Algumas considerações sobre a ausência de marcadores evidenciais em sentenças de tipo imperativo na língua Karo

July 7, 2017 | Autor: Tarcisio Dias | Categoria: Evidentiality, Pragmática
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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Linguística Disciplina: FLL0439 - Pragmática

Algumas considerações sobre a ausência de marcadores evidenciais em sentenças de tipo imperativo na língua Karo

Tarcisio Antonio Dias (Número USP: 8028311) Matutino 30/06/2015

Introdução O Karo (família Ramarama, tronco Tupi) é falado por cerca de 200 índios Arara, habitantes da Área Indígena Igarapé de Lourdes, na região centro-leste de Rondônia. Tal língua foi descrita como possuindo um sistema de evidenciais (Gabas Jr, 2002). A evidencialidade é um fenômeno linguístico que se refere à "fonte da informação como um sistema gramatical fechado" (Aikhenvald, 2007: 209; tradução nossa), podendo também ter seu significado associado à inferência (Op. cit.: 210). Em seu artigo intitulado "Evidenciais em Karo" (2002), Nilson Gabas Junior mostra que os evidenciais do Karo ocorrem em diversas construções, como sentenças declarativas, interrogativas, focais, focais com foco negativo, predicativas adjetivas e predicativas nominais. Apesar da diversidade de tipos sentenciais em que os evidenciais são encontrados, "não foram atestadas ocorrências de evidencial em orações imperativas" (Gabas Jr, 2002: 260). Por que haveria uma restrição à ocorrência de marcadores evidenciais em sentenças de tipo imperativo na língua Karo? Tal restrição não é exclusividade do Karo. No livro "Studies in Evidentiality", organizado por Aikhenvald e Dixon (2003), sistemas de evidenciais de diversas línguas são descritos, e sua maioria rejeita a ocorrência de evidenciais com o modo imperativo. Na língua Shipibo-Konibo, "evidentiality tend to be reduced or absent in interrogative expressions, and are mostly absent in imperatives" (Valenzuela, 2003: 34; grifo nosso). Em Qiang, "there is no marking of evidentials in relative clauses, conditional clauses, or imperatives" (LaPolla, 2003: 75; grifo nosso). Em Western Apache (Athabaskan), "the evidentials are not normally used in imperative or interrogative clauses" (de Reuse, 2003: 88; grifo nosso). Em Jarawara, "there is no tense/evidentiality marking in complement clauses, nor in imperatives" (Dixon, 2003: 175; grifo nosso). Em Yukaghir, "the Evidential suffixes do not occur in Imperative sentences" (Maslova, 2003: 228). Por fim, na língua Abkhaz, "Inferentials are not possible in interrogative or imperative clauses" (Chirikba, 2003: 254; grifo nosso). É possível perceber, assim, que a ausência de marcadores evidenciais na língua Karo em sentenças imperativas não é um fenômeno isolado, mas recorrente nas línguas do mundo. Por questão de espaço, abordaremos apenas os dados referentes ao Karo. Acreditamos, no entanto, que a nossa reflexão possa, em alguma medida, ser estendida a uma abordagem translinguística. A fim de propor uma reflexão acerca da ausência de evidenciais em construções imperativas, traremos à luz algumas noções de Émile Benveniste acerca da subjetividade na linguagem. Discussão

