Algumas considerações acerca do retrato de Átila, rei dos hunos, na historiografia tardoantiga e posterior

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II COLÓQUIO LEIR-UFOP & UNIVERSIDADE DE COIMBRA: A ação do tempo na modelação dos retratos históricos Mariana, 2 e 3 de junho de 2016

Algumas considerações acerca do retrato de Átila, rei dos hunos, na historiografia tardoantiga e posterior por Gustavo H. S. S. Sartin doutorando em História na UFOP

Postos lado a lado, os dois retratos do gatinho brincalhão nos causam surpresa, talvez algum desconcerto e, muito possivelmente, riso. Vistos em separado, possivelmente, os retratos não surtiriam o mesmo efeito. Até haveríamos nos perguntar, ao ver somente o retrato colorido, quais elementos estariam ou não num retrato original – isto é, caso desconfiássemos de que existia um retrato original. Tal desconfiança, assim como o questionamento que dela decorreria, só é possível quando se tem conhecimento das convenções envolvidas. Ora, desenhos de gatinhos brincalhões 1

desse tipo são, usualmente, parte de algum tipo de material voltado às crianças e, portanto, é pouco provável que incluam originalmente sangue e morte. No caso dos retratos de figuras históricas estamos diante de problema semelhante. E temos diante de nós “Júlio César: [a] vida de um colosso”. A partir do momento em que nos damos conta de que, por exemplo, a figura de um Júlio César que nos chega é resultado de séculos e séculos de interpretações a um conjunto inicial de documentos, na maior parte perdidos, seguidas de interpretações das interpretações, de interpretações das interpretações das interpretações, nossa reação natural, creio, é a de abraçar a pós-modernidade com todo o relativismo que lhe é típico.

Alguns têm a sorte de superar o estupor epistemológico pós-modernista e, nesse caso, os problemas relativos à interpretação das figuras histórias tradicionalmente postos persistem, aguardando uma análise mais ou menos empenhada da documentação primária e secundária. Conhecer os topoi, os lugares-comuns, de cada gênero ou época sempre ajuda. Em último caso, todavia, o interessado – seja ele um historiador profissional ou não – terá que confrontar o que resta de fontes primárias sobre a figura em questão… ou o que houver de mais próximo delas. É isso que tentaremos esboçar aqui, em relação à Átila, rei dos hunos.

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Romani tunc et caeteri Italiae populi Athilam, qui se dei flagellum terroremque populorum diceret ac re ipsa ostenderet, horrendo pauore expectabant. Quod cum Leo pontifex Romanus, eius nominis primus, cerneret, moestus compatiensque populis, atque etiam hortante Valentiniano, legationem ad Athilam pro cunctorum salute suscepit. Repperit autem illum apud Mincium castra habentem. Ferunt nanque regem ipsum quid faceret dubium, ab ulteriori progressu a commilitonibus exercitusque sui ducibus aliquamdiu fuisse deterritum, quia illi memorarent ac in malum uerterent praesagium Halarici casum, qui parum captae urbi ac Italiae superuixit. Pendentem tamen in Italiae desolationem, ad quam eum ingenii ferocitas trahebat, facundus pontifex orando molliuit effecitque ut omissa Italia ad propria redire regna promiserit. Quae res omnem exercitum in admirationem adduxit.1 Então os romanos e outros povos da Italia esperavam por Átila, chamado “o flagelo de Deus e o terror dos povos”, com horrendo pavor. Foi quando o pontífice romano Leão I, vexado e compadecido pela situação do povo, além de estimulado p[elo imperador] Valentiniano, decidiu realizar uma embaixada até Átila em prol do bem geral. Descobriu, então, que aquele fizera acampamento próximo a Mincius*. E assim partiu até o rei e fez com que ficasse indeciso quanto ao posterior progresso de seus companheiros, de seu exército e do próprio comandante, impedindo-o por algum tempo, pois lembrou a ele também o mal ocasionado pelo presságio da queda Alarico, que por pouco tempo sobreviveu após a captura da cidade [de Roma] e da Italia. Atendo-se ainda à desolação da Italia, a qual Átila conduzia com natural ferocidade, o facundo pontífice pediu e conseguiu que ele prometesse ignorar a Italia e retornar à próprio reino. Diante disso, todo o exército parte admirado.

