Algumas considerações sobre \'comida\' em contextos de precariedade

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Algumas considerações sobre ‘comida’ em contextos de precariedade Lis Furlani Blanco Universidade Estadual de Campinas – Doutorado em Antropologia Social Orientador: Ronaldo Rômulo Machado de Almeida [email protected] 1. Introdução Fui convidada a participar de uma reunião com os membros do Conselho de Segurança Alimentar e nutricional de São Paulo, cuja sede localiza-se em um prédio anexo ao Mercado Municipal, no centro da cidade, próximo à Rua 25 de Março, conhecida como a maior rua de comércio da América Latina. Situado na Rua da Cantareira, o Mercado Municipal de São Paulo atrai muitos turistas, pessoas de fora da cidade ou os próprios paulistanos que desejam comprar produtos específicos somente encontrados ali. Em sua maioria, as mercadorias ali vendidas tem um preço elevado, dificultando o acesso de camadas mais populares e trazendo certa ideia de status para quem o frequenta. Como em todos os mercados de alimentos do país, o desperdício produzido pelo “Mercadão”, como é chamado o Mercado Municipal, é grande e, por conta de terem seus produtos considerados de altíssima qualidade, quando algum deles não atende a esse padrão, torna-se lixo. As reuniões do conselho aconteciam de quinta-feira e, em uma ocasião, ocorrera algo fora do normal, que jamais havia se repetido em outras quintas-feiras. Não sei ao certo se havia uma greve dos lixeiros, ou se fora um atraso no cronograma da limpeza da rua, mas, ao descer a ladeira do Metro São Bento e ir caminhando em direção à Rua da Cantareira, fui identificando vários montes de lixo espalhados pelas vias públicas. Todo o cenário parecia um pouco dos filmes de guerra, com as ruas cheias de escombros. Ao me aproximar cada vez mais, vi que em cada monte de lixo se encontrava no mínimo uma pessoa. Homens e mulheres agachados selecionando comida entre os sacos ou diretamente da rua. Havia chovido muito na noite anterior, porém, o clima de verão fez com que o sol da manhã iniciasse, logo cedo, o processo de evaporação de toda a água que não tinha escoado para os bueiros, formando diversas poças perto do meio fio. Esse processo de

evaporação deixava o ar com uma consistência úmida e a cada passo que eu dava o cheiro das comidas que se deterioravam em meio à água e a outros dejetos ia se tornando cada vez mais forte. Em um momento, caminhando na calçada ao lado de diversas lojas de flores de plástico, senti um mau cheiro terrível e, ao olhar para o lado, percebi um homem catando laranjas da poça de água, observá-las, para, em seguida, morder uma delas. O cheiro cítrico da laranja curtida em água da chuva me enjoou. Tive que encontrar algo em minha bolsa para cobrir meu rosto e continuar o caminho. Talvez por ser muito cedo e pela umidade do ar potencializar todos os cheiros que estavam ali, esses poucos minutos de caminhada pareceram uma eternidade. Ao perceber que todas essas sensações foram suscitadas em mim ao ver essas pessoas comendo aquela comida, me senti mais uma vez extremamente tocada pelo campo.

2. O campo Durante um pouco mais de seis meses de minha pesquisa de campo vivi no município de São Paulo e tinha como campo previamente definido uma instituição e duas feiras em favelas da cidade. Iniciei a pesquisa e o foco anteriormente escolhido foi se transformando e o que era para ser uma etnografia multi-situada nos termos de George Marcus (1995), se tornou a etnografia da trajetória da vida de certos alimentos que iam se misturando à vida das pessoas e eram ambas classificadas de acordo com diversas vozes: das instituições, dos lugares, das pessoas. Como foi apontado anteriormente creio ser importante ressaltar que a classificação dos alimentos como comestíveis ou não se dá em relação ao seu lugar de denominação e aos agentes que os classificam. O alimento é objeto e agente deste processo semântico, e a vida na qual os alimentos existem, tem como constituinte vozes que também a definem. Essas vozes se concentram, nesta etnografia, em alguns “campos” específicos que serão apresentados posteriormente como forma de contextualização da pesquisa, mas os quais não são o foco deste estudo. Para acompanhar a trajetória da vida dos alimentos e como esses vão sendo classificados como comestível tive que realizar um recorte que a princípio me soava como um recorte espacial, porém posteriormente, deixando de pensar na trajetória da vida dos alimentos enquanto um caminho linear percebi que era importante descrever alguns campos que vão surgindo na narrativa da vida dos alimentos, mas não deveria tê-

