Algumas interseções entre a Etnomusicologia e a Fenomenologia

May 28, 2017 | Autor: Paulo Amado | Categoria: Música, Etnomusicologia, Fenomenologia
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ALGUMAS INTERSEÇÕES ENTRE ETNOMUSICOLOGIA E FENOMENOLOGIA Paulo Vinícius Amado [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais Resumo: A caminhada no ramo da Etnomusicologia, e a necessária adoção de seus respectivos métodos e ferramentas para realização de pesquisas no âmbito da expressividade e dos significados musicais conduzem o pensamento para considerações e aproximações outras da área de estudo. O procedimento, desta maneira, conduz à aproximação entre a Etnomusicologia e a Fenomenologia, mais propriamente através do pensador francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), referenciado ao longo deste texto. Os modos de interpelação de ambas vertentes podem ser muitos, e se desdobram, interpenetram e coadunam-se; aqui, entretanto, pretende-se manter a consideração num âmbito do crucial para uma disciplina e outra: a atenção que dedicam à experiência. O artigo, então, estrutura-se a partir de uma abertura, em que se expõem interesses e possibilidades, as ideias que conduziriam ao pareamento das matérias etnomusicológicas e dos pressupostos fenomenológicos. Repercute o introito numa sugestão de exercício. A seção segunda trata exatamente da atenção à experiência, do enlevo que se dá ao termo e a noção que se desdobra dele em cada área de interesse, de Blacking a Cerbone, cada qual em sua empreitada. O acatamento ao elemento experiencial, depois de evidenciado, permite o retorno ao exercício antes sugerido, e dele se tomam exemplos e se intuem procedimentos em trabalhos etnomusicológicos diversos, e em etnografias musicais. E a descrição etnográfica reverbera, pois, como possibilidade de uma descrição fenomenológica: descrição do fenômeno música. Palavras-Chave: Etnomusicologia, Fenomenologia, Expressividade Musical. Abstract: The walk in the field of ethnomusicology, and the necessary adoption of their methods and tools for conducting research under the expressiveness and musical meanings call to mind for considerations and approaches with other zones of studies. The procedure, in this way, leads to rapprochement between Ethnomusicology and the Phenomenology, more specifically by the French philosopher Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), referenced throughout this text. The formal modes of both strands may be many, and unfold, interpenetrate and are consistent; here, however, is intended to keep the account in the context of a discipline and crucial to another: the attention they devote to experience. The article, then, is structured from an opening in which are exposed interests and possibilities, ideas that would lead to the pairing of ethnomusicological materials and phenomenological assumptions. There, so, a exercise suggestion. The second section deals exactly attention to the experience, of the importance given to the term and the notion that it unfolds in each area of interest, from Blacking to the Cerbone, each in his labour. So, back to the suggested exercise, taking examples and sensing procedures in ethnomusicological work, and musical ethnographies. And the ethnographic description resonates as the possibility of a phenomenological description: description of music phenomenon. Keywords: Etnomusicology, Phenomenology, Musical Expressivity.

Abertura

A tarefa não é das mais simples: introduzir algo dum engendramento nas ementas da Etnomusicologia e da Fenomenologia. Alguma dificuldade se percebe deste intuito, e se

ergue, em parte e em paradoxo, porque existem, sim, vários modos de iniciar as aproximações; nenhum, entretanto, ideal ou inconcusso – e uma abordagem sempre carece ou resvala em outra, embora teimem em não caber numa mesma frase ou escopo. A demanda, então, tratar-se-á melhor no âmbito de escolhas, e estas, mais propriamente, no horizonte metodológico. A tentativa inaugural do vislumbre de confluências, aproveitando a coincidência de que ambas as disciplinas têm histórias ‘acertadamente definidas’, poderia tomar como base o fato de a Etnomusicologia e a Fenomenologia contarem com raízes cravadas ainda no século XIX1, surgindo de anseios cognoscitivos consideravelmente semelhantes. O emparelhamento histórico poderia se colocar no introito da dialética entre as matérias. Contudo, para um procedimento

