulo 2 A NECESSÁRIA REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA ABORDAGEM SOBRE A SEGURANÇA PÚBLICA, COM ÊNFASE PARA A FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR ..................................................................................... Ademar Antunes da Costa Quelen Brondani de Aquino

Capítulo 3 O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA, O ATIVISMO JUDICIAL E A PEC/33: UMA ANÁLISE CRÍTICA ...................................................................................... Mônia Clarissa Henning Leal Civana Silveira Ribeiro

Capítulo 4 DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA DO CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS .............................................................. Cleize Carmelinda Kohls Adilson Hirsch

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André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

Capítulo 5 ALÉM DA PRISÃO: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DAS ALTERNATIVAS À PRISÃO NO BRASIL EM SEU FUNCIONAMENTO BIOPOLÍTICO ........................................ Guilherme Augusto Dornelles de Souza

Capítulo 6 RELAÇÕES DE PODER, RACIONALIDADE E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE DO MARCO REGULATÓRIO DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS E A BUSCA DA SUSTENTABILIDADE ........................................... Josiane Petry Faria Renato Fioreze

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Capítulo 7 PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NA ADOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE DO PORTAL GABINETE DIGITAL...... Letícia Bodanese Rodegheri Rafael Santos de Oliveira

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Capítulo 8 O DIREITO À SAÚDE NA FRONTEIRA MERCOSUL: DESAFIOS DA COOPERAÇÃO BRASIL/URUGUAI ................ Maurício Pinto da Silva Mateus Lopes da Silva

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Capítulo 9 ESPAÇO E IDENTIDADE: ESTIGMA, DISTINÇÃO, SEGURANÇA ............................................................................. Paula Helena Schmitt Tiago Pires Fidelis da Luz

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Capítulo 10 A CORRUPÇÃO ESTATAL BRASILEIRA À LUZ DA RAIZ HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICA .............................................. 171 Rene José Keller

Capítulo 11 ITBI DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO E POLÍTICAS TRIBUTÁRIAS MUNICIPAIS1 ............................... 185 Hugo Thamir Rodrigues Leandro Dani

Capítulo 12 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DOS DISCURSOS RACISTAS NA INTERNET .............. 203 Rosane Leal da Silva Luíza Quadros da Silveira Bolzan Capítulo 13 O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE CRIMES NO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DO SUL: UM ESTUDO À LUZ DOS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DA PAZ ................. 225 Rosane Teresinha Carvalho Porto Rodrigo Cristiano Diehl Fabiano Rodrigo Dupont Capítulo 14 FUNÇÕES E INSTITUIÇÕES DE GARANTIAS NO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO ................. 241 Sergio Urquhart de Cademartori Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori

Capítulo 5

Guilherme Augusto Dornelles de Souza Pesquisador integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal – GPESC e do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT-InEAC. Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista CAPES. Analista do MPU no Ministério Público Federal. Contato: [email protected]

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ALÉM DA PRISÃO: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DAS ALTERNATIVAS À PRISÃO NO BRASIL EM SEU FUNCIONAMENTO BIOPOLÍTICO

“ACONTECIMENTALIZAR” AS ALTERNATIVAS À PRISÃO

Este capítulo tem por objetivo propor uma reflexão sobre como, num contexto de aumento da demanda punitiva na sociedade brasileira contemporânea, as chamadas penas alternativas são propostas, defendidas e sustentadas. Compreendendo as ações e reações existentes na área da justiça criminal e da segurança pública em relação às condutas qualificadas como crimes enquanto práticas, pensamos a implementação das penas alternativas no Brasil enquanto um acontecimento. O que isto significa? Não se trata apenas da assertiva de que os crimes somente são crimes porque previstos na lei penal como tais. Trata-se de compreender que a construção da noção do que são esses crimes, de quem são as pessoas que os cometem, de como se deve lidar

