ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INFLUÊNCIAS DO MARXISMO NA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN: APORTES PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

June 6, 2017 | Autor: C. Loureiro | Categoria: Environmental Education
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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INFLUÊNCIAS DO MARXISMO NA TEORIA DA COMPLEXIDADE DE EDGAR MORIN: APORTES PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO* ALINE VIÉGAS** RESUMO No presente artigo travamos um debate sobre as influências do materialismo históricodialético de Karl Marx na trajetória pessoal e intelectual de Edgar Morin e nos fundamentos originais de sua teoria da complexidade. Metodologicamente, o artigo faz uma revisão bibliográfica, tomando como base de reflexão textos do pensador francês. A teoria da complexidade moriniana tem sido muito utilizada na pesquisa em educação ambiental, porém, na maioria das vezes, é apresentada de forma fragmentada, anistórica, carecendo de um debate crítico sobre sua construção e utilização. Nesse texto, temos o objetivo de levantar elementos que recuperem o viés histórico-crítico da teoria da complexidade moriniana com o sentido de promover a reflexão sobre o diálogo possível entre ambas as formulações teóricas, trazendo novas possibilidades para a pesquisa em educação ambiental, principalmente a que busca referência na tradição crítico-marxista e no pensamento complexo. PALAVRAS-CHAVE: Edgar Morin – Karl Marx – complexidade – materialismo histórico-dialético – educação ambiental ABSTRACT CONSIDERATIONS ABOUT THE INFLUENCE OF MARXISM ON EDGAR MORIN’S THEORY OF COMPLEXITY: CONTRIBUTIONS TO RESEARCH INTO ENVIRONMENTAL EDUCATION This paper reports a debate on the influence of Karl Marx’s historical and dialectic materialism on Edgar Morin’s personal and intellectual trajectory and on the original principles of his Theory of Complexity. As for the methodology, this study is a bibliographical review based on the French scholar’s texts. Although Morin’s Theory of Complexity has been widely used in Environmental Education research, it has usually been presented in a fragmented way, with neither a historical link, nor a critical debate on its construction and use. Therefore, this paper aims at collecting elements which can bring back the historical and critical view of Morin’s Theory of Complexity and trigger reflection upon the possible dialogue between both theoretical formulations, so that new possibilities for research in Environmental Education may arise, mainly the one that refers to the critical-marxist tradition and to complex thought. KEY WORDS: Edgar Morin; Karl Marx; Complexity; Historical and dialectical Materialism; Environmental Education.

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Doutor em Serviço Social/UFRJ. Professor PPGE e Eicos/UFRJ; colaborador PPGEA/FURG. E-mail: [email protected]. ** Doutora em Ecologia Social - Programa EICOS/UFRJ. Professora do Colégio Pedro II / RJ. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO Esse é um texto gerado a partir de uma necessidade criada no exercício teórico-prático da educação ambiental: a busca de uma compreensão complexa da realidade em seu movimento dinâmico e contraditório. Essa busca nos aproximou da teoria-método da complexidade de Edgar Morin, mas tendo como orientação, principalmente do ponto de vista ontológico e político-epistemológico, o materialismo histórico-dialético de Karl Marx. A partir dessa aproximação utilizada no pensar-fazer da educação ambiental, na busca pela materialização de uma educação ambiental crítica nos múltiplos espaços pedagógicos (LOUREIRO, 2012) e no diálogo com autores como Piva (2005), compreendemos a importância de se conhecer um pouco mais sobre as influências do pensamento marxista na trajetória pessoal/intelectual de Edgar Morin. Esta, cabe destacar, não é a única influência filosófica e política em Morin que, principalmente em suas obras mais recentes, traz aportes de autores de campos clássicos da filosofia da ciência e das abordagens pragmático-linguísticas. Contudo, é indiscutivelmente um dos “pilares” constitutivos de seu pensamento, com forte peso no momento de formulação das premissas de sua teoria da complexidade. Podemos encontrar em Loureiro (2012a) elementos que corroboram a importância desse debate, no sentido de um resgate das bases do pensamento moriniano, tanto para compreendermos as várias influências e a densidade teórica desse pensador francês, quanto para situá-lo historicamente em um momento de grande efervescência e questionamentos no debate intelectual francês. Contextualizar as inquietações originais de Morin nos parece, portanto, relevante para os que o citam e dialogam com seu pensamento no âmbito da pesquisa em educação ambiental. (...) conceitos significativos do pensamento complexo moriniano podem

ser situados entre os finais das décadas de 1950 e 60. Contudo, o campo ambientalista brasileiro o absorveu como se ele e sua obra tivessem sido construídos ontem, retirando-o do contexto em que se insere e que permite compreendê-lo de forma mais profunda. É preciso que essa informação seja recuperada para situá-lo e entender com quem dialoga e o que nega para dar nexo e densidade aos conceitos que são apropriados como verdades em si mesmas – o que seria negar o próprio método do autor. (LOUREIRO, 2012a, p. 111)