Segundo Gabas Jr (2002), o Karo apresenta um conjunto de dez, talvez onze - não há certeza acerca do estatuto da palavra itep, apontada como um possível evidencial de modo (ver Tabela 1) - partículas não obrigatórias, cuja tendência é aparecer em final de sentença. O autor as descreve como marcadores evidenciais. Embora não sejam obrigatórios, os evidenciais formam um conjunto de palavras de classe fechada e ocorrem em contextos sintáticos bastante específicos, o que comprova seu estatuto gramatical na língua. Tais partículas podem (i) apresentar o "modo pelo qual a informação é conhecida" (Gabas Jr, 2002: 256), se por evidência ou inferência, bem como (ii) qualificar a informação segundo "o julgamento do falante com relação à informação repassada" (Op. cit.: 256). Abaixo, reproduzo a tabela que apresenta todos os evidenciais da língua, classificados quanto à categoria (modo e confiabilidade), quanto à subcategoria (evidência, inferência e grau de confiabilidade) e quanto à sua especificação: Evidencial Categoria Subcategoria Especificação 1. toʔwa ouvir-dizer 2. topəә visual evidência 3. təә não-visual modo 4. cokəә evidência perdida 5. aket padrão inferência 6. igã expectativa 7. iʔkiy~aʔkiy contra-expectativa 8. nãnin alto grau padrão confiabilidade 9. menəә médio grau expectativa 10. pəә baixo grau padrão 11. itep (?) modo (?) evidência (?) fala indireta Tabela 1. Evidenciais do Karo (IN: GABAS JR, 2002: 257)

Abaixo, apresento dados retirados de Gabas Jr 2002 (página 261) contendo marcadores evidenciais em diferentes tipos sentenciais: (1) Sentença declarativa (2) Sentença interrogativa (3) Sentença focal (4) Sentença focal com foco negativo (5) Sentença predicativa adjetiva

miririy i=matẽra-t nãnin sapo 3=CAUS-perder-se-IND1 EVID8 'O sapo certamente faz com que nós nos percamos.' kõm aʔ=cet menəә como 3SG=nome EVID9 'Como será o nome dele?' nãn mã át aʔ=wĩ-m menəә o.quê INSTR 3SG 3SG=matar-IND2 EVID9 'Com o que será que ele matou ele? maʔwit iʔke aʔ=top-t təә homem NEG 3SG=ver-IND1 EVID3 'Claramente, não foi o homem que viu ele.' pã́ t=tem át topəә

bonito=ADVZ 3SG EVID2 '(Eu vi que) ele é bonito.' (6) Sentença predicativa nominal agoáʔpəәt aʔ=nã-n igã pajé 3SG=COP-IND1 EVID6 'Ele deve ser o pajé.' Tabela 2. Ocorrências de evidenciais em diferentes tipos sentenciais

A colocação de um evidencial numa construção imperativa resultaria em uma sentença agramatical em Karo: interessa-nos, agora, refletir sobre o porquê disso. De acordo com Benveniste, a subjetividade diz respeito à "capacidade do locutor para se propor como 'sujeito'. (...) É 'ego' que diz ego" (Benveniste, 1995: 286). O fundamento da subjetividade na linguagem seria, portanto, determinado pela categoria linguística de "pessoa": "eu" e "tu", os parceiros da comunicação verbal. O "ele" estaria fora da relação pessoal "eu-tu", correspondendo à não-pessoa. Quanto aos pronomes, teríamos dois tipos de correlação: a "correlação de personalidade" (Benveniste, 1995: 254), referente à oposição "eutu /vs./ ele" (pessoa /vs./ não-pessoa), e a "correlação de subjetividade" (Op. cit.: 255), referente à oposição "eu /vs./ tu" no interior da categoria de pessoa (pessoa-eu /vs./ pessoa não-eu). É a correlação de subjetividade, particularmente, que mais nos interessa. Nela, temos o "eu" como interior ao enunciado e exterior ao "tu": "poder-se-á, então, definir o tu como a pessoa não subjetiva, em face da pessoa subjetiva que eu representa" (Op. cit.: 255). E de que forma podemos relacionar tais questões ao problema aqui levantado? No capítulo "A filosofia analítica e a linguagem" (1995), Benveniste traz considerações interessantes acerca do imperativo, ao opor-se aos filósofos de Oxford, em especial Austin, que propõe que qualquer enunciado pode vir a ser um performativo, a depender da situação de seu proferimento: "Austin classifica como performativos os enunciados concebidos no imperativo: 'Dizer feche a porta é claramente tão performativo quanto dizer ordeno-lhe que a feche'." (Benveniste, 1995: 303). Para o linguista francês, um enunciado só é performativo se denominar o ato performador, devendo, para tal, ater-se a uma determinada "fórmula que contém o verbo na primeira pessoa do presente: 'Declaro encerrada a sessão, - 'Juro dizer a verdade.'" (Op. cit.: 303; grifo nosso). Embora o imperativo possa resultar em uma ação, ele não se adequa à "fórmula" descrita acima, justamente pela ausência da primeira pessoa ("pessoa subjetiva" ou "pessoa-eu"), logo, não é um performativo. Interessa-nos mais a ausência de primeira pessoa no imperativo do que o fato de ele não ser um performativo. Benveniste mostra que a subjetividade na linguagem é expressa pela categoria de pessoa, e mais especificamente pela "pessoa-eu" ou "pessoa subjetiva" ("É 'ego' que diz ego."), que se opõe à "pessoa não-eu" no interior da correlação de subjetividade. Ora, o