* Atual Mincio, na Itália. O relato acima, extraído de Historiarum ab inclinatione Romanorum imperii decades (Décadas de histórias acerca do declínio do império dos romanos) de Flavio Biondo, publicado em 1483, exemplifica aquilo que, cremos, mais comumente vem à mente das pessoas quando pensam em Átila: que ele era chamado “flagelo de Deus”, por conta de sua violência, e que foi expulso da Italia por um papa. Peço, de antemão, desculpas por quaisquer problemas nas traduções, porquanto não houve tempo hábil para revisá-las. De onde vêm, todavia, esses elementos? Estariam eles presentes nos documentos mais antigos? Uma das principais fontes textuais quanto a atividade de Átila, morto em 453, é a Getica, a história dos godos escrita por Jordanes em meados do século VI. Disso resulta um problema, visto que Jordanes está removido cerca de um século dos eventos nos quais o rei dos hunos esteve envolvido. Além disso, a história de Jordanes se baseia numa outra, composta cerca de vinte anos antes pelo polímata Cassiodoro, hoje perdida. Além disso, no caso dos eventos nos quais Átila está envolvido, Jordanes cita amiúde Prisco de Panium – ainda que não se possa saber, a princípio, se foi o próprio ou Cassiodoro quem teve contato com a sua obra. Jordanes, portanto, dificilmente poderia ser classificado como uma “fonte primária” acerca do rei dos hunos. Cabe ressaltar, contudo, que Jordanes menciona o encontro entre Átila e o papa Leão, ainda que não atribua ao rei dos hunos o epíteto “flagelo de Deus”.

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FLAVIUS BLONDUS FORLIVIENSIS (1531).

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ἡ Σοῦδα (Suda) Um ótimo ponto de partida para qualquer investigação referente ao mundo grego antigo é a Suda, palavra grega medieval que significava “Fortaleza”. Trata-se de uma enciclopédia bizantina com cerca de 30.000 entradas, composta no século X. A Suda está disponível online, em um site que permite buscas em seu conteúdo.2 Uma pesquisa por “Attila” nos leva ao verbete “Ἀττήλας” (Attelas). Nele pode-se ler somente: “o líder dos citas” (ὁ τῶν Σκυθῶν ἡγεμών) – “citas” é um nome genérico, atribuído na época clássica aos que habitam o nordeste da Europa. O rei dos hunos, porém, é mencionado em algumas outras entradas. Por exemplo: Μεδιόλανον: πολυάνθρωπος πόλις, ἣν καταλαβὼν Ἀττήλας ἠνδραποδίσατο. ὡς δὲ εἶδεν ἐν γραφῇ τοὺς μὲν Ῥωμαίων βασιλεῖς ἐπὶ χρυσῶν θρόνων καθημένους, Σκύθας δὲ ἀνῃρημένους καὶ πρὸ τῶν σφῶν ποδῶν κειμένους, ζητήσας ζωγράφον ἐκέλευσεν αὑτὸν μὲν γράφειν ἐπὶ θάκου, τοὺς δὲ Ῥωμαίων βασιλεῖς κωρύκους φέρειν ἐπὶ τῶν ὤμων καὶ χρυσὸν πρὸ τῶν αὑτοῦ χέειν ποδῶν. Mediolanum: cidade populosa, a qual Átila capturou e escravizou. Quando viu um retrato (γραφῇ) de imperadores romanos sentados sobre tronos de ouro (ἐπὶ χρυσῶν θρόνων), com os citas diante deles para serem mortos (σφῶν), procurou um pintor realista (ζωγράφον) e ordenou que [o] retratasse numa cadeira (θάκου), com sacos (κωρύκους) sendo carregados nos ombros por imperadores romanos e ouro despejado diante de seus pés.