Do ponto de vista metodológico, realizamos uma revisão bibliográfica sobre esse diálogo Marx e Morin, a partir do segundo, uma vez que buscamos discorrer sobre a presença do marxismo no pensamento complexo moriniano. Nesse sentido de um aprofundamento da compreensão da teoria da complexidade, resgatando o contexto histórico de sua produção e as influências do materialismo histórico-dialético na sua construção, não encontramos muitas bibliografias para consulta. Quando tentamos resgatar essas influências, reforçamos mais uma vez, não estamos menosprezando outras e nem desconsiderando a força delas na construção teórica moriniana, pois reconhecemos o quanto Morin é um intelectual aberto aos debates sobre ciência e filosofia de meados do século XX; mas resgatamos o viés histórico-crítico de seu pensamento a partir das influências da teoria marxista em sua trajetória pessoal/intelectual, principalmente antes da escrita dos Métodos. E este esforço se mostra justificável diante do uso recorrente de autores complexos e críticos na produção teórica em educação ambiental. Para tanto, nos basearemos em duas referências bibliográficas morinianas que consideramos de suma importância: Em busca dos fundamentos perdidos: textos sobre o marxismo (MORIN, 2004) e Meus demônios (MORIN, 1997b). A primeira delas

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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012 foi organizada por Edgar de Assis Carvalho e Maria Lúcia Rodrigues, contendo uma coletânea de cinco textos de Edgar Morin, sendo três deles datados entre 1957 e 1962, um de 1963 e outro dos anos 1980; esses textos – principalmente os quatro primeiros – mostram muitas das reflexões de Morin sobre a teoria de Marx e os ‘marxismos de seu tempo’, antes da escrita dos quatro primeiros tomos dos Métodos (MORIN, 1991, 1996, 1997a, 1999b). Esse livro também contém um prólogo de Edgar Morin, datado de 2001e intitulado de Caminhos Marxianos, que é um texto muito importante dentro desta discussão por ser um olhar mais atualizado de Morin sobre os cruzamentos entre sua trajetória e a teoria de Marx. Já a segunda referência listada tem uma importância ímpar por ser uma autobiografia, em que Morin narra sua vida intelectual inseparada de sua vida cotidiana, estabelecendo a relação entre suas inquietações pessoais e intelectuais. Porém, além das leituras desses textos de Edgar Morin, dois textos – um de Maria Lúcia Rodrigues e outro de Edgar de Assis Carvalho (encontrados em MORIN, 20041) – nos trouxeram muitas certezas sobre a importância e a necessidade de conhecermos um pouco do “marxismo de Edgar Morin”2; já que passamos a entender o quanto esse conhecimento nos auxiliaria na compreensão desse pensador francês. A partir da leitura desses textos, começamos também a nos interessar por buscar, no Método I, toda e qualquer citação de Morin ou todo e qualquer aspecto na construção de sua teoria da complexidade que mostrasse a influência de Marx em sua trajetória intelectual. Passamos a perceber, 1

Os textos são: Derivações sobre o Marxismo (Pretexto de Maria Lúcia Rodrigues) e A complexidade do homem genérico (Prefácio de Edgar de Assis Carvalho). Esses textos foram produzidos a partir dos trabalhos do grupo de pesquisa “Estudos sobre o Pensamento Marxista em Edgar Morin” (1999-2001, sob a coordenação da Profª Maria Lúcia Rodrigues), que deu origem a esse livro. 2 Colocamos esta expressão entre aspas, pois a retiramos de uma afirmação de Maria Lúcia Rodrigues em Derivações sobre Marxismo – Pretexto. In: MORIN, 2004, p.11). Por isso toda vez que citarmos essa expressão nesse texto, a colocaremos entre aspas.

claramente, que Edgar Morin nunca negou Marx e que os escritos do pensador alemão sempre foram para ele fonte de inspiração para novas reflexões. Mas, como intelectual inquieto, profundamente crítico de todo marxismo dogmático, esquemático e cristalizado, muito comum no marxismo francês de sua época de jovem militante e intelectual (BENSAID, 1999), Morin os utiliza como fonte para fazer progredir uma tradição de pensamento na qual se insere, ao afirmar-se humanista, socialista e internacionalista, mesmo que esse caminho necessitasse de duras críticas aos ‘marxismos de seu tempo’, levando-o a rupturas e posições divergentes, independentemente de serem vistas como acertadas ou não. (...) creio que existem em Marx, no método de Marx, todas as possibilidades para colocar questões verdadeiramente decisivas aos diferentes marxismos que se enrijeceram. Neste sentido, considero que há um recurso necessário: recurso ao método, retorno ao espírito de Marx como ataque crítico ao sistema marxista. (Texto: Marxismo e Sociologia, 1963. In: MORIN, 2004: p. 86)

E, no sentido de ratificar a importância de reconhecermos e conhecermos o “marxismo de Edgar Morin”, deixaremos aqui registrada uma opinião de Maria Lúcia Rodrigues: Observava e admirava em Edgar Morin seu contundente “marxismo”, sério e liberto. (...). Surpreendia-me aquele “marxismo” integrador, como autodenomina, não exclusivo nem excludente, responsável talvez pela formação de seu espírito contestador que admite o inconcebível como condição para se alçar o criativo, para conservar a tolerância, manter a esperança e uma racionalidade iluminada. Tecida pela dúvida, esta racionalidade aberta que aceita limites e abriga contradições consagra-se na elaboração de sua teoria da complexidade. (Pretexto: Derivações sobre o Marxismo, 2001. In: MORIN, 2004, p. 7, aspas e grifos da autora). Carlos Frederico B. Loureiro e Aline Viégas | 15