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com elas, e o que esses crimes representam para um “restante da sociedade” é produzida não só pelas previsões legais, mas por todas as práticas presentes no campo de controle do crime. Não há, assim, parafraseando Veyne (1998), “o criminoso através da história”, enquanto um objeto natural, que seria alvo de variadas práticas na busca de uma “solução” para a questão da criminalidade. Trata-se, enfim, de compreender aquilo que Veyne (1998, p. 257) identifica como a tese central de Foucault: “o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história”. A partir dessa perspectiva de analisar o encarceramento e as penas alternativas como práticas, busca-se abordar as condições que num dado momento as tornam aceitáveis e tem-se o entendimento de que essas práticas têm, em certa medida, sua própria regularidade, sua própria lógica. Assim, entendemos que uma prática, qualquer que seja, não é racional (ou irracional) “em si”, mas o pode ser em relação a um determinado regime de racionalidade perante o qual se coloca e que atravessa tantas outras práticas num determinado campo (FOUCAULT, 2003a). Procuramos, ainda, pensar a implementação de penas alternativas no Brasil como um acontecimento. O que isto implica? Quando fala sobre os acontecimentos discursivos, Foucault (2003b) afirma que chama de acontecimento a função que se pode atribuir a algo dito por alguém num determinado momento e não em outro. Quando fala em “acontecimentalização”, Foucault (2003a, p. 339) nos diz que se trata de provocar uma ruptura das evidências sobre as quais se apoiam os saberes e as práticas, fazer surgir uma singularidade, mostrar que aquilo que foi e é poderia ser de outra maneira, que não era tão necessário quanto se pensa, se diz, se faz. Além disso, a “acontecimentalização” consiste reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias etc., que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade, necessidade. (FOUCAULT, 2003a, p. 339)

Assim, ao pensar a implementação das penas alternativas no Brasil como um acontecimento, rompe-se com alguns pressupostos

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eventualmente colocados quando se trata desse tema. Em primeiro lugar, trata-se de pensá-las não como “a” resposta para o problema do cárcere na justiça criminal, qualquer que seja a forma como ele é colocado – falência do ideal ressocializador/recuperador/corrécionalista, superlotação dos presídios, fator “criminógeno” do cárcere, mecanismo de violação de direitos – mas sim de que, dentre as várias respostas disponíveis, essa foi a adotada num determinado momento, e que essa adoção não era algo evidente, tampouco necessária, mas a sua articulação em determinados jogos de força a tornam “a” resposta possível. Em segundo lugar, tal postura implica entender que a adoção das penas alternativas num determinado momento e não em outro representa que essa implementação exercia uma função estratégica nas relações de poder e saber que atravessavam as práticas existentes na justiça criminal e na segurança pública naquele momento. De certa forma, propomos fazer aqui um pouco do que Foucault (2003c) propõe: trata-se de perguntar o que, nas críticas à prisão e nas propostas de sua substituição pelas penas alternativas, permitiu a permanência da prisão, o que continua a justificá-la, o que a faz hoje ser necessariamente necessária. Pensar a coexistência da pena de prisão e das penas alternativas, pensar a não substituição efetiva da primeira pela segunda, não em termos de um erro teórico ou erro de implementação, mas em termos positivos: a que serve, que funcionamento garante, a quais estratégias se integram as penas alternativas? Finalmente, trata-se de perguntar: quais são as condições de possibilidade que permitem a emergência das penas alternativas em pleno contexto de aumento da demanda punitiva na sociedade brasileira contemporânea? Nos estritos (e estreitos) limites deste trabalho, não se tem por objetivo responder a essa pergunta, mas formulá-la. 2

TENDÊNCIAS DE POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL APÓS 1984

Salo de Carvalho (2010) afirma que a atividade legislativa brasileira durante a década de 90 ampliou as hipóteses de criminalização e agravou o modo de execução das penas. A criminalização de diversas condutas antes não previstas como crimes e as altera-