los como campos de uma etnografia multi-situada. Se falamos sobre a vida, no processo de “being alive” (2011), essas vozes, pessoas, e instituições são mais um daqueles que “estão na vida”, e assim os lugares que participam então, dessa narrativa são: o projeto Mesa Brasil, a feira na favela do Madalena em Sapopemba e a favela de Paraisópolis. O programa Mesa Brasil é uma iniciativa do SESC em parceira com o governo federal que tem como objetivo: “segurança alimentar e nutricional sustentável, que redistribui alimentos excedentes apropriados para consumo fora dos padrões de comercialização. Formado por uma rede de banco de alimentos que busca onde sobra e entrega onde falta – o Mesa Brasil SESC contribui para o combate à fome através da complementação de refeições”. O projeto Mesa Brasil recolhe alimentos doados por diversos tipos de estabelecimentos alimentícios e faz um processo de triagem e higienização para que assim, esses alimentos sejam repassados para diversas instituições com o intuito de combater a fome através do combate ao desperdício. Estando sempre atentos para a colheita de produtos que perderam seu valor comercial, mas que ainda estão aptos para consumo. Utilizando do conceito de segurança alimentar, sendo esta, a garantia a todos os brasileiros de acesso a uma alimentação adequada à sobrevivência e à saúde em termos de quantidade, qualidade e regularidade, este projeto parte das categorias de higiene alimentar e nutrição para classificar assim, o que ainda é considerado alimento. Sapopemba pode ser considerado um “campo” diferente do Mesa Brasil, o distrito não foi analisado em sua amplitude e muito menos como uma unidade, mas foi na feira do Madalena, nos caminhos da favela e nas conversas com Ana Paula e Dona Nazinha que consegui elaborar as questões centrais de meus estudos. O meu primeiro dia de campo de toda a pesquisa foi realizado em Sapopemba. Cheguei lá por intermédio de um grande amigo que também é meu colega de turma de mestrado e que já realizava sua pesquisa há tempo nesse distrito. Ali em Sapopemba pretendia estudar a feira e o consumo das sobras de alimentos, tentando assim comparar com outra feira, da favela de Paraisópolis, a qual tem uma posição geográfica muito diferencia à do distrito de Sapopemba. Sapopemba é um sub-distrito do município de São Paulo que possui mais de trezentos mil habitantes, mais de trinta bairros e se localiza na zona leste da cidade, há

mais de duas horas e meia de transporte público do centro. Esses bairros apresentam uma grande variedade em seu nível sócio econômico, variando de classe média a um nível de vulnerabilidade social bem alarmante. A feira do Madalena acontece todas as quintas feiras e é o principal local de consumo de frutas, verduras, legumes e carnes da maioria dos moradores da região. É na feira do Madalena que a maior parte da população da favela faz algumas compras e cata boa parte dos alimentos que são deixados pelos feirantes. Paraisópolis é originária de um loteamento destinado à construção de residências para a classe alta, a região foi ocupada em sua maioria por migrantes nordestinos que iam para São Paulo trabalhar na construção civil. Ao mesmo tempo em que a favela foi crescendo, novos bairros nobres com condomínios de luxo eram criados ao redor da ocupação; atualmente a favela é habitada por mais ou menos 100 mil pessoas. Um enclave periférico na cidade de São, em um estilo de favela, segundo Feltran (2010), muito parecido com as favelas do Rio de Janeiro, Paraisópolis se diferencia de outras periferias de São Paulo. Sem pensar em nenhum momento que existe uma “não presença” ou falta do Estado nessas localidades, além dessa forma de gestão governamental, se vê muito presente a gestão das Ong’s e entidades assistenciais. Paraisópolis conta com uma feira livre muito grande realizada todos os sábados, e nela podemos ver as redes de articulação para aproveitamento das sobras. Como então descrever e colocar no papel a trajetória de um objeto que passa por diferentes lugares em termos geográficos e tem relação com diferentes atores, focando no objeto em si e em sua classificação, mas ainda assim dando importância para as relações que constrói? Escolhi, portanto quatro alimentos que em suas trajetórias abordam questões que vejo como centrais para a discussão do “bom para comer e bom para pensar”. A partir de histórias de alguns momentos da vida desses alimentos, vou desenhando e descrevendo os campos pelos quais essas trajetórias vão se definindo, os atores com os quais esses alimentos se relacionam, as vozes que disputam legitimidade, e a vida daqueles que os consomem. Entretanto, nesta apresentação, por uma questão de tempo e espaço compartilharei algumas cenas etnográficas que trazem discussões pertinentes sobre a vida podre.

3. O objeto Classificar um alimento como comestível perpassa relações de poder, higiene, saúde, status e classe. Assim, é objetivo deste trabalho analisar a trajetória da vida dos alimentos e sua classificação enquanto comestível. Através da escolha da categoria analítica do podre como conceito liminar que permite pensar as variáveis da desta classificação e da classificação das pessoas em relação, desenvolvi uma etnografia da trajetória de certos alimentos na cidade de São Paulo, em feiras livres e no programa Mesa Brasil do SESC, buscando compreender a crueza da máxima “você é o que você come”. No entanto, para além do que eu propunha como objetivo deste trabalho, em todas as oportunidades que tive de apresentar a discussão a qual realizo nesta dissertação, meu objeto de estudo era sempre questionado. Eu me inquietava com a possibilidade de não conseguir torna-lo inteligível, de nunca conseguir traduzir minhas preocupações epistemológicas, que só posteriormente eu percebi como ontológicas, em uma etnografia das categorias do sensível.

Assim, em uma conversa com uma amiga

do mestrado, ao expor minhas preocupações ela me respondeu com a seguinte afirmação: “isso que você está falando não é podre, são sobras, restos de comida, comida que alguém não quis comer, porque se fosse podre mesmo ninguém comia”. Sobre o que eu estava falando então? Afinal de contas, não comemos o podre? Um bom queijo roquefort, ou gorgonzola, um chucrute bem curtido, uma uva fermentada, um faisandé? Não seriam esses também classificados como podre? Qual a especificidade deste podre sobre o qual eu estou falando? Ou, seja, o que é o podre?

4. Comestibilidade Em uma das minhas visitas a Sapopemba, após passar a manhã toda tentando observar a feira do Madalena, resolvi conjuntamente a amigo visitar Ana Paula. Havíamos almoçado a comida de Dona Nazinha, cozinheira formidável do CEDECA. Comemos muito e depois nos dirigimos, por volta das duas da tarde, para a casa de Ana. Chegando lá, conversamos com ela sobre uma próxima visita à feira, na qual ela pudesse me acompanhar e para que também pudéssemos trocar algumas ideias sobre minha pesquisa.