Praticamente o mesmo texto se repete no verbete “Κόρυκος”, “saco”. Átila também aparece no verbete “Ζέρκων”, referente a um sujeito “chamado de 'cita', [mas] mouro por linhagem” (Σκύθης οὕτω καλούμενος, Μαυρούσιος τὸ γένος). O tal Zerkon sofria com várias deformidades, que afetavam inclusive a sua fala. Havia sido escravo do magister militum Aspar, mas acabou capturado e levado à corte dos hunos, ainda que “Átila de fato não suporta[sse] sua aparência” (Ἀττήλας μὲν οὐδὲ τὴν αὐτοῦ ἤνεγκεν ὄψιν), enquanto o seu irmão Bleda costumava rir às custas do escravo disforme. Átila, após a morte de Bleda, nos informa a Suda, teria enviado Zerkon de volta a Aspar. Temos aí um retrato tridimensional de Átila; uma caracterização que o humaniza. Talvez mais importante ainda do que essas menções, todavia, é que Átila aparece mencionado no verbete referente a Prisco de Panium: Πρίσκος, Πανίτης, σοφιστής, γεγονὼς ἐπὶ τῶν χρόνων Θεοδοσίου τοῦ μικροῦ. ἔγραψεν ἱστορίαν Βυζαντιακήν, καὶ τὰ κατὰ Ἄτταλον ἐν βιβλίοις η΄: μελέτας τε ῥητορικάς, καὶ ἐπιστολάς. Prisco, panita, sofista, floresceu por volta do tempo de Teodósio II*. Escreveu “História Bizantina” e os eventos a respeito de Átila em oito livros (βιβλίοις η), [além de] composições retóricas e cartas.

* Que reinou entre 408 e 450.

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Suda online:

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Πρίσκος Πανíτες (Priscus Panita) O que se conhece de Prisco de Panium (cidade da Thracia) tem origem sobretudo no que ele próprio narra em sua Ἱστορία Βυζαντιακή, composta por volta de 475, hoje muito fragmentária. Um detalhe importante é que Prisco foi embaixador na corte de Átila entre os anos de 448 e 449. É possível se afirmar, todavia, à luz dos fragmentos dos escritos de Prisco, que a Getica traz uma seleção das informações referentes a Átila presentes nesses escritos. É razoável supor que Cassiodorus/Jordanes tivesse (tivessem?) acesso à obra completa, da qual aproveitou (aproveitaram?) as partes que lhe (lhes?) convinha (convinham?). Nenhum dos fragmentos restantes faz referência ao encontro, que acabou ficando famoso, entre Átila e o papa Leão. Da Ἱστορία Βυζαντιακή persistem quarenta e um fragmentos, numerados cronologicamente; sendo que os primeiro dezenove tratam sobretudo dos hunos. O fragmento 18 traz uma negociaçao entre Átila e um certo Apolônio, provavelmente o sujeito que havia sido praefectus praetorio Orientis entre 443 e 444. No fragmento 19, todavia, Átila já está partindo da Italia, após saqueá-la. Ou seja, cronologicamente, o encontro entre o rei dos hunos e o papa Leão estaria entre um e outro fragmento.3 Átila, tampouco, é chamado de “flagelo de Deus”. Mas o que contam as outras fontes contemporâneas?

Prosperus Aquitanicus Próspero da Aquitania escreveu a Epitoma chronicorum, que continua a crônica de Jerônimo e, na sua versão mais completa, cobre os anos entre 412 e 455. 4 O texto traz uma versão muito breve do encontro com o papa Leão: 752. Suscepit hoc negotium cum viro consulari Avieno, et viro praefectorio Trigetio beatissimus papa Leo auxilio Dei fretus, quem sciret numquam piorum laboribus defuisse. Nec aliud secutum est quam praesumpserat fides. Nam tota legatione dignanter accepta, ita summi sacerdotis praesentia rex gavisus est, ut et bello abstineri praeciperet, et ultra Danubium promissa pace discederet.5 752. O papa Leão, com a ajuda de Deus, iniciou essa tarefa com o cônsul Avieno e com o prefeito Trigétio, sabendo que a situação não ficaria pior depois dessa empreitada. Nada ocorreu de outro modo senão segundo a sua fé presumira, pois a delegação foi aceita cortesmente e por completo, assim como o rei ficou exultante (gavisus) com a presença do sumo sacerdote, de modo que adiantou que se absteria da guerra e, com uma promessa de paz, partiria para além do Danubius.

O cronista, um pouco mais adiante nessa mesma entrada, menciona uma disputa entre os filhos de Átila pelo reino, após a sua morte.

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MÜLLERUS (1868). Outras versões se encerram nos anos 433 e 445, conforme J.-P. Migne em Admonitio in Chronicum S. Prosperi: “Denique observatum legimus a viro rerum ecclesiasticaram peritissimo, S. Prosperum ter Chronicum suum ad incudem, ut aiunt, revocasse, terque, si sic loqui faz sit, illud in lucem edidisse: scilet anno 433, iterum anno 445, demum anno 455.” In: MIGNE (1846, colunas 535-536). MIGNE (1846).