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ções nas modalidades de cumprimento das sanções penais se traduzem, de acordo com esse autor, numa “dilatação do input e no estreitamento do output do sistema, fato que provocou aumento vertiginoso nos índices de encarceramento” (CARVALHO, 2010, p. 153). Uma das tendências apontadas por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2010a) nas reformas penais ocorridas no Brasil e na Argentina nessa mesma década é a utilização do remédio penal como resposta para conflitos e problemas sociais, indicando uma utilização simbólica do direito penal pelo Estado como recurso público de gestão de condutas frente às demandas de segurança e penalização expressas pela mídia. Para Azevedo (2010b), os principais veículos de comunicação, em momentos de comoção pública em razão de algum delito violento e, no mais das vezes, tendo por vítima alguém das camadas médias ou altas da sociedade, trazem para a pauta de discussão questões como a redução da maioridade penal, o aumento das penas e a sua utilização como mecanismo de contenção, a supressão de garantias e direitos em nome do combate ao crime. Além dessa tendência de expansão do Direito Penal, Azevedo (2004) identifica ainda a produção, por um lado, de um processo penal de emergência, com a supressão de algumas garantias processuais durante o julgamento de determinados crimes, como na Lei dos Crimes Hediondos, e, por outro, a informalização ou simplificação do processo penal, caracterizada no Brasil principalmente a partir da implementação dos Juizados Especiais Criminais para os crimes cuja pena não ultrapassa dois anos, ditos de menor potencial ofensivo. A revisão das pesquisas sobre a produção legislativa na área da segurança pública e da justiça criminal no Brasil, feita por Marcelo Campos (2010), confirma e relativiza alguns dos apontamentos acima. Na pesquisa feita por Laura Frade (apud CAMPOS, 2010) constatou que, das 646 propostas apresentadas por parlamentares no período de 2003 a 2007 no Congresso Nacional, apenas 20 tinham por objeto tornar mais branda a criminalização de algum ato. No trabalho de Teixeira (apud CAMPOS, 2010) sustenta-se que durante a década de 90, por meio de sucessivos projetos propostos em regime de urgência, privilegiou-se o uso massivo da prisão em contraposição ao caráter liberal identificado na legislação de 1984.

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Nalayne Mendonça (apud CAMPOS, 2010), por sua vez, aponta que a análise da legislação penal aprovada de 1984 a 2004 aponta para duas direções: de um lado, o recrudescimento das hipóteses de crimes já existentes, bem como a criminalização de novas condutas; de outro, a introdução de medidas despenalizadoras aplicadas a crimes considerados de menor potencial ofensivo. Campos (2010), na análise que fez da política criminal aprovada de 1989 a 2006, aponta para três direções: recrudescimento das previsões das condutas já qualificadas como crimes, criminalização de condutas antes não previstas como crimes e leis que visaram a medidas alternativas e a ampliação dos direitos dos acusados e, em alguns casos, leis que combinariam essas tendências. Para o autor, as “contradições” aparentes da legislação, ao apontarem ora iniciativas reativas, ora iniciativas legais garantistas e/ou preventivas, devem ser entendidas mais como um movimento combinatório, no qual tais tendências se complementam e coexistem, sem serem opostas, do que como políticas contraditórias. Em face das teses de recrudescimento penal, Campos (2010) aponta que a legislação brasileira também é atravessada por outros modelos e concepções além da concepção penal-repressiva, produzindo, em alguns casos, uma combinação desses modelos nas leis aprovadas. 3

AS PENAS ALTERNATIVAS NO BRASIL

A introdução das penas alternativas no Brasil, formalmente designadas penas restritivas de direitos, se dá por meio da Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, que reformou a parte geral do Código Penal de 1940. Na Exposição de Motivos1 dessa lei, assim se manifestou o então Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel: 26. Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para 1

Texto que acompanha projetos de lei, de iniciativa do Presidente da República, onde os autores ou autor do projeto, em regra um Ministro de Estado, esclarece os posicionamentos teóricos e práticos que orientaram a elaboração das normas da nova legislação proposta.

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delinqüentes sem periculosidade ou crimes menos graves. […] 27. As críticas que em todos os países se tem feito à pena privativa da liberdade fundamentam-se em fatos de crescente importância social, tais como o tipo de tratamento penal freqüentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinqüentes habituais e multirreincidentes, os elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais, as conseqüências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho. […] 29. Com o ambivalente propósito de aperfeiçoar a pena de prisão, quando necessária, e de substituí-la, quando aconselhável, por formas diversas de sanção criminal, dotadas de eficiente poder corretivo, adotou o Projeto novo elenco de penas. […] [grifos nossos]

Os artigos 43 e 44 do Código Penal passaram então a vigorar com a seguinte redação: Art. 43. As penas restritivas de direitos são: I – prestação de serviços a comunidade; II – interdição temporária de direitos; III – limitação de fim de semana. Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: I – aplicada pena privativa de liberdade inferior a um ano ou se o crime for culposo; II – o réu não for reincidente; III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Parágrafo único. Nos crimes culposos, a pena privativa de liberdade aplicada, igual ou superior a um ano, pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas penas restritivas de direitos, exequíveis simultaneamente.