NAS TRILHAS DE KARL MARX... Apesar de ser comum ouvirmos críticas a Edgar Morin que afirmam ser ele um pensador ‘que rompeu com o marxismo’ ou mesmo ‘que nega a teoria de Marx’, não é exatamente isto que observamos quando lemos os escritos do pensador francês sobre o tema em questão. Observamos sim (em texto datado de 1963) que Morin faz uma distinção bem clara entre o pensamento de Karl Marx e os ‘marxismos de seu tempo’ – enquanto sistematizações do pensamento de Marx e escolas de pensamento crítico, que apreenderam Marx de formas muito diferenciadas e por vezes com poucos pontos em comum na compreensão de mundo e na ação política de esquerda. Vemos também que ele não omite seu posicionamento pessoal/intelectual diante das diversas apropriações do pensamento de Marx. Quando se diz “o marxismo” parece tratar-se de um conceito monolítico e aproximativo. (...). Creio que uma primeira distinção se impõe: de qual marxismo se fala? Direi em primeiro lugar que não vou privilegiar de antemão nenhum marxismo, o que significa, bem entendido, que não vou privilegiar o marxismo que tem o poder, pois acredito que seja antimarxista considerar como o verdadeiro marxismo aquele que tem o poder. (...) Então, simplesmente formulo a pergunta: o que é um marxismo? Em outras palavras, qual o traço comum aos marxismos? Um marxismo é um compromisso estabilizado entre o método de Marx e uma sistematização que pretende ser a autêntica expressão do conjunto das idéias, teses e conclusões de Marx. Por isso afirmo que em todo marxismo há uma ambivalência interna entre um sistema ou uma doutrina, por um lado, e um método, por outro. (Texto: Marxismo e Sociologia, 1963, aspas do autor. In: MORIN, 2004, pp. 73 e 74).

Com o objetivo de se despir dos sistemas marxistas enrijecidos nos “ismos” e partir em busca da construção de uma nova

compreensão de mundo, Morin seguia a trilha do que apontava como “o método de Marx”, “o conjunto das ideias, teses e conclusões de Marx”; entendendo o pensamento dialético desse intelectual alemão como não-simplificador e nãoreducionista. Trilha partilhada por muitos intelectuais e militantes socialistas e comunistas que, mantendo Marx como principal referência ou deste se distanciando (ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980), buscaram renovar o materialismo históricodialético, livre das amarras de partidos e dogmas estalinistas que bloquearam o poder explicativo e transformador do campo marxista (BUEY, 2004). Além disso, Morin, em sua crítica aos “ismos”, observava também que o pensamento marxiano não é linear, nem etapista, posto que dialético, contraditório e onde o ser social se constitui no próprio movimento de produção social e histórica da existência (LUKÁCS, 2010), sendo composto por um conjunto de ideias articuladas que ele considera como sendo ‘um complexo’: Marx reuniu uma teoria materialista e dialética do real, uma teoria do devir histórico da humanidade, uma teoria da práxis, isto é, da relação entre a teoria, o pensamento, a ação e a realidade; depois, uma teoria do proletariado revolucionário e, enfim, uma teoria socialista que é a sociedade do futuro. Digo “enfim”, mas poderíamos acrescentar outros elementos. Esquematizo, mas este esquema já indica que o núcleo marxiano não é uma idéia, porém um conjunto de articulações, com diversas partes, todas elas interdependentes no sistema de Marx. O pensamento de Marx é um complexo e, de resto, os marxismos diferenciam-se ou se petrificam na medida em que cada um escolhe uma parte do pensamento de Marx e deixa outra na sombra. (Texto: Marxismo e Sociologia, 1963, grifos do autor. In: MORIN, 2004, p. 87).

Tanto por intermédio do reconhecimento de Marx como um pensador

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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012 que enxergou a complexidade do real, quanto por meio da crítica às apropriações feitas ‘pelos marxismos’ que mutilavam o núcleo do pensamento marxiano, podemos entrever o reconhecimento de Morin sobre a existência de uma lógica complexa na dialética de Marx. A questão é que Edgar Morin, no contexto de efervescência política e intelectual, não para nesse reconhecimento: utiliza o pensamento de Marx como ponto de partida na tentativa de compreender o real, de onde surgem as reflexões críticas desse autor sobre a tradição do materialismo histórico-dialético, tentando fazê-lo avançar pelo diálogo com as novas descobertas da ciência do século XX e que são compatíveis com os fundamentos da dialética histórica e materialista (CASANOVA, 2006). Percebemos também que a ideia comentada por Morin, na primeira parte da citação anterior3, é a base paradigmática que ele persegue durante toda a construção teórica efetuada ao longo do Método I – no sentido de superar um pensamento simplificador-reducionista – e, logo, tenta caminhar nessa base por intermédio de um diálogo transdisciplinar com outros pensadores e com as ciências do século XX. Portanto, se esta é a base de toda a reflexão moriniana, é aí, no pensamento de Marx, que ele encontra o gérmen para a construção do que ele denomina “pensamento complexo”. Podemos observar que até mesmo a busca moriniana pelo diálogo entre filosofia e ciência (da sua época) é inspirada em Marx: Meu marxismo era de fato o de um hegeliano-marxista no sentido de que ele não rompia com a filosofia (diferentemente de Naville e depois Althusser), mas não permanecia somente na filosofia (como Lefèbvre ou Sartre): procurava alimentar-se das ciências, isto é realizar um trânsito constante entre “Marx reuniu uma teoria materialista e dialética do real, uma teoria do devir histórico da humanidade, uma teoria da práxis, isto é, da relação entre a teoria, o pensamento, a ação e a realidade; (...)” (loc.cit.). 3

ciência e filosofia. Sou fiel, mais que nunca, a esta concepção e toda a minha obra tenta ilustrá-la e desenvolvê-la. (Prólogo de Edgar Morin, 2001. In: MORIN, 2004, p. 20).