A casa da Ana é uma casa de alvenaria, pequena, sem acabamento e dividida em praticamente dois cômodos. Uma cozinha junto à sala e o quarto no fundo. Existe uma parede que separa a área privada da área social da casa. A cozinha se localiza na entrada. Logo do lado da porta, ao lado a pia junto à geladeira com os armários de alimentos acima, fica o fogão. Quando entrei em sua casa, já senti um cheirinho de comida sendo feita. Ana estava cozinhando feijão e refogando algumas cebolas com alho, pois “estava com muita vontade de comer feijão tropeiro”. O cheiro da comida dava água na boca, mesmo depois de ter almoçado havia tão pouco tempo. Após conversarmos um pouco sobre como gostávamos de feijão e sobre a comida de Dona Nazinha que havíamos comido, Ana olhou para mim e disse: “Você que gosta de podre né? De estudar comida do lixo, o que você acha desse frango? Encontrei ele descongelando no lixo, mas acho que se eu der uma fervida fica bom né?” Sem responder, fui olhar o frango que Ana já ia tirando do pacote de isopor para colocá-lo na panela e percebi que ele estava com uma aparência bem esverdeada, e quando ele caiu na panela e começou a cozinhar, senti um cheiro muito forte. Na lateral da embalagem do frango havia um aviso: “Este alimento tem alto risco de contaminação alimentar”. Particularmente, não acho muito agradável o cheiro do frango cozido e logo após colocá-lo na panela, Ana adicionou um pouco de vinagre pra “matar todos os bichos”. Acho que nesse momento minha expressão não era muito boa. O cheiro do vinagre misturado ao do frango cozinhando em um dia especialmente quente começou a me enjoar. Fiquei preocupada com a possibilidade de Ana me oferecer o frango para experimentar, porque realmente não saberia o que responder, mas como havíamos dito que já tínhamos almoçado, essa possibilidade me pareceu distante. Tentando quebrar o gelo da situação, Ana me disse que outro dia, quando tivesse ‘outra comida’, me chamaria para um almoço gostoso. ***** Ao refletir sobre esta cena etnográfica a primeira pergunta que me fiz foi: porque esse frango era comestível para a Ana e não para mim? Seria a necessidade o fator dominante nesta classificação ou ainda, estaria Ana operando com uma concepção de mundo tão diferente da minha que partiria de pressupostos distintos para a classificação da comida?

O frango da Ana continha um risco já informado pelos próprios produtores deste alimento, mas também continha o risco que advinha das diferentes fases da vida de um alimento em relação com a proximidade de sua morte. O que fazia então, este frango ser comestível para Ana e não para mim era, portanto, a quantidade de risco que Ana aceitava correr comendo essa comida, e este equacionamento estava diretamente relacionado ao valor da vida da Ana. A comestibilidade se define neste sentido a partir do equacionamento das variáveis de risco e valor; risco que cada fase do alimento pode conter e valor dessas vidas em relação ao valor da vida de seus comensais. Nesse processo o estatuto de pessoa daqueles que se alimentam do ‘podre’ é questionado e a proposição daquilo que seria bom para comer se mostra como parte de nossa definição enquanto pessoas, trazendo uma perversidade que acaba por estar intrínseca a qualquer classificação: a exclusão. Neste sentido, o adágio ‘você é o que você come’ ganha um estatuto mais perverso ainda. Ana teria então, o seu lugar na sociedade similar ao do frango jogado fora, ou mais ainda teria incorporado e se tornado essa comida que a alimentou. Mas aí, onde estaria o podre, categoria central de minhas análises? Se o frango é comida, pelo menos para Ana, em que lugar seria possível comparar essas diferentes comestibilidades e o que essa comparação traria à luz?

5. Risco, Valor e Pessoa Cotidianamente decidimos o que comer, e às vezes, sem mesmo pensar classificamos aquilo que consideramos comida e aquilo que não o é, ou deixou de ser. Escolhemos aquilo que gostamos de comer, mas também o que definimos como comestível. E nesse momento a sutileza entre o comível e o comestível aparece. Porque afinal de contas não comemos tudo o que é comestível? E o que é comível? Como esse processo classificatório se dá? É senso comum pensar que olhar um alimento, sentir seu cheiro, sua textura é algo natural, isto é, que experienciamos sensações que são biologicamente dadas e conjuntamente a um saber científico que está cotidianamente imbricado em nossas relações, decidimos o que é ou não passível de ser consumido como alimento, ou talvez de ser pensado como comida.

Entretanto a própria definição de comida não é dada. Enquanto realizava minha pesquisa de campo com o Mesa Brasil, uma situação muito representativa aconteceu. Em uma manhã considerada normal no programa Mesa Brasil, a responsável pela coordenação da unidade Carmo recebeu uma ligação de uma fábrica de doce de banana que gostaria de saber se o programa aceitaria a doação de algumas toneladas de casca de banana. Sheila disse que não poderia tomar essa decisão sozinha e que precisaria consultar a coordenação estadual. Luciana, a coordenadora foi então informada sobre o pedido de doação. A primeira ação de Luciana foi telefonar para o microbiologista que presta consultoria para o Mesa Brasil e perguntar a ele sobre os riscos do consumo desse alimento e sobre como a higienização e preparo de tal alimento deveriam ser conduzidos, caso a doação fosse aceita. O microbiologista pediu um tempo para pensar. Após alguns minutos ele retornou a ligação de Luciana e disse ser possível aceitar a doação, dizendo que a higienização da casca poderia ser feita através de sua fervura ou cozimento e que ela seria uma fonte importante de nutrientes. Depois dessa ligação, Luciana consultou as culinaristas para que a possibilidade de receitas com a casca da banana fosse pensada. As culinaristas fizeram uma rápida pesquisa e apresentaram uma pequena lista de diversas receitas que poderiam ser realizadas com a casca. Agora era a vez das nutricionistas buscarem os nutrientes que poderiam ser encontrados nesse alimento e assim compreender se ela seria um importante alimento na complementação nutricional das entidades atendidas pelo programa. As nutricionistas chegaram então à conclusão de que a casca de banana era uma rica fonte de nutrientes e que, além disso, era possível criar uma ampla variedade de receitas com ela, o que permitiria um grande aproveitamento da doação, sem mencionar ainda a questão da higienização e armazenamento que não exigiam grandes esforços dos cozinheiros. A doação foi aceita, e todas as entidades da cidade de São Paulo que são recebidas pelo Mesa Brasil receberam alguns quilos de casca de banana, mas somente após um curso de formação no qual um representante de cada entidade aprenderia a fazer todas as receitas levantadas pelas culinaristas. As principais delas eram um bolo de casca de banana, torta, brigadeiro e farofa.