A Lei 7.209/84, em seu artigo 3º, estipulou que a União, os Estados e o Distrito Federal teriam o prazo de um ano, a contar da

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vigência da nova parte geral do Código Penal (13.01.1985), para tomar as providências necessárias para a efetiva execução das penas restritivas de direitos. Azevedo (2010c) afirma que, apesar disso, a primeira notícia que se tem acerca da uma experiência de efetiva execução de uma pena restritiva de direito data de 7 de agosto de 1987, quando assinado, em Porto Alegre, o convênio para implantação do “sistema para aplicação da prestação de serviço à comunidade”. Em 1988, a nova Constituição Federal incluía em seu artigo 5º, inciso XLVI, as penas restritivas de direitos no rol das penas aplicáveis. Em 1996, é elaborado o Projeto de Lei 2.684/96, que, posteriormente, em 1998, se transformou na Lei 9.714/98, a qual ampliou o rol de penas restritivas de direitos, bem como as possibilidades de aplicação (AZEVEDO, 2010c). Foram acrescidas como possibilidades de penas alternativas a prestação pecuniária e a perda de bens e valores. Ainda, as penas restritivas de direitos se tornaram possíveis quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo, pela nova redação do artigo 44, inciso I, do Código Penal. No entanto, alguns artigos previstos na forma como aprovada a Lei 9.714/98 pelo Congresso foram vetados pelo então Presidente da República. Dentre os dispositivos vetados, encontra-se a previsão de recolhimento domiciliar como hipótese de pena alternativa, bem como a previsão das penas de advertência, compromisso de frequência a curso ou submissão a tratamento para os casos de penas aplicadas inferiores a seis meses. Na Mensagem de Veto nº 1.447/98, o veto em relação ao recolhimento domiciliar foi assim justificado: A figura do “recolhimento domiciliar”, conforme a concebe o Projeto, não contém, na essência, o mínimo necessário de força punitiva, afigurando-se totalmente desprovida da capacidade de prevenir nova prática delituosa. Por isto, carente do indispensável substrato coercitivo, reputou-se contrária ao interesse público a norma do Projeto que a institui como pena alternativa. [grifo nosso]

Ainda, em relação às penas de advertência, compromisso de frequência a curso ou submissão a tratamento,

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Em paralelismo com o recolhimento domiciliar, e pelas mesmas razões, o § 1º do art. 44, que permite a substituição de condenação a pena privativa de liberdade inferior a seis meses por advertência, também institui norma contrária ao interesse público, porque a admoestação verbal, por sua singeleza, igualmente carece do indispensável substrato coercitivo, necessário para operar, no grau mínimo exigido pela jurisdição penal, como sanção alternativa à pena objeto da condenação. [grifo nosso]

É interessante notar que, posteriormente, quando da edição da Lei 11.343/06, que deu novo tratamento na questão penal em relação às drogas consideradas ilícitas, as penas para as condutas do usuário passaram a ser, conforme o artigo 28 da lei referida, a “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e a “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional2, a partir de 1995, o número de pessoas submetidas a penas de prisão e a penas alternativas compõe o seguinte quadro:

Ano 1995 2002 2006 2007 2008 2009

Número de Cumpridores de Penas Restritivas de Direitos Medidas Penas alternativas alternativas 78672 1692 80843 21560 237945 63457 333685 88837 457811 101019 544795 126273

Número de PMA acumulado

Número de Presos

80364 102403 301402 422522 558830 671078

148760 248685 401236 423373 446764 473626

Os dados acima deixam clara a crescente adoção das penas alternativas e, se consideradas as chamadas medidas alternativas (aplicáveis aos atos qualificados como crimes de menor potencial ofensivo), a submissão de mais pessoas a penas alternativas que a 2

Disponíveis em: . Acesso em: 20 jul. /2011.