imperativo caracteriza-se justamente pela ausência da expressão de 1ª pessoa, como em "Tire os pés da mesa (você!)" ou em "Me vê dois pães (você)?", etc., em que se ressalta a 2ª pessoa, ou seja, a quem o "comando" (ordem ou pedido) se dirige. Assim, ao passo em que a pessoa subjetiva é omitida, a pessoa não subjetiva é ressaltada. O evidencial, por sua vez, pode ser considerado um marcador de subjetividade, na medida em que traz informações atinentes ao sujeito falante enunciador da proposição. Isso vai ao encontro do que diz Aikhenvald sobre os sistemas de evidenciais: "When used with a first person subject, the non-visual, non-firsthand evidentials and reported evidentials in systems of varied types may acquire additional meanings to do with lack of intention, control awareness and volition on the part of the speaker. Verbs covering internal states may require obligatory evidential choice depending on person. As a result, evidentials may acquire the implicit value of person markers." (Aikhenvald, 2007: 212; grifo nosso). Na sentença em (1), por exemplo, em que o evidencial nãnin foi utilizado, o interlocutor tem acesso ao (alto) grau de confiabilidade que o falante tem em relação ao que enuncia. Dessa forma, há contextos específicos em que os evidenciais devem ser utilizados: contextos em que ou a intenção do falante (categoria da confiabilidade) ou a forma de obtenção da informação pelo falante (categoria de modo, evidência ou inferência) emergem. De qualquer forma, os evidenciais carregam informações acerca do sujeito que diz "eu", na medida em que nos dizem como ele sabe o que sabe (via evidência? via inferência?), ou como ele se sente em relação ao que sabe (o quanto o sujeito confia na proposição que enuncia). Conclusão Um imperativo "não é [um] enunciado pois não serve para construir uma proposição com verbo pessoal" (Benveniste, 1995: 303; grifo nosso). Isso fica bastante claro na impossibilidade de sentenças imperativas com o verbo conjugado na 1ª pessoa. É impossível atribuir uma leitura de ordem, por exemplo, a sentenças como *Vou sair da minha casa! ou *Tiro os pés da mesa! (os asteriscos indicam a inaceitabilidade de leituras imperativas). Tendo-se em vista que os evidenciais carregam informações contextuais pertinentes única e exclusivamente ao falante (quem diz "eu"), a impossibilidade de co-ocorrência do evidencial com o modo imperativo talvez se deva ao fato de que tal marcador só possa incidir sobre uma proposição com verbo pessoal, nos termos de Benveniste. Olhando para as sentenças de (1) a (6), é possível vertê-las para a 1ª pessoa sem prejuízo à proposição. Assim, se em (6), por exemplo, transformarmos 'Ele deve ser o pajé' em 'Eu devo ser o pajé', a proposição (ser o pajé (alguém)) é mantida. Em (5), o mesmo