Inclusive, podemos constatar que os conceitos de práxis e totalidade existentes no materialismo histórico-dialético de Marx eram fontes geradoras para novas reflexões e construções teóricas: O gênio de Marx deve-se ao fato de, no que nomeava práxis, ter querido associar, entrefecundar, entredilacerar a filosofia, a ciência e a ação. (...) A tarefa primeira de todo pensamento que aspira à totalidade não é buscar a unidade nesta contradição de três faces? Não é buscar esta contradição de três faces na aparente unidade antropológica? É neste sentido que deveríamos partir em busca de novas verdades. Poderemos, saberemos alcançálas? (Texto: O além-filosófico de Marx, escrito entre 1957-1962, grifos do autor. In: MORIN, 2004, pp. 57 e 59).

Conforme expusemos em outra oportunidade (LOUREIRO e VIÉGAS, 2008a), a práxis na tradição marxista, pode ser entendida como atividade intencionada intersubjetiva que revela o humano como ser criativo, social e autoprodutivo – ser que é produto e criação de sua atividade no mundo e em sociedade. É ato, ação e interação. É pela práxis que a espécie se torna gênero humano, assim, junto com suas objetivações primárias de ação metabólica transformadora da natureza (trabalho), o ser social se realiza nas objetivações (materiais e simbólicas) da ciência, da arte, da filosofia, da religião etc. A práxis compreende a decisão teórica tanto quanto a decisão da ação – a atividade com projeto, política com exploração do possível e projeção do futuro. Na dialética marxista, práxis (momento ético-político e comunicativo-dialógico) e trabalho (produção) são indissociáveis, sendo mesmo o segundo um momento (determinante) do primeiro. Resumidamente, práxis “significa Carlos Frederico B. Loureiro e Aline Viégas | 17

um modo de agir no qual o agente, sua ação e o produto de sua ação são termos intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros, não sendo possível separá-los” (CHAUÍ, 2006, p. 23). A totalidade a partir da dialética marxiana não pode ser confundida com a concepção de conjunto completo dos elementos que constituem uma realidade (associado a um todo absoluto, lógico e/ou estático), mas remete a um conjunto estruturado de relações mutuamente determinadas e mediadas, que formam uma unidade que me permite compreender algo. Como a realidade é movimento na/da história, reconstruída pela ação prática e transformadora dos seres humanos (em suas múltiplas mediações que nos constituem como indivíduos: família, grupos sociais com os quais nos relacionamos e criamos identidades, tempo histórico, classe social etc.), a ideia de totalidade também transborda para “a forma de ver/enxergar” esta realidade, ou seja, transborda para a subjetividade e para um método (no sentido de modo pelo qual concebemos a realidade). Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social (enquanto elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade, é que o conhecimento dos fatos se torna possível enquanto conhecimento da realidade. Esse conhecimento parte daquelas determinações simples, puras, imediatas e naturais [...] para alcançar o conhecimento da totalidade concreta enquanto reprodução intelectual da realidade. Essa totalidade concreta não é de modo algum dada imediatamente ao pensamento. (LUKÁCS, 2003, p. 76).

Alguns críticos poderiam apontar que esta ideia de totalidade se esvai em sua concretude, caindo novamente em um idealismo, mas Lefebvre (1975, p. 98) nos esclarece que o pensamento marxista dialético admite “a relatividade de nossos conhecimentos, não no sentido de uma negação da verdade objetiva, mas no sentido

de uma perpétua superação dos limites do nosso conhecimento”, sendo este movimento de superação a própria práxis humana. Ainda comentando sobre as reflexões de Edgar Morin a partir da ‘essência do pensamento de Marx’, o pensador francês aponta que o período em que participou da revista Arguments4 foi muito rico para as suas indagações ante os ‘marxismos de seu tempo’. Sobre a influência direta de Marx em sua trajetória intelectual, Morin, fazendo referência a alguns textos que escreveu nesse período5, comenta: Estes textos têm início na época de “Arguments”, quando o fato de adotar ou rejeitar o rótulo de marxista me parecia secundário. Entretanto, não houve então rupturas relativamente à época anterior em que me reconhecia marxista. Com efeito, meu marxismo era singularmente aberto, (...). Entretanto, cada vez mais fui percebendo que Marx tornava-se para mim uma estrela, de primeira grandeza certamente, mas em meio a outras, numa rica constelação de pensadores tanto passados quanto contemporâneos. (Prólogo de Edgar Morin, 2001. In: MORIN, 2004, pp.19 e 20).

Nessa citação, é possível observar que Morin não rompeu com o pensamento de Marx, mas, ao contrário afirma que seu marxismo permanecia vivo, porém aberto, de forma que reconhecia as diversas contribuições de outros pensadores em suas reflexões e novas reorganizações intelectuais. Ademais, afirma claramente que Marx o influenciava como sendo uma “estrela de primeira grandeza”, como o Sol que banha e nutre a fecundidade da Terra. 4

Arguments foi uma revista originalmente publicada no período de 1956-1962 e “criada por um grupo de amigos marxistas e comunistas (Morin, Colette Audry, Jean Duvignaud, entre outros), com a finalidade de produzir um debate, uma tribuna de discussão para criticarem as próprias ideias, oporem-se uns aos outros, prática que realizavam pouco, mesmo no interior do partido comunista que integravam na época.” (Pretexto de Maria Lúcia Rodrigues, 2001. In: MORIN, 2004, p.9). 5 Os textos comentados são: Dialética e ação, O AlémFilosófico de Marx e Fragmentos para uma antropologia. (MORIN,2004, sumário).