Apesar de parecer uma situação cotidiana e simples de resolver, a casca de banana gerou uma grande polêmica na administração do programa. Essa polêmica de certa forma pode ser comparada com uma sugestão da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) de utilização de insetos na alimentação das populações marcadas pela fome. O que seria considerado alimento e pra quem? A representante da ONU em sua fala sobre a comestibilidade dos insetos diz que assim como os ocidentais aprenderam a comer e apreciar o peixe cru, também seria possível aprendermos a comer insetos. Ocorre entretanto, que talvez a representante da FAO e os coordenadores do Mesa Brasil não tenham percebido que para além dos fatores culturais que definem o que comemos, isto é, nos quais a cultura coloca limites aonde a natureza os deixaria livre, essa mesma “cultura” define os alimentos comestíveis através de uma operação semântica do pensamento, que classifica o status dos alimentos e destes em relação ao status das pessoas. Segundo Jack Goody (1984), a alimentação está ligada aos modos de produção dos bens materiais, a análise da cozinha por sua vez deve ser relacionada à distribuição dos poderes e da autoridade na esfera econômica; ou seja, aos sistemas de classes ou de estratificação social e suas ramificações políticas (Goody, 1984) Mais concretamente, o estudo dos modos de abastecimento e de transformação da alimentação faz referencia a quatro grandes operações: cultivar, repartir, cozinhar e comer, que representação as fases de produção, distribuição, preparação e consumo. A elas deveria se adicionar uma quinta fase, frequentemente esquecida, mas que tem importância cada vez maior, dado o seu aumento progressivo: a evacuação de detritos (operação de livrar-se, colocando- o no lixo) Ao associarmos a questão da casca da banana com a estratificação social e suas ramificações políticas concebendo alimento e a sua classificação como definidores de sistemas simbólicos e de categorias sociais, se torna evidente que o lixo, ou as sobras de forma geral ocupam uma posição privilegiada para se pensar a sociedade, em parte por causa das maneiras pelas quais ele esta relacionado a projetos que visam marcar, manter e produzir padrões de diferenciação econômica e social. Quando estava fazendo um curso sobre a gestão de sobras de alimentos, organizado pelo Mesa Brasil, essa situação da casca de banana foi contada aos participantes, e estes em sua maioria acharam uma ótima ideia, principalmente para “ensinar aqueles que

mais precisavam”. Uma senhora, aposentada paulistana comentou após a narrativa da situação: “Ai que ótimo, vou ensinar minha empregada doméstica a aproveitar essas cascas, assim ela pode garantir uma melhor alimentação em sua casa”. Nesse momento, toda a situação foi clareada, as sobras de alimentos devem sim ser aproveitadas, mas só por aqueles que “necessitam” comer os restos para sobreviver. Mauss e Durkheim (1981), em sua clássica obra “Algumas formas primitivas de classificação”, afirmam que o espírito humano apresenta a particularidade de produzir categorias, taxonomias, normas e regras. Segundo os autores, Tylor (Fischler, 1995:59), já falava de uma tendência do espírito humano de esgotar o universo por meio de classificações. Se levarmos em consideração esse princípio universal, todos nós, seres humanos organizamos o mundo através de um ato cotidiano de classificação. Porque então, a casca de banana não é comida para uns, mas é classificada como tal por outros? À luz de minhas análises e na construção da etnografia da vida dos alimentos, duas categorias se mostraram extremamente relevante para pensarmos a miríade de variantes da classificação dos alimentos, elas são: valor e risco. A vida dos alimentos vai sendo classificado em relação a essas variantes e é em relação à vida desses alimentos que a vida das pessoas que o consomem são definidas; é a aceitação do risco que define o que vamos comer ou não, e esse debate se mostrou evidente em uma cena etnográfica que poderia ser considerada como um fato social total: Fui autorizada pelo Sesc a fazer duas colheitas e distribuição de alimentos com o Mesa Brasil. Quando cheguei a sede do programa fui informada que estávamos um pouco atrasados, pois tínhamos que esperar uma confirmação de uma grande doação de um dos colaboradores no Ceagesp. Todo dia o caminhão que eu estava acompanhando tinha que passar em um supermercado de alto padrão na Vila Madalena para recolher suas doações. Neto, o responsável pela seleção dos alimentos disse que não achava muito bom passar nesse tipo de supermercado porque “quanto mais chique, pior são as doações e o estado de conservação delas”. No caminho para os fundos do estabelecimento, Neto me disse que nesse tipo de supermercado eles sempre deixam as sobras muito perto do lixo e assim o Mesa Brasil não pode recolhê-las. Chegamos lá, e havia somente algumas alfaces muito murchas que estavam próximas demais do lixo e por isso negamos a colheita.