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Hydatius Lemicus Hidácio, bispo de Aquae Flaviae (atual Chaves, Portugal) – também chamado “Lemicus” por conta de seu local de origem, civitas Lemica, na Gallaecia – também escreveu uma continuação da crônica de Jerônimo, chamada, pasmem!, Continuatio Chronicorum Hyeronimianorum. Assim como a crônica de Próspero, a de Hidácio cobre os anos de atividade conhecida de Átila, de meados da década de 430 até 453. Aliás, a crônica se estende até 468, quando termina abruptamente. A partir do início do segundo quartel daquele século, Hidácio escreve como testemunha. Isso é especialmente importante porque ele teve contato pessoal com Flávio Aécio, o comandante militar romano que, ao lado do rei visigodo Teodorico I, enfrentou Átila na batalha dos campos Cataláunicos, ocorrida em 451. O contato de Hidácio com Aécio, porém, foi bastante anterior a isso, porquanto aquele foi parte de uma embaixada enviada pelo comandante militar romano para tratar da situação dos suevos na Gallaecia em 431. Eis o que relata Hidácio sobre os anos 451 e 452: 153. Huni cum rege suo Attila relictis Gallis post certamen Italiam petunt. OLYMP. CCCVIII 154. XXVIIII. 'Secundo regni ano principis Marciani Huni, qui Italiam praedabantur. aliquantis etiam civitatibus inruptis, divinitus partim fame, partim morbo quodam plagis caelestibus feriuntur: missis etiam per Marcianum principem Aetio duce caeduntur' auxiliis pariterque in sedibus suis et caelestibus plagis et per Marciani subiguntur exercitum et ita subacti facta cum Romanis proprias universi repetunt sedes, ad quas rex eorum Attila mox reversus interiit.6 153. Os hunos, após a disputa, deixam as Galliae com o seu rei Átila e atacam a Italia. [Olimpíada 308] 154. No segundo ano de reinado do imperador Marciano, os hunos, que saqueavam a Italia e haviam então invadido muitas cidades, [foram atingidos] divinamente em parte pela fome e em parte pela doença, enviada através de pragas celestes. Foram derrubados pelo comandante Aécio, a quem o imperador Marciano havia enviado tropas auxiliares; e, ao mesmo tempo, foram subjugados em sua sede tanto pelas pragas celestes como pelo exército de Marciano; e, assim, feito o acordo de submissão com os romanos, voltam todos novamente à própria sede, onde o seu rei Átila, pouco depois de chegar, desaparece.

Diferentemente de Próspero, Hidácio não menciona qualquer encontro com o papa Leão. Ele fornece, todavia, detalhes a respeito da estratégia militar empregada para derrotar os hunos: Aécio, com o apoio do imperador do oriente, pressiona os hunos na Italia, enquanto as tropas orientais pressionam os hunos em sua “sede”, talvez na Pannonia.

Chronica Gallica anno 452 A Chronica Gallica anno 452, de autor desconhecido, cobre o período entre 379 e 452. Átila é mencionado nas seguintes passagens, bastante sucintas: 131. XXIII. Bleda Chunorum rex Attilae fratris fraude percutitur, cui ipse succedit. [...] 139. Attila Gallias ingressus quasi iure debitam poscit uxorem: ubi gravi clade inflicta et accepta ad propria concedit. […] 141. Insperata in Galliis clade accepta furiatus Attila Italiam petit, quam incolae metu solo territi praesidio nudavere.7 6 7

MOMMSEN (1894). MOMMSEN (1892).

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131. XXIII. Bleda é morto através da trapaça do irmão, Átila, rei dos hunos, que lhe sucedeu.* […] 139. Átila ingressa nas Galliae quase como se, por justiça, buscasse a esposa devida; lá ocasiona e sofre uma pesada destruição. […] 141. Aceita a inesperada perda nas Galliae, um furioso Átila ataca a Italia, cujos habitantes [estava] aterrorizados somente por conta do medo pelas defesas desnudas. * em 446 e. c.

O texto é interrompido bruscamente na entrada 141.