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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012 Em Meus demônios, Morin aprofunda um pouco mais essa discussão comentando sobre as três “reorganizações genéticas” (MORIN, 1997b, p. 189) na sua trajetória de vida/na sua forma de pensar, sendo que a primeira delas parte do que ele denomina “uma primeira concepção de mundo” (ibidem, p. 190), em que ele retorna ao período de 1941-436. Sobre as influências desse período, ele comenta: “foi a leitura de Hegel, vitalizada e marxizada (...) que me forneceu um núcleo de ideias fundamentais associadas umas às outras” (loc.cit.). É por meio da leitura de Hegel que Morin consegue extrair a essência da dialética marxiana. Morin comenta que leu Hegel “em circunstâncias ao mesmo tempo universitárias (...) e extra-universitárias – a pressão da guerra” (ibidem, p. 56) – e que, naquele momento social e politicamente difícil, foi um deslumbramento descobrir que a “contradição estava no fundamento do ser” (loc.cit.). Aponta que ler Hegel e compreender a essência da contradição em Marx – que anteriormente compreendia a partir de leituras marxistas mais voltadas para o campo da política da época7 – veio ao encontro de suas necessidades de compreensão das “carências e lacunas do sistema stalinista” (loc.cit.). Portanto, quando falamos do “marxismo de Edgar Morin”, não podemos deixar de considerar o contexto históricosocial e o ‘marxismo de seu tempo’ que banham as críticas do pensador francês. Nesse ponto, Morin é bem enfático ao afirmar que a leitura de Hegel lhe 6

Achamos importante indicar que, como Morin nasceu em 1921, nessa época, o autor estava com 20 e poucos anos. 7 Morin começa a se sentir impelido a se situar politicamente, a partir de 1937, aos 16 anos, tomando contato, logo depois, com algumas tendências socialistas francesas e conhecendo o marxismo através de Georges Delboy que lhe demonstrava o marxismo como “a verdadeira fonte do conhecimento das realidades humanas, e que ele permite fundar, neste conhecimento a esperança de um mundo melhor” (MORIN, 1997b, p. 28). Após, com a iminência da guerra, que trazia elementos histórico-sociais muito particulares, ele se autodenomina como “comunista de guerra”, até 1946, quando começa a operar nele uma resistência radical ao Partido e diz iniciar em si a segunda reorganização genética. (ibidem, pp. 225, 226 e 194).

possibilitou retomar muitos aspectos essenciais do pensamento de Marx que se perderam naquele tempo: Hegel me revela uma visão da verdade que respondia a minha necessidade: era falsa toda idéia fechada, cristalizada, abstrata, separada da totalidade de que faz parte; mas toda idéia falsa era verdadeira, na medida em que exprimia uma parcela da totalidade. A verdade era a totalidade, mas como a totalidade estava sempre em movimento, sempre inacabada, a verdade estava em marcha ininterrupta, fazendo-se e desfazendo-se. A dialética era o esforço para aderir a este movimento próprio da totalidade, enfrentando e assumindo as ideias contrárias, fazendo explodir suas gangas, entrefecundando-as para que brote uma “síntese” que as exceda, ao mesmo tempo que as integre... A idéia mágica de exceder me empolgava. (...) Eu podia, a partir de então, assumir com felicidade minhas contradições, enfrentá-las e, enfim e sobretudo – aqui Marx e Hegel eram indissoluvelmente complementares – superá-las na prática revolucionária e por ela. (MORIN, 1997b, pp. 56 e 57).

Essa citação aponta, com clareza, alguns dos fundamentos marxianos que serviram de base para a construção da teoria-método da complexidade. A ideia hegeliana da existência ontológica das contradições e a impossibilidade de negálas na apreensão do real – objetivada e historicizada por Marx – é o sustentáculo da busca de Morin por uma compreensão mais densa e complexa da realidade, levando-o à construção do conceito de sistemas complexos e de todo. Ao mesmo tempo, a ideia de que o pensamento dialético é todo o esforço humano no sentido de apreender o movimento da realidade (ao mesmo tempo contraditório e complementar) é o movimento de pensamento que Morin se esforça para construir/desenvolver no Método I – logicamente dialogando com outros pensadores e com a ciência de sua época.

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Portanto, mais uma vez, observamos que a influência da dialética de Hegel/Marx em Morin é paradigmática, influenciando a ‘sua forma de pensar’8. A nosso ver, até mesmo a denominação de sua teoria da complexidade como ‘Teoria-Método da Complexidade’ e a denominação de suas obras fundamentais como Os Métodos fazem parte dessa herança paradigmática. Essa denominação demonstra claramente que não existe teoria descolada de sua construção, construção esta que é também um método de apreensão da realidade e, portanto, com a existência de um sujeito histórico pensante9. Marx, apesar de não ter escrito um livro sobre um método ou uma teoria, tinha esse movimento de pensamento em que articulava método e teoria na execução de suas análises, sempre tendo um movimento reflexivo sobre eles quando obtinha novos elementos para tanto. “O que caracterizou Marx foi um espírito crítico radical ilimitado, um pensamento dialético sempre em movimento, foi privilegiar o movimento em oposição à essência enrijecida ou reificação” (MORIN, 2004, p.74). SEGUINDO OUTRAS TRILHAS A PARTIR DE MARX... Queremos esclarecer que, apesar de termos levantado uma discussão que evidencia alguns elementos do pensamento de Marx na trajetória intelectual de Morin, sabemos que este, ao longo de sua produção teórica, também se afasta dessa tradição. Um dos 8