assim

seria

necessário

perscrutar

vestígios

de

época,

além

de,

impreterivelmente, elencar uma série de personagens de uma e outra disciplina – e, claro, referir pelo menos resumos de seus respectivos postulados. As poucas linhas daqui não permitem tanto; ademais, a disposição cronológica e a escolha de determinados nomes e dados em detrimento de outros não seriam abordagens de fácil defesa2. O roteiro do desenvolvimento histórico ou das circunstâncias de eclosão d’algumas premissas etnomusicológicas e enunciados fenomenológicos seriam, sim, interessantes de detalhar – em paralelo e coincidência – mas num trabalho inteiramente dedicado ao propósito. Para os intentos daqui, cumpre considerar que ambos os ramos de estudo, desde sua incipiência oitocentista, desenvolveram-se a maneira de convites à reflexão e ao questionamento das formas corriqueiras de instituição do conhecimento; uma inquirindo a pertinência e abrangência do conceito de ‘música’, a outra, mais radical, pondo em cheque as próprias estruturas cognoscitivas do que se exprime através do termo e da noção de ‘conceito’. Outra tentativa na procura de avizinhamento entre as duas linhas de atuação ora interessantes poder-se-ia apoiar numa abordagem etimológica, calcando-se, logo, na 1

Considerando-se, na base da afirmativa, apontamentos de Bruno Nettl, em artigo na ocasião dos 50 anos da “Society for Ethnomusicology” (EUA, 2005). O autor tcheco-estadunidense indica ‘prenúncios’ da etnomusicologia em trabalhos de Alexander John Ellis em 1885, ainda no período das duas últimas décadas do século XIX. Tiago de Oliveira Pinto (2005), mesmo problematizando o tema, também menciona algo dos antecedentes da etnomusicologia em trabalhos de “musicologia comparada” ou “comparativa”, mencionando o nome do austríaco Guido Adler (1855-1941). Sobre a Fenomenologia é ponto consensual que os escritos inaugurais da corrente filosófica venham do tcheco, radicado e atuante na Alemanha, Edmund Husserl (1859-1938). (Cerbone, 2012 e Matthews, 2010). 2 Pelo que se conhece e se estuda da Etnomusicologia e da Fenomenologia, através de trabalhos de cultores de uma e outra, pode-se inferir que uma tomada do assunto com tal abordagem historiográfica poderia ser – e razoavelmente – taxada como positivista (usando-se o termo de Bloch, 2001, p. 43). Com isso em mente, mais uma vez se escusa a hipótese do alistamento de nomes e sequenciamento de casos provenientes de uma matéria ou outra.

investigação dos radicais léxicos que formam os dois nomes, e na dedução, daí, de seus pressupostos essenciais. Ora, as próprias palavras “etnomusicologia” e “fenomenologia”, claro, incitam sempre curiosidade, sobretudo, quando num primeiro contato – e disto a pertinência de uma empreitada de análise original e mórfica. O esforço, porém, em defini-las partindo de tais premissas – associando linearmente palavras precedentes – levantaria, provavelmente, muito mais questões que esclarecimentos: do ramo de estudo mais próximo do musical, perguntar-se-iam, por exemplo, o que significa um estudo ou ‘ciência (‘logia’) étnica da música’ (?!)... E a respeito da escola filosófica de um Husserl pós-kantiano, talvez se estendessem em demasia as dúvidas acerca de uma definição ao menos inicial da noção de “fenômeno”. O estabelecimento destes predicados e domínios, então, pouco auxiliaria para elucidação do que se toma como especialmente significante nesse movimento de coadunação de ideários das duas matérias.