Chronica Gallica anno 511 Sigamos, então, para outro texto de autor desconhecido, a Chronica Gallica anno 511. Ela se inicia em 379, como a crônica anterior, e se estende até 511. Átila é mencionado em apenas três de suas entradas, todas bastante sucintas – uma característica do documento como um todo. 615. I. Aetius patricius cum Theoderico rege Gothorum contra Attilam regem Hugnorum Tricassis pugnat loco Mauriacos, ubi Theodericus a quo occisus incertum est et Laudaricus cognatus Attilae: cadavera vero innumera. […] 617. Regrediens Attila Aquileiam frangit. […] 622. Attila occiditur.8 615. I. O patrício Aécio, ao lado de Teodorico, rei dos [visi]godos, luta contra Átila, rei dos hunos, num lugar [chamado] Mauriacus [na região de Augustobona] Tricassis, onde Teodorico teve morte incerta, assim como Laudarico, cunhado de Átila. Os cadáveres foram realmente incontáveis. […] 617. Átila, em fuga, destrói Aquileia. […] 622. Átila é morto.

Não há qualquer menção ao encontro com o papa Leo ou ao epíteto “flagelo de Deus”. Os fragmentos da história escrita por Prisco de Panium, as crônicas de Próspero, Hidácio e as duas chronicae gallicae constituem, até onde sabemos, o conjunto das fontes historiográficas (quase) contemporâneas acerca de Átila. É possível, todavia, que reste inexplorado algum tipo de material epistolar ou mesmo hagiográfico. Mais do que possível, é até provável. Cronologicamente, a próxima fonte historiográfica seria a Getica de Jordanes, composta quase cem anos após a morte de Átila, porquanto a história eclesiástica de Sócrates Escolástico (Σωκράτης ὁ Σχολαστικός/Socrates Scholasticus) se estende apenas até 439 e não chega a mencionar o rei dos hunos. A escrita por Hérmias Sozomeno (Ηερμειας Σωζομενός/Hermias Sozomenus) se interrompe ainda antes, nos anos 420. A história das guerras de Justiniano, escrita por Procópio de Cesareia (Προκόπιος ὁ Καισαρεύς/Procopius Caesarensis) trata dos conflitos do segundo quartel do século VI e não recua o suficiente para incluir Átila, morto em 453. Cobrimos, portanto, aproximadamente cem anos de fontes historiográficas a respeito de Átila. A partir desse ponto, elas se tornam claramente secundárias.

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MOMMSEN (1892).

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Victor Tunnunensis Já na segunda metade do século VI, Átila foi mencionado também no Chronicon escrito por Victor Tunnunensis (de civitas Tunnuna, no norte da Africa), um declarado continuador de Próspero. Isso é um tanto curioso, visto que a crônica de Próspero se encerra em 455 e a de Victor se inicia em 444 (e vai até 565 ou 567 9) – fato que não passou despercebido pelos comentadores. 10 O reinado individual de Átila, após o assassinato do irmão Bleda, deu-se provavelmente entre 446 (ou 447) e 453. Isso significa que tanto Próspero quanto Victor cobrem o período mais significativo da vida do rei dos hunos. Como Próspero, Victor relata o encontro entre Átila e o papa Leão. Fá-lo, todavia, com as próprias palavras. 449. ASTVRIO ET PROTOGENE CONSS. Attila rex Hugnorum, postquam est Aetio Valentiniani Augusti duce proelio superatus et in fugam conversus, vires recepit et ad Italiam importabiliter pergit; cuius mala Romana res publica pacis foedere sopiti, qui Attila Leonis papae legatione suscepta non solum a rei publice vastatione quievit, sed et trans Danuvium pace data recessit. 11 [Ano 449]. Consulados de Astúrio e Protógenes. Átila, rei dos hunos, após ser superado em batalha por Aécio, comandante do imperador Valentiniano e posto em fuga, recebeu [mais] homens e avançou insuportavelmente, destruindo a má república romana através do rompimento da paz. Átila aquietou não somente a devastação da república por conta da embaixada com o papa Leão recebida, mas também recuou para além do Danubius tendo feito acordo de paz.

Ἰωάννης Μαλάλας (Joannes Malalas) Outra fonte secundária, mas ainda relativamente próxima dos acontecimentos, é a Χρονογραφία (Chronographia) do antioquino João Malalas, que vai da Criação até a década de 560. Trata-se de uma história universal, com centenas de páginas. Malalas estabelece breve um paralelo entre Alarico, rei visigodo responsável pelo saque de Roma em 410, e Átila. Ato contínuo, o autor menciona Prisco em referência ao confronto entre os romanos liderados por Aécio e o rei dos hunos: Περὶ ὅυ πολέμον συνεγραφάτο ὁ σοφώτατος Πρίσκος ὁ Τρᾴξ.12 Sobre essa guerra escreveu o habilidoso Prisco, o Trácio.