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penas de prisão a partir de 2008. Essa superação se deu num curtíssimo espaço de tempo. No entanto, os dados acima também deixam explícito que a adoção das penas e medidas alternativas não implicou diminuição da quantidade de pessoas presas. Se, como expomos inicialmente, temos um contexto de aumento da demanda punitiva, como entender essa adoção crescente das penas e medidas alternativas? No curto espaço deste trabalho, lançamos uma hipótese. 4

BIOPODER E RACISMO DE ESTADO

Se, na teoria clássica da soberania, o soberano aparece como aquele que pode fazer morrer ou deixar viver, Foucault (2005) assinala uma transformação no direito político durante o século XIX em que se dá uma complementação, uma penetração desse direito de soberania por um poder de fazer viver e de deixar morrer. Durante a segunda metade do século XVIII, surge outra tecnologia de poder, diversa daquela disciplinar que se instalara no final do século XVII e no decorrer do século XVIII. Essa nova tecnologia de poder não vem substituir a técnica disciplinar, mas a ela se integra, atuando num nível diferente, com outra superfície de suporte e auxiliada por outros instrumentos. Sua aplicação se dirige ao homem vivo, ao homem ser vivo, ao “homem-espécie” (FOUCAULT, 2005, p. 289), à multiplicidade dos homens enquanto massa global afetada por processos que são próprios da vida, como o nascimento, a morte, a doença. Se constitui o que esse autor chama de “biopolítica” da espécie humana (ibidem), cujos primeiros objetos de saber e alvos de controle serão esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade, associados a outros problemas econômicos e políticos. No funcionamento dessa tecnologia de poder, produz-se um novo elemento, que não é o indivíduo ou a sociedade compreendidos pela teoria do direito e nem o corpo do indivíduo objeto das disciplinas, mas um corpo múltiplo: a noção de população. Os fenômenos que serão levados em consideração por essa biopolítica são aqueles coletivos, cujos efeitos se tornam pertinentes somente no nível da massa, que analisados isoladamente se mostram aleatórios e imprevisíveis, mas que no plano coletivo apresentam constan-

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tes possíveis de serem estabelecidas. Além disso, os mecanismos implantados pela biopolítica buscarão intervir nesses fenômenos naquilo que eles têm de global – buscar-se-á diminuir a morbidade, estimular a natalidade, aumentar a longevidade – de modo a que, numa dada população, possa estabelecer certo equilíbrio, otimizando um “estado de vida” (FOUCAULT, 2005, p. 294). Mecanismos que, assim como os disciplinares, mas por outras vias, buscarão maximizar forças e extraí-las, assegurando sobre os processos biológicos do homem enquanto espécie certa regulamentação. Enquanto a soberania fazia morrer e deixava viver, aparece aí um poder que Foucault (2005) chama de regulamentação e que consiste em fazer viver e deixar morrer. Foucault (2005) coloca a questão de como, nessa tecnologia de poder cujo objeto e objetivo são a vida, poder-se-á exercer o direito de matar; como um poder que busca aumentar a vida, prolongá-la, multiplicar suas possibilidades pode deixar morrer? Para o autor em questão, intervém aí a noção de racismo. O racismo já existia há muito tempo, mas, segundo Foucault (2005), se insere nos mecanismos de Estado a partir da emergência do biopoder. O racismo, para o autor, em primeiro lugar, é um meio de produzir um corte nesse domínio da vida de que se ocupou o poder, produzindo uma distinção entre o que deve viver e o que deve morrer. O aparecimento das raças, a qualificação de algumas delas como inferiores e de outras como superiores são uma maneira de fragmentar a população de que o poder se ocupa, tratando-a como uma mistura de raças, e de dentro dela destacar alguns grupos em relação a outros. Em segundo lugar, o racismo permite estabelecer entre a vida de um sujeito e a morte de outro uma relação que não é a de enfrentamento, mas sim do tipo biológico. Quanto mais subgrupos inferiores, sujeitos anormais, forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mas os demais sujeitos, não enquanto indivíduos, mas enquanto espécie, poderão viver. A morte da raça ruim, do degenerado, do anormal é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura. Os inimigos que devem ser suprimidos não são os adversários em seu sentido político, mas os perigos, os riscos, externos e internos, em relação à população e para a população (FOUCAULT, 2005).