Caminhando diferentemente destas investidas, embora ainda trabalhando no apontamento de afinidades entre Etnomusicologia e Fenomenologia, parece envolvente a realização de um exercício – diga-se ‘utilitário’ – orientado por princípios de uma e outra disciplina simultaneamente. Considere-se, então, abordar de uma só vez um cenário em que existe música – com todas as suas especificidades e características – atentando para alguns dos ‘fenômenos’ dessa situação que se apresentem como dignos de nota. Ora, em pouco tempo se percebe que a empreitada, aparentemente dupla, é na realidade una e indivisa; e a abordagem etnomusicológica de um contexto musical, se avaliada mais de perto e em seus pormenores, deixa entrever exatamente o seu apego por uma série de fenômenos relativos ao sonoro, ao humano e às interpelações das duas esferas; é como se, nesta proposta de exercício, música e fenômeno se tomassem como sinônimos. Ora, tome-se a música como fenômeno, e atente-se à perspectiva. Considere-se ainda sua constituição enquanto acontecimento no mundo que, longe de ser resolutamente considerado via sistemas abstratos e prognósticos, se torna compreensível, de fato, pela inferência de um tipo de engendramento seu com o humano. Ou, menos intricado: rememorem-se os ensinamentos centrais da etnomusicologia, que remetem exatamente a constituição complexa da música no trânsito e interpelação entre o sonoro e o humano (Merriam, 1977 e Seeger, 2008); e disso se cogite entrever nela – e dela – noções como de cognição, intencionalidade e consciência, termos próprios do léxico fenomenológico (Merleau-Ponty, 1999 e Matthews, 2010).

Cumprindo-se tais diretrizes, muito possivelmente se chegue à percepção do imbricamento fundamental entre as áreas da Etnomusicologia e da Fenomenologia. O resumo das constatações coadunadas diz, pois, que a música – em sua facticidade3 tão variada quanto expressiva, e em praticamente todas as circunstâncias culturais que se têm notícias – só se deixa compreender, de fato, pelo seu artesanato próprio e em seu momento de feitura. Com a vocação de se esquivar das formas usuais de conceituação4 a música apresenta-se essencialmente mais como verbo do que substantivo, mais ato e menos objeto, algo de menos abstrato e mais processual (Small, 1998 e Cook, 2006a).

Da atenção à Experiência

Aceitando as premissas acima, chega-se, pois, à característica definidora comum da Etnomusicologia e da Fenomenologia; e a aproximação pretendida se desenha por um ponto que, infira-se, funciona como norte, de algum modo, para ambas: a atenção que dedicam à experiência é, portanto, o elo a se ter em conta. Averiguando o campo da Etnomusicologia, não será difícil perceber o cuidado de seus estudiosos ao elemento experiencial das culturas musicais. Com destaque, mencionem-se Blacking, 1995 – com o trinômio “música-cultura-experiência” sublinhado desde o título de seu trabalho – e Seeger (2008, p.244) tratando de “costumes, reflexões e miríades de circunstâncias que dotam a música de seus efeitos.” Além destes, uma gama de outros autores poderia ser citada validando a ideia da centralidade da experiência enquanto elemento de definição da música5. O elemento experiencial é de ordem capital: chega-se, pois, à inferência de que não à toa se utiliza a expressão ‘experiência musical’; o uso da locução não é inadvertido – parte da consideração do elemento humano e da singularidade do envolvimento dos indivíduos com determinados sons que lhes chegam ao contato (Amado, 2014).

3

O termo adotado conforme Merleau-Ponty, 1999 e Dupond, 2010. Cabe citar: “Quando tentamos falar de música, dizer a música, as palavras ressentidas, travam a garganta”, confirma George Steiner [...]. Uma vez sendo claro que não poderíamos mesmo pensar em traduzir arte alguma com palavras ou conceitos – de outro modo, elas não teriam sequer razão de existir – é fato que diante da música as palavras costumam dizer apenas banalidades ou se colocar a serviço de descrições dispensáveis e laterais à experiência da escuta. (Barbeitas, 2011, p. 24). 5 Ainda que mais ou menos diretamente, este caráter se constata em trabalhos como os de Feld, 1982 e Turino, 2008. Barbeitas, 2011, retomando Blacking, 1995, tangencia a temática da experiência em música, embora seu viés caminhe mais para a Filosofia. Cook, 2006b, toca no assunto enquanto argumenta, provocativamente, do quanto os métodos e apontamentos etnomusicológicos deveriam ser caros à praticamente todo universo da pesquisa acadêmica em música. 4