Depois disso, sem motivo aparente, Malalas muda de assunto, mencionando Cirilo, bispo de Alexandria ad Aegyptum, e a filósofa Hipátia.

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MOMMSEN (1894, p. 179): “certe cum narratio perveniat ad a. 565 et in ipso fine mentionem faciat socii exilii Theodori Cebarsuscitani episcopi eo tempore in exilio mortui, vix antequam scribendi finem faceret domum potest reversus esse. narratio vertitur potissinum in controversiis illis ecclesiasticis nec saeculares res nisi raro tanguntur.” O próprio Mommsen, porém, nas marginalia que acompanham a última entrada da crônica de Victor de Tunnuna sugere como possibilidade o ano de 567 (p. 206). Como J.-P. Migne em Admonitio in Chronicum S. Prosperi: “Nam et huic etiam praecdentes omisimus Victorem Tunnonense in Africa episcopum, qui a consulatu XVIII Theodosii Junioris historiam persequi testatur, ubi Prosper reliquit (quod utique postremum ejus exemplar auctius no habuerit). [… ] Immo Victor Tunnunensis, qui suplevit illu Prosperi Chronicum, illud anno 444 desiise observat”. In: MIGNE (1846, colunas 533-536). MOMMSEN (1894). MIGNE (1863).

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Εὐάγριος ὁ Σχολαστικός (Evagrius Scholasticus) A Ἐκκλησιαστικὴ Ἱστορία de Evágrio vai do I Concílio de Éfeso, em 431, até a morte do patriarca Gregório I de Antioquia, em 593. O texto traz uma breve menção a Átila, também se reportando a Prisco: Ἐv τούτοις τοῖς χρόνοις ὁ πολὺς τῷ λόγω πόλεμος ἐκεκίνητο, Ἀττίλα τοῦ τῶν Σκυθῶν Βασιλέυς. ὃυ περιέργως καὶ ἐς τὰ μάλιστα λογίως Πρίσκος ὁ ῾Ρήτωρ γράφει μετὰ πολλῆς τῆς κομψείας δινγούμενος, ὅπως τε κατὰ τῶν ἑῷων καὶ ἐσπερίων ἐπεστράτενε μερῶν, οἵας τε καὶ ὅσας πόλεις ἑλὼν κατήγαγε, καὶ ὅσα πεπραχὼς τῶν ἐντευθεν μετέστη.13 Naquele tempo teve início a guerra, celebrada através de muitos discursos, contra Átila, o rei dos hunos, sobre a qual o retor Prisco escreveu tanto com detalhe (δινγούμενος) quanto com refinamento (κομψείας); expondo, de maneira singular, como aquele lançouse contra as partes oriental e ocidental do império, além de quantas e de que tipo foram as cidades que dominou e quais foram as suas façanhas até que partisse para o além.

Sidonius Apollinaris e Gregorius Turiensis Um contemporâneo de Evágrio foi Gregório, bispo de civitas Turonum (atual Tours, na França). Sua Historia Francorum vai da Criação até o ano de 591 – além de um epílogo escrito em 594. Átila é mencionado brevemente, num episódio relacionado ao cerco da cidade de Aureliana (atual Orleans, na França). Quando os cidadãos estão desesperados com o cerco imposto pelo exército de Átila, o bispo Anniano/Aignan exorta-os para que se prostem e orem, implorando a Deus por auxílio. Isso feito, o bispo diz-lhes: “Observai da muralha da cidade se a misericórdia de Deus já [nos] socorre” (Aspicite de muro civitatis, si Dei miseratio iam succurrat). Ainda assim, não havia sinal da chegada de ajuda. O bispo então diz-lhes: “Orai com fé e então o Senhor vos libertará hoje” (Orate fideliter; Dominus enim liberavit vos hodie).14 Isso feito, os cidadãos observam uma nuvem de poeira no horizonte e então o chão começa a tremer. Aécio, Teodorico e seu filho Torismundo estão chegando à cidade com os seus exércitos e pondo as forças de Átila em fuga. É certo, todavia, que Gregório não haja simplesmente inventado tal anedota, porquanto Sidônio Apolinário a menciona o cerco de passagem em uma carta enviada a um certo Próspero, bispo de Aureliana e sucessor do tal Anniano/Aignan, talvez em fins da década de 470. Na carta, Sidônio desculpa-se por não ter terminado de escrever a história do cerco: “Comecei a escrever, mas, quando percebi o tamanho da tarefa, lamentei que houvesse iniciado” (Coeperam scribere sed operis arrepti fasce perspecto taeduit inchoasse).15 A anedota da participação do bispo Anniano/Aignan ao cerco de Aureliana por Gregório talvez seja, então, resultado de uma tradição local. Cabe destacar, também, que Jordanes menciona o mesmo cerco – sem, todavia, fazer qualquer menção ao bispo. É notável que Gregório, escrevendo sobre acontecimentos das Galliae, desse tão pouco relevo a Átila, protagonista da batalha dos campos Cataláunicos, enquanto Jordanes dedicasse a ele certa de um quinto da Getica.