Morin as utiliza como forças propulsoras do pensamento, criticando-as e tentando avançar sobre elas, sem negá-las. 9 No início do Método I, Morin, num item intitulado “O amétodo”, esclarece: “Entendamo-nos: não procuro aqui nem o conhecimento geral nem a teoria unitária. Importa, pelo contrário, e por princípio, recusar um conhecimento geral, pois este escamoteia sempre as dificuldades do conhecimento, isto é, a resistência que o real opõe à ideia; é sempre abstrato, pobre, “ideológico”; é sempre simplificador. (MORIN, 1997a, p.18, aspas do autor.). E, ao final deste tomo, Morin, num item intitulado “Do antimétodo ao método”, comenta: “Entrevemos desde já que se trata de fazer atuar um pensamento que comporta a sua própria reflexividade, que concebe os seus objectos, sejam eles quais forem, incluindo-se a si mesmo” (ibidem, p. 352).

exemplos mais citados sobre tal afirmação é o fato de que Morin substitui o termo dialético/dialética pelo que denomina dialógico/dialógica. Sobre essa questão, podemos perceber que Morin parte do pensamento dialético marxiano na tentativa de compreender as relações entre o pensar e o agir humanos, nos alertando para a necessidade de compreendermos, dialeticamente, Marx (aguçando uma crítica em nossa forma de compreendê-lo): Marx parte da ruptura entre o pensamento e o vivido não para recolar os pedaços, mas para confrontá-los. Ele não reconcilia real e racional, combate tudo o que enrijece, atrofia, ou escapa à dialética do real e do racional. Marx, que suspeitava sempre do pensamento puro e da ética pura, remetia-os um ao outro. É preciso compreender dialeticamente este grande dialético: criticando um e outro é que permitia a dialética entre eles. (Texto: Dialética e ação, Escrito entre1957-1962. In: MORIN, 2004, pp. 36 e 37).

Porém, Morin, em seu movimento de formulação de uma nova teoria, reconstrói muitos conceitos que serviram para ele como ponto de partida. Uma das reconstruções se opera em relação à dialética, em que o autor francês incorpora esse conceito à dialógica, a partir de uma discussão sobre: (1) a não existência de síntese superadora final (por não ser possível a superação de contradições, mas somente a mudança para um novo ‘patamar de contradições’)10; (2) a presença permanente da incerteza diante da ação/do conhecimento humanos no/ sobre o mundo; (3) a necessidade de entreabrir (ou retomar – tendo como base a ciência que trouxe a 10

Consideramos que, em relação a esse primeiro ponto de divergência entre dialética/dialógica, Morin não baseia tal diferenciação remetendo-se à dialética em Marx, mas sim às apropriações dessa tradição de pensamento no estalinismo e na versão hegeliana que ao colocar a determinação no sujeito coloca o momento possível da síntese última, algo impossível para a dialética materialista e histórica que, por colocar a determinação no mundo objetivado, tem que ser sempre aberta ao movimento ou significaria o fim da própria vida em sociedade.

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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012 incerteza para o fulcro da physis) a ideia da presença de um diálogo permanentemente antagônico, concorrente, mas também complementar entre os elementos que compõem uma ‘physis regenerada (como esta physis inclui a dimensão humana, esse diálogo também efetua-se entre o real e o racional), mostrando que “o conhecimento humano deve tentar negociar com a incerteza e que o objetivo do conhecimento humano não é descobrir o segredo do mundo ou a equação-chave, mas dialogar com o mundo” (MORIN, 1999a, p. 205). A partir dessas três discussões, observa-se que Morin não nega a dialética marxiana, mas a incorpora na ideia da dialógica, que traz, em seu bojo, a abertura para a autorreflexão do conhecimento humano. Essa não é uma discussão simples, que merece outro artigo para ser tratada especificamente. Contudo, alguns elementos adicionais devem ser ditos para que o leitor tenha noção da radicalidade dessa incorporação moriniana da dialética à dialógica. Esta, em Morin, não significou ruptura, mas superação e deslocamento. Porém, para toda uma tradição que coloca a condição da verdade no sujeito (e no discurso) e não na realidade objetivaobjetivada, a dialógica acaba por negar (não no sentido dialético, mas sim positivista) a dialética, uma vez que estabelece o movimento do conhecimento e da história fora das condições historicamente produzidas e situa estritamente no plano subjetivo ou intersubjetivo, o que permite não a relativização da verdade ao contexto histórico, como em Marx, mas sua redução ao relativismo subjetivista. Além disso, é polêmica a crítica feita por Morin tendo por referência os três aspectos indicados11 e, sem dúvida, essas 11