Já no ramo da Fenomenologia, se a situação difere em algum nível, aponte-se que qualquer distinção se dá mesmo pelo aprofundamento da consideração diretiva à própria noção de ‘experiência’, isto é, no grau de enlevo que o termo recebe para os filósofos desta linha. Se para a Etnomusicologia o quê experiencial da música é sublinhado como elemento que se soma a outros numa definição do que se pode denominar, amplamente, como “musical”, para os fenomenólogos o elemento experiencial humano estabelece a própria ‘ocupação’ de sua disciplina:

[...] focar nossa atenção não tanto no que experienciamos lá fora no mundo, mas na nossa experiência do mundo, é dar o primeiro passo na prática da fenomenologia. A palavra “fenomenologia” significa “o estudo dos fenômenos”, onde a noção de um fenômeno e a noção de experiência [...] coincidem. Portanto, prestar atenção à experiência em vez de àquilo que é experienciado é prestar atenção aos fenômenos. (Cerbone, 2012, p. 13).

Sem que se pretenda que a relação entre a ideia de experiência musical e a noção de experiência fenomenológica pareça obvia, é de se afirmar que, para este trabalho, torna-se suficiente resumir o seguinte: levando-se em conta a experiência humana enredada com ou pela a música, é quase automático que se considere – de alguma maneira – que a música é um fenômeno (n’onde se corroboram as ideias de Titon, 2008 e Berger, 2008). E novamente se concorda com Small, 1998, lendo-o, contudo, através da orientação mais próxima do que se considerará daqui pra frente: o ‘musicar’ (“musicking” conforme o estudioso neozelandês), segundo se crê, instaura-se em experiências ricas de sentido: a música, nesse ínterim, se toma menos como ‘coisa’ e mais pelo seu estatuto fenomênico.

O leitor permitirá um parêntese e, com alguma boa vontade, rememorará uma proposta: lembre-se, pois, de onde se cogitou um exercício em que se coadunassem apontamentos etnomusicológicos e fenomenológicos. A necessidade de algumas denominações e referenciais não permitiu, entretanto, que se exemplificasse ali o exercício, e nem que se fixasse uma descrição mais detalhada do desenrolar de uma atividade assim orientada; isso não significa, porém, que o exemplo não exista e nem que não se encontre próximo. Ora, voltando-se a atenção para a construção de alguns importantes trabalhos do ramo etnomusicológico – e, em especial, para suas etnografias – o que se lê, na maioria das vezes, não se furta àquilo que se considera como uma redação descritivo-fenomenológica.

Como exemplos desta ‘linha de atuação’– e um pouco em sua defesa – são pertinentes alguns escritos de Harris Berger e Jeff Todd Titon6. Algumas incursões metodologicamente semelhantes notar-se-ão também em relatos como os de Turino, 2007 e Amado, 2014. Em suma, o que se destaca na construção etnográfica destes é o anseio, um tanto aparente, de se delinear a trama das ocorrências do campo não só pelo seu ditado cronologicamente organizado ou pela transcrição de entrevistas estruturadas de antemão: a pretensão neles incrustada – e isto se percebe com alguma clareza – é a de atentar para os elementos sensacionais vindos das manifestações musicais as quais ouviam-observavam7. E se a busca era pela expressão musical, ou pelos índices de expressividade e/ou significação da música dos seus ‘interlocutores’, realmente as investigações parecem ter se encaminhado bem; concordam, pois, com procedimentos atualmente considerados plausíveis na área da Etnomusicologia, dos quais – em exemplo ou pelo uso – extrai-se algo da antes tratada imbricação de apontamentos mais amplos da Fenomenologia8. Surgem, visto isso, motivos para acreditar contundentemente na aproximação proposta, ou pelo menos na tangência de pressupostos da disciplina etnomusicológica e do método fenomenológico de descrição e de constituição do pensamento: O encaixe entre fenomenologia e etnografia – ou, mais precisamente, o encaixe da fenomenologia com as intenções mais humanísticas do impulso etnográfico – é [dos] mais justos. Apesar de muitas dificuldades, existe, creio eu, uma compreensão essencial no antigo projeto etnográfico como praticado na etnomusicologia. Embora o trabalho de campo possa ser conceituado em uma série de formas, vários etnógrafos na nossa disciplina tomam como sua tarefa o objetivo de entender as experiências de outras pessoas. [...] a preocupação etnográfica com a experiência é, creio eu, a chave para o laço de compromisso da etnomusicologia com o mundo mais próximo das pessoas e suas músicas [...]. A ênfase na experiência é também o que faz a fenomenologia relevante para a etnomusicologia e etnografia [da música]: a fenomenologia oferece um rigoroso método para estudar experiências. (Berger in Barz & Cooley, 2008, p. 68). 6