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MIGNE (1865). MIGNE (1849). MIGNE (1847).

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Cobrimos, até agora, quase um século e meio desde a morte de Átila, em 453. Vimos que o relato do encontro entre o rei dos hunos e o papa Leão pode ser visto já em Próspero da Aquitania, ainda na década de 450. O também contemporâneo Hidácio, por outro lado, tinha informações muito específicas sobre a situação dos hunos na Italia e sobre as manobras militares que possibilitaram que os romanos exigissem um acordo de paz. Vimos que o autor da Crônica Gálica de 452 foi por demais sucinto, pouco acrescentando ao que podia ser encontrado em outras fontes. O autor da Crônica Gálica de 511, também muito sucinto, mencionou a batalha dos campos Cataláunicos. Victor de Tunnuna parece seguir o relato de Próspero, ainda que haja descrito o encontro entre Átila e o papa Leão com as suas próprias palavras. O antioquino Malalas simplesmente compara Átila e o visigodo Alarico, apontando aos seus leitores que Prisco tratou em detalhe da guerra entre os hunos e os romanos. Evágrio também conduz seus leitores para a narrativa de Prisco, enquanto Gregório de Tours parece relatar uma tradição local, referente ao cerco de Aureliana. Isso sem contar que Jordanes, talvez por conta do original de Cassiodoro, também cita Prisco amiúde. Encontramos, assim, quatro tradições: (1) Em Prisco beberam Cassiodoro/Jordanes, Malalas e Evágrio. (2) Do relato de Próspero parece ter se aproveitado Victor de Tunnuna. (3) Hidácio traz as suas próprias informações, que parecem não ter sido aproveitadas pelos autores analisados. (4) Gregório de Tours relata uma tradição local sobre o cerco de Aureliana, confirmada pela carta de Sidônio Apolinário. Encontramos um dos elementos sempre lembrados acerca de Átila, o encontro com o papa Leão, na segunda dessas tradições. Mas e a questão de Átila ser o “flagelo de Deus”? Para encontrar essa resposta teremos que avançar até a década de 620, com Isidoro de Sevilha.

Isidorus Hispalensis O bispo de Hispalis (atual Sevilha) não menciona Átila na sua Chronica Maiora. Sua Historia de regibus Gothorum, Vandalorum et Suevorum chegou aos nossos dias em duas versões, uma mais breve, de 619, e outra de 624. Tanto numa como noutra, Átila é mencionado apenas de passagem. Eis o trecho mais importante da passagem que faz parte da versão mais longa: Virga enim furoris dei sunt et, quotiens indignatio eius adversus fideles procedit, per eos flagellantur, ut eorum adflictionibus emendati a saeculi cupiditate et peccato semet ipsos coerceant et caelestis regni hereditatem possideant.16 [Os hunos] são a vara da fúria de Deus e, quando ocorre a indignação Dele com os fieis, ela é neles golpeada (flagellantur), de modo que eles se corrijam quanto às aflições da era e cerceiem eles próprios a sua cobiça e pecado, tendo como herança o reino do céu.

Eis aí, então, os hunos – e Átila, por extensão – como “flagellum Dei”, o flagelo de Deus.

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MOMMSEN (1894).