(1) a não existência de síntese superadora final (por não ser possível a superação de contradições, mas somente a mudança para um novo ‘patamar de contradições’); (2) a presença permanente da incerteza diante da ação/do conhecimento humanos no/ sobre o mundo; (3) a necessidade de entreabrir (ou retomar – tendo como base a ciência que trouxe a incerteza para o fulcro da physis) a ideia da presença de um diálogo permanentemente

afirmações geram apropriações bastante variadas do pensamento de Edgar Morin. Estes aspectos se mostram pertinentes enquanto crítica às leituras idealistas ou mecanicistas da dialética, mas é muito pouco razoável afirmar que Marx apresente tais limites, mesmo que nele se encontrem passagens dúbias e imprecisas sobre o tema. De qualquer forma, é bom recordar que a dialética, afirma princípios12 como: contradição e unidade de contraditórios (antagonismo, interpolação e complementariedade de opostos)13, superação (transcendência na imanência, negação, incorporação e inovação, continuidade e criação na complexificação da materialidade da vida – SAMPAIO e FREDERICO, 2006; MÉSZÁROS, 2006), totalidade (princípio da inter-relação formando conjuntos auto-organizados e estruturados), transformação (princípio do movimento universal), historicidade, entre outros (BORNHEIM, 1977; FOULQUIÉ, 1978; KONDER, 1997). Mas, diante do objetivo do artigo, a principal linha de argumentação é que ao fazer certas críticas e deslocamento, consideramos que Morin utiliza o pensamento de Marx, mas também se distingue deste. Loureiro (2009, p.106) comenta, com muita propriedade, que muitos pensadores “pós-modernistas”14 antagônico, concorrente, mas também complementar entre os elementos que compõem uma ‘physis regenerada. 12 Falamos em princípios e não em leis, pois a dialética, ao ser um método que busca apreender, mesmo que sempre parcialmente, o movimento da natureza, não pode incorrer na afirmação de leis universais e atemporais para se validar. 13 Devemos destacar este ponto, pois é comum na literatura ambientalista, em parte até entre os denominados ecossocialistas, reduzir a contradição em Marx a mero jogo de opostos antagônicos em disputa, em que um “vence o outro”, o que é uma abusiva simplificação, posto que ignora o elementar do conceito de superação dialética. Para o filósofo da práxis, a contradição engloba necessariamente os elementos mencionados no corpo do texto, situações de conexão e coerção que garantam a identificação do distinto e o movimento histórico, oposições extra-discursivas, contradições históricas e contradições sistêmicas; além de se referir, em casos específicos, a inconsistências lógicas (Bottomore, 2001, Fausto, 2002). 14 O autor esclarece que usa esta expressão entre aspas, pois a admite lexicalmente, mas considera o termo como “algo vago, inútil para a compreensão da sociedade vigente”.

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simplesmente “negam o marxismo em vez de superá-lo dialeticamente, o que seria integrá-lo de modo crítico”. Ainda nos apoiando nos comentários de Loureiro – “assim como ao tempo de Marx se fazia uma crítica a Hegel que não superava seu pensamento e sim re-introduzia problemas que ele já criticara, o mesmo ocorre hoje em relação à obra de Karl Marx” (loc.cit.) – consideramos que Morin traz algumas contribuições teórico-metodológicas que integram o núcleo do pensamento marxiano de modo crítico, enriquecendo/renovando, em alguns aspectos, o pensamento dialético. A questão citada anteriormente cria muitas controvérsias na apropriação das falas de Edgar Morin sobre o tema. Mas, essas falas se tornam mais claras quando as contextualizamos diante do breve histórico feito neste texto. Aqui utilizaremos uma das falas morinianas que consideramos das mais polêmicas: “Ultrapassei” Marx integrando-o e não desintegrando, ainda que esta integração necessite de um certo deslocamento da estrutura de conjunto que assegure a coerência do sistema. “Completei” Marx onde julguei que havia carência e insuficiência, mas indo além de um neo ou pós-marxismo: precisava elaborar aquilo que, a partir de 1980, pude chamar de pensamento complexo. A “ultrapassagem” do marxismo continua a ser uma das vias para chegar ao pensamento complexo. (Prólogo de Edgar Morin, 2001. In: MORIN, 2004, pp.20 e 21)

Sob uma perspectiva, a fala de Edgar Morin pode ser considerada de uma extrema autossuficiência, ou até mesmo de uma ‘certa petulância’ (com todo respeito a Edgar Morin, usamos essa palavra em seu sentido restrito: ousadia, atrevimento – sem nenhuma ironia). Por outra perspectiva, tal fala pode ser considerada como sendo de uma extrema clareza quando dita por um teórico que vive e se insere em seu turbulento tempo histórico, reconhecendo e recuperando conhecimentos/pensamentos

anteriores, os quais julga serem de fundamental importância. Dizemos isto, pois se pode interpretar as palavras “ultrapassei” e “completei” (escritas por ele entre aspas) como sendo uma desvalorização da produção teórica de Marx; porém, analisando o restante da fala de Morin, percebe-se que ele usa a primeira palavra exatamente no sentido que ela tem – ‘para chegar mais a frente necessitei passar por’. E essa tentativa de chegar mais a frente do que Marx fez no seu tempo (consideramos este o sentido da palavra “completar”), ele não nega: assume-a, deixando claro que suas reflexões estão embebidas no ‘caldo das reflexões marxianas’, mas temperadas com a ciência emergente do século XX; incorporando a organização, o caos e a incerteza de modo mais sistemático, tanto em suas formulações teóricas quanto no modo de conceber a sociedade e a natureza. Sabemos que essa discussão é polêmica, mas percebemos que Morin se coloca, permanentemente, diante de um enfrentamento intelectual entre a crítica/transformação ‘do pensamento marxista de seu tempo’ e a pertinência ‘da essência do pensamento de Karl Marx’: “Não se pode mais conceder ao marxismo o monopólio do conhecimento pertinente, o monopólio da compreensão do mundo, o monopólio da ação salutar. (...) No entanto há ainda muitas inspirações fecundas a serem encontradas no pensamento de Karl Marx” (MORIN, 2004, p.24). CONSIDERAÇÕES FINAIS Reconhecemos a necessidade de um diálogo entre a educação ambiental e as teorias da complexidade, pois consideramos que a mobilização de um pensamento complexo, ante a crise societária que vivemos na atualidade, com inerentes aspectos ambientais, poderá ampliar nossas condições reflexivas e propositivas em prol de uma ação educativa transformadora. Portanto, apesar de nossa clara opção pelo