Os dois pesquisadores norte-americanos, mencionados anteriormente, além de valerem-se das orientações ora consideradas, também teorizam o assunto da abordagem fenomenológica da música em estudos de campos musicais. 7 A ideia de utilizar o binômio da‘audição-observação’ na descrição do trabalho de campo é fruto de reflexões trazidas por Caznok, 2003, que trata da relação sinestésica entre visão e audição no estudo da música. A decisão apoia-se também no trabalho de Hikiji que critica a “impregnação dos discursos imagéticos” (2004, 05) no campo das humanidades, inclusive ao se tratar de fenômenos musicais. Ocorre, entretanto, que a influência maior em tal procedimento surge da leitura da Fenomenologia da Percepção, 1999 [1945] do filósofo e catedrático francês Maurice Merleau-Ponty. 8 Ora mais, ora menos conscientemente dependendo do autor a que se considera. Assim, nem todos os autores que se mencionam trazem delimitada a decisão de se aproximar de estudos com viés fenomenológico. Acontece, entretanto, que a essência de sua metodologia tangencia orientações fenomenológicas cruciais, colocando a experiência no centro da compreensão do musical.

Da inferência ao método

Apreenda-se e avalie o seguinte, em contexto:

Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar. Essa primeira ordem que Husserl dava à fenomenologia iniciante de ser uma "psicologia descritiva" ou de retornar "às coisas mesmas" [...]. Tudo aquilo que sei do mundo [...] o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos [...] não poderiam dizer nada. (Merleau-Ponty, 1999, p. 03).

A etnografia da música [se define] [...] por meio de uma abordagem descritiva da música que vai além do registro escrito de sons, apontando para o registro escrito de como os sons são concebidos, criados, apreciados e como influenciam outros processos musicais e sociais, indivíduos e grupos. A etnografia da música é a escrita sobre as maneiras que as pessoas fazem música. [...]. A música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros. [...]. A definição de música como um sistema de comunicação enfatiza suas origens e destinações humanas e sugere que a etnografia (escrita sobre música) não somente é possível, mas é uma abordagem privilegiada do estudo da música. (Seeger, 2008, p. 239).

Algo de prático disso, então, fixa-se no seguinte: a cada dia, os meios e ferramentas adotados pela etnomusicologia têm se tomado mais e mais como ferramentas assertivas nas investigações das estruturas que permitem aos sons se investirem de sentidos musicais e de significados sociais contextuais (Cook, 2006a e 2006b). Esta

realidade

desvela,

então,

uma

característica

crucial

dos

trabalhos

etnomusicológicos e, sobretudo, das suas respectivas narrativas etnográficas, conforme proposto; note-se que os relatos neste modelo se apresentarão, talvez, um tanto mais comoventes – co-moventes [!] – ou, permita-se a inferência, mencionam e dialogam constantemente com o ramo da estesia, da apreensão do sensível e de seu consequente reconhecimento ainda sem o melindre de demonstrar o impacto vívido que causa – e tomando-se pesquisas assim, crê-se que algum valor se lhes atribui exatamente pela dedicação em descrever as sensações do campo, o quê experienciável que se engendra no complexo significante do fenômeno da música. Sobremaneira:

O trabalho de campo não é mais visto como principalmente o de observar e coletar (embora, com certeza, envolva estas ações), mas o de vivenciar e compreender a música. [...]. O novo trabalho de campo nos leva a perguntar como é para uma pessoa (incluindo nós mesmos) fazer e conhecer a música enquanto experiência vivida. (Titon in Barz & Cooley, 2008, p. 25).