Entramos novamente no caminhão e nos dirigimos para o Ceagesp. Ao chegarmos lá, uma placa bem na entrada alertava: “Não recolha comida dos lixos. Procure o banco de alimentos do Ceagesp. Cuide de sua segurança”. Fomos para o estacionamento de carga e descarga, havia uma fila gigante de caminhões e tivemos que ficar ali esperando. Íamos ser responsável pela colheita de um caminhão inteiro de mamão papaia. Depois de mais de quarenta minutos parados, todos já estavam fora do caminhão impacientes. O dono do armazém de venda de mamão chamou o responsável do Mesa Brasil e disse que poderíamos começar a colheita, mas que ela seria feita dentro do caminhão, pois todo o mamão que estava contido nele foi rejeitado por uma rede de supermercados de luxo e agora seria descartado se o Mesa Brasil não tivesse interesse em recolhê-lo. O pessoal do Mesa Brasil iniciou assim o processo de colheita. Muito rapidamente o motorista e o responsável do caminhão começaram a tirar caixas de plástico brancas do caminhão e a colocar sacos de plástico dentro delas. Eles já estavam vestindo luvas de silicone, uma touca e um avental branco. Subiram no caminhão de mamão para iniciar a colheita. Lá em cima, Neto ficou me explicando o que poderia ser doado e o que deveria ser descartado. “Mamão com fungo, mesmo que pequeno, daqueles redondos que você aperta e seu dedo fura a casca não pode ser recolhido de maneira alguma”. “Aqueles cortados também não”. Eu perguntei se isso acontecia, pois o fungo, mesmo que de um tamanho não muito grande contaminaria todo o resto do mamão, e Neto respondeu que na verdade era porque o Mesa Brasil não teria como garantir que os cozinheiros que iriam receber o mamão viriam o fungo, e o removeriam de forma integral. Segundo ele, o projeto “não poderia correr esse risco”. Me perguntaram se eu queria ajudar na seleção para ver exatamente quais as regras que deveriam ser seguidas. Me deram um avental e uma touca, pois a luva eu já estava usando para manusear os mamões que me eram mostrados. Comecei então a seleção. Havia dentro do caminhão por volta de seis ou sete pallets de caixas de mamão empilhadas. Em cada caixa de plástico cabia uma média de uns vinte mamões. Tirei a minha primeira caixa da pilha, peguei o primeiro mamão e ele estava bem feio. Tinha uma aparência toda amassada, mas não possuía nenhum corte e nenhum fungo. Esse era segundo o Mesa Brasil, o mamão mais apropriado para o consumo. Coloco-o então na caixa branca de plástico e o outro em uma caixa preta que ia pra descarte. Próximo mamão, bonito, firme, com uma aparência de supermercado, tinha, porém um pequeno

fungo, redondo, com as bordas brancas e o meio preto, do tamanho de uma moeda de dez centavos. Foi descartado. Mamões cortados, mamões abertos. Aqueles com uma pequena baba branca ao redor eram considerados “normais” e iam sendo colocados de maneira organizada em uma caixa plastificada. O motorista do caminhão deu ré. Agora podíamos ir à beira da carroceria do caminhão e descartarmos os mamões diretamente na caçamba. Começamos esse nova metodologia e não sei exatamente porque, talvez pelo horário, várias pessoas começaram a se aproximar da caçamba. Conforme íamos jogando os mamões que foram primeiramente rejeitados pelo supermercado e depois rejeitados pela seleção do Mesa Brasil, os homens que haviam se aproximado da caçamba iam selecionando os mamões do lixo. Na caçamba havia de tudo. Alguns mamões se desmanchavam com a queda no lixo, outros continuavam quase intactos amortecidos por legumes e vegetais que já estavam se decompondo e formavam uma cobertura fofa. Havia pedaços de caixas de madeira, papel e outros dejetos de tipos variados. Aqueles que realizavam a catação conseguiram umas caixas com os funcionários do armazém, alguns conseguiram até martelos e uns pregos para concertar as caixas. Eles aparentavam ser empregados no Ceagesp. Um deles usava uniforme de carregador. O mesmo tipo de seleção que ocorria na boleia do caminhão estava ocorrendo no chão, na caçamba de lixo. Os homens reviravam com cuidado o que havia sido descartado buscando selecionar o mamão com a melhor aparência. Diferente do que pensava os funcionários do Mesa Brasil, aqueles mamões que estavam firmes, com a casca lisa, mas que continham um pequeno fungo eram os mais requisitados. Essa dupla seleção ocorreu por bastante tempo. Selecionávamos os mamões que apresentavam a menor possibilidade de risco para aqueles que iam consumi-los, jogávamos o resto no lixo. Ali embaixo outras pessoas selecionavam os mamões que pareciam mais bonitos, ou até mais frescos, os organizavam em caixas e iam embora levando ao mínimo uma caixa cheia de mamão para casa. Fomos para outra área do Ceagesp que ficava muito perto do local aonde as caçambas eram depositadas para que seu conteúdo fosse posteriormente recolhido. Ali