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Ambiente & Educação V. 17/ Nº 2 / 2012 materialismo histórico-dialético de Karl Marx, reconhecemos o mérito, a relevância e a atualidade da teoria da complexidade de Edgar Morin em relação às contribuições que possa trazer para a pesquisa em educação ambiental, tanto no âmbito dos debates teóricos quanto metodológicos. Concordando com Casanova (2006), afirmamos que esse é um diálogo fecundo que tanto permite complexificar a leitura de sociedade e ação política quanto possibilita adotar uma compreensão histórico-crítica das ciências e da filosofia na explicação da natureza e da condição humana na natureza. Porém, ainda é preciso muito estudo das obras básicas de Edgar Morin e a realização de muitas pesquisas sobre as interfaces desta teoria com o campo de pesquisa da educação ambiental para que a produção teórica do referido autor possa ser apropriada por este campo com o rigor teórico-metodológico que ela exige e com a crítica necessária a qualquer nova teoria que se apresenta na área educacional – já repleta de tantos ‘modismos’. Nesse aspecto, temos nos deparado bastante com uma apropriação muito rápida e pouco crítica da extensa obra de Edgar Morin pelos educadores ambientais que negam as próprias exigências de seu método e dos fundamentos de um pensamento que possa ser categorizado como complexo. Nesse sentido, esse artigo trouxe um debate que procura contribuir para uma utilização mais crítica da produção deste pensador na pesquisa em educação ambiental, buscando compreender a vertente crítica de Morin a partir de textos (produzidos pelo autor) que apontem o quanto sua teoria segue uma tradição materialista, dialética e histórica, e sua opção política segue sendo humanista e socialista. Esse movimento reflexivo permite identificar o potencial da teoria moriniana para uma compreensão complexa de mundo que não esteja circunscrita em explicações funcionalistas ou organicistas; já que na busca de uma compreensão da realidade por meio da teoria da complexidade não

podemos considerar que todos os processos humanos e naturais são explicados por mecanismos de organização ativa e autoorganização sistêmica, implicando um mero funcionalismo sociológico (LOUREIRO e VIÉGAS, 2008). Também mostramos que a construção teórica de Edgar Morin não pode ser descolada de um movimento histórico em busca de uma concepção de mundo que contemple um olhar menos linear, mais crítico, considerando as múltiplas determinações que constituem a realidade. Essa visão anistórica da complexidade, que nega toda a trajetória de Edgar Morin dentro do pensamento de Marx, deve ser desmistificada. Portanto, não devemos julgar que as ideias de totalidade e de práxis histórica se desfazem diante de uma teoria sistêmica de compreensão do real. Compreender como a complexidade moriniana avança sobre o conceito de totalidade, agregando novos elementos das ciências do século XX, pode contribuir na retomada do vigor da filosofia da práxis, trazendo um estímulo a novas reflexões para o campo da educação ambiental. Com esse intuito, em resumo pudemos pontuar alguns aspectos que evidenciaram o quanto o pensamento de Karl Marx influenciou a trajetória pessoal/intelectual de Edgar Morin e a construção da teoria-método da complexidade. Porém, não avaliamos esse fato como uma afirmação de que Morin ou Marx, ou aqueles que estabeleceram o diálogo entre os dois, tenham alcançado o conhecimento “perfeito” da condição humana. É só olharmos para a história da construção do conhecimento humano que poderemos observar o movimento salutar do erro e da crítica – como o próprio pensador francês nos aponta. E mais, encontraremos elementos para entender que o conhecimento, a ciência e a filosofia não são neutros, mas se movimentam nas lutas sociais e expressam escolhas que refletem visões de mundo. E é nesse movimento contínuo, mas que precisa ser Carlos Frederico B. Loureiro e Aline Viégas | 23

posicionado do ponto de vista epistemológico e ontológico, que compreendemos o “tornar-se” da pesquisa em educação ambiental brasileira. REFERÊNCIAS BENSAÏD, D. Marx, o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. BORNHEIM, G. A. Dialética: teoria, práxis – ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. São Paulo: Edusp, 1977. BOTTOMORE, T. (Ed.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BUEY, F. F. Marx (sem ismos). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. CASANOVA, P. G. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo: Boitempo, 2006. CHAUÍ, M. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. FAUSTO, R. Marx: lógica e política – investigações para uma reconstituição do sentido da dialética. Tomo III. São Paulo: Editora 34, 2002. FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: EuropaAmérica, 1978. KONDER, L. O que é dialética. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997. LEFEBVRE, H. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. LOUREIRO, C. F. B. Sustentabilidade e educação: um olhar da ecologia política. São Paulo: Cortez, 2012. _____. Trajetórias e fundamentos da educação ambiental. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2012a.

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