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Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas a eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. […] A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. (FOUCAULT, 2005, p. 306)

Como esclarece Foucault (2005), tirar a vida aqui não significa somente matar diretamente, mas também expor à morte, aumentar o risco de morte para alguns, produzir a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. O racismo irrompe num determinado número de pontos privilegiados em que justamente a produção de morte é necessária – a colonização (no genocídio colonizador), a guerra (quando não só se matam adversários, mas se expõe à morte toda a população que se deveria fazer viver). De igual maneira, quando a criminalidade é pensada a partir do racismo é porque, naquele momento, era preciso possibilitar a condenação à morte ou o isolamento de um criminoso num Estado que operava a partir do biopoder. 5

AS ALTERNATIVAS À PENA DE PRISÃO

Toma-se aqui o Estado brasileiro como atravessado por e operando através de mecanismos de biopoder, em que a vida e a produção da vida é refletida em inúmeras políticas públicas. Como, neste Estado, que opera numa lógica de biopoder, sabendo-se de todos os riscos e perigos para a vida produzidos pelo encarceramento, se justifica a permanência da prisão, mesmo havendo alternativas concretas a ela? Na hipótese deste trabalho, a partir do jogo inscrito em todos Estados modernos entre o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder (FOUCAULT, 2005) e da lógica do racismo de Estado. Em um discurso que defende a aplicação das penas e medidas alternativas, afirma-se a falência da prisão como resposta ao delito, no sentido de sua incapacidade em evitar ou mesmo diminuir a ocorrência de atos qualificados como crimes. Afirma-se não só a sua incapacidade de produzir os resultados explicitamente esperados

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de diminuição dos delitos, mas igualmente o seu papel no incremento da reincidência quando comparada com outras formas de responder ao delito. Ainda assim, as penas e medidas alternativas, quando presentes na política criminal do Estado, não o são enquanto um substitutivo da prisão para todos, mas para aqueles sujeitos a quem o encarceramento provocaria mais males do que benefícios. Males e benefícios a quem? Ao sujeito que deixou de ser encarcerado? Sim, mas também ao restante da população, que o receberia após ter cumprido “seu” tempo de cárcere. Afirma-se que o indivíduo deixa de ser encarcerado porque, se o fosse, sairia da prisão representando mais risco, mais perigo ao restante da população da qual participa quando em liberdade, afirmativa associada a uma “carreira criminosa” que o sujeito aperfeiçoaria durante o tempo que permaneceria na prisão. Incentiva-se também a aplicação das penas e medidas alternativas a partir do argumento da diminuição da reincidência que, no final das contas, é uma medida da proporção de indivíduos que voltam a produzir um dano à população – diminuindo-se a reincidência, diminui-se um dos fatores de risco (a delinquência) para a existência do restante da população. Se as penas alternativas não são para todos, como definir para quem são? Conforme o artigo 43, inciso III, do Código Penal, para aqueles cuja “culpabilidade”, “antecedentes”, “conduta social” e “personalidade”, bem como “os motivos e as circunstâncias”, indicam que a substituição da pena de prisão pelas penas restritivas de direitos seja “suficiente”. A atualização dessas categorias se dará na decisão do juiz sobre o caso concreto, mas já na Exposição de Motivos da Lei 7.209/84, como vimos acima, podemos encontrar um indício de quem são eles: os “delinquentes sem periculosidade”. As penas alternativas foram propostas para os “delinquentes sem periculosidade” para que a prisão ficasse restrita aos “casos de reconhecida necessidade” de forma a “impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere”, bem como as “consequências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação”3. 3

Todas as expressões acima foram destacadas do trecho da Exposição de Motivos da Lei 7.209/84 citada supra.