muitas pessoas que estavam por perto começaram a catar as sobras das sobras das sobras, e “o mesmo” mamão que havia sido rejeito pelo supermercado, pelo Mesa Brasil, pelos catadores de dentro do Ceagesp era agora escolhido por um grupo de pessoas, provavelmente moradores de rua. ***** Não é novidade pensar nos alimentos enquanto marcadores das relações sociais, e muito menos dizer que a comida, ao ser doada e compartilhada, seria simplesmente “só comida” (Richards, 1932), entretanto, tento atentar aqui para a vida dos alimentos e assim como a história deles pode trazer a tona a relação que temos com a vida das pessoas, seu valor. Somos o que comemos, e o que comemos se converte em nós mesmos. Se comemos o lixo do outro, seriamos então o lixo da nossa sociedade? Segundo Dumont (1997), em sua análise do puro e do impuro na sociedade de castas indiana, a classificação dos alimentos remete no essencial à classificação dos homens e as relações entre grupos humanos, não sendo essa um dado universal (1997:76). A comida seria portadora de um perigo, de uma ‘selvageria’ que conjura seu adereço: assim marcada, passando da natureza para a cultura ela poderá ser considerada menos perigosa. Assim, comparando com a ideia de Sahlins ao falar da aberração dos franceses comedores de carne de cavalo afirmando que a comestibilidade esta pensada em relação inversa à humanidade, poderia dizer, com a análise do comestível em contextos de precariedade, que a comestibilidade define o status de humanidade daqueles que o consomem através da articulação do risco que essa pessoa aceita correr ao consumir um alimento. O mesmo mamão foi classificado diversas vezes até que em um momento após diversas renuncias, foi do lixo à vida. A ideia de um risco à vida dos possíveis consumidores faz o mamão ser descartado mais de uma vez. Entretanto, se levarmos em consideração a constatação de que toda cognição é politizada e assim pensarmos que a ideia de risco também o é, chegamos a importante discussão sobre o valor da vida dos alimentos e da vida daqueles que aceitam o risco de consumi-lo. Quando a linguagem do perigo, da poluição, que problematiza também a classificação de pureza foi transformada na linguagem do risco, essa passou a ser vista como científica e a sua voz se torna legitimada para pensar a vida, pois essa é vista através deste mesmo paradigma.

Todavia, se questionarmos essa própria ideia de vida tanto dos objetos como dos seres vivos podemos trazer a tona questões de politica e poder que eram barradas pela discussão de legitimidade de discurso. Em meu primeiro dia de campo em Sapopemba, estava conversando com minha principal interlocutora, a Ana que vivia de comida encontrada no lixo, na xepa e de doações, e ela me perguntou sobre o que realmente eu pretendia estudar. Com a minha resposta, depois de um tempo Ana reagiu e disse: “Ah, você quer entender como a gente sobrevive”. Essa fala de Ana ficou martelando minha cabeça durante toda a pesquisa e todo o processo reflexibilidade, talvez porque novamente era a vida que importava. Ocorre, entretanto, que ao concebermos a vida biológica dos alimentos, o mamão em algum momento chegaria ao estado de putrefação, assim como as pessoas que passam fome teriam que comer para não morrer, independente do tipo de comida que estivesse à disposição. Dessa forma, toda a problematização da biologia enquanto voz dominante e das classificações como produções sociais e políticas iriam desaparecer no limite do funcionalismo. Se Audrey Richards já dizia em 1932, que a nutrição não pode em nenhuma sociedade humana ser considerada e analisada para além do meio cultural no qual ela é levada, a disputa entre biologia e sociedade, natureza e cultura parece não levar a nada. Nesse sentido, é possível sair da dificuldade em pensar o limite da vida dos alimentos através de uma concepção na qual, se constata ser impossível chegar ao fim da vida, pela mesma razão de que os horizontes não podem ser atravessados. Ao pensar na história do mamão, da casca da banana, articulando a discussão sobre comestibilidade, pureza e risco, aquilo que está no limiar, o podre, vai se tornando conjugado com a ideia de valor, trazendo uma hierarquização do valor das vidas, que muitas vezes está associada a hierarquização do valor da vida das pessoas. Partindo da premissa de que a comida simbolicamente define aquele que a consome, o programa Mesa Brasil teve seu nome escolhido em relação à noção de dignidade e acesso, ambos associados ao ato de comer à mesa. Para além de uma ideia de cidadania e civilidade, os criadores do programa conceberam que comer à mesa significa ser pessoa e permitir tal possibilidade seria um dos gestos mais humanos de solidariedade. A comida em si, isto é, o objeto comida seria visto como um objeto com propriedades já definidas e dadas, e seu aspecto simbólico seria associado à maneira que

se come, e com quem se come, ou seja, às relações sociais, e não com as propriedades do objeto em si. A comida, ou melhor dizendo, o alimento1, é visto pelo Mesa Brasil, através de seus funcionários especializados na área da nutrição, como um objeto com propriedades naturais dadas, que pode ser simbolizado, e de fato o é, mas através de relações específicas; e que pode também ser conectado à categoria de humanidade das pessoas, mas somente em relação à maneira como comemos, isto é, em relação à parte concebida como estritamente cultural ou social, daquilo que chamamos alimentação, e que é definida como a própria relação social. Dito de outro modo, alimentar-se é uma relação social. Ao seguirmos a vida dos objetos, ou no caso específico dos alimentos, vamos percebendo que assim como Ingold (2011) diz ao tratar da materialidade dos objetos, devemos conceber a vida social dos alimentos em relação à vida social das pessoas. De acordo com Mintz (2001), comer é uma atividade humana central, não só por sua frequência constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite alguma escolha. “A comida entra em cada ser humano. Somos então substanciados – ‘encarnados’ a partir da comida que se ingere” (2001:32), o que permite uma associação entre essa incorporação e a noção de carga moral imbricada neste ato, pois “nossos próprios corpos podem ser considerados o resultado, o produto de nosso caráter que por sua vez é revelado pela maneira como comemos” (Idem, ibidem). Indo mais além na constatação de Mintz (2001), arrisco afirmar que não é apenas uma carga moral que o objeto comida carrega e é transubstanciado quando este é comido por pessoas, mas, sim, posso dizer que é o direito em forma de objeto que é incorporado pelo comensal. De acordo com Mauss (2003) em suas análises sobre a formação da noção de pessoa que temos na modernidade, parte do que é conhecido como tal está diretamente relacionado com a ideia de direito. Atualmente, quando pensamos em alimentação, a ideia de direito vem à tona nesta discussão, porque o acesso à alimentação está diretamente relacionado com o cumprimento dos direitos humanos mais básicos, e principalmente associado com o