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Considerações finais We have come full circle, como diriam os estadunidenses. Voltamos ao ponto inicial, completando a jornada. Flavio Biondo, escrevendo no século XV, mescla um elemento encontrado mais antigamente em Próspero – o encontro entre Átila e o papa Leão – com outro aparentemente criado por Isidoro – Átila ser um “flagelo de Deus”. Deixo-vos com um com quadro sinóptico dos autores aqui discutidos.

NÍVEL I

NÍVEL II

NÍVEL III

CARACTERÍSTICAS

ἡ Σοῦδα (Suda) séc. X Πρίσκος Πανíτες (Priscus Panita) c. 475

Cassiodorus/Jordanes c. 525-530/c. 551 Ἰωάννης Μαλάλας (Joannes Malalas) c. 570

detalhamento/ menção explícita de Priscus

Εὐάγριος ὁ Σχολαστικός (Evagrius Scholasticus) após 593 Prosperus Aquitanicus após 455

Victor Tunnunensis após 565 ou 567

?

Isidorus Hispalensis após 624

Chronica Gallica anno 452

“Flagelo de Deus” brevidade

Chronica Gallica anno 511 Hydatius Lemicus após 468 Sidonius Apollinaris c. 478

Flavius Blondus séc. XV

encontro entre Átila e o papa Leão

brevidade intervenção divina em favor dos romanos

Gregorius Turiensis

tradição local

Referências FLAVIUS BLONDUS FORLIVIENSIS. Historiarum ab inclinatione Romanorum libri XXXI. Basileae: ex Officina Frobeniana, 1531. Disponível online em 3 de julho de 2016: . MIGNE, J.-P. (ed.). Leontii Byzantini, Opera Omnia. Accedit Evagri Scholastici Ecclesiastica; intermiscentur S. Eulogii Alexandrini Archiepiscopi, S. Constantinopolitani Patriarcae, S. Ephraimim Antiocheni Patriarchae, Zachariae, Hierosolymitanorum Patriarcharum, Erechtii Antiochiae in Perside Episcopi,

Historia Eutychii Modesti, S. Petri 11

Laodiceni, S. Symeonis Junioris, Jobii Monachi, Pauli Silentiarii, scripta vel scriptorum fragmenta quae supersunt. Leontii tomus posterior, caeterorum tomus unicus. Parisi: 1865. Patrologia Graeca 86b. __________. S. Georgii Florentini Gregorii Turonensis Episcopi Opera Omnia necnon Fredegarii Scholastici Epitome et Chronicum cum suis continuatoribus et aliis antiquis monumentis ad codices manuscriptos et veteres editiones collata, emendata et aucta, atque notis et observationibus illustrata, opera et studio domni Theodorici Ruinart Presbyteri et Monachi Beneditini et congregatione Sancti Mauri; tomus unicus. Parisii: 1849. Patrologia Latina 71. __________. S. P. N. Andrea Cretensis Archiepiscopi Operae Quae Reperiri Potuerunt Omnia, accedunt Joannis Malalae, Theodori Abucarae Carum Episcopi scripta tum historica, tum ascetica quae supersunt, tomus unicus. Parisi: 1863. Patrologia Graeca 97. __________. Santorum Hilari, Simplicii, Felicis III, Romanorum Pontificum, necnon Victoris Vitensis, Sidonii Apollinaris et Genadii Presbyteri Massiliensis Opera Omnia, nunc primum cura qua par erat emendata; ad eruditissimas locubrationes Mansi, Gallandi, Jacobi Sirmoni, Edmundi Martene, Stephani Baluzii, Alberti Fabricii atque Margarini de la Bigne perquam diligenter collata et expressa. intermiscentur S. Lupi, S. Euphronii, S. Perpetui, S. Eugenii, S. Fausti, necnon Ruricii et Cerealis, variarum sedium episcoporum, scripta quae supersunt universa; tomus unicus. Parisiis: 1847. Patrologia Latina 58. MOMMSEN, Theodorus. Chronica Minora Saec. IV. V. VI. VII, volumen I. Berolino: apud Weidmannos, 1892. Monumenta Germaniae Historica. __________. Chronica Minora Saec. IV. V. VI. VII, volumen II. Berolino: apud Weidmannos, 1894. Monumenta Germaniae Historica. MÜLLERUS, Carolus (ed.). Fragmenta Historicum Graecorum, volumen quartum. Parisiis: Editore Ambrosio Firmin Didot, 1868.

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