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A reforma do Código Penal que introduziu a possibilidade de aplicação das penas alternativas também eliminou o sistema de penas e medidas de segurança conhecido como “duplo binário” (SANTOS, 2007, p. 510), no qual a um mesmo agente, em razão da prática de uma conduta definida como crime, poderia ser aplicada uma pena, em regra privativa de liberdade, com fundamento na culpabilidade desse agente, cumulada com uma “medida de segurança”4, analisada em virtude da periculosidade desse agente, e que seria aplicada após o cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada. Com a reforma realizada pela Lei 7.209/84, ou o agente é considerado “imputável”, ou seja, capaz de compreender a ilicitude da sua conduta e determinar-se segundo essa compreensão, e recebe uma pena, ou então é considerado “inimputável”, sendo aplicada uma medida segurança que será ou internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou sujeição a tratamento ambulatorial. Nesse sistema do duplo binário, a periculosidade do agente poderia ser presumida nas hipóteses definidas pela lei5 ou então avaliada pelo juiz na sentença ou durante a execução da pena. Nas situações em que a periculosidade não era presumida, deveria “[…] ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha ou torne a delinquir” (BRASIL, 1940), conforme então determinado pelo artigo 77 do Código Penal. Comparando essa formulação para avaliação da periculosidade do sujeito com aquela utilizada para avaliar se seria adequada a substituição da pena privativa de liberdade por uma pena alternativa, vemos uma semelhança considerável – tanto a referência quanto aos antecedentes e à personalidade do agente, quanto aos motivos 4

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O artigo 88 do Código Penal antes da reforma realizada pela Lei 7.209/84 definia como medidas de segurança passíveis de aplicação: a internação em manicômio judiciário, a internação em casa de custódia e tratamento, a internação em colônia agrícola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional, a liberdade vigiada, a proibição de frequentar determinados lugares e o exílio local. Alguns “presumidamente perigosos” previstos no Código Penal, antes da reforma de 84, no artigo 70: “os condenados por crime cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, se habitual a embriaguez”; “os reincidentes em crime doloso”; “os condenados por crime que hajam cometido como filiados a associação, bando ou quadrilha de malfeitores”.

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e circunstâncias do crime estão presentes em ambas. No caso da formulação utilizada para avaliar a possibilidade de aplicação das penas alternativas, foi agregada ainda uma análise da conduta social do sujeito infrator, o que, de certo modo, aponta que a avaliação que o juiz deve fazer foi aprofundada e refinada. Algumas inquietações: ao afirmar a existência de delinquentes sem periculosidade, afirma-se a existência de “delinquentes perigosos”. Se aos delinquentes sem periculosidade aplicam-se as penas alternativas, aqueles que estão na prisão são desses “delinquentes perigosos”, caracterizando casos em que a prisão não é só imposta, mas trata-se de uma “reconhecida necessidade”. A esses “delinquentes sem periculosidade”, o cárcere representa um fator “criminógeno” com “consequências maléficas”. Aos “delinquentes perigosos” não? Nossa hipótese, assim, é a de que as penas alternativas operam a partir de cisões, em primeiro lugar, entre “delinquentes” e “não delinquentes” e, posteriormente, entre “delinquentes perigosos” e “delinquentes sem periculosidade”, numa tentativa de responder aos danos reconhecidamente provocados pelas políticas até então adotadas. De forma a aumentar a população dos “não delinquentes” e diminuir os riscos provocados a ela pelos “delinquentes”, busca-se estabelecer dentre estes últimos quais os mais aptos a participar daquela outra população (a partir da análise, conforme determinado em lei, de sua “culpabilidade”, “antecedentes”, “conduta social” e “personalidade”, bem como “os motivos e as circunstâncias”) reservando-se aos demais a morte simbólica (e em muitos casos real) mediante o cárcere. A prisão, contudo, com suas “consequências maléficas” e sua “ação criminógena” permanece justificada em relação aos “delinquentes perigosos”, pois constituem casos de “reconhecida necessidade” e, aparentemente, num jogo de palavras, sem direito a alternativas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na criação do Programa Nacional de Apoio e Acompanhamento das Penas e Medidas Alternativas, em 2002, considerou-se “a necessidade do encarceramento principalmente para criminosos de maior potencial ofensivo” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2002).