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Faço essa diferenciação entre comida e alimento baseada na própria diferenciação posta nos estudos sobre alimentação. "o alimento é algo neutro, a comida é um alimento que se torna familiar e, por isso mesmo é definidor de caráter, de identidade social, de coletividade" (Roberto da Matta, 1987).

conceito de segurança alimentar e nutricional2. Contudo, quando pensamos e designamos a ideia de direito à noção de humanidade, a categoria de pessoa é obscurecida, trazendo à luz a oposição entre humanidade e animalidade através da comida. Neste contexto, voltamos à ideia de vida, e mais precisamente de vida humana, e concluímos que esta é pensada a partir de uma perspectiva cartesiana que a separa em dois domínios, o social e o ecológico. Segundo Ingold, as pessoas vivem assim uma vida dividida em duas: meio organismo, meio pessoa (2011:173). Quando o lado considerado ‘meio pessoa’ é retirado da vida dos seres humanos, somente nos resta o lado organismo, e este não nos diferencia de nenhum outro animal. Desta forma, acrescentamos mais uma variável na definição do comestível, a categoria de pessoa. A categoria de pessoa se associa tanto ao risco de contaminação por um objeto associado à nebulosidade do mundo natural, como com o valor deste objeto em relação ao medo da incorporação de uma vida sem valor, uma vida animal. Complexificando a afirmação de Dumont na qual a “animalidade em si mesma é o fator virtualmente repulsivo” (1997:169), constatamos que são as propriedades dos objetos associados ao valor, ao risco e à vida, e com isso ao estatuto de pessoa daqueles que se relacionam com eles, que definem o fator repulsivo do podre. Retomando a discussão sobre os mamões através da cena de descarte destes no CEAGESP, é possível conceitualizar essa discussão ao visualizar uma pirâmide social dos homens nos mamões: mamões desiguais para homens desiguais. Ou ainda, uma pirâmide de valores de vida das coisas e dos objetos. É importante nesse sentido, conceber a ideia de estar na vida, e pensar nos objetos e suas histórias como tão relevantes quanto as pessoas e suas vidas, um operador totêmico, conforme Sahlins (1979). Frazer, no final do século XIX já apontava que: “el selvaje cree comúmnente que comiendo la carne de um animal o de um hombre adquire las cualidades no sólo físicas, sino también morales y intelectuales que son característica de ese animal o de ese hombre” (Frazer citado por Fischler, 1995:66). Hoje, alguns séculos depois e tratando

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Até o ano de 2010 não havia na Constituição Federal Brasileira o direito à alimentação básica. Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero e a criação do Ministério de Desenvolvimento e combate à fome.

daqueles que se veem como civilizados, pode-se dizer que essa afirmação ainda é verdadeira.

6. O podre O termo podre, presente no título de meu projeto, e enunciado a priori como meu objeto de estudo nunca foi usado por nenhum de meus interlocutores durante minha pesquisa de campo, mesmo sendo o podre a categoria analítica central desta pesquisa. No entanto, ao longo do processo de escrita da etnografia o podre sempre esteve ali, principalmente quando eu pensava a relação dos comensais com o objeto de sua comestibilidade e foi aí que o podre foi se definindo como uma sombra sobre a definição do comestível e daqueles que o consumiam. O podre era a comida que os feirantes jogavam na lona para que os moradores da favela do Madalena pudessem catála, era a comida que Ana comia quando morava na rua, era também como ela se sentia vivendo essa situação. O podre era o frango morto da granja, o sopão dos moradores de rua e, por que não, o mamão rejeitado pelo Mesa Brasil e jogado na caçamba do lixo. Era a forma não ‘limpa’ ou mesmo bárbara de preparar as comidas; a falta de ‘boas praticas’ na cozinha. Era a transformação que não se dava através do homem. A diferença entre o podre que ilumina a comestibilidade do frango da Ana e aquele que cria o queijo roquefort ou até mesmo o iogurte, esta no controle deste podre por parte da cultura. Se pensamos que pelo menos 1/3 de toda a comida na alimentação mundial é produzida por processos que envolvem fermentação, isto é, o controle do podre, o controle da vida e da morte, a diferença de um ‘podre’ e outro está neste processo de transformação da natureza pela cultura, da passagem do mundo animal para o social. O podre neste sentido é uma coisa em si, um processo de dominação da natureza que mesmo de forma imperfeita é apreciado por ser controlado. A proximidade com a natureza incerta ainda nos traz medo, ainda é perigosa, e é da nomeação deste podre que eu estou falando. Levando em consideração que a linguagem e as categorias não são apenas um epifenômeno da vida intelectual, mas são o cerne da construção dos fenômenos sociais como um todo, o podre é então, a classificação enquanto palavra que mesmo não dita classifica vidas. O podre é desta forma, o objeto abjeto que através de sua incorporação física transforma certos corpos e assim certas vidas em vidas abjetas. A incorporação deste