O elo pressentido do exercício que se propunha acima aparece, pois, exemplificado, e relativamente sedimentado e cabível de se adotar amiúde. O ramo dos estudos de cunho etnográfico e etnomusicológico ganha quando se percebe páreo aos anseios da descrição fenomenológica – método crucial da filosofia husserliana e merleau-pontyana.

[...] é possível dizer que a descrição fenomenológica da música, [...] se dá em observação dos seguintes aspectos: 1) a descrição visa alcançar o movimento antecipador do ser, pelo qual intuímos a música; 2) a descrição expressa uma disposição afetiva que orienta a compreensão da música; 3) a descrição ocorre efetivamente no tempo em que vigora a tensão entre matéria e forma e o decorrente acontecimento da verdade; 4) a descrição é reveladora da música em sua relação com o mundo circundante [...]. (Costa e Silva, 2013, p. 06).

Apontamentos finais

Enfim, se é correto afirmar que os referenciais teóricos servem ao propósito de fornecer orientações e argumentos que se instalem na base metodológica das pesquisas, não se pode desconsiderar que as diretrizes procedimentais ora levadas em conta posicionam-se, no mínimo, instigantes ao uso efetivo. As maneiras de ombrear Etnomusicologia e Fenomenologia aparecem, pois, em determinados trabalhos para além de uma possibilidade procedimental – mostram-se experimentadas, e com sucesso. Conciliar práticas e direcionamentos de ambas torna-se um passo interessante: e aqui, se retoma ativamente a dialética entre ‘campo’ e ‘gabinete’ ou as elucubrações complexas do desenvolvimento paralelo de leituras críticas e execução de trabalhos etnomusicológicos e de etnografias da música. A hermenêutica disso desenha-se complexa, e coloca-se em trânsito. Etnomusicologia e Fenomenologia: mais que a consideração de um par de disciplinas, trata-se de compreensão do ir-e-vir entre o pesquisador e o fenômeno música.

Referências AMADO, Paulo Vinícius. A expressividade no Choro: um estudo a partir de perspectivas da Etnomusicologia e da Fenomenologia. 2014. 173 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. BARBEITAS, Flávio Terrigno. Música, linguagem, conhecimento e experiência. In: Revista Terceira Margem, nº. 25, p. 17-39. Rio de Janeiro, julho/dezembro de 2011. BERGER, Harris M. Phenomenology and the Ethnography of Popular Music. In: Shadows in the Field: New Perspectives for Fieldwork in Ethnomusicology. New York: Oxford University Press, p. 62-74, 2008. BLACKING, John. Music, culture, and experience. In: BYRON, Reginald (Org.). Music, culture & experience: selected papers of John Blacking. Chicago and London: University of Chicago Press, 1995. p. 223-242. BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CAZNOK, Yara Borges. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. CERBONE, David R. Fenomenologia. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012. COOK, Nicholas. Entre o processo e o produto: música e/enquanto performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.14, p.05-22, 2006a. COOK, Nicholas. Agora somos todos (etno) musicólogos. Título original: We are All (Ethno) musicologists now. Tradução de Pablo Sotuyo Blanco. Ictus – Periódico do Programa de Pós-graduação em Música da UFBA, n.7, 2006b. DUPOND, Pascal. Vocabulário de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FELD, Steve. Sound and Sentiment: birds, weeping, poetics and song in Kaluli expression. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982. HIJIKI, Rose Satiko Gitirana. Possibilidades de uma Audição da Vida Social. In: Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais, 28, 2004, São Paulo, SP. Anais do XXVIII Encontro Anual da ANPOCS: Ciências Sociais em Outras Linguagens, São Paulo: 2010. p. 02-29. MATTHEWS, Eric. Compreender Merleau-Ponty. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERRIAN, Alan P. Definitions of ‘Comparative Musicology’ and ‘Ethnomusicology’: an Historical-Theoretical Perspective”. In: Ethnomusicology, vol. 21, nº. 02, p. 189-204, 1977.

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