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Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça lançou a campanha “A solução não é punir menos, é punir melhor”, para promover a aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade, campanha também adotada no VII Congresso Nacional de Alternativas Penais, realizado em 2011, pelo Ministério da Justiça. Um dos fundamentos afirmados para a criação da Estratégia Nacional de Alternativas Penais, em 2011, foi “a necessidade de estabelecer a máxima eficácia de resposta ao conflito social provocado pela prática de infrações penais” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011). No “Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas”, lançado pela Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas, em 2002, há referência à complementaridade de dois campos de linguagem, em que o saber técnico-jurídico constrói a complementaridade de conceitos fundamentais no “mundo jurídico” e no “mundo psicossocial”: conduta/comportamento, fiscalização/acompanhamento, cumprimento da pena/reinserção social (SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA; CENTRAL NACIONAL DE APOIO E ACOMPANHAMENTO ÀS PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS, 2002). “Casos de reconhecida necessidade”, “delinquentes sem periculosidade”, “integração social”, “mínimo necessário de força punitiva”, “criminosos de maior potencial ofensivo”, “máxima eficácia”, “punir melhor”, “reinserção social”: apesar de enunciada como “uma” política nacional a partir de 2000 (BARRETO, 2010), aparentemente diferentes formas de falar sobre o crime, a punição, e seus sujeitos, circulam na construção das alternativas penais à prisão. No entanto, talvez justamente por estarem todas articuladas em torno de algo que se constitui enquanto “uma” política nacional, tais diferenças ficam invisibilizadas. Se a instituição de alternativas penais à pena de prisão pode se dar a partir de diferentes perspectivas, então podem ser igualmente diferentes as formas como tais alternativas se articulam em relação às penas privativas de liberdade. Da mesma forma, diferentes maneiras de compreender as condutas e os sujeitos criminalizados poderão ser legitimadas em torno de algo que aparentemente é uma mesma política. Assim, para além dos números de pessoas submetidas a alternativas penais, de instituições conveniadas, Varas especializadas e Centrais de acompanhamento, torna-se neces-

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sário examinar aquilo que esses números talvez ocultem – os modos como diferentes discursos sobre o crime, a punição, e seus sujeitos, bem como sobre as relações entre a prisão e suas alternativas, foram investidos na construção das políticas de alternativas penais à pena de prisão no Brasil, para que se possa pensar nos possíveis efeitos desses discursos naquilo que representam esses e outros tantos números que compõem as estatísticas da política criminal brasileira. A criação da Estratégia Nacional de Alternativas Penais – ENAPE, pelo Ministério da Justiça, em 2011, aponta a relevância e atualidade dessa discussão. A ENAPE representou não só a continuação da política de penas e medidas alternativas em nível nacional, mas a sua ampliação para abranger também a conciliação, a mediação, programas de justiça restaurativa realizados por meio dos órgãos do sistema de justiça e por outros mecanismos extrajudiciais de intervenção, medidas cautelares pessoais diversas da prisão e medidas protetivas de urgência. Sendo este um momento de mudança nessa política, a reflexão sobre as diferentes perspectivas sobre o crime e a punição implicadas nas alternativas penais à prisão no Brasil, bem como acerca de suas condições de emergência, possibilita melhor compreensão do contexto em que essa mudança ocorre e que posicionamentos são possíveis para aqueles que buscam alternativas à prisão e não alternativas além da prisão. Não se trata de fazer a crítica das alternativas a partir daquilo que elas não são ou do que elas não foram, mas da necessidade de se pensar as alternativas para pensarmos em alternativas. Assim, pensando com base em Foucault (1981/2010a), as formas de conceber o crime e as práticas investidas no seu controle, enquanto modos de governo dos homens pelos homens, supõem certa forma de racionalidade, e os que buscam resistir contra uma forma de poder nelas presente não podem contentar-se em denunciar a violência das agências policiais ou em criticar uma instituição como a prisão. É preciso colocar em questão a própria forma de racionalidade presente nessas agências e instituições voltadas ao crime e seu controle, perguntar-se como são racionalizadas as relações de poder existentes em seus modos de funcionamento. Colocar essa racionalidade em evidência é o único modo de evitar que outras instituições, que, apesar de serem colocadas como contraponto, articulam-se em torno dos mesmos objetivos e produzem os mesmos efeitos, tomem o seu lugar.

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