ocorre: '(Eu vi que) ele é bonito)' > '(Eu vi que) eu sou bonito' - a proposição (ser bonito (alguém)) é mantida. Em uma sentença imperativa, como Tire os pés da mesa!, nós não temos uma proposição como (tirar os pés da mesa (alguém)), pois o imperativo diz respeito a um desejo do falante, e não à descrição uma situação do mundo. De maneira semelhante a Benveniste, salvaguardadas as especificidades de cada autor, e as diferenças entre eles, G. Frege, em "On Sense and Reference", ao falar sobre o imperativo, afirma: "such a clause has not reference but only a sense." (Frege, 1892: 05). Não possuindo referência (verdadeiro ou falso), a sentença imperativa não possui um pensamento completo, uma proposição, cujo valor de verdade possa ser avaliado: "A command, a request, are indeed not thought" (Op. cit.: 05). Assim, não havendo proposição sobre a qual o evidencial possa incidir (lembrar que o evidencial diz qual a fonte da informação, mas para isso, é necessário que haja uma informação - a ser veiculada por uma proposição) a ocorrência do imperativo com esse tipo sentencial acarreta agramaticalidade. A partir do que foi exposto, é possível notar que a evidencialidade é um fenômeno que desafia uma separação rígida entre níveis de análise linguística, em especial entre a Semântica e a Pragmática. "A pragmática (...) [é] a maneira como o signo expressa seu utilizador (enquanto a semântica investiga (...) a maneira como o signo denota seu objeto)." (Parret, 1976: 28). Ainda, "a pragmática (...) pressupõe o sujeito em discurso" (Op. cit.: 26; grifo nosso). Se por um lado os evidenciais são uma categoria gramatical fechada cujo significado restringe-se a determinadas opções (dez ou onze, em Karo), ou seja, denota um tipo específico de "objeto" (fonte da informação ou grau de confiabilidade), tal objeto refere-se, justamente, à maneira pela qual o falante faz uso da língua, considerando-se que os evidenciais são marcas de subjetividade. Embora a restrição ao uso de evidenciais em sentenças de tipo imperativo seja verificada em muitas línguas (ver Introdução), algumas atestam tal co-ocorrência, cujos dados podem ser verificados no livro "Studies in evidentiality". Na língua Tariana, "of the nine imperatives in Tariana, only one - secondhand - has an evidential type of meaning" (Aikhenvald, 2007: 146). Em West Greenlandic, o enclítico evidencial de tipo citativo pode aparecer com imperativos expressando comandos indiretos (Fortescue, 2007: 295). É curioso notar que mesmo quando há ocorrência de evidenciais com o imperativo, seu uso é restrito (Tariana), ou possui características de marcador de discurso indireto (West Greenlancid) - que ocorre em línguas que não necessariamente possuem sistemas de evidenciais. De qualquer forma, nossa análise, embora aponte possíveis explicações para a ausência de evidencialidade em contextos imperativos, como ocorre em Karo, não consegue explicar

por qual motivo algumas línguas permitem essa possibilidade, mesmo que de maneira limitada. Acreditamos que a possibilidade de tal co-ocorrência possa estar relacionada ao tipo de evidencial que acompanha o imperativo, que por sua vez não "aceitaria" qualquer tipo de marcação evidencial. No entanto, apenas através de um levantamento exaustivo de dados das línguas do mundo (que aceitem evidenciais junto ao imperativo) poderíamos fazer alguma conclusão mais precisa. Referências Aikhenvald, A. Y. Information source and evidentiality: what can we conclude? Rivista di Linguistica. 19.1, p. 209-227. 2007. Aikhenvald, A. Y. & Dixon, R. M. W. (organizadores). Studies in Evidentiality. John Benjamins Publishing Company. Amsterdam/Philadelphia. 2003. Benveniste, E. Problemas de Linguística Geral I. trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri; revisão do Prof. Isaac Nicolau Saluum. 4ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1995. Frege,

G.

On

sense

and

reference.

12

páginas.

Consulta

online

in:

http://en.wikisource.org/wiki/On%20Sense%20and%20Reference?oldid=4276834 Gabas Jr, N. Evidenciais em Karo. In Atas do I Encontro Internacional de Grupos de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL. Tomo I. Brasília. 2002. Parret, H. Enunciação e Pragmática. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1976.

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