objeto não classificável muda o estatuto de vida de seus comensais e sua própria existência no mundo enquanto sujeitos. As relações com o podre se definem neste sentido, como atos que constituem um domínio daquilo que não pode ser dito e que condiciona a distinção entre o próprio e o improprio. Ao pensarmos na ideia de Viveiros de Castro (2002) reconstruindo a máxima ‘você é o que você come’ ao dizer que ‘é pela boca que se predica. Diga-me com quem e o que comes e te direis quem és”, aqueles que comem o impredicável, o não dito, o abjeto, têm seu corpo transformado neste objeto, o inclassificável. Incorporar um alimento é, para além do que Fischler (1995) chamaria de plano real e imaginário, incorporar todas as sua propriedades. Somos o que comemos. A fórmula alemã Man ist, was man isst (somos o que comemos) é verdadeira. E partindo da concepção das coisas e das pessoas como ‘estando na vida’, esta afirmação adquire um sentido que extrapola as separações entre representação e realidade, biológico e cultural. Indo mais adiante da postulação de Fischler (1995), na qual o antropólogo concebe a afirmação acima como “verdadeira no sentido literal, biológico”, pois “los alimentos que absorbemos proporcionan no sólo la energía que consume nuestro cuerpo, sino también la sustância misma de este cuerpo, em el sentido de que contribuyen a mantener la composición bioquímica del organismo (1995:66)”, acredito que ao tratar do podre enquanto objeto, ou ainda, abjeto, esta afirmação adquire uma maior perversidade. O podre não é assim, definido aqui de maneira alguma, principalmente por tratar do inclassificável, daquilo que tem sua existência questionável e até mesmo não inteligível. Enquanto categoria ele também é analisado e não tomado como fato. Contudo ele se apresenta como uma sombra do comestível que, ao falarmos do ‘que se come’ lança luz sobre os objetos, as classificações, os nomes e as vidas e por isso traz o lado perverso do processo de incorporação ao iluminar as propriedades que definem o comestível. É o abjeto podre, o não classificável que nos permite ver as propriedades de valor e risco que definem o comestível e que são incorporadas definindo corpos e estatutos de pessoas. Assim como a designação de antropofagia enquanto uma prática que “contribuiu para domesticação e incorporação de força ou substancias vitais” (Vander Velden, 2004:120), a incorporação do comestível, com todas suas propriedades, está também diretamente ligada à vitalidade, à vida.

A hipótese de Sahlins deveria, dessa forma, ser concebida extrapolando suas dualidades: “o esquema simbólico de comestibilidade se junta com aquele que organiza as relações de produção para precipitar, através da distribuição de renda e demanda toda uma ordem totêmica unindo em uma série paralela de diferenças o status das pessoas e o que elas comem (1979:176)”. A comestibilidade deve, então, ser pensada como um objeto, no sentido já expresso anteriormente neste texto, e assim, não mais a renda e a demanda precipitaria a ordem totêmica, mas sim as variáveis de valor e risco. Ademais, não poderia dizer que é somente em uma ordem totêmica que o estatuto de pessoa e o que elas comem estariam unidos, mas em sua existência no mundo, o processo de ‘being alive’ (Ingold, 2011). Portanto, posso afirmar que, em relação à comestibilidade, ao objeto comida, o sentido está sim na coisa em si, diferentemente do que postula Lévi-Strauss, mesmo tratando de ‘coisas’ distintas, e a relação parte desta premissa. “Food not only nourishes our bodies but also nourishes our higher nature” (Sêneca, citado por Stoller, 1990:23), sendo a expressão ‘higher nature’ concebida como ‘estar vivo’, no sentido de potência (Ingold, 2011), é possível questionar a categoria de vida e do podre, e pensando-as em conjunção com as variáveis de valor e risco, percebo que uma associação perversa acontece. Cada fase da vida dos alimentos, ao ter como propriedade certa quantidade de risco para aqueles que o consomem define quem vai comer o que. É o valor da vida das pessoas e o risco que esta vida pode correr que cria a comestibilidade dos alimentos. Desta forma, o podre que não aparece nas falas e nas observações de meus interlocutores nunca deixou de estar presente nas poesias, nas rimas, no lirismo e no mundo dos sentidos e abstrações, pois é ele que coloca luz sobre certas vidas. É o podre que nos permite compreender o que Ana quis dizer quando afirmou que havia entendido meu objetivo de estudo, “saber como ela sobrevive”, é ele que nos faz entender o que é comida de gente, o que não é, e o porquê de certas coisas voltaram a ser comida, mas somente para certas pessoas. Quando afirmo citando Sahlins (1979:169) que “os homens definem os objetos em termos de si mesmo e definem-se em termos dos objetos”, tendo sido o podre designado enquanto objeto-abjeto, estou na verdade tratando da criação e definição das ‘vidas podres’. O podre é a vida não classificável classificando vidas. E é a fome, enquanto

móvel de disputa, que atenta para os limites desta vida e que produz desigualdades poderosas entre os valores de vida. É a fome que incide sobre o podre e me permite afirmar, assim como Taniele Rui, que “à medida que as pessoas se tornam semelhantes às coisas, essas é que adquirem nome, demarcam distintos usos e passam a ser objeto de políticas públicas” (2012: 14). O podre, mesmo não existindo, delimita os limites da vida das pessoas, estende ou diminui a propriedade de comestibilidade dos objetos em relação ao valor da vida desses seres humanos, em relação ao risco que estes podem correr. Concluo então, que através da cozinha podemos compreender processos como o de vida e de morte, de transformações naturais e culturais além do questionamento de temáticas que seriam somente do domínio de certas ciências ditas como naturais ou duras. Nesse sentido, foi a partir da potencialidade do podre enquanto objeto que foi possível clarear as propriedades da comestibilidade bem como as relações entre a cozinha, as pessoas e os objetos, e destes todos inseridos na